sexta-feira, 30 de março de 2012

Contencioso Administrativo: Sistema Britânico e Sistema Francês

COMENTÁRIO


" Contencioso Administrativo: Sistema Britânico e Sistema Francês

Compreender o conceito de justiça administrativa, passa obrigatoriamente por desenvolver os modelos que numa razão histórica se vincaram pela sua diferença. Referimo-nos claramente ao modelo francês e britânico.

O Modelo Francês também denominado como administração executiva, dada a autonomia reconhecida ao poder executivo relativamente aos tribunais, assenta no espírito da Revolução Francesa, que em 1789 atacou o regime estabelecido e consagrou um novo princípio de organização dos poderes. O princípio da separação dos poderes com todas as suas implicações materiais e orgânicas, ao consagrar uma linha diferente de pensamento com um papel primordial reconhecido ao Parlamento ou órgão legislativo, em detrimento do órgão executivo na figura do Monarca. Com o modelo francês exige-se na sequência destas ideias um contencioso especial para actuação de direito público da Administração. Basicamente os Tribunais ad,imistrativos, fugiam à lógica dos tribunais judiciais, e eram antes órgãos administrativos independentes, embora actuando segundo um processo jurisdicionalizado, eram “quase-tribunais”.

O contencioso administrativo era constituído pelo recurso de anulação de decisões administrativas, recurso esse de mera legalidade (uma vez que apenas se impugnavam os actos com base em excesso de poder ou por violação de lei), sucessivo (dado que pressupunha uma decisão administrativa prévia, real, ou em situações de omissão ficcionada, como o acto tácito) e limitado (pois o juiz so podia anular o acto).

Por sua vez, institui-se uma verdadeira justiça administrativa, dentro da lógica própria e comum a todos os tribunais, embora com a separação orgânica da jurisdição comum.

Por oposição a este modelo, o sistema administrativo de tipo britânico, ou de administração judiciária, tinha disposições próprias.

Quanto à organização administrativa o sistema britânico é um sistema descentralizado, e o controlo jurisdicional da administração, ao contrário do que acontece em França, é entregue aos Tribunais Comuns.

Na sequência disso em Inglaterra há pois, unidade de jurisdição, enquanto que na França existe dualidade de Jurisdições.

No sistema Britânico, o direito regulador da administração é o Direito comum, o que equivale ao Direito Privado. E no que toca à execução das decisões administrativas, o sistema de administração judiciária fá-la depender da sentença do Tribunal, ao passo que o sistema de administração executiva atribui autoridade própria a essas decisões e dispensa a intervenção prévia de qualquer Tribunal

Por último, quanto às garantias jurídicas dos administrados, a Inglaterra confere aos Tribunais Comuns amplos poderes de injunção face à Administração, que lhes fica subordinada como a generalidade dos cidadãos.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Temas e Problemas de Processo Administrativo - Vasco Pereira da Silva

Instituto de Ciencias Juridico-Politicas
Vasco Pereira da Silva
(Coordenacao)
Antonio Candido Oliveira / Vasco Pereira da Silva
Carlos Blanco de Morais / Isabel Celeste Fonseca
Pedro Machete / Joao Raposo
Carla Amado Gomes / Ana Neves
Temas e Problemas de
Processo Administrativo
Intervencoes do Curso de Pos-graduacao sobre o
Contencioso Administrativo
Organizacao de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
Com o patrocinio da Fundacao Luso-Americana para o Desenvolvimento
Instituto de Ciencias Juridico-Politicas
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Temas e Problemas de
Processo Administrativo
Intervencoes do Curso de Pos-graduacao sobre o
Contencioso Administrativo
Vasco Pereira da Silva
(Coordenacao)
Antonio Candido Oliveira / Vasco Pereira da Silva
Carlos Blanco de Morais / Isabel Celeste Fonseca
Pedro Machete / Joao Raposo
Carla Amado Gomes / Ana Neves
Organizacao de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
Com o patrocinio da Fundacao Luso-Americana para o Desenvolvimento
Temas e Problemas de Processo Administrativo
INTRODUCAO
áTemas e Problemas de Processo Administrativoâ reune algumas das intervencoes
realizadas no ambito do Curso de Pos-graduacao em Contencioso Administrativo,
organizada pelo Instituto de Ciencias Juridico-Politicas da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, e por mim coordenado. O objectivo do Curso, como agora do
livro, era o de convidar alguns dos mais reputados especialistas da doutrina a debrucaremse
sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, numa altura em que esta se encontra ja
consolidada na ordem juridica portuguesa, por ocasiao do seu sexto ano de vigencia.
O presente livro reune as intervencoes daqueles, de entre os docentes participantes
do Curso, que aceitaram o convite e enviaram o respectivo texto, esperando-se agora que
os demais participantes possam ainda enviar as suas intervencoes, a medida que se realizem
posteriores cursos de pos-graduacao, os quais poderao dar origem a futuras edicoes da
obra, no sentido de completar a analise das principais questoes processuais da Justica
Administrativa. A forma de e-livro, para alem da novidade, pareceu assim ser uma boa
forma de realizar este desiderato de gum livro em construcaoh, permitindo avancar com os
estudos ja disponiveis, sem prejuizo dos que poderao chegar depois.
Vasco Pereira da Silva
3
Instituto de Ciencias Juridico-Politicas 4
Temas e Problemas de Processo Administrativo
INDICE
1- ANTONIO CANDIDO OLIVEIRA , áA Organizacao Judiciaria Administrativa e
Fiscalâ c....................................................................................................................... pag. 7
2- VASCO PEREIRA DA SILVA , ágDo Velho se Fez Novohâ. A Accao
Administrativa Especial de Anulacao de Acto Administrativoâ c................... pag. 34
3- CARLOS BLANCO DE MORAIS , áA Impugnacao dos Regulamentos no
Contencioso Administrativo Portuguesâ c......................................................... pag. 85
4- ISABEL FONSECA , áOs Processo Cautelares na Justica Administrativa - Uma
Parte da Categoria da Tutela Jurisdicional de Urgenciaâ c............................. pag. 121
5- PEDRO MACHETE , áProcesso Executivoâ c............................................... pag. 165
6- JOAO RAPOSO , áRevisitando a Tramitacao da Accao Administrativa Especialâ
c.............................................................................................................................. pag. 183
7- CARLA AMADO COMES , áReflexoes Breves sobre a Accao Publica e a Accao
Popular na Defesa do Ambienteâ c................................................................... pag. 201
8- ANA NEVES , áContencioso da Funcao Publicaâ c....................................... pag. 221
5
Instituto de Ciencias Juridico-Politicas 6
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A organizacao judiciaria administrativa e fiscal
Antonio Candido Oliveira1
I- Introducao1
Para uma melhor compreensao dos problemas da organizacao judiciaria
administrativa e fiscal, importa compara-la com a jurisdicao civel (na qual incluimos a
laboral e a comercial), deixando de lado a jurisdicao penal, cuja finalidade mais visivel e
condenar, atraves de um processo justo, as pessoas que praticam crimes (e so estas).
A jurisdicao civel aprecia questoes que surgem entre cidadaos. Todos temos
experiencia disso (o arrendatario que entra em litigio com o senhorio, o credor com o
devedor, o proprietario com o vizinho, o marido com a mulher, o herdeiro com o
beneficiario de um testamento, o socio com a sociedade). Aqui a nota dominante e que
estamos, em regra, perante litigios entre particulares, ainda que, frequentemente, estes nao
sejam pessoas fisicas, mas pessoas colectivas de direito privado (sociedades, associacoes e
outras). O mesmo nao sucede na jurisdicao administrativa e fiscal. Aqui estamos perante
uma situacao diferente. Trata-se, em regra2, de litigios que opoem cidadaos a um poder
publico e nao a outro cidadao. Do que se trata aqui e da actuacao de um poder publico (a
Administracao) que pode violar direitos dos cidadaos. O cidadao lesado nos seus direitos
busca naturalmente a reparacao ou a prevencao de uma possivel lesao.
Estas particularidades da jurisdicao administrativa e fiscal compreendem-se melhor
a luz do Estado de Direito e do principio da separacao dos poderes que lhe esta ligado. O
Estado de Direito, como sabemos, exige a separacao entre os poderes publicos (por
oposicao a concentracao dos poderes propria dos Estados autoritarios) e exige tambem que
1 Doutor em Direito. Professor Catedratico da Escola de Direito da Universidade do Minho.
1 Texto que, sem prejuizo de algumas alteracoes e actualizacoes, servira de base para a sessao do
Curso de Pos-Graduacao em Contencioso Administrativo da Faculdade de Direito Universidade de Lisboa e
que, por sua vez, tem como fonte o livro gOrganizacao Judiciaria Administrativa e Tributariah que
publicamos em 2003 e segue de perto um artigo publicado no revista Scientia Iuridica,n.o 301, Jan-Mar. 2005,
pp. 59-88
2 Pode haver, como sabemos litigios entre entes publicos e tambem entre entes particulares mas
exercendo um destes poderes publicos (sociedade privada concessionaria de servicos publicos).
7
Temas e Problemas de Processo Administrativo
os cidadaos possam aceder aos tribunais para obter reparacao3 contra as lesoes que sofram
ou possam sofrer nos seus direitos. A separacao dos poderes exige, tambem o sabemos,
tribunais independentes e imparciais para administrar a justica (poder judicial), exige ainda
um poder com a missao primordial de fazer leis (poder legislativo) e tambem um poder
com a missao de executar as leis e satisfazer interesses publicos (poder administrativo).
Prestemos um pouco mais de atencao ao poder administrativo de que a
Administracao e, em regra, o titular. Este poder quase passava despercebido nas teorias de
separacao dos poderes que estudamos (principalmente Locke e Montesquieu). A atencao
maior era dirigida para o poder legislativo e para o poder judicial, acentuando-se sempre a
importancia da independencia deste para defesa dos cidadaos contra o arbitrio. Esta
formulacao da teoria da separacao de poderes, que praticamente ignorava a Administracao,
foi muito bem realcada por Garcia de Enterria4. Este autor lembrava que essa referencia
apagada a Administracao Publica estava de acordo com as doutrinas liberais do seculo XIX.
A Administracao deveria ter um papel minimo acantonada na defesa da seguranca das
pessoas e na arrecadacao de impostos (que se desejava, mesmo assim, fossem poucos).
Nao foi esta concepcao minima (quase marginal) da Administracao Publica que
prevaleceu (se e que alguma vez foi tao minima quanto se fez acreditar) e, pelo contrario,
quer na Europa continental, quer na Inglaterra, o poder executivo, a Administracao, foi
crescendo sempre e tomou um importante lugar na separacao dos poderes. Sabemos
porque. O Estado passou a intervir nos mais variados dominios e essa intervencao obrigou
a existencia de uma maquina administrativa poderosa. A intervencao comecou por ser feita
atraves de leis, mas a execucao destas so poderia ter lugar por meio da Administracao. Os
exemplos estao a vista. Quando o legislador entendeu regular as condicoes de vida dos
trabalhadores nas fabricas, foi preciso criar organizacoes que vigiassem o cumprimento das
leis nomeadamente os horarios de trabalho e o trabalho de mulheres e criancas. Quando o
legislador entendeu dar assistencia aos pobres, foi preciso criar organizacoes assistenciais
para concretizar a vontade legislativa. Quando o legislador entendeu difundir e ate tornar
obrigatoria a educacao escolar, foi preciso criar instituicoes de ensino, organizar programas,
regular exames e fazer inspeccoes. Quando considerou importante cuidar da saude das
pessoas, foi necessario criar instituicoes hospitalares e contratar medicos e enfermeiros. O
desenvolvimento economico, principalmente o industrial, determinou, por sua vez, a
proliferacao de leis e regulamentos que sujeitavam a licenciamento as mais variadas
3 Pode tambem tratar-se de uma prevencao perante a ameaca de uma ofensa
4 E. GARCIA DE ENTERRIA . Revolucion Francesa y Administracion contemporanea, 2a ed.,
Madrid, 1981
8
Temas e Problemas de Processo Administrativo
actividades. So em Portugal de pouco mais de 25 mil pessoas ao servico do Estado em
principios do seculo XX passou-se para mais de 600 mil decada de oitenta e o numero
continuou a subir ate aos nossos dias. Repare-se que este crescimento nao se operou, na
mesma medida, no poder legislativo ou no poder judicial. Operou-se essencialmente no
poder administrativo.
E o que se pedia a Administracao? Pedia-se (e pede-se) que, dentro da lei (principio
da legalidade mais tarde apurado com a designacao de principio da juridicidade), satisfizesse
os importantes interesses publicos que lhe eram postos a cargo. A Administracao prossegue
assim o interesse publico tal como este e definido pela lei e de acordo com ela. Mas, se a
Administracao, ao exercer a sua actividade, actua arbitrariamente, violando os direitos ou
interesses dos cidadaos ou nao prossegue o interesse publico? Aqui reside o problema. E
nao e pequeno, pois agora nao estamos perante um conflito entre particulares (cidadaos ou
empresas) mas um conflito entre um particular5 e um poder publico dotado de poderes
proprios. Acresce ainda que o principio da separacao dos poderes manda os tribunais
julgar, mas impede-os de administrar e assim nao lhes permite invadir o terreno proprio da
funcao administrativa.
De qualquer modo, este problema resultante da separacao de poderes nao pode ser
motivo para impedir os tribunais de julgar e de julgar os actos ou omissoes da
Administracao lesivos dos direitos dos particulares. A Administracao Publica era (e e) um
poder publico que devia ser respeitado, mas nao podia ferir os direitos dos cidadaos. Jogava
aqui o outro pilar do Estado de Direito, ja referido, que era o do acesso dos cidadaos aos
tribunais para defender os seus direitos e interesses quando violados ou ameacados.
Era necessario encontrar aqui solucoes e solucoes equilibradas. Solucoes, ou seja,
remedios para os males causados pela Administracao e solucoes equilibradas, isto e, dentro
do respeito pela separacao dos poderes. Esta foi - e tem sido - uma questao dificil de
resolver e tem, ainda hoje, a sua pedra de toque na execucao das sentencas dos tribunais
administrativos. Repare-se que se for necessario impor a forca para fazer valer uma decisao
judicial contra a Administracao e preciso utilizar os meios da Administracao (e esta que
possui a forca) contra ela propria. Convenhamos que nao e facil. Pelo contrario, este uso da
forca ja se torna mais simples quando a decisao judicial resolve um conflito entre
particulares, pois a Administracao esta de fora.
5 Mesmo que se trate de um funcionario a defender os seus direitos como trabalhador.
9
Temas e Problemas de Processo Administrativo
II . Uma perspectiva historica, incluindo alguns paises europeus
A) Da Revolucao Francesa ate meados do seculo XX
Nada melhor que uma perspectiva historica, englobando a experiencia de alguns
paises europeus para ver a delicadeza deste problema. Deixamos de lado o periodo anterior
ao liberalismo, nao porque nao tenha importancia, mas porque pertence a um mundo com
quadros diferentes daqueles que hoje temos. Vamos centrar-nos, por isso, no periodo
posterior. O liberalismo estabeleceu, como dissemos, a separacao dos poderes e ao
estabelecer a separacao dos poderes trouxe ao de cima um problema: o das relacoes entre o
poder judicial e o poder executivo no qual se encontrava a Administracao.
Sobre a subordinacao destes ao poder legislativo nao havia duvidas. A lei estava
acima de ambos. O problema era a relacao entre a Administracao e os Tribunais e
particularmente o de saber o que poderia fazer o cidadao vitima de arbitrariedades do
poder administrativo. A solucao era, aparentemente, facil. Os poderes estavam separados:
um exercia a funcao administrativa, outro a funcao jurisdicional; e se a funcao
administrativa exorbitasse das suas funcoes e violasse direitos os cidadaos ai estava o poder
judicial para tomar conhecimento dessas violacoes. Nao era uma interferencia do poder
judicial no poder administrativo era o exercicio da funcao jurisdicional relativa a
comportamentos de quem violava os direitos dos cidadaos. Isto era evidente ja naquele
tempo e nao so evidente como praticavel. E houve um pais que seguiu essa via. Foi a
Belgica.
a) A solucao judicialista belga
Na perspectiva historica costuma esquecer-se (ou deixar a margem) a Belgica e nao
nos parece bem que assim se proceda por tres razoes: a Belgica e um pais pequeno como o
nosso e que, por esse motivo, ha interesse em acompanhar; acresce que recebeu, como
Portugal, profunda influencia francesa e adoptou uma solucao oposta a da Franca. Por fim,
a solucao belga foi mencionada recorrentemente nas disputas que durante o seculo XIX
ocorreram em Portugal sobre a justica administrativa.
Como e sabido, neste ponto, costuma falar-se da Franca e da Inglaterra e da velha e
muito interessante polemica entre Dicey e Hauriou. Falaremos da Franca e da Inglaterra
mais adiante. A Belgica seguiu a solucao dita judicialista, isto e, entregou aos tribunais
judiciais a resolucao dos conflitos entre os cidadaos e a Administracao. Alias, procedeu
assim para se afirmar perante a Franca. Tendo estado sujeita a este pais ate 1815, tendo
10
Temas e Problemas de Processo Administrativo
experimentado fortes intromissoes da Administracao na vida dos Tribunais e tendo
sofrido a mesma experiencia de intromissao no periodo de 1815 a 1830 em que esteve
submetida a Holanda (principalmente na parte final), a Belgica optou, sem prejuizo da
separacao dos poderes, pela submissao dos litigios em que eram partes cidadaos e a
Administracao aos tribunais. Isto e, respeito pela separacao dos poderes ate ao fim com a
consequente entrega das questoes judiciais aos tribunais. Nao e, na verdade, o facto de a
Administracao ser parte num litigio que torna este gadministrativoh e nao judicial. Sempre
que se trata de resolver uma questao de direito e aos tribunais que cabe a resolucao
independentemente das partes que estao envolvidas.
E, assim, a Constituicao belga de 1831 atribuiu aos tribunais comuns a resolucao
das questoes entre os cidadaos e a Administracao sobre direitos civis e direitos politicos
(estes, em regra, pois ficou aberta a porta para excepcoes). Questao diferente e a de saber
como funcionou este sistema, mas isso e assunto para falarmos mais adiante.
b) A solucao administrativista francesa
A Franca nao seguiu, ja o dissemos, essa via. Todos falamos nesta materia da
solucao francesa, do seu modelo administrativista por oposicao ao modelo judicialista. O
que se passou?
A lei sobre a organizacao judiciaria de 16-24 de Agosto de 1790 determina, por um
lado, que as funcoes judiciarias sao distintas e permanecerao sempre separadas das funcoes
administrativas e, por outro, que os juizes nao poderao, sob qualquer forma, perturbar as
operacoes das autoridades administrativas nem de citar perante eles os administradores por
virtude das suas funcoes. Isto, afirma-se, determinou o regime administrativo frances. A
primeira parte do preceito consagrou a separacao dos poderes e a segunda parte a proibicao
dos tribunais de julgar a administracao.
No entanto, ha quem defenda que nao e essa a unica interpretacao dessa norma1.
Ha quem defenda que esse preceito apenas estabeleceu aquilo a que o principio da
separacao dos poderes obriga: colocar a funcao administrativa nas maos dos
administradores e a funcao judicial nas maos dos juizes. A proibicao dada aos juizes de citar
perante eles os agentes da administracao era estabelecida apenas para o que tocava o
exercicio de funcoes administrativas e, assim, se houvesse uma questao judicial para
resolver ela deveria ser resolvida pelos juizes ainda que uma parte fosse a Administracao (e
isto porque julgar e tarefa dos juizes). E a separacao dos poderes que o exige. Nesta linha
1 P. SANDEVOIR .Etudes sur le recours de pleine juridiction, Paris, 1964 ; J. CHEVALLIER .
Lfelaboration historique du principe de la juridiction administrative et de lfadministration active, Paris, 1970
11
Temas e Problemas de Processo Administrativo
de raciocinio, por a Administracao a resolver litigios em que e parte constituiria uma
violacao do principio da separacao dos poderes.
De qualquer modo, por razoes varias, a solucao judicialista nao foi seguida. A
desconfianca dos revolucionarios perante os tribunais judiciais (tradicionalmente nas maos
da nobreza e por isso suspeitos de serem adversos ao novo regime); a vontade de conferir
liberdade de accao a Administracao e ainda a tradicao do Antigo Regime que tinha levado o
Rei a chamar a si as questoes em que estivesse envolvido o Estado (Edit de Saint-Germain
de 1641) conduziu a uma solucao de natureza administrativa. Nesse sentido apontou uma
lei de Setembro de 1790 e durante cerca de 10 anos os litigios que surgissem por accao ou
omissao da Administracao eram, por esta mesma, resolvidos.
Em 1799, ja por intervencao de Napoleao Bonaparte, foram criados ao lado dos
orgaos da Administracao activa, orgaos de administracao consultiva. Instituiu-se, a nivel
central, o Conselho de Estado que depois de algumas dificuldades de organizacao albergou,
a partir de 1806, uma seccao do contencioso a qual foi confiada a apreciacao de litigios em
materia administrativa. O Conselho de Estado apenas emitia consultas sobre essas
questoes, ficando a decisao nas maos do Imperador. Mas essas consultas eram proferidas
apos observancia de regras processuais e quase sempre acolhidas.
A solucao encontrada em Franca para resolver os litigios tinha ainda orgaos a nivel
local os gconselhos de prefeiturah que tinham uma forte dependencia do Prefeito
(autoridade colocada a frente dos cerca de 80 departamentos criados depois da Revolucao)
e embora as suas decisoes tivessem mais forca do que as consultas (eram deliberacoes
vinculativas) delas era sempre possivel recorrer para o Conselho de Estado e, por essa via,
as decisoes acabavam por ficar, pelo menos formalmente, na dependencia da administracao
activa.
Importa referir aqui um aspecto que anda muitas vezes esquecido. Estes orgaos so
intervinham, em regra, para resolver questoes em que estivessem em causa direitos
subjectivos dos litigantes.
A construcao do recurso contencioso de anulacao que fez a fama do sistema
frances e nos termos do qual se poderia invocar nao a lesao de um direito subjectivo, mas
de um interesse legitimo teve de percorrer um longo caminho. So depois de 1830 o
Conselho de Estado comecou a admitir o alargamento da legitimidade para recorrer e
admitir recursos de quem invocava nao a violacao de um direito, mas apenas a violacao de
interesses. Alguem que pretendia, invocando apenas um interesse, que a legalidade fosse
restabelecida tinha agora um meio ao seu alcance. Este recurso mereceu os favores da lei e
12
Temas e Problemas de Processo Administrativo
assim para o interpor dispensava-se a assistencia de advogado e de custas. Era o interesse
da defesa da legalidade. A sua consagracao legal so se verifica muito mais tarde (por uma lei
de 1872).
Nesta materia de fiscalizacao dos actos da Administracao Publica e preciso ter em
conta tambem para uma mais abrangente compreensao que, desde o principio do seculo
XIX, sempre houve, em Franca, litigios cuja resolucao foi confiada aos tribunais comuns
apesar de nao ser essa a regra estabelecida como vimos. Foi ainda Napoleao que, para
evitar os problemas que poderiam trazer as questoes relativas a expropriacoes as confiou
aos tribunais comuns (nomeadamente as disputas relativas a indemnizacoes) e tambem fez
o mesmo em relacao a certos impostos mais controversos.
De mencionar ainda que em Franca foram mantidas jurisdicoes especiais
tradicionais, principalmente confiadas a orgaos colegiais profissionais2.
c) Os problemas do sistema belga
Temos assim dois modelos o administrativista frances e o judicialista belga. E como
funcionaram? Uma resposta muito natural seria esta: nao ha duvida que a Belgica seguiu o
melhor caminho e dai uma melhor solucao. Nada mais errado! Os tribunais judiciais belgas
contiveram demasiado a sua actuacao, fazendo uma interpretacao restritiva do que deveria
entender-se por direitos (nomeadamente direitos politicos) e demonstraram uma
preocupacao excessiva de nao se intrometerem na actividade da administracao. O que era
feito pela Administracao era respeitado mesmo que nao merecesse respeito... Ficaram
famosos dois casos contados por um autor belga de nome Bourquin, em 19123.
A Administracao belga ordenou a expulsao de um cidadao holandes. Este cidadao
impugnou jurisdicionalmente a decisao e um tribunal de 1a instancia belga deu-lhe razao.
Tendo havido recurso para o tribunal de Bruxelas este invocou, para anular a decisao do
tribunal de 1a instancia, a gincompetencia dos tribunais para dirigir ordens as autoridades
administrativash. Pesou aqui o seguinte raciocinio: se a Administracao da uma ordem para
expulsar, ela la sabe porque o que faz (exercicio da actividade administrativa) e nao vao ser
os tribunais a tomar a responsabilidade de manter o cidadao no pais. Outro a caso celebre
foi o de uma cidada belga que trabalhava num cabare e que foi obrigada a submeter-se as
visitas sanitarias destinadas a prostitutas. A cidada Apoline Meeus recusou-se, alegando que
2 R. CHAPUS . Droit du contentieux administratif,9a ed., 2001.
3 M.BOURQUIN . La protection des Droits Individuels contre les Abus de Pouvoir de lfAutorite
Administrative en Belgique, Bruxelas, 1912, pp. 60 e ss.
13
Temas e Problemas de Processo Administrativo
nao era prostituta. O Supremo Tribunal, no entanto, entendeu que era incompetente para
controlar o fundamento de um acto da administracao que tinha ordenado a inscricao de
uma mulher no registo das gmulheres publicash. Tambem aqui o raciocinio foi identico: se
a Administracao a registou, ela la sabia o que fazia; e estando registada tinha de submeter-se
as visitas. De nada valeu o facto de em tribunal de primeira instancia Apoline ter sido
admitida a provar (e provou) que nao era prostituta e consequentemente ter sido proferida
decisao que a libertava de tais visitas. O gavocat generalh junto do Supremo Tribunal bem
sustentou que recusar o controlo judiciario da inscricao seria entregar a mulher a
arbitrariedade da Administracao, violando o seu direito a liberdade individual e violando
tambem a organizacao legal e constitucional da Belgica. Mas o tribunal superior invocou o
principio da separacao dos poderes, dizendo que este se opoe a que os tribunais conhecam
os actos da administracao para suster ou paralisar os seus efeitos.
Este caso e tao significativo que foi utilizado por Michel Leroy para abrir o seu
manual de contencioso administrativo (edicao de 1996) para vincar onde podem chegar as
coisas se o poder da Administracao nao e controlado. Neste contexto, compreende-se o
lamento de um politico belga em 1906: g Nos temos as instituicoes menos completas, as
menos boas da Europa no que respeita a Administracao. Em nenhuma parte ela tem
poderes tao extensos e em nenhuma parte os abusos por ela praticados comportam menos
remedios. Em Franca, ha o Conselho de Estado ao qual se pode recorrer em numerosos
casos. Mas aqui quando a Administracao fala, tudo esta ditoh4.
A Franca, apesar de fazer justica administrativa atraves do Conselho de Estado e
nao dos tribunais comuns, demonstrou estar em condicoes de a controlar mais eficazmente
e foi aperfeicoando esse controlo. Com muitas deficiencias, certamente. Mas tambem com
muitos aspectos positivos. O Conselho de Estado era um orgao muito respeitado e os seus
membros conheciam bem a Administracao nao tendo problemas em indagar com detalhe o
que esta fazia e sindicar o que nao estava conforme a lei.
d) Sobre a Inglaterra
Mas poderiamos pensar que as coisas eram diferentes na Inglaterra5. Num pais de
largas tradicoes democraticas o controlo judicial da Administracao seria outra coisa.
Acresce que se trata de uma administracao nao executiva, ou seja, a administracao nao tem
poderes perante os cidadaos que lhe permitam impor unilateralmente a sua vontade. Sao as
4 M. LEROY . Contentieux Administratif, Bruxelas, 1966, p. 57
5 Ao falar da Inglaterra devemos ter muito cuidado dadas as particularidades das suas seculares
instituicoes e o que a seguir vai escrito deve ser lido tendo isso em atencao.
14
Temas e Problemas de Processo Administrativo
conhecidas ideias de Dicey6. Mas porventura temos de refazer algumas das ideias que
temos, nesta materia, sobre a Inglaterra.
Dicey afirmava que na Inglaterra, ao contrario do que sucedia na Franca, as
autoridades publicas estavam no mesmo pe que os cidadaos. Elas nao possuiam, por tal
razao, poderes exorbitantes e muito menos gozavam de jurisdicao especial (tribunais
administrativos) para dirimir os conflitos que surgissem. Ora, estas afirmacoes de Dicey
devem ser vistas, por um lado, tendo em conta a realidade da Gra-Bretanha na altura em
que foram inicialmente escritas (a maquina administrativa inglesa era ainda muito debil) e,
por outro, devem tambem ser revistas, dada a evolucao que foi ocorrendo da realidade
insular. Alias, as ideias de Dicey foram, desde logo, sujeitas a criticas com base na falta de
atencao a realidade inglesa, sendo interessante ler um artigo de Edmund Parker publicado
na Harward Law Review7, em 1905, no qual se dizia que era desconhecer o direito ingles
afirmar que este nao reconhecia direitos, privilegios e prerrogativas perante os cidadaos ou,
por outras palavras que as autoridades publicas estavam na mesma situacao que os cidadaos
uns com os outros. Um olhar pela literatura juridica de Inglaterra da primeira metade do
seculo XX mostra-nos um conjunto muito significativo de privilegios da Coroa que
limitavam fortemente os direitos dos subditos. Ainda sobre Dicey, um autor alemao W.
Friedmann doutor em Direito pela Universidade de Berlim e de Londres criticava Dicey,
responsabilizando-o em boa parte pelo atraso do direito administrativo na Inglaterra e pela
difusao errada de que nao havia privilegios e imunidades da Coroa8.
E verdade que os cidadaos podiam ter acesso aos tribunais ordinarios, dotados de
meios amplos de actuacao perante a Administracao, mas a verdade e que este acesso para
alem de complicado e caro (ainda hoje sujeito a uma permissao . gleaveh - do proprio
tribunal), deixava sem proteccao certas situacoes quando estava em causa a Coroa, devendo
ter-se ainda em conta que os prazos para atacar actos das autoridades administrativas eram
curtos.
Elucidativos sobre a debilidade da proteccao judicial dos cidadaos sao dois casos
apresentados por C. J. Hamson, um professor de Direito Comparado de Cambridge, que
estudou o funcionamento do Conselho de Estado frances e que escreveu um livro
traduzido para frances em que relatou essa experiencia9. Um taxista queixou-se contra uma
6 A.V. DICEY . Introduction to the Study of the Law of the Constitution, 10a ed., Londres, 1959.
7 E. M. PARKER . State and Official Liability, Harward Law Revue, vol. XIX, 1905-1906, pp. 335 e
ss.
8 W. FRIEDMANN . Law in a Changing Society, Londres, 1964, pp. 275-277
9 C. J. HAMSON - Pouvoir Discretionnaire et Controle Juridictionnel de lfAdministration, Paris,
1958, pp. 22 e ss.
15
Temas e Problemas de Processo Administrativo
autoridade de policia que lhe retirou a sua licenca de exercicio da sua actividade. A
autoridade administrativa invocou para o efeito que estava habilitada para tal por um
regulamento que prescrevia que a licenca podia ser retirada se a autoridade entendesse que
o seu titular nao estava apto para a conservar. Chamada a decidir sobre este assunto, a High
Court deliberou que nao podia intervir neste caso, usando um dos remedios a sua
disposicao nomeadamente o de certiorari (hoje quash). E isto porque o court nao tinha que se
imiscuir na actividade administrativa. Se a autoridade dizia que a licenca tinha que ser
retirada por o taxista nao estar apto, tudo estava bem perante o court. Nao era preciso dar
razoes.
No outro caso apresentado por Hamson tratava-se de um cidadao que tinha sido
internado ao abrigo de disposicoes legais e o problema era a fundamentacao dessa decisao
de internamento. O regulamento para ordenar o internamento (detencao) dizia: gSe o
Secretario de Estado do Interior possui um motivo razoavel para pensar que uma pessoa e
de origem inimiga ou tem ligacoes com o inimigo ou que se encontrou recentemente
implicada em actividades prejudiciais a seguranca publica e a defesa do reino (...) o
Secretario de Estado pode ordenar que seja internadah. Ora o Court (seccao da Camara dos
Lordes) chamado a pronunciar-se considerou que o Ministro estava no direito de nao dar
qualquer explicacao sobre as razoes que o tinham levado a emitir a ordem de internamento.
Bastava que o ministro declarasse que tinha um motivo razoavel (reasonable cause). Isto
espantou o interlocutor frances de Hamson, membro do Conselho de Estado, que
procurou saber a fundo se as coisas se poderiam passar assim na Inglaterra. E podiam!
Assim, o controlo judicial da Administracao estava e esta muito longe de ter a
superioridade e de ser a perfeicao que Dicey pretendeu transmitir. Ainda sobre a Inglaterra,
muito ha para dizer que nao cabe no ambito desta intervencao. Principalmente, a partir do
inicio do seculo XX ocorreu o fenomeno de intervencao da Administracao nos mais
diversos dominios, tendo surgido leis para regular tais intervencoes e tendo sido criados ao
mesmo tempo (por essas mesmas leis) orgaos para dirimir os conflitos que dai pudessem
decorrer. Esses orgaos receberam, em regra, o nome de tribunals (administrative tribunals).
Eles davam aparentemente uma garantia de justica barata e pronta que os courts nunca
dariam10. Mas tinham problemas serios tais como a sujeicao aos departamentos ministeriais
e o pouco cuidado posto no preenchimento dos cargos de quem tomava as decisoes sobre
os litigios. Ao longo do seculo XX vamos assistir a constantes esforcos para melhorar os
10 Alias, algumas leis atribuiram inicialmente aos courts a solucao de tais questoes, mas estes nao
provaram bem, ficando inundados de processos e o legislador passou a utilizar os tribunals. Isto nao aconteceu
sem criticas, falando-se a este proposito de um novo despotismo (cfr. LORD HEWART OF BURY . The
New Despotism, Londres, 1929)
16
Temas e Problemas de Processo Administrativo
tribunals, tendo desempenhado, nesse aspecto, um papel fundamental o relatorio Franks
(1957).
Este relatorio foi seguido de legislacao conforme que colocou os tribunals na orbita
da administracao da justica, ainda que mantivessem muitas debilidades que foram objecto
de particular atencao muito mais tarde no importante relatorio Leggatt elaborado em 2001
e que sera ulteriormente objecto de referencia.
e) Um relance sobre alguns paises da Europa
Olhemos rapidamente outros tres paises da Europa. Se a situacao na Belgica, na
Franca e na Inglaterra, neste periodo, estava longe de ser a ideal na defesa dos direitos dos
cidadaos perante a Administracao, a situacao era mais complicada ainda nos restantes. A
Italia, apesar de tudo, ainda pos de pe uma organizacao interessante e relativamente estavel.
Comecou por seguir o modelo belga de atribuicao da jurisdicao aos tribunais judiciais
(1865) mas, passados pouco mais de 20 anos (1889/1890), passou para um sistema misto.
Os tribunais ordinarios conheciam dos litigios relativamente a direitos e o Conselho de
Estado e as gjuntas provinciais administrativash as questoes em que estavam em causa
meros interesses legitimos. Por sua vez, a Espanha, tal como a Alemanha, passou o seculo
XIX e a primeira metade do seculo XX a fazer tentativas de aperfeicoamento da justica
administrativa do ponto de vista organizatorio com resultados que estiveram longe de ser
satisfatorios. Depois de um agitado periodo de implantacao do liberalismo, a Espanha
introduziu em 1845 um sistema administrativista de inspiracao francesa com o Conselho de
Estado e os conselhos provinciais, passou, em 1868, para um sistema judicialista e adoptou
depois, em 1888, um sistema dito harmonico ou misto (com tribunais compostos por
magistrados e funcionarios), assim se mantendo ate 1956. A Alemanha tentou tambem
varias experiencias e acabou por instituir tambem tribunais do contencioso administrativo
com participacao mista (Hesse e Prussia).
f) A questao organizatoria em Portugal
Portugal andou sempre, durante o seculo XIX e principios do seculo XX, a procura
de uma organizacao judiciaria em materia administrativa satisfatoria sem o conseguir.
Estiveram sempre presentes duas correntes: uma mais conservadora que preconizava a
solucao administrativista e outra mais liberal, defendendo o sistema judicialista de
inspiracao belga. Comecou pelo primeiro modelo com o Conselho de Estado e conselhos
de distrito a moda francesa e tentou, por vezes, o segundo, nomeadamente na I Republica.
Foi o modelo administrativista que prevaleceu e refira-se, como ponto alto, a organizacao,
entre 1886 e 1892, de uma estrutura constituida por tribunais administrativos distritais
17
Temas e Problemas de Processo Administrativo
compostos de 3 juizes e pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA). A estabilizacao do
nosso modelo operou-se apenas em 1933 com tres auditorias administrativas e um STA. As
auditorias passaram a duas em 1941. E o tempo de Marcello Caetano que se vai prolongar
por cinco decadas, marcando profundamente todo o nosso contencioso administrativo.
Sobre as debilidades nao so organizatorias, mas intrinsecas, do contencioso administrativo
portugues importa ler o artigo que este ilustre administrativista publicou na revista gO
Direitoh, em 193011.
Muito critico, M. Caetano atribui a fraqueza do nosso contencioso administrativo
nao so a instabilidade organizatoria como ao atraso da doutrina que nao acompanhou a
evolucao francesa do alargamento da legitimidade activa aos titulares de interesses legitimos
(e nao apenas aos titulares de direitos subjectivos) e desse modo a uma maior fiscalizacao
da Administracao. De um modo incisivo escreveu: g(U)m contencioso limitado a poucos
actos e fechado a raros cidadaos, corresponde a uma suave fiscalizacao jurisdicional sobre a
administracao activa e portanto a maior tendencia dos agentes desta para exorbitarh; e
acrescentou: g (O) facil acesso aos tribunais, a restricao do dominio reservado ao poder
administrativo, representa, pelo contrario, uma consideravel seguranca contra as investidas
da autoridade e da burocracia, pois nao so o cidadao podera em muitos casos ver reparada
a ofensa que lhe foi feita, como os proprios agentes do servico publico se tornam mais fieis
respeitadores da lei, no temor de que se descubra e proclame a incorreccao do seu
procedimentoh12.
Ao mesmo tempo em Portugal (e ao contrario de outros paises como a Franca)
estabeleceu-se uma organizacao judiciaria propria em materia em materia aduaneira
(auditorias fiscais e Tribunal Superior do Contencioso Fiscal) e em materia tributaria com
tribunais especiais de 1a instancia (distritais), tribunal de 2a instancia e Tribunal Superior do
Contencioso das Contribuicoes e Impostos. Nao durou muito tempo sem alteracoes esta
organizacao e, em 1933, o Supremo Tribunal Administrativo absorveu estes tribunais
superiores.
g) Uma perspectiva geral deste periodo
Num olhar sobre este periodo verificamos que nao foi facil avancar no controlo da
Administracao Publica e constatamos ainda o paradoxo de um pais (Belgica), que seguiu a
via judicialista do controlo da Administracao Publica, ter tido menos sucesso que outro pais
(Franca) que seguiu uma via mais proxima da Administracao.
11 M. CAETANO . Sobre o problema da legitimidade das partes no Contencioso Administrativo
portugues, in gO Direitoh, n.o6, Junho de 1933, ano 65.o, pp. 162 e ss
12 M. CAETANO . Sobre o problema da legitimidade..., p. 162
18
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Verificamos tambem que a instabilidade organizatoria de muitos paises, como
Portugal e Espanha, nao permitiu que se vissem resultados, tendo a justica administrativa
chegado a meados do seculo XX em estado muito pouco satisfatorio13.
B) Depois do inicio da segunda metade do seculo XX (fim da II Guerra
Mundial)
O fim da II Guerra Mundial (1939-1945) veio trazer uma profunda revolucao no
dominio da justica administrativa e assim na respectiva organizacao. O Estado de Direito
consolidou-se e com ele o controlo judicial da Administracao Publica. Em todos os paises
que adoptaram regimes democraticos foram dados passos, que continuam nos nossos dias,
para o estabelecimento de uma organizacao judiciaria bem estruturada acompanhada de
meios processuais muito mais eficazes. Passos que nuns paises foram mais rapidos, noutros
menos.
1- A solucao alema: pluralismo da organizacao judiciaria
A Alemanha foi um exemplo acabado de estruturacao de uma organizacao judiciaria
bem conseguida dentro do principio do pluralismo da organizacao judiciaria. Houve
previamente uma discussao sobre o principio da unidade da organizacao judiciaria e o
principio do pluralismo, acabando este por vencer. Assim, temos hoje uma organizacao
judiciaria em materia administrativa com 52 tribunais administrativos de 1a instancia, tendo
cada um destes tribunais varias seccoes. Depois, uma segunda instancia com 16 tribunais
administrativos superiores (tantos quantos os Lander). E, na cupula, existe o Tribunal
Federal Administrativo (Leipzig). A reforma da organizacao judiciaria foi acompanhada por
uma nao menos importante reforma do processo administrativo (acolhendo o principio da
tutela judicial efectiva dos direitos subjectivos dos cidadaos) ainda hoje em vigor nos seus
tracos fundamentais e que inspirou, em larga medida, a nossa reforma de 2002.
A Alemanha possui tambem, em separado, uma organizacao judiciaria tributaria
com 19 tribunais tributarios em 1a instancia (com formacoes de julgamento de 3
magistrados profissionais e 2 nao profissionais) e o Tribunal Federal Fiscal ou Tributario
na cupula. A organizacao judiciaria da seguranca social e tambem autonoma e conta com
13 M. CAETANO - Sobre o problema da legitimidade..., p. 162 e ss; J. GONZALEZ PEREZ .
Evolucion de la Legislacion Contencioso-Administrativa, in RAP, n.o 150,1999, pp. 222 e 230.
19
Temas e Problemas de Processo Administrativo
69 tribunais de 1a instancia, 16 tribunais de 2a instancia (um por cada Land) e um Tribunal
Federal com sede em Kassel.
2- A solucao espanhola: tribunais especializados dentro de uma jurisdicao unica
A Espanha, ainda no periodo da ditadura, deu um grande passo em frente,
colocando-se na primeira linha da evolucao da organizacao judiciaria. Estabeleceu a
unidade de jurisdicao com tribunais especializados. Saber como foi possivel, em 1956, dar
um passo tao importante neste ramo da justica e ainda hoje, em Espanha, tema de
discussao14. Assim, havia uma primeira instancia com audiencias territoriais de ambito
regional (ainda que as regioes fossem entao meras circunscricoes administrativas), tendo
uma seccao do contencioso administrativo para conhecer das questoes locais e de ambito
regional e o Supremo Tribunal de Justica com uma seccao do contencioso administrativo
para conhecer das questoes de ambito nacional. Problemas nao resolvidos foram apenas os
relativos aos limites decorrentes de um processo judicial muito marcado pela influencia
francesa a que acresceram os obstaculos postos pelo regime autoritario entao vigente.
Em 1977, ja no regime democratico, criou-se a Audiencia Nacional com sede em
Madrid e uma seccao do contencioso administrativo15 para conhecer de questoes relativas a
orgaos de competencia nacional mas situados abaixo das comissoes delegadas do Governo.
Foi uma forma de diminuir a carga de trabalho da seccao de contencioso do Supremo
Tribunal de Justica o que nos faz pensar no nosso Tribunal Central Administrativo criado
muito mais tarde. Em 1998, houve uma importante ampliacao da organizacao judiciaria
bem como dos meios processuais de forma a garantir melhor a tutela judicial efectiva dos
direitos dos cidadaos. Assim, foram criados, nomeadamente, tribunais de 1a instancia
(juzgados do contencioso administrativo), cobrindo todo o territorio de Espanha (mais de 100),
ainda que com competencia limitada (enumeracao por lista). Com competencia geral e de
recurso das decisoes dos juzgados continuaram as seccoes do contencioso administrativo
dos Tribunais Superiores de Justica (um em cada comunidade autonoma), a seccao do
contencioso administrativo da Audiencia Nacional e, na cupula, a seccao do contencioso
administrativo do Supremo Tribunal de Justica.
14 J. GONZALEZ PEREZ . Evolucion de la Legislacion Contencioso-Administrativa..., pp. 209 e
ss.
15 A criacao da Audiencia Nacional esta muito ligada ao problema do terrorismo em Espanha, tendo
importantes competencias em materia de justica penal e uma seccao a esta destinada.
20
Temas e Problemas de Processo Administrativo
3- A evolucao em Franca
Em Franca, depois da II Guerra, em 1953, os conselhos de prefeitura foram
extintos e, em seu lugar, foram criados tribunais administrativos de 1a instancia, com o encargo
de conhecer tambem questoes que ate ai afogavam o Conselho de Estado. Ficou assim
estabelecida uma rede de tribunais administrativos de 1a instancia que hoje sao 35, dos
quais 27 na metropole. Em 1987, foram criados tribunais administrativos de apelacao
(actualmente 7). E no centro do sistema16 mantem-se o Conselho de Estado. Em Franca,
continua a haver jurisdicoes administrativas especializadas, mas sofrendo grandes criticas17.
Ha tambem um tribunal dos conflitos (que nao existe na Alemanha) mas com uma
composicao diferente, para melhor, da do portugues. E ha um orgao de auto-governo que e
o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos (de 1a instancia e de apelacao) e que
nao abrange os membros do Conselho de Estado. Estas alteracoes organizatorias foram
sendo acompanhadas por significativos avancos dos meios colocados ao dispor dos juizes
dos tribunais administrativos para obrigar as autoridades administrativas a cumprir as
determinacoes por eles tomadas18.
Este avanco nao foi tao longe quanto se desejaria, considerando-se que a Alemanha
possui meios processuais mais eficazes de controlo judicial da Administracao para garantia
dos direitos subjectivos dos cidadaos, mas deve ter-se em conta que o acesso a justica
administrativa esta de certa forma mais limitado na Alemanha do que em Franca. Na
Alemanha, e preciso invocar a violacao ou ameaca de violacao de um direito subjectivo19
para aceder aos tribunais administrativos, em Franca esse acesso esta mais facilitado, pois
tendo um sistema de justica em materia administrativa mais orientado para a defesa da
legalidade objectiva, aceita a invocacao pelas partes nao so de direitos subjectivos, mas de
interesses dignos de proteccao.
4- Os aperfeicoamentos da peculiar solucao italiana
A Italia discutiu a sua organizacao judiciaria nos trabalhos preparatorios da
Constituicao de 1948. Calamandrei defendia a integracao da justica administrativa na justica
ordinaria com tribunais especializados e a consequente supressao de funcoes jurisdicionais
do Conselho de Estado. Prevaleceu, porem, uma corrente de continuidade e, assim, o
16 E conhecida a afirmacao de Chapus de que a organizacao judiciaria administrativa francesa e mais
gsolarh do que piramidal.
17 R. CHAPUS . Droit du contentieux..., p.86.
18 R. CHAPUS . Droit administratif general, Tome 1, 14a. ed. , 2000, pp. 798 e ss.
19 Note-se, entretanto, os esforcos que tem sido feitos na jurisprudencia e na doutrina alemas para
alargar o conceito de direitos subjectivos.
21
Temas e Problemas de Processo Administrativo
artigo 103.o da Constituicao estabeleceu que g (O) Conselho de Estado e os outros orgaos
de justica administrativa tem jurisdicao para a tutela nos confrontos com a administracao
publica dos interesses legitimos e, em particulares materias indicadas pela lei, tambem dos
direitos subjectivosh. Esta referencia a outros orgaos da justica administrativa tinha a ver
com o art. 125.o da Constituicao Italiana que previa a instituicao, nas regioes, que deveriam
ser criadas, de orgaos da justica administrativa de 1.o grau. O artigo 102.o estabelecia que a
funcao jurisdicional era exercida por magistrados ordinarios, proibindo a instituicao de
juizes extraordinarios ou especiais. Ainda o artigo 113.o prescrevia que gcontra os actos da
administracao publica era sempre admitida a tutela jurisdicional dos direitos e interesses
legitimos perante os orgaos de jurisdicao ordinaria ou administrativah.
Para se ter uma visao mais completa, ainda que rapida, da Constituicao Italiana e
preciso lembrar que uma norma transitoria previa a revisao dos numerosos orgaos de
jurisdicao administrativa no prazo de 5 anos. Este prazo nao foi cumprido e a
concretizacao dos preceitos constitucionais italianos demorou decadas a ser posta em
pratica. Assim, so em 1971 foram criados tribunais administrativos regionais que
comecaram a funcionar em 1974 no momento em que foram instituidas as regioes
administrativas. Desta forma so entao acabaram as juntas provinciais administrativas cuja
constitucionalidade tinha sido ja posta em causa por sentencas do Tribunal Constitucional
de 1967 e 1968 por delas fazerem parte funcionarios hierarquicamente dependentes do
Ministerio do Interior
A partir de 1974 vamos ter, pois, os tribunais ordinarios a conhecer das questoes
que envolvessem a apreciacao de direitos e tribunais administrativos para as questoes
relativas a interesses legitimos e tambem a direitos subjectivos, havendo uma tendencia
legislativa para atribuir cada vez mais aos tribunais administrativos competencias globais
(direitos e interesses) sobre certas materias (urbanismo, por exemplo).
A organizacao dos tribunais administrativos possui hoje em Italia dois niveis. Na
base os tribunais administrativos regionais (um por cada regiao e assim 20, tendo 10 destes,
situados em regioes mais populosas, seccoes destacadas) e na cupula o Conselho de Estado
atraves de 3 das suas 6 seccoes. Os tribunais administrativos regionais sao compostos de
cerca de 270 juizes profissionais, numero considerado muito baixo e que explica os
enormes atrasos processuais. Sao recrutados por rigoroso concurso. De notar que todas as
questoes sao apreciadas em primeira instancia pelos tribunais administrativos regionais
(TAR), assumindo papel muito relevante o TAR do Lazio, com sede em Roma, no qual
caem as questoes em que esta implicado o Governo.
22
Temas e Problemas de Processo Administrativo
O Conselho de Estado exerce as suas funcoes jurisdicionais, atraves das seccoes IV,
V e VI, e quando foi criada em 1948 a VI Seccao foi tambem criada uma seccao
especializada do Conselho de Estado para a Sicilia (Consiglio de Giustizia Amministrativa
per la Regione Siciliana). Existe um orgao de autogoverno que abrange todos os
magistrados, havendo assim uma magistratura administrativa unica, tendo como orgao
superior o Conselho da Presidencia da Justica Administrativa.
A Italia tem ainda tribunais administrativos especiais mas em pequeno numero.
Tem particular significado o Tribunal de Contas com seccoes em todas as regioes e que
para alem das funcoes proprias de um tribunal que julga as contas tem a seu cargo a materia
de pensoes (civis e militares).
A estrutura organizatoria da justica administrativa continua a ser discutida em Italia
ate porque a situacao actual com a necessidade de distinguir direitos subjectivos e interesses
legitimos (tarefa nada facil) nao satisfaz, havendo quem defenda a criacao de uma jurisdicao
autonoma segundo o modelo alemao e quem defenda uma solucao mais proxima da
espanhola.
Um problema nao devidamente resolvido em Italia e a organizacao judiciaria em
materia tributaria. Ela forma ainda uma organizacao a parte com raizes pre-constitucionais,
tendo falhado as tentativas para a integrar ora nos tribunais administrativos, ora nos
tribunais ordinarios como tribunais especializados. Hoje existem comissoes tributarias
provinciais que julgam em 1a instancia (uma em cada capital de provincia . cerca de 50);
comissoes tributarias regionais que decidem em 2a instancia, com sede na capital de cada
regiao; e na cupula funciona a 5a Seccao do Supremo Tribunal de Justica (1999). Ha assim
uma aproximacao a jurisdicao ordinaria, mas falta uma reforma mais profunda desta
organizacao judiciaria ainda muito dependente do Ministerio das Financas20. Ela tem
tambem um orgao de auto-governo: o Conselho da Presidencia da Justica Tributaria
5- Outros paises (algumas reformas ainda nao concretizadas)
Para alem destes paises que conseguiram ir mais longe no aperfeicoamento da
organizacao judiciaria (Alemanha, Espanha, Franca e Italia) devemos lancar o olhar sobre
alguns outros paises da Uniao Europeia, observando os seus problemas e o modo como os
vao tentando resolver.
20 A. URICCHIO . Lfamministrazione nella giustizia tributaria . Lforganizzazione delle
Commissioni tributarie,2000, p. 94.
23
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A Belgica criou, em 1946, o Conselho de Estado com uma seccao que exerce
funcoes jurisdicionais . a inspiracao francesa e aqui evidente -, mas tem ainda por resolver
o problema da 1a instancia. A nivel de primeira instancia existe aquilo que se tem chamado
uma desordem da jurisdicao administrativa, enxameada de orgaos administrativos especiais
de independencia duvidosa21. Procura-se criar uma rede de tribunais administrativos de 1a
instancia, tendo sido apresentada uma proposta que previa uma rede de 11 tribunais, mas
ainda nao foi possivel atingir esse objectivo
A Holanda tem ainda graves problemas de organizacao judiciaria por resolver com
um Conselho de Estado (CE) que so ha pouco tempo passou a ter jurisdicao delegada (ou
seja a decidir como um tribunal), na sequencia de condenacao por parte do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) feita no Acordao Benthem de 23 de Outubro
de 1985. Tratava-se de decidir sobre a instalacao de um posto de venda de gas de petroleo
liquefeito (GPL). Quem decidiu foi a Coroa, mediante parecer da seccao do contencioso do
Conselho de Estado. O TEDH entendeu que uma vez que os pareceres do CE podiam ou
nao ser seguidos, ele nao era um verdadeiro tribunal. No fundo, quem tinha a ultima
palavra era um ministro responsavel perante o Parlamento. A partir dai tentou-se estruturar
uma organizacao judiciaria em materia administrativa que teria em primeira instancia
seccoes do contencioso administrativo junto dos tribunais judiciais de circulo (19), uma
segunda instancia atraves de seccoes do contencioso junto dos tribunais de apelacao (5) e,
na cupula, uma seccao do contencioso administrativo junto do Supremo Tribunal de
Justica22. Seria o acolhimento do modelo espanhol, mas a verdade e que esta estrutura ainda
nao esta inteiramente montada. Existe, entretanto, uma organizacao judiciaria tributaria
mais conseguida com seccoes do contencioso tributario junto dos tribunais de apelacao e
uma seccao tributaria junto do Supremo Tribunal de Justica.
O TEDH tem influido indirectamente na organizacao judiciaria administrativa de
diversos paises europeus que ratificaram a CEDH por efeito da possibilidade que oferece
aos cidadaos desses paises de contestarem as decisoes tomadas por orgaos que, nos termos
do artigo 6.o da Convencao Europeia dos Direitos do Homem, nao possam ser
consideradas tribunais. O artigo 6.o consagra efectivamente o direito dos cidadaos a verem
julgados os litigios de que sejam parte por tribunais independentes. A natureza muitas vezes
duvidosa de orgaos que julgam questoes administrativas em diversos paises levam os
cidadaos a recorrer ao TEDH muitas vezes com sucesso. O Luxemburgo e a Austria entre
21 M. LEROY . Contentieux administratif..., p. 88 e ss.
22 W. KONIJNENBELT .Administration et fonctionnement de la justice aux Pays-Bas, in Annuaire
Europeen de lfAdministration Publique, 1991, pp. 235 e ss.
24
Temas e Problemas de Processo Administrativo
outros paises operaram modificacoes na sua organizacao judiciaria por efeito de decisoes
condenatorias daquele tribunal.
6- A Inglaterra mudou muito
A Inglaterra, como vimos, apesar da proclamacao no plano dos principios de uma
ampla e profunda sujeicao da Administracao aos tribunais comuns, nao tem ainda
devidamente concretizada na pratica essa submissao. E para resolver os numerosos
problemas decorrentes da intervencao administrativa, foi criando orgaos especiais
chamados tribunals e nao courts. A grande maioria deles sao court substitutes, ou seja, estao
vocacionados, tal como os courts, para resolver litigios e de acordo com as regras
jurisdicionais, aplicando, pois, o direito aos factos de forma independente e imparcial no
decurso de um processo com garantia de defesa das partes.
O que se tem vindo a verificar e, por um lado, um aperfeicoamento dos meios
processuais nos courts, sendo neste aspecto determinante a reforma de 1977 com a
introducao da application for judicial review. Alias, dentro da High Court foi criado muito
recentemente uma seccao denominada Administrative Court.
Por outro lado, no que toca aos tribunals, orgaos que ainda demonstram na sua
estrutura e funcionamento a origem administrativa, pois estao frequentemente ligados aos
departamentos governamentais que tomam decisoes obre as questoes que lhes estao
confiadas e nao tem a frente pessoas que devam ser considerados verdadeiros juizes , tem
havido uma preocupacao de os aperfeicoar e tornar cada vez mais independentes.
Neste aspecto foi da maior importancia a publicacao do ja mencionado Relatorio
Franks em 1957 e a subsequente reforma de 1958 que colocou, como atras dissemos, os
tribunals na esfera da jurisdicao e nao da administracao.
A entrada em vigor em 2000 do Human Rights Act, que acolheu no direito ingles a
Convencao Europeia dos Dirietos do Homem, obrigou a aperfeicoar ainda mais a actuacao
dos tribunals. Estes foram objecto de um importante estudo (o relatorio Leggatt de 2001)
que nas suas conclusoes fez importantes recomendacoes sobre a sua estrutura e
funcionamento com a finalidade de dissipar quaisquer duvidas quanto a sua natureza e que,
a ser seguidas, farao deles autenticos orgaos jurisdicionais.
As recomendacoes de Sir Leggatt23 vao, desde logo, no sentido de separar os
tribunals dos ministerios a que estao hoje ligados (tal como sucedia entre nos com os
23 http://www.tribunals-review.org.uk - Report of the Review of Tribunals by Sir Andrew Leggatt:
Tribunals for Users - One System, One Service [published 16 August 2001]
25
Temas e Problemas de Processo Administrativo
tribunais tributarios de 1a instancia), incorporando-os no Ministerio que trata dos assuntos
da justica. Recomenda-se ainda que estejam a frente dos tribunals, com a missao de julgar,
pessoas devidamente preparadas, garantindo-se a sua independencia e imparcialidade. O
relatorio propoe ainda que estes tribunais estejam organizados em dois niveis: tribunals de 1a
instancia dos quais ha recurso para tribunals de 2a instancia. Das decisoes destes havera
ainda recurso para um Court (The Court of Appeal). O recurso e feito para este ultimo tribunal
e nao para a High Court, porque membros desta fazem ja parte dos tribunals de 2a instancia.
Tem sido dados importantes passos no sentido apontado por Sir Leggatt.
Nos ultimos anos as transformacoes foram ainda mais profundas. Ver sobre este
aspecto o texto g A mais recente evolucao da justica administrativa em Inglaterra: os
tribunals g publicado nos gEstudos em Homenagem ao Professor Servulo Correia.
7- A questao em Portugal e a solucao da reforma de 2002
E em Portugal o que se passou? Nao ocorreu, entre nos, um reforma como a que se
operou em Espanha ou algo de semelhante e chegamos a 25 de Abril de 1974 com duas
auditorias administrativas dependentes do Ministerio do Interior; tribunais tributarios de 1a
instancia distritais e um tribunal de 2a instancia das contribuicoes e impostos na
dependencia do Ministerio das Financas (reforma de 1963); duas auditorias fiscais (Lisboa e
Porto) para conhecer de questoes em materia aduaneira, tambem na dependencia do
Ministerio das Financas. Na cupula tinhamos o Supremo Tribunal Administrativo na
dependencia da Presidencia do Conselho de Ministros, com 4 seccoes (administrativa,
tributaria, aduaneira e do trabalho).
Vamos assistir, depois de 1974, a algumas significativas mudancas. Pelo Decreto-
Lei n.o 250/74, de 12 de Junho, o Supremo Tribunal Administrativo e as auditorias
administrativas foram integradas no Ministerio da Justica como era proprio dos tribunais
judiciais. Os tribunais tributarios e aduaneiros mantiveram-se, contudo, na orbita do
Ministerio das Financas.
Nos trabalhos preparatorios da Constituicao de 1976, o projecto do CDS era o
mais detalhado na materia que nos ocupa e seguia a tradicao da I Republica, integrando os
tribunais administrativos e tributarios na jurisdicao ordinaria como tribunais especializados
(o projecto chamava aos tribunais do contencioso administrativo tribunais especiais dentro
da ordem judicial). Haveria uma seccao do contencioso no Tribunal da Relacao de Lisboa e
uma outra seccao do contencioso administrativo no Supremo Tribunal de Justica. O
projecto do PPD apontava tambem para a tradicao republicana de integracao da justica
administrativa na jurisdicao ordinaria atraves de tribunais especializados. O Professor Jorge
26
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Miranda, deputado do PPD, na luta que travou pela unidade de jurisdicao apresentou uma
proposta com o seguinte texto: gTodos os tribunais sao judiciais, salvo os tribunais
militares e o Tribunal de Contash. Esta proposta foi rejeitada por ser considerada
demasiado ambiciosa.
O texto apresentado pela 6a Comissao acabou por prever a existencia de tribunais
judiciais, de tribunais militares e de um Tribunal de Contas, nao havendo qualquer
referencia aos tribunais administrativos e fiscais. Foi apresentada uma proposta de
aditamento com a seguinte redaccao: gPodera haver tribunais administrativos e fiscaish. A
finalidade confessada era evitar que estes ficassem inconstitucionalizados. De notar que a
utilizacao da expressao tribunais administrativos e fiscais na Constituicao resulta do facto de
haver na altura tribunais administrativos e fiscais e nao, julgamos, de uma qualquer intencao
de criar separadamente tribunais administrativos e fiscais. (Nada obriga, no plano dos
principios, a que haja necessariamente tribunais fiscais separados dos administrativos e so
uma demasiado apego a letra da lei poderia obstar a uma reforma legislativa que integrasse
os tribunais fiscais nos administrativos como, alias, ja sucede a nivel superior e de algum
modo a nivel de primeira instancia na actual lei - que adiante referiremos - sob a forma de
tribunais agregados).
Ficou assim constitucionalmente aberta a possibilidade ora de integrar os tribunais
administrativos e tributarios nos tribunais judiciais, ora de constituir uma organizacao
separada. Em 1977, foi publicada uma importante reforma da organizacao judiciaria, a
primeira ao abrigo da Constituicao de 1976 e nela nao se fez qualquer referencia aos
tribunais administrativos e tributarios, tendo sido esse, como tem sido afirmado, o
momento mais adequado para fazer a integracao deles numa unica ordem judiciaria. Ficou
assim aberta a porta para a consagracao autonoma destes tribunais. E foi o que aconteceu
em 1984 com a publicacao do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Foi estabelecida, no ETAF, uma organizacao judiciaria separada dos tribunais
judiciais. Em materia administrativa foram consagrados 3 tribunais administrativos de
circulo (Lisboa, Porto e Coimbra) e o Supremo Tribunal Administrativo (STA). Em
materia tributaria foram estabelecidos tribunais tributarios de 1a instancia em todos os
distritos (antigos tribunais de 1a instancia das contribuicoes e impostos), um tribunal
tributario de 2a Instancia (substituindo o Tribunal de 2a Instancia das Contribuicoes e
Impostos) e o STA. Em materia aduaneira as auditorias fiscais (Lisboa e Porto) foram
substituidas por tribunais fiscais aduaneiros e manteve-se, na cupula, o STA.
27
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Ao mesmo tempo o ETAF estabeleceu um orgao de auto-governo da magistratura
semelhante ao Conselho Superior da Magistratura, o Conselho Superior dos Tribunais
Administrativos e Fiscais.
A revisao constitucional de 1989 veio dar plena cobertura a opcao legislativa de
1984 ao estabelecer expressamente que existiam no nosso ordenamento juridico, para alem
de outros, o STA e os demais tribunais administrativos e fiscais.
Depois de 1984, opera-se, em 1996, uma outra significativa reforma da organizacao
judiciaria administrativa e tributaria. Cria-se entao o Tribunal Central Administrativo (TCA)
para descongestionar o volume de servico do STA, principalmente em materia de funcao
publica, e ao mesmo tempo absorve-se o Tribunal Tributario de 2a Instancia. A partir dessa
data, temos um TCA com uma seccao do contencioso administrativo e uma seccao do
contencioso tributario. Deste modo - e quase sem se dar por isso - subtraiu-se mais um
tribunal a esfera do Ministerio das Financas. De notar ainda que o TCA, muito criticado
por ser um enxerto no sistema, teve, no entanto, um papel importante no progresso da
justica administrativa em Portugal. Veio comecar a mudar o que precisava de ser mudado.
A partir de 1996, a especificidade da organizacao judiciaria em materia tributaria
limitou-se a 1a instancia. Por sua vez, em 1999, desaparecem os tribunais fiscais aduaneiros
integrados nos tribunais tributarios de 1a instancia e instalaram-se os tribunais agregados
(administrativos e tributarios) dos Acores e da Madeira. Ainda em 1999 o Decreto-Lei n.o
301-A/99, de 5 de Agosto, criou os tribunais administrativos de circulo de Braga e de Faro,
nao tendo sido instalado nenhum deles.
Em 2001, pela Lei n.o 15/2001 integraram-se teoricamente os tribunais tributarios
no Ministerio da Justica, mas essa integracao ficou dependente de decreto-lei que nao
chegou a ser publicado.
III . A actual organizacao judiciaria administrativa e tributaria
E chegamos a 2002, data da maior reforma que a organizacao judiciaria
administrativa e tributaria teve alguma vez em Portugal e que entrou em vigor em 1 de
Janeiro de 2004. Ela teve expressao atraves da Lei n.o 13/2002, de 19 de Fevereiro (o novo
ETAF), que foi complementado pelo Decreto-Lei n.o 325/2003, de 29 de Dezembro, e
alterado pela Lei n.o 107-D/2003, de 31 de Dezembro. Ao mesmo tempo foi introduzida
uma profunda reforma do processo administrativo atraves da Lei n.o 15/2002, de 22 de
28
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Fevereiro, alterada, entretanto, pela Lei n.o 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, e que entrou em
vigor tambem em 1 de Janeiro de 2004.
E preciso dizer, contudo, que chegamos a 31 de Dezembro de 2003 em Portugal,
com 3 tribunais administrativos de circulo em todo o continente e, pelo menos
teoricamente, com 18 tribunais tributarios de 1a instancia com sede nas capitais de distrito
do continente e integrados no Ministerio das Financas. Dissemos teoricamente porque nem
todos esses tribunais possuiam juiz proprio, exercendo funcoes os juizes de tribunais
tributarios proximos. Apenas 10 tribunais tributarios do continente possuiam juiz
proprio24.Nas regioes autonomas havia 2 tribunais administrativos e fiscais agregados
(Ponta Delgada e Funchal). Para completar a estrutura judiciaria ate 31 de Dezembro de
2003 importa mencionar o TCA e o STA, ambos com 2 seccoes.
A estrutura organizativa que temos hoje, depois das significativas alteracoes ao ETAF
de 2002 introduzidas pela Lei n.o 107-D/2003, de 31 de Dezembro e da publicacao da
Portaria n.o 1418/2003, de 30 de Dezembro, passou a ser a seguinte25:
a) 16 tribunais administrativos e fiscais (Braga, Porto, Penafiel, Mirandela, Viseu,
Coimbra, Leiria, Lisboa, Loures, Sintra, Almada, Castelo Branco, Beja, Loule,
Funchal, Ponta Delgada);
b) 2 tribunais centrais administrativos: Norte, com sede no Porto e Sul, com sede em
Lisboa, ambos com 2 seccoes;
c) Supremo Tribunal Administrativo (Lisboa), com duas seccoes.
Ao mesmo tempo foram instalados juizos liquidatarios a extinguir quando deixar de se
justificar a sua existencia nos seguintes tribunais: Tribunal Central Administrativo Sul;
Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra; Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa; e
Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto. Estes juizos, constituindo o 1.o Juizo dos
respectivos tribunais, tem por missao liquidar as pendencias de processos neles existentes.
Existe, em todos eles, um 2.o Juizo para receber os processos novos.
Distribuicao de competencias entre os tribunais administrativos e fiscais
24 A. Candido de Oliveira . A recente criacao do Tribunal da Relacao de Guimaraes e do Tribunal
Administrativo de Circulo de Braga, separata do Livro gEstudos em Homenagem a Francisco Jose Velozoh,
pp. 516 e 517
25 Mais tarde operou-se a criacao do TAF de Aveiro.
29
Temas e Problemas de Processo Administrativo
E como estao distribuidas, entre os tribunais, as competencias para conhecimento dos
litigios?26 E importante, desde logo, considerar a regra da entrada de todos os litigios nos
tribunais de 1a instancia, dando-se mais um importante passo no sentido de romper com
uma velha tradicao que mandava apreciar pelos tribunais de grau superior os litigios em que
estavam envolvidas altas autoridades27.
Deste modo, nos termos do artigo 44.o do ETAF, gcompete aos tribunais
administrativos de circulo conhecer em primeira instancia, de todos os processos do
ambito da jurisdicao administrativa, com excepcao daqueles cuja competencia, em primeiro
grau de jurisdicao, esteja reservada aos tribunais superiores (...)h. O mesmo sucede, tambem
em regra, com os tribunais tributarios de 1a instancia (artigo 49.o do ETAF).
As excepcoes em materia administrativa tem a ver com todos os processos em que sao
partes o Presidente da Republica, a Assembleia e seu presidente, o Conselho de Ministros,
o Primeiro-Ministro (ja nao os ministros), o Tribunal Constitucional e seu Presidente, o
Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal de Contas e seu Presidente e o
Presidente do Supremo Tribunal Militar; ainda o Conselho Superior de Defesa Nacional, o
Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais e seu presidente, o Procurador-
Geral da Republica e o Conselho Superior do Ministerio Publico. Para estes processos e
competente a seccao de contencioso administrativo do STA (artigo 24.o do ETAF). Em
materia tributaria, fogem a regra da entrada em tribunais tributarios de 1a instancia,
entrando directamente na seccao de contencioso tributario do TCA Norte ou Sul,
conforme as regras de competencia territorial, os processos em que estao em causa actos
administrativos respeitantes a questoes fiscais praticados por membros do Governo e
pedidos de declaracao de ilegalidade de normas administrativas de ambito nacional,
emitidas em materia fiscal (artigo 38.o, als. b) e c) do ETAF); por sua vez, os processos em
que estao em causa actos administrativos do Conselho de Ministros respeitantes a questoes
fiscais entram na seccao de contencioso tributario do STA (artigo 26.o al. c) do ETAF)
Competindo, em regra, a apreciacao em primeira instancia dos litigios que caem no
ambito da jurisdicao administrativa e tributaria aos tribunais de primeira instancia (e aqui a
redundancia e propositada, lembrando mais uma vez que as coisas nem sempre foram
assim) cabem aos tribunais superiores naturalmente outras funcoes. Em materia
26 J. C. VIEIRA DE ANDRADE . A Justica Administrativa (Licoes), 4a ed., Coimbra, 2003, p. 139
e ss.
27 Esta tradicao ja tinha sido posta em causa, diminuindo a sua expressao, nao so atraves da reforma
de 1984-85 como atraves da criacao do TCA em 1996.
30
Temas e Problemas de Processo Administrativo
administrativa, cabe ao TCA atraves da seccao de contencioso administrativo conhecer dos
recursos jurisdicionais interpostos das decisoes dos tribunais administrativos de circulo,
salvo aqueles para os quais e competente o STA, segundo o disposto na lei de processo
(sao casos especiais que referiremos adiante). A principal tarefa das seccoes de contencioso
administrativo do TCA do Norte e do Sul e assim a apreciacao em recurso das decisoes dos
tribunais administrativos de 1a instancia28. Quanto as seccoes do contencioso tributario do
TCA do Norte e do Sul cabe-lhes tambem, como principal tarefa, conhecer dos recursos
das decisoes judiciais dos tribunais tributarios de 1a instancia.
O Supremo Tribunal Administrativo e agora um tribunal de cupula da estrutura da
organizacao judiciaria, Compete a seccao de contencioso administrativo do STA conhecer
recursos de revista sobre materia de direito interpostos de acordaos dos Tribunais Centrais
Administrativos (seccoes do contencioso administrativo) e ainda, em casos especiais
determinados pela lei de processo, recursos de decisoes de tribunais administrativos de
circulo (artigo 24.o, n.o 2 do ETAF). Os recursos de revista de decisoes dos tribunais
administrativos de circulo que cabe conhecer ao STA, ultrapassando o TCA, sao aqueles
cujo valor da causa seja superior a tres milhoes de euros ou seja indeterminavel e as partes
nas suas alegacoes, suscitem apenas questoes de direito (artigo 151.o n.o 1 do CPTA). Deve
ter-se atencao, no entanto, que nao ocorre este recurso de revista per saltum se o processo
em causa respeitar a questoes de funcionalismo publico ou relacionadas com formas
publicas ou privadas de proteccao social (artigo 151.o, n.o 2 do CPTA).
O STA e ainda competente para se pronunciar de forma vinculativa sobre uma questao
de direito nova surgida num tribunal administrativo de circulo que suscite dificuldades
serias e possa vir a ser suscitada noutros litigios (artigo 25.o, no 2 do ETAF e artigo 93.o do
CPTA)29. Para que a intervencao do STA ocorra e preciso que, por um lado, o presidente
do tribunal administrativo de circulo a solicite, considerando que e essa a melhor alternativa
(a outra, que esta tambem nas suas maos, e determinar que no julgamento do processo
intervenham todos os juizes do tribunal, sendo o quorum de dois tercos) e que o STA
atraves de uma formacao constituida por tres juizes de entre os mais antigos da seccao de
contencioso administrativo do STA aceite a apreciacao da questao (artigo 93.o n.o 3 do
CPTA). Este reenvio prejudicial nao tem lugar nos processos urgentes.
28 Acrescem outras funcoes que estao referidas no artigo 37.o do ETAF (accoes de regresso contra
magistrados) que, por nao serem tao emblematicas, omitimos na economia deste trabalho.
29 O mesmo podera suceder quando uma tal questao surja num processo que corra tribunal
tributario, nos termos que a lei de processo respectiva vier a estabelecer (artigo 27.o n.o 2 do ETAF).
31
Temas e Problemas de Processo Administrativo
O pleno da seccao do contencioso administrativo do STA conhece ainda dos recursos
de acordaos proferidos pela seccao em primeiro grau de jurisdicao e dos recursos para
uniformizacao de jurisprudencia (artigo 25.o n.o 1 do ETAF).
Em materia tributaria, o STA, atraves da seccao do contencioso tributario, para alem
dos processos ja mencionados em que decide em primeira instancia, aprecia recursos dos
acordaos da seccao do contencioso tributario dos Tribunais Centrais Administrativos, das
decisoes dos tribunais tributarios de 1a instancia com exclusivo fundamento em materia de
direito (artigo 26.o do ETAF). Conhece ainda o STA, atraves do pleno da seccao do
contencioso tributario, dos recursos dos acordaos proferidos pela seccao em 1.o grau de
jurisdicao e dos recursos para uniformizacao de jurisprudencia (artigo 27.o do ETAF).
Podemos dizer que esta reforma, principalmente depois das alteracoes ocorridas no fim
do ano atraves do diploma complementar ao ETAF e da alteracao deste, avancou mais do
que se previa e deu dois passos decisivos em materia organizatoria: agregou os tribunais
administrativos e tributarios de 1a instancia, criando uma rede que cobre todo o territorio
nacional e desdobrou o TCA em dois tribunais centrais administrativos (Norte e Sul). Se
tivermos em conta que, nos termos da lei processual, quase todos os processos entram
agora em 1a instancia nos tribunais administrativos e ficais (salvo alguns que entram
directamente no STA), que os tribunais centrais administrativos sao tribunais de 2a
instancia e que o STA, fora a parte que lhe cabe em primeira instancia, e fundamentalmente
um tribunal de revista temos uma estrutura organizatoria que se aproxima da que e hoje a
organizacao da jurisdicao ordinaria comum e que e a mais racional: apreciacao inicial dos
litigios pelos tribunais de 1a instancia, recurso de apelacao para os tribunais centrais
administrativos (2a instancia) e recurso de revista para o STA.
E nada impede que, a prazo, depois de experimentado este sistema (tudo deve ter o seu
tempo) se facam estudos e debates cujos resultados apontem no sentido de a melhor
solucao continuar a ser a dualidade de jurisdicoes ou considerar-se que a integracao na
jurisdicao ordinaria, atraves de tribunais especializados, demonstrar ser, porventura, a mais
conveniente.
A reforma da justica administrativa esta lancada e em andamento. Ela colocou-nos
entre os primeiros paises da Europa (Alemanha, Espanha e Franca), nesta materia e soube
articular a defesa dos direitos subjectivos com a defesa do cumprimento de importantes
interesses publicos por parte da Administracao. Como se ve, nem sempre, nem em tudo
32
Temas e Problemas de Processo Administrativo
estamos colocados na cauda dos paises da Uniao Europeia. Saibamos merecer o lugar
cimeiro que com pleno direito atingimos, dando a devida execucao as novas leis.
33
Temas e Problemas de Processo Administrativo 34
Temas e Problemas de Processo Administrativo
gDo Velho se Fez Novoh: A Accao Administrativa Especial
de Impugnacao de Actos Administrativos1
Vasco Pereira da Silva2
1- Ambito de aplicacao
A accao de impugnacao de actos administrativos e uma subespecie - ou gsubaccaoh
. da accao administrativa especial, que o legislador da reforma tratou com todo o gdesveloh
e gcarinhoh, expresso em numerosas e detalhadas disposicoes. Esse especial cuidado no
tratamento da impugnacao de actos administrativos justifica-se, a meu ver, como uma
especie de ghomenagem postumah do legislador ao anterior recurso de anulacao, no
momento em que ele encontrava irremediavelmente o seu fim (ja antes ganunciadoh).
De facto, o recurso de anulacao, que tinha tido historicamente uma grande
importancia, era, de ha muito, uma realidade em gcrise de identidadeh. Retomando o
gdiagnosticoh de uma anterior gsessao de psicanaliseh, eu diria que o recurso de anulacao
revelava áhconflitos insanaveish entre os planos do ginconscienteh . o alargamento
crescente e paulatino do universo dos actos recorriveis (v.g. decisoes previas, autorizacoes
parciais, actos praticados pelos subalternos...) em todos os dominios da moderna
Administracao Prestadora e Infra-estrutural, determinado pelo criterio da lesao de direitos e
pelo principio da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares -, do gsuperegoh . os
gpreconceitosh teoricos decorrentes da ginfancia dificilh do Contencioso Administrativo,
ao tempo do gsistema do administrador-juizh, quais garquetiposh condicionadores da
Justica Administrativa, que determinaram as construcoes classicas da gdoutrina do processo
ao actoh . e das gexplicacoes do(s) sujeito(s) pensante(s) . as fundamentacoes da doutrina
1 O presente texto segue de perto, com as necessarias adaptacoes e modificacoes, o que antes se
escreveu, de forma mais completa e desenvolvida, em VASCO PEREIRA DA SILVA, áO Contencioso
Administrativo no Diva da Psicanalise. Ensaio sobre as Accoes no Novo Processo Administrativoâ, 2a.
edicao, Almedina, Coimbra, 2009, paginas 315 e seguintes.
2 Doutor e Agregado em Direito, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da
Universidade Catolica Portuguesa.
35
Temas e Problemas de Processo Administrativo
e da jurisprudencia, com as naturais dificuldades em adequar o gditoh ao gfeitoh, que
levam, tantas vezes, a repeticao de formulas grecalcadash ou a pratica de gactos falhadoshâ3.
Crise de identidade do recurso de anulacao que se manifestava, desde logo, na
dissociacao entre go nome e a coisah e que me levou (tambem na referida gsessao de
analiseh anterior) a enunciacao da átese segundo a qual go recurso de anulacao nao e um
recurso, nem e (somente) de anulacaohâ4. A qual, por sua vez, se podia ainda desdobrar em
dois enunciados: áTESE N.o 1: O recurso de anulacao nao e um recurso; TESE N.o 2: O
recurso de anulacao nao e (apenas) de anulacaoâ5. De facto:
1) O recurso de anulacao nao era um recurso, mas uma gaccao chamada recursoh. Era
uma accao, pois se tratava da primeira apreciacao jurisdicional de um litigio
emergente de uma relacao juridica administrativa, na sequencia da pratica de um
acto pela Administracao, e nao de uma apreciacao jurisdicional de segunda
instancia, versando sobre uma decisao judicial. Tal como era ainda uma accao, por
se tratar de um meio processual de impugnacao de actos administrativos, destinado
a obter a primeira definicao do direito, feita por um tribunal, aplicavel ao litigio
emergente de uma relacao juridica administrativa, e nao de uma qualquer suposta
grevisao da definicao do direito anteriormente feita pela Administracaoh6. Ja que,
3 VASCO PEREIRA DA SILVA, áO Nome e a Coisa . A Accao Chamada Recurso de Anulacao e a
Reforma do Contencioso Administrativoâ, in áVentos de M. na J. A.â, cit., p. 137.
4 Conforme entao escrevi, o recurso de anulacao possuia um ánome herdado da historia, que nao
corresponde mais a realidade actual (...), a semelhanca, perdoe-se-me a ironia, de um gbrasao de familiah,
pertencente a uma familia aristocratica que se ve obrigada a recorrer a mendicidadeâ. Desta forma, áao falar
em recurso de anulacao ha que ter presente que ele nao e um recurso, nem e apenas de anulacao, pelo que o
nome nao condiz com a realidade designada. E se, como dizia o filosofo, o gnome e o principio de todas as
coisash, uma tal dissociacao entre a denominacao e o objecto nomeado nao pode deixar de ser motivo de
incertezas e de perplexidades. Se me permitem a ironia, o recurso de anulacao, com o seu nome gherdadoh da
historia, mas ja sem qualquer correspondencia com a realidade actual, e uma especie de Maria Antonieta (para
usar tambem um nome com uma gcarga historica francesah) que se transformou em Joaquim Manuel e que,
por isso mesmo, esta hoje a passar por um verdadeiro gdramalhaoh, que faria as delicias de um realizador
genial como Pedro Almodovar (o qual, assim como fez o áTudo Sobre a Minha Maeâ, poderia muito bem ter
tambem concebido o filme gTudo sobre o Recurso de Anulacaoh)â (VASCO PEREIRA DA SILVA, áO
Nome e a Coisa . A Accao Chamada Recurso de Anulacao e a Reforma do Contencioso Administrativoâ, in
áVentos de M. na J. A.â, cit., pp. 137, 142 e 143).
5 VASCO PEREIRA DA SILVA, áO Nome e a C. . A A. C. R. de A. e a R. do C. A.â, in áVentos
de M. na J. A.â, cit., p. 138.
6 Neste sentido, a doutrina classica entendia que o recurso de anulacao ainda era um recurso, na medida
em que visava áresolver um litigio sobre o qual a Administracao ja tomou posicaoâ, áatraves de um acto de
autoridadeâ, pelo que ja existindo áuma primeira definicao do direito aplicavelâ, o particular iria áapenas (...)
impugnar, ou seja, atacar, contestar, a definicao que foi feita pela Administracaoâ, de modo áa obter uma
segunda definicao do direito aplicavel, desta vez conforme a leiâ (FREITAS DO AMARAL, áDireito
Administrativoâ, licoes policopiadas, Lisboa, 1998, volume IV, pagina 79). Ou, de acordo com outra
formulacao mais mitigada, que no recurso de anulacao áo tribunal nao se propoe proceder a uma primeira
regulacao da situacao juridica administrativa concreta, constituindo ele proprio os efeitos de direito cuja
producao compete a Administracaoâ (SERVULO CORREIA, áImpugnacao de Actos Administrativosâ, in
áCadernos de Justica Administrativaâ, n.o 16, Julho / Agosto, 1999, pagina 13).
36
Temas e Problemas de Processo Administrativo
por um lado, o acto administrativo nao pode continuar mais a ser caracterizado
como definidor do direito, a semelhanca das sentencas judiciais, antes como decisao
da funcao administrativa destinada a satisfacao de necessidades colectivas (e dotada
de valor material, para alem de natureza juridica)7; por outro lado, nao ha, hoje em
dia, qualquer razao para colocar a autoridade administrativa e o tribunal no mesmo
plano, confundindo Administracao e Justica (as quais sao distintas dos pontos de
vista material, formal e organico), como sucedeu no gperiodo do administradorjuizh,
nos tempos da ginfancia dificilh do Contencioso Administrativo, pelo que
nao faz qualquer sentido continuar a falar em recurso, a proposito da impugnacao
de actos administrativos.
2) O recurso de anulacao nao era (apenas) de anulacao. Pois, as sentencas ditas de
anulacao produziam áefeitos relativamente as partes [que] nao se esgotavam no
efeito demolitorio (...) [,] como o de proibir a Administracao de refazer o acto e o
de a obrigar a uma actuacao de restabelecimento da situacao juridica do particular
lesado pelo acto anuladoâ. Dai a necessidade de considerar que as sentencas ditas
de anulacao podiam tambem possuir, para alem desse efeito cassatorio, outros
efeitos de natureza conformativa e repristinatoria, de modo a corrigir o
ádesfasamento entre a natureza (constitutiva) da sentenca e do processo em geral,
por um lado, e a eficacia da propria sentenca, por outroâ (NIGRO). Alem de que,
tendo em conta o principio constitucional da tutela plena e efectiva, ainda antes da
actual reforma, ja me parecia imperioso considerar que o recurso de anulacao nao
era apenas de anulacao, áuma vez que, por um lado, sob essa denominacao, podem
tambem ser proferidas sentencas condenatorias (v.g. quando estiver em causa o
exercicio de poderes vinculados) ou de simples apreciacao (v.g. a declaracao de
nulidade de um acto administrativo), por outro lado, as sentencas ditas de anulacao
nao possuem apenas efeitos demolitorios, mas gozam igualmente de uma eficacia
repristinatoria e conformadoraâ.
A reforma do Contencioso Administrativo optou por por termo ao recurso de
anulacao. Foi uma boa solucao. Nao vou, pois, chorar glagrimas de crocodiloh pelo
desaparecimento do recurso de anulacao, mas antes saudar o legislador da reforma por ter
remetido o recurso de anulacao para o lugar que lhe era devido: o gMuseu do Contencioso
7 Ate porque, como antes se acrescentava, áa Administracao nao utiliza o direito como um gfim em si
mesmoh, que lhe caiba definir no caso concreto, como e tarefa da Justica, antes utiliza o direito como um
gmeioh para a satisfacao dessas mesmas necessidades colectivasâ (VASCO PEREIRA DA SILVA, áO Nome
e a C. . A A. C. R. de A. e a R. do C. A.â, in áVentos de M. na J. A.â, cit., p. 139).
37
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Administrativoh, onde deve ser guardado e conservado, de modo a que todos lhe possamos
prestar as merecidas homenagens, para alem de dever continuar a ser analisado e estudado
como instituto do passado, de reconhecida importancia historica. Honrado o passado, e
tempo do jurista pensar no presente e preparar o futuro, valendo aqui a maxima segundo a
qual go recurso de anulacao morreu, viva a accao administrativah (dita gespecialh, mas que
e antes ggeralh).
O desaparecimento do recurso de anulacao e a sua substituicao por uma accao de
impugnacao de actos administrativos, em que se possibilita a apreciacao da integralidade da
relacao juridica administrativa, a proposito da impugnacao de um acto administrativo
lesivo, resulta muito claramente do mecanismo da cumulacao de pedidos. Pois, como se fez
ja referencia, a reforma do Contencioso Administrativo consagra a admissibilidade
generalizada da cumulacao de pedidos, de acordo com a regra de que todas as cumulacoes
sao possiveis desde que a relacao juridica seja a mesma, ou similar (vide os artigos 4.o e 47.o
do Codigo de Processo Administrativo, cuja formulacao e, diga-se de passagem, algo
repetitiva, mesmo se o intuito e assumidamente gpedagogicoh).
Na verdade, o Codigo de Processo Administrativo contem uma clausula geral de
admissibilidade de cumulacao de pedidos materialmente conexos (artigos 4o, n.o 1, e 47o, n.o
1, do Codigo), a qual e acompanhada de uma enumeracao exemplificativa de pedidos
cumulaveis com o de anulacao do acto administrativo, nomeadamente: o de condenacao na
pratica de acto devido (artigos 4o, n.o 2, alinea c, e 47o, n.o 1, alinea a); o de condenacao da
Administracao na reconstituicao da situacao actual hipotetica existente nao fora a pratica
do acto impugnado (artigos 4o, n.o 2, alinea a, e 47o, n.o 1, alinea b); o de impugnacao do
contrato subsequente (artigos 4o, n.o 2, alinea d, e 47o, n.o 1, alinea c) ou relativo a execucao
das respectivas clausulas (artigo 47o, n.o 1, alinea d); o de reconhecimento de uma situacao
juridica subjectiva (artigos 4o, n.o 2, alinea e); o de condenacao a reparacao de danos
causados (artigos 4o, n.o 2, alinea f). Cumulacao de pedidos que tanto pode verificar-se em
identidade de nivel como numa relacao de alternatividade ou ainda de subsidiaridade, que
pode verificar-se logo no momento da propositura da accao como em momento posterior
(vide os artigos 28o e 61o do Codigo, relativos a apensacao de processos, e o artigo 48o,
referente aos processos de massa), que pode dizer respeito a pedidos de varios sujeitos
processuais dando origem a situacoes de litisconsorcio e de coligacao de partes (nos termos
timidos, em que o Codigo os previu), que tanto pode ser real como aparente (consoante os
pedidos correspondam a diferentes ou a mesma utilidade economica)8.
8 Para o desenvolvimento da questao vide MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, áCumulacao de Pedidos
e Cumulacao Aparente no Contencioso Administrativoâ, in áCadernos de Justica Administrativaâ, n.o 34,
38
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Interessa, agora, atentar nesta ultima distincao entre cumulacoes reais e aparentes
de pedidos, que tem como criterio saber se ácada um dos pedidos possui uma expressao
economica propriaâ, caso em que a cumulacao e real, ou se eles dizem antes respeito áa
uma mesma e unica utilidade propria, isto e, (...) a um mesmo bem em sentido economicoâ,
caso em que a cumulacao e aparente, ádado que a parte formula varios pedidos, mas ela
nao aufere beneficios distintos pela procedencia de cada um desses pedidosâ (TEIXEIRA
DE SOUSA)9. Ate porque o Codigo de Processo Administrativo parece atribuir uma
grande relevancia a esta ultima modalidade, ao considerar que áa cumulacao de pedidos e
admissivel quando entre eles se verifique uma relacao de prejudicialidadeâ, ou seja, quando
respeitem áa mesma utilidade economicaâ, o que leva TEIXEIRA DE SOUSA a
gsuspeitarh áque as situacoes de cumulacao aparente sao frequentes no Contencioso
Administrativoâ e a acrescentar que essa ásuspeita adensa-se se forem consideradas as
situacoes exemplificadas nos artigos 4o, n.o 2 e 47o, n.o 2 do CPTA, dado que em todas elas
se preve a cumulacao de um pedido prejudicial com um pedido dependenteâ10.
A gpreferenciah do Codigo de Processo Administrativo pela acumulacao aparente
de pedidos - tao certeiramente apontada pelo citado processualista . e explicavel, a meu
ver, por razoes mais gprofundash, que se prendem com os gtraumas da infancia dificilh do
Contencioso Administrativo. E que, ao considerar apenas situacoes de cumulacao aparente,
quando enumera, a titulo exemplificativo, as hipoteses de cumulacao de pedidos, o
legislador nao estava a pensar no que e habitual verificar-se noutros dominios processuais,
designadamente no Processo Civil, mas sim na realidade do anterior grecurso de anulacaoh,
segundo a qual, de acordo com o gmito-fundadorh do Contencioso Administrativo, se
considerava que, em virtude do gdogma da separacao de poderesh, o tribunal apenas se
podia limitar a anulacao de actos administrativos.
Dai que a mudanca de paradigma processual, decorrente da passagem do recurso de
anulacao para a accao de impugnacao, que o mesmo e dizer, do contencioso de gmera
anulacaoh para o de gplena jurisdicaoh, gere uma situacao paradoxal: por um lado, o
legislador estabelece . e bem . que, a partir de agora sem quaisquer duvidas, todos os
pedidos sao admissiveis e que o objecto da apreciacao jurisdicional se deve ampliar do
gprocesso ao actoh para o juizo sobre a relacao juridica administrativa; mas, por outro lado,
o legislador toma como gmedidah dessa transformacao o anterior recurso de anulacao, pelo
Julho / Agosto, 2002, paginas 33 e seguintes.
9 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, áCumulacao de P. e C. A. no C. A.â, cit., in áCadernos de J. A.â,
cit., n.o 34, Julho / Agosto, 2002, p. 37.
10 MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, áCumulacao de P. e C. A. no C. A.â, cit., in áCadernos de J. A.â,
cit., n.o 34, Julho / Agosto, 2002, p. 38.
39
Temas e Problemas de Processo Administrativo
que qualifica tudo aquilo que va alem da gsimples anulacaoh como uma gverdadeira e
propriah cumulacao de pedidos. Dir-se-ia estarmos perante um gacto falhadoh do
legislador, de ghipervalorizacaoh das situacoes de cumulacao aparente de pedidos (patente,
como se referiu, tanto na enunciacao da clausula geral como em todas as situacoes previstas
de tipificacao exemplificativa), tao mais relevante quanto o que aqui estava em causa era
(em sentido psicanalitico) a gmorte do paih, o afastamento definitivo do recurso de
anulacao e a sua substituicao por uma accao administrativa especial, em que todos os
pedidos sao admissiveis, e em que, mesmo na propria subespecie de accao de impugnacao,
o objecto do litigio e toda a relacao juridica administrativa e nao a gmera anulacaoh do acto
administrativo.
Ora, numa analise gdescomplexadah do problema, para alem das questoes de
cumulacao de pedidos, que devem ser consideradas em termos similares aos do Processo
Civil, ha que distinguir duas situacoes juridicas diferentes, que se encontram subjacentes as
accoes de impugnacao de actos administrativos, a saber:
- os casos em que e trazido a juizo um acto administrativo que se encontra suspenso,
seja por vontade da Administracao, seja em virtude de uma providencia cautelar.
Situacao, esta, em que o direito do particular e tutelado atraves do pedido de
anulacao do acto administrativo (o qual, tendo provimento, vai dar origem a uma
correspondente sentenca constitutiva);
- os casos em que o acto administrativo trazido a juizo se encontra em execucao ou
ja foi integralmente executado . situacao que e, de resto, a mais frequente nos
sistemas administrativos de tipo executivo, como o nosso. Ora, nesta situacao, a
tutela dos direitos lesados do particular nao e susceptivel de ser alcancada somente
atraves do pedido de anulacao do acto administrativo, antes necessita de ser
acompanhada de pedidos de condenacao da Administracao, nomeadamente de
reconstituicao da situacao actual hipotetica que existiria se o acto nao tivesse sido
praticado, ou de proibicao de determinadas condutas (a sentenca que desse razao
ao particular, por conseguinte, nao poderia ser meramente constitutiva,
apresentando tambem efeitos condenatorios). Sendo certo que todos esses pedidos
se encontrariam numa situacao de dependencia do pedido principal, pelo que
sempre existiria aqui uma situacao de cumulacao aparente.
40
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Antigamente, gao tempoh do recurso de anulacao, a doutrina dominante, entre nos,
considerava que o unico pedido admissivel, no que a esse meio processual dizia respeito,
era o de anulacao do acto administrativo, pelo que os efeitos das sentencas dele decorrentes
eram de natureza meramente constitutiva, ou de anulacao. Isto, muito embora, para que as
sentencas tivessem sentido util (perante actos administrativos que ja tinham sido em regra
executados), se acabasse por admitir que, álimitado o conteudo das sentencas
administrativas a anulacao de um acto, necessario se tornava gpor fora deleh, enquanto
efeito decorrente da sentenca (efeito acessorio ou lateral) a ordem dirigida a Administracao
e impedindo-a de refazer o acto anulado, bem como o dever (...) de executar a sentencaâ11.
O que se conseguia mediante a teorizacao do efeito do caso julgado, do qual resultava
indirectamente um efeito inibidor da actividade administrativa futura, assim como,
sobretudo, do processo de execucao das sentencas, que se considerava tratar-se nao de áum
processo executivo, o processo de execucao forcada dessas sentencasâ, mas sim de uma
áintervencao do tribunal [que] assume caracter exclusivamente declarativoâ, destinada áa
pedir a declaracao jurisdicional de causas legitimas de inexecucaoâ (FREITAS DO
AMARAL)12. Era, pois, sobretudo atraves do gprocesso declarativo de execucaoh de
sentencas que o juiz administrativo poderia ir alem da anulacao, determinando (ainda que
timidamente) a actuacao administrativa futura que decorria do incumprimento do gdever
de executarh, concebido como um abstracto dever legal.
Pela minha parte, de ha muito que defendia a necessidade de adoptar um conteudo
mais amplo para as sentencas do recurso de anulacao, de modo a compreender, para alem
do efeito anulatorio, tambem um efeito repristinatorio, a fim de obrigar a Administracao,
por efeito da sentenca, a reconstituir a situacao actual hipotetica em que o particular se
encontraria antes da pratica do acto ilegal, e um efeito conformativo, de modo a permitir
condicionar o comportamento da Administracao, designadamente, condenando-a a nao
refazer o acto anulado13. Assim, procurando . como entao escrevia - áadequar o conteudo
da sentenca aos efeitos juridicos por ela produzidosâ, mediante a integracao na propria
11 VASCO PEREIRA DA SILVA, áO Recurso Directo de Anulacao . Uma Accao Chamada Recursoâ,
Cognitio, Lisboa, 1987, pagina 18.
12 DIOGO FREITAS DO AMARAL, áA Execucao das Sentencas dos Tribunais Administrativosâ, 2a
edicao, Almedina, Coimbra, 1997, paginas 233 e 234. No mesmo sentido, vide tambem MARIO AROSO DE
ALMEIDA, áSobre a Autoridade do Caso Julgado das Sentencas de Anulacao de Actos Administrativosâ,
Almedina, Coimbra, 1994; e áAnulacao de Actos Administrativos e Relacoes Juridicas Emergentesâ,
Almedina, Coimbra, 2002 (este ultimo, ja tomando em consideracao as alteracoes da reforma do Contencioso
Administrativo e, como tal, adoptando uma nocao mais ampla do conteudo das sentencas de anulacao, bem
como um entendimento algo diferente das relacoes entre processo declarativo e de execucao de sentencas).
13 VASCO PEREIRA DA SILVA, áPara um Contencioso A. dos P. . E. de uma T. S. do R. D. de A.â,
cit., pp. 208 e ss..
41
Temas e Problemas de Processo Administrativo
sentenca daqueles áefeitos principais que, ate agora, tem sido considerados acidentaisâ14. E
entendendo o processo de execucao das sentencas como um verdadeiro processo
executivo, pois áe por efeito da sentenca, e nao apenas da lei, que a Administracao se
encontra obrigada a uma determinada condutaâ, que se destina a ágarantir (...) o efectivo
cumprimento de tudo aquilo que foi determinado por uma decisao judicial desrespeitadaâ15.
Abandonando o paradigma classico, mediante a substituicao do modelo do recurso
pelo da accao de plena jurisdicao, a reforma do Contencioso Administrativo estabelece
agora que todos os pedidos necessarios a tutela dos direitos das relacoes administrativas sao
admissiveis no processo declarativo, pelo que, mesmo na modalidade da (sub)accao de
impugnacao, da accao administrativa especial, e sempre possivel, designadamente, a
cumulacao (aparente) do pedido de anulacao do acto administrativo com o pedido de
condenacao ao restabelecimento da situacao anterior (vide os artigos 4.o, n.o 2, alinea a, e
47.o, n.o 2, alinea b). Ora, pensando nas duas situacoes juridicas antes referidas, so nos
casos em que a execucao do acto administrativo se encontra suspensa (por decisao da
Administracao ou do tribunal) e que o simples pedido de anulacao satisfaz integralmente a
pretensao do particular (dando origem a uma sentenca constitutiva), ja que, em todos os
demais casos, tendo sido iniciada ou ja consumada a execucao do acto administrativo -
casos que continuarao, apesar de tudo, a ser os mais frequentes, no modelo de
Administracao de tipo executivo, que e o nosso, mesmo considerando que a reforma veio
tornar mais efectiva a tutela cautelar - a satisfacao integral das pretensoes do privado so se
realiza mediante a conjugacao de pedidos cassatorios com condenatorios, (dando origem,
por conseguinte, a um tipo de sentenca gmistah, em parte constitutiva, em parte
condenatoria).
De resto, e o reconhecimento da insuficiencia dos simples pedidos anulatorios e das
consequentes sentencas constitutivas, que esta na base de muitas das transformacoes do
Contencioso Administrativo verificadas, nos ultimos tempos, nos paises europeus, como
antes se fez referencia. Mesmo de uma perspectiva mais classica, ou gfrancesah, e forcoso
concluir que, tendo o acto administrativo sido ja executado ou encontrando-se em vias de
execucao, ápara que seja realizado o restabelecimento do requerente nos seus direitos e
necessario, em primeiro lugar, que o juiz possa fazer outra coisa para alem de anular o acto
administrativo, mesmo se se considera que o respeito de uma decisao de anulacao impoe a
autoridade administrativa obrigacoes de tomar um certo numero de medidas, uma vez que
14 VASCO PEREIRA DA SILVA, áPara um Contencioso A. dos P. . E. de uma T. S. do R. D. de A.â,
cit., p. 220.
15 VASCO PEREIRA DA SILVA, áPara um Contencioso A. dos P. . E. de uma T. S. do R. D. de A.â,
cit., p. 220.
42
Temas e Problemas de Processo Administrativo
e importante que essas obrigacoes sejam explicitamente definidas pelo julgamentoâ
(MICHEL FROMONT)16. Ou seja, mesmo aqueles que consideravam que nas sentencas
de anulacao do Contencioso Administrativo áa ordem esta contida na anulacao como a
gema no ovoâ e que, por isso, anular ou condenar teria o ámesmo resultado praticoâ
(PROSPER WEIL)17, se viram obrigados a reconhecer que, ainda assim, era preferivel que
o juiz explicitasse na sentenca os comportamentos devidos pela Administracao. Dai que,
entre outros aspectos, a referida geuropeizacaoh do Contencioso Administrativo tenha
conduzido ao alargamento dos poderes declarativos do juiz administrativo em razao dos
direitos dos privados necessitados de tutela, assim como a aproximacao dos modelos de
Justica Administrativa, independentemente das suas raizes e gcaracteristicas identitariash
serem gmais francesash, gmais germanicash, ou ate mesmo gmais britanicash.
Entre nos, ja se disse, e agora inquestionavel que o grecurso de anulacao morreuh,
uma vez que a accao administrativa especial, sempre que estiver em causa o afastamento de
um acto administrativo (que nao tenha sido suspenso), passara a ter como pedido
gnormalh, apresentado pelo particular, o resultante da cumulacao (aparente) do pedido de
anulacao com o de restabelecimento da situacao anterior, ou outros pedidos de condenacao
da Administracao, bem como eventuais pedidos de reconhecimento de direitos. Da mesma
maneira, como o efeito gtipicoh das sentencas da modalidade de impugnacao da accao
administrativa especial deve passar a ser o que resulta da conjugacao da anulacao do acto
com a condenacao da Administracao, ou da declaracao de direitos, originando uma
modalidade de sentencas de natureza composita. Isto, bem entendido, sem prejuizo de
haver tambem lugar para verdadeiras e proprias situacoes de cumulacao de pedidos,
quando cada um deles corresponda a distintas utilidades economicas, no quadro da
concreta relacao material controvertida, que sao igualmente admissiveis nos termos gerais.
Continua, no entanto, a prever-se a possibilidade (similar a que a doutrina
dominante considerava existir gao tempoh do passado recurso de anulacao) de so se pedir a
anulacao, na fase declarativa, ficando a condenacao da Administracao para o processo
executivo (artigo 47o, n.o 3, do Codigo de Processo Administrativo). So que, agora, a
situacao ja nao e mais a de um contencioso de mera anulacao, pelo que so uma conduta
negligente do particular, ou o ginsucesso escolarh do seu patrocinador judiciario, poderia
explicar uma opcao deliberada de deixar para a execucao aquilo que poderia logo obter na
fase declarativa, com todos os riscos inerentes de morosidade e de incerteza.
16 MICHEL FROMONT, áLa Convergence des Systemes de Justice Administrative en Europeâ, in
áRivista Trimestrale di Diritto Pubblicoâ, n.o 1, 2002, pagina 137.
17 PROSPER WEIL, áLes Consequences de lf Annulation df un Acte Administratif pour Exces de
Pouvoirâ, Paris, 1952, pagina 61.
43
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Assim sendo, nao faz muito sentido, senao como situacao transitoria, decorrente da
actual fase de transformacao gradual do Contencioso Administrativo, estabelecer que a
condenacao da Administracao a reposicao da situacao anterior, que e um pedido tipico do
processo declarativo, continue a ser feito tambem no processo executivo, quando ele pode
. e deve . ser feito logo na accao administrativa especial. E das duas uma: ou essa norma
continua a ser interpretada segundo uma gpre-compreensao passadistah e, entao, tendera a
caducar por falta de objecto, ou a ser eventualmente afastada em futura revisao do Codigo;
ou entao, ha que lhe encontrar um sentido util, no quadro do (novo) gespirito da leih, e
esse so podera ser, a semelhanca do que se passa no Processo Civil, o de entender que tal
norma tem apenas que ver com situacoes especiais, de falta de elementos para fixar o
objecto ou a quantidade da condenacao, o que podera ser, nomeadamente o caso de
algumas accoes de condenacao a reparacao de danos causados por autoridades publicas, em
nao seja ainda possivel, no processo declarativo, determinar com exactidao a totalidade do
montante dos prejuizos sofridos, podendo esta vir a ser remetida para a execucao, mas,
neste caso, e de acordo com tal interpretacao restritiva, a disposicao em causa ja nada teria
a ver com as questoes antes referidas de reconstituicao da situacao actual hipotetica nem
similares18.
Em jeito de conclusao, e forcoso relembrar a áprofeciaâ (para usar a sugestiva
expressao de SABINO CASSESE19) feita por MAURICE HAURIOU, mais ou menos, ha
um seculo20. HAURIOU que, como se sabe, e nao apenas um dos grandes teoricos
gfundadoresh do Direito Administrativo, como tambem um dos gpaish (juntamente com
LAFERRIERE) da concepcao do Contencioso Administrativo como gprocesso ao actoh,
nao obstante, iria vaticinar a gvitoriah do contencioso de plena jurisdicao sobre o de
anulacao, considerando que o recurso de anulacao estava gcondenadoh a transformar-se,
mais cedo ou mais tarde, num processo de plena jurisdicao. Ora, foi preciso um seculo para
que tal profecia se concretizasse, um pouco por toda a Europa, e fosse possivel áver o
18 De acordo com o artigo 661o, n.o 2, do Codigo de Processo Civil, relativo aos glimites da condenacaoh,
disposicao que e, como se sabe, subsidariamente aplicavel ao Contencioso Administrativo, áse nao houver
elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenara no que se liquidar em execucao de
sentenca, sem prejuizo de condenacao imediata na parte que ja esta liquidaâ.
19 Conforme escreve CASSESE: áMAURICE HAURIOU, um dos grandes mestres do Direito Publico
da primeira metade do seculo XX, profetizou um dia que o juizo de anulacao confluiria no contencioso de
plena jurisdicao, enriquecendo a lista dos direitos adquiridos dos cidadaos. Desejaria colocar estas conclusoes
sob o signo ideal de tal profeciaâ (SABINO CASSESE, áLa Piena Giurisdizione del Giudice Amministrativoâ,
in VARIOS, áIl Sistema Della Giustizia Amministrativa. Dopo il Decreto Legislativo n.o 80 /98 e la Sentenza
delle Sezioni Unite della Corte di Cassazione n.o 500 /99 (áAtti dellf Incontro di Studio svoltosi a Roma .
Palazzo Spada . 18 Novembre 1999â), Giuffre, Milano, 2000, paginas 325 e seguintes).
20 Em comentario aos Acordaos áBlanc, Argaing et Bezieâ, Sirey, 1912, e áBoussugeâ, Sirey, 1914,
consideracoes que o autor retomaria (de forma mais mitigada) em áPrecis de Droit Administratif et de Droit
Publicâ, 12a edicao (reimpressao), Dalloz, Paris, paginas 394 e seguintes.
44
Temas e Problemas de Processo Administrativo
recurso de anulacao (grecours pour exces de pouvoirh) perder gradualmente o seu caracter
objectivo, que possuia em tao elevado grau, para adquirir o caracter subjectivo do recurso
de plena jurisdicaoâ.
Assim, a gaccao de anulacaoh do Contencioso Administrativo, gtransformadah no
sentido de admitir tambem pedidos de natureza condenatoria, sempre que necessario para a
tutela dos direitos dos particulares (ou seja, sempre que o acto administrativo tenha sido
total ou parcialmente executado), torna-se naquilo que ja antes deveria ser, a semelhanca do
ditame biblico, que comina o homem a gtornar-se naquilo que eh. Verificando-se aqui,
portanto, um fenomeno de gajustamentoh do conteudo das sentencas do Contencioso
Administrativo a realidade dos factos ou, se se preferir, de acordo com uma leitura
psicanalitica, de aproximacao dos niveis do gconscienteh e do ginconscienteh do sujeito.
Ora, no momento em que, entre nos, a accao administrativa especial, na sua modalidade de
anulacao, permite nao apenas a apreciacao judicial do acto administrativo, mas de toda a
relacao juridica controvertida, mediante a admissibilidade de todos os pedidos necessarios a
tutela dos direitos dos particulares, faz todo o sentido invocar e adoptar áo exemplo de
HAURIOU, de forma a conseguir, nao so olhar para o presente do Contencioso
Administrativo, como tambem compreender o seu passado, e estar ainda abertos para
apreender aquilo que o futuro nos vier a trazer...â21.
2- Pressupostos processuais
Pressupostos processuais especificos da accao administrativa especial, na modalidade
de anulacao, de acordo com o Codigo de Processo dos Tribunais Administrativos, sao os
seguintes:
a) acto administrativo impugnavel (artigos 51o a 54o);
b) legitimidade (artigos 55o a 57o);
c) oportunidade (artigo 58o).
21 Como se escrevia em VASCO PEREIRA DA SILVA, áTodo o Contencioso Administrativo se
Tornou de Plena Jurisdicaoâ, in áCadernos de Justica Administrativaâ, n.o 34, Julho / Agosto, 2002, pagina 32.
Texto meu anterior que se utilizou, com as necessarias modificacoes e desenvolvimentos, como base para
algum dos aspectos tratados neste capitulo.
45
Temas e Problemas de Processo Administrativo
2.1- O acto administrativo impugnavel
Acto e processo administrativo encontram-se indissociavelmente ligados. A nocao
de acto administrativo, nascida no Contencioso Administrativo dos tempos da ginfancia
dificilh, visava delimitar as actuacoes administrativas submetidas a uma jurisdicao e a
formas de processo gespeciaish. A sua posterior transformacao em conceito substantivo
central do Direito Administrativo nao so nunca esqueceu essa origem processual, como
andou sempre associada a um entendimento limitado da Justica Administrativa, assente no
recurso de anulacao concebido como gprocesso a um actoh. Um tal entendimento classico
do acto administrativo, tipico do Estado Liberal, vai depois passar por sucessivas crises e
transformacoes, decorrentes das alteracoes das formas de actuacao administrativa inerentes
a passagem de uma Administracao meramente Agressiva a Prestadora, primeiro, e a Infraestrutural,
depois, que sao consequencia da evolucao para os modelos de Estado Social e
Pos-social. E todas essas transformacoes se verificam tanto nos planos do Direito
Administrativo como no do Contencioso Administrativo, ja que o conceito de acto
administrativo necessita de ser repensado e reconstruido em razao da sua tripla dimensao:
substantiva, procedimental e processual.
Em termos muito sinteticos (e esquematicos), a interligacao (historicamente)
existente entre os modelos de Estado, a concepcao de Administracao Publica e o conceito
de acto administrativo, pode ser reconduzida a tres momentos principais 22.
a) o do Estado Liberal, correspondente a uma logica de Administracao Agressiva
e tendo como forma de actuacao caracteristica o acto de autoridade ou gde
policiah. Paradigmaticas desta concepcao eram as construcoes doutrinarias:
22 Para um maior desenvolvimento da evolucao dos modelos de Estado, de Administracao Publica e de
acto administrativo áEm Busca do A. A. P.â, cit., pp. 11 e ss.; assim como á2001: Odisseia no Espaco
Conceptual do Acto Administrativoâ, Cadernos de Justica Administrativa, n.o 28, Julho/ Agosto 2001 (cujo
texto, com as necessarias adaptacoes, se segue aqui de perto).
46
Temas e Problemas de Processo Administrativo
- de OTTO MAYER, que assimilava o acto administrativo a sentenca,
caracterizando-o como a ámanifestacao da Administracao autoritaria que determina o
direito aplicavel ao subdito no caso concreto 23;
- de MAURICE HAURIOU, que ao aproximar a gdecisao executoriah dos
negocios juridicos colocava o acento tonico nos gprivilegios exorbitantesh da
Administracao, tanto em materia decisoria como executoria 24.
Mas nesta mesma linha, ainda que em circunstancias diferentes, se pode
incluir a construcao de MARCELLO CAETANO do áacto definitivo e
executorioâ, manifestacao ápor excelencia de autoridade da Administracaoâ 25,
enquanto actuacao administrativa áque obriga por si e cuja execucao coerciva
imediata a lei permite independentemente de sentenca judicialâ 26. Concepcao
esta que, ate ha bem pouco tempo, era dominante na doutrina e jurisprudencia
portuguesas, assim como acolhida pela lei, so tendo sido posta em causa pelo
legislador constituinte, atraves da revisao constitucional de 1989, e
expressamente afastada pelo legislador da reforma.
b) o do Estado Social, caracterizado pela Administracao Prestadora e pela
generalizacao dos actos administrativos gfavoraveish, virados para a atribuicao
de beneficios materiais ou gconstitutivos de direitosh para os particulares.
A Administracao Prestadora trouxe consigo uma certa gcriseh do acto
administrativo que:
- por um lado, deixou de ser o gcentroh do Direito Administrativo, dada a
utilizacao cada vez mais generalizada de outras formas de actuacao administrativa como os
planos e outros regulamentos, os contratos, as actuacoes tecnicas e informais ou as
operacoes materiais . na feliz expressao de MAURER, o acto administrativo deixou de ser
23 OTTO MAYER, áDeutsches Verwaltungsrechtâ, I volume, 6a edicao (reimpressao da 3a edicao de
1924), von Duncker & Humblot, Berlim, 1969, pagina 93.
24 Vide MAURICE HAURIOU, áPrecis Elementaire de Droit Administratifâ, 5a edicao (com a
colaboracao de A. HAURIOU), Sirey, Paris, 1943, paginas 6 e seguintes. De acordo com este autor, decisao
executoria e áqualquer declaracao de vontade destinada a produzir um efeito juridico, emitida por uma
autoridade administrativa (...) sob uma forma executoria, quer dizer (...) que implique a execucao oficiosaâ
(MAURICE HAURIOU, áPrecis E. de D. A..â, cit., p. 240).
25 MARCELLO CAETANO, áManual de Direito Administrativoâ, volume I, 10a edicao (reimpressao),
Almedina, Coimbra, 1980, pagina 264.
26 MARCELLO CAETANO, áManual de D. A.â, vol. I, cit., p. 447.
47
Temas e Problemas de Processo Administrativo
áhah forma de actuacao administrativa para passar a ser apenas gumah, entre outras maisâ 27.
O que levou a necessidade de buscar novos gconceitos centraish para a dogmatica
administrativa, como a relacao juridica ou o procedimento, nos quais os actos
administrativos (como as demais formas de actuacao) necessitam de ser enquadrados e
compreendidos. Uma vez que, de acordo com a conhecida afirmacao de BACHOF, áo acto
administrativo e apenas uma fotografia instantanea que representa relacoes em movimento,
porque ele fundamenta, cria ou poe termo a uma relacao juridicaâ 28;
- por outro lado, o proprio conceito de acto administrativo se transforma, perdendo
aquelas caracteristicas gautoritariash que tinham estado na sua origem, ja que a maior parte
dos actos da Administracao Prestadora do Estado Social nao sao mais, para usar as
gclassicash expressoes portuguesas, nem gdefinitivosh (v.g. os actos de procedimento, as
decisoes previas e provisorias, os actos dos subalternos, as decisoes concertadas e
participadas) nem gexecutoriosh (v.g. os actos favoraveis cuja susceptibilidade de execucao
coactiva contra a vontade dos beneficiarios e um contra-senso)29;
c) o do Estado Pos-Social, com a nova dimensao da áAdministracao
Infra-estruturalâ (FABER) 30 e dos consequentes actos administrativos com
eficacia multipla (ou de geficacia em relacao a terceirosh), que se integram em
relacoes juridicas multilaterais. Multilateralidade que áabrange mesmo aquelas
decisoes que, tradicionalmente, eram vistas apenas de uma perspectiva
particularista, no quadro de um relacionamento bilateral entre o particular e a
Administracaoâ, como e o caso, por exemplo, das áautorizacoes administrativas
(v.g., autorizacoes de construcao, de instalacao de um complexo fabril, ou de
abertura de um estabelecimento comercial [que] nao sao apenas actos
singulares, praticados pela Administracao relativamente a individuos
27 HARTMUT MAURER, áAllgemeines Verwaltungsrechtâ, 14a edicao, Beck, Muenchen, 2002, pagina
177.
28 OTTO BACHOF, áDie Dogmatik des Verwaltungrechts vor den Gegenwartsaufgaben der
Verwaltungâ, in áVeroffentlichungen der Vereininung der Deutschen Staatsrechtslehrerâ, no 30 (reuniao que
teve lugar em Regensburg, de 29 de Setembro a 2 de Outubro de 1971), Walter de Gruyter, Berlin, 1972,
pagina 231.
29 Diga-se, de passagem, que os actos administrativos favoraveis vem mesmo colocar gde pernas para o
arh a doutrina da executoriedade, ja que o problema que eles obrigam a considerar nao e o da execucao contra
a vontade do particular, mas sim o da execucao contra a propria vontade da Administracao que, tendo
emitido o acto, nao realiza as operacoes materiais necessarias para a sua execucao. Vide, infra, a problematica
do acto administrativo como titulo executivo, prevista no artigo 157o, n.o 3, do Codigo de Processo
Administrativo.
30 De acordo com FABER, áa diferenca fundamental em relacao a Administracao Agressiva e Prestadora
e a da gmultilateralidadeh da Administracao de infra-estruturasâ, cujas actuacoes nao se caracterizam pela
definicao de situacoes individuais e concretas, áantes criam as condicoes gerais (premissas) para tais medidas
ou decisoesâ (HEIKO FABER, áVerwaltungsrechtâ, 3a edicao, Mohr, Tuebingen, 1992, pagina 337.
48
Temas e Problemas de Processo Administrativo
determinados, mas sao tambem, simultaneamente, instrumentos reguladores de
determinado sector da actividade economica, em razao dos efeitos produzidos
relativamente aos terceiros afectados (vizinhos, empresas concorrentes, etc.)â31.
Outra dimensao importante das formas de actuacao administrativa e o da
perda da sua dimensao subjectiva ou estatutaria. O que e uma consequencia da
nova logica da Administracao infra-estrutural, assente na colaboracao entre
entidades publicas e privadas para o exercicio da funcao administrativa. Sao,
pois, de equiparar aos actos administrativos (e o mesmo se poderia dizer
tambem relativamente aos contratos) mesmo as actuacoes que nao provenham
de autoridades administrativas, seja porque emanam de entidades da
Administracao publica sob forma privada (resultante da denominada gfuga para
o direito privadoh), seja porque sao emitidas por concessionarios ou outros
particulares que colaboram com a Administracao no exercicio da funcao
administrativa. Um tal fenomeno e tambem, como ja se fez referencia,
potenciado pela gdependencia europeia do Direito Administrativoh, pois a
busca de nocoes comuns para sistemas administrativos de origem muito
diferente, conduziu o legislador comunitario a preocupar-se mais com a
natureza do que com a forma de actuacao, desta forma procedendo a
transformacao dos instrumentos tradicionais, sejam de natureza unilateral sejam
de natureza bilateral.
Assim, na nossa ordem juridica, verifica-se como que um duplo alargamento
da nocao tradicional de acto administrativo, ja que, por um lado, cabem no
ambito da jurisdicao administrativa as actuacoes unilaterais de orgaos de outros
poderes estaduais (o artigo 4.o, n.o1, alinea c, do Estatuto, fala em gactos
materialmente administrativosh de gquaisquer orgaos do Estado ou das regioes
autonomash), por outro lado, tambem sao de considerar como tal as actuacoes
de particulares colaborando com a Administracao no exercicio da funcao
administrativa (o artigo 4.o, n.o 2, alinea d, refere-se a áactos juridicos praticados
por sujeitos privados, designadamente concessionarios, no exercicio de poderes
administrativosâ) - para alem, como e obvio, das ja antes referidas actuacoes da
Administracao publica sob forma privada.
31 VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., p. 131.
49
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Dai que, em nossos dias, e perante a logica de uma Administracao cada vez mais
complexa e multifacetada, se assista a uma multiplicidade e diversidade de actos
administrativos, conjugando (em proporcoes diversas) dimensoes agressivas, prestadoras e
infra-estruturais. Bem, andou, pois, o Codigo de Procedimento Administrativo ao adoptar
uma nocao ampla e gabertah de acto administrativo, que compreende toda e qualquer
decisao destinada a producao áde efeitos juridicos numa situacao individual e concretaâ
(vide o artigo 120o). Pelo que, entre nos, tanto as actuacoes agressivas como as prestadoras
ou as infra-estruturais, tanto áas decisoes de caracter regulador como as actuacoes de
conteudo mais marcadamente material, os actos de procedimento como as decisoes finais,
as actuacoes internas bem como as externas, sao consideradas pela lei como actos
administrativosâ 32.
A gcriseh das concepcoes restritivas de acto administrativo nao poderia deixar de ter
consequencias contenciosas, abrindo o Processo Administrativo a multiplicidade e a
diversidade das gnovas especiesh de actuacoes administrativas. Daqui resultando que os
actos administrativos impugnaveis se tornaram, áhoje em dia, (...) uma realidade de
contornos muito amplos, que compreende nao apenas as decisoes administrativas finais e
gperfeitash, criadoras de efeitos juridicos novos, como tambem aqueloutras actuacoes
administrativas imediatamente lesivas de direitos dos particulares, que tanto podem ser
actos intermedios, como decisoes preliminares, ou simples actos de execucaoâ33. Tendencia,
esta, para o alargamento dos actos administrativos susceptiveis de ser apreciados em juizo,
que se verifica em todos os paises europeus, mesmo naqueles sistemas paradigmaticos,
32 VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., p. 625.
33 VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., p. 598 e 599.
50
Temas e Problemas de Processo Administrativo
como os da Franca34 ou da Alemanha35, em que tinham sido anteriormente adoptadas
(atraves de fonte jurisprudencial ou legislativa) nocoes restritivas de impugnabilidade.
Por tudo isto, tambem entre nos, sao de afastar nocoes restritivas de acto
administrativo seja ao nivel substantivo, seja ao nivel processual. Pois, áem minha opiniao,
nao ha que distinguir substantivamente os actos administrativos das gdecisoes executoriash
ou dos gactos definitivos e executoriosh36 ou, ainda - para usar a terminologia de inspiracao
alema - os gactos reguladoresh dos gnao actos administrativosh (os quais tambem se podem
chamar de [actos] ginstrumentaish ou gauxiliaresh)37. Actos administrativos sao todos os
que produzam efeitos juridicos mas, de entre estes, aqueles cujos efeitos forem susceptiveis
de afectar, ou de causar uma lesao a outrem, sao contenciosamenteâ impugnaveis38.
A impugnabilidade nao e, portanto, áuma questao de gnaturezah, nem uma
caracteristica substantiva dos actos administrativos, ou de uma especifica e delimitada
34 Em Franca, árecorriveis nao sao apenas os gactos executoriosh, aquelas declaracoes de vontade que
criam um novo direito ou dever, mas tambem aqueloutros actos que nao cabem nessa definicao doutrinaria,
ja que se entende que gtodas as decisoes susceptiveis de causar lesaoh (gsusceptibles de faire griefh) podem
ser objecto de um recurso jurisdicionalhâ (VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., p.
598 e 599). Assim, áa doutrina francesa e (...) unanime em reconhecer que o conceito de recorribilidade do
acto pode ir muito para alem das construcoes dogmaticas de caracter restritivo. O que, de resto, vai ao
encontro da tradicao dogmatica francesa de conceber o acto administrativo com o sentido amplo de actuacao
produtora de efeitos juridicos (...)â (VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., p. 599).
Sobre o problema em geral, vide por todos RENE CHAPUS, áDroit du Contentieux Administratifâ, 11a
edicao, Montchrestien, Paris, 2004, pp. 506 e ss.; DEBBASCH / RICCI, áContentieux Administratifâ, 8.a
edicao, Dalloz, Paris, 2001, pp. 366 e ss.
35 Na Alemanha, a gcriseh da nocao restritiva de acto administrativo . de resto, expressamente
consagrada na Lei de Procedimento Administrativo . tem originado ádois fenomenos de sentido contrario.
Por um lado, a um alargamento da nocao de acto administrativo, operada por via do processo, mas que
inevitavelmente conduz tambem a um relativo desvirtuamento do conceito substantivo de regulacao, de
forma a abranger realidades que, de outra maneira, nao caberiam neste conceito (...). Por outro lado, a
proliferacao de actuacoes administrativas unilaterais juridicamente relevantes, que ficam de fora do conceito
de acto administrativoâ, mas que se entende que lhe devem ser juridicamente equiparadas, as quais adoptam
denominacoes muito diversas, nomeadamente de gactuacoes administrativas informaish (ginformales
Verwaltungshandelnh), de gactividades de Administracao soberana simplesh (gschlichte Hoheitstatigkeith), ou
de gactos materiaish (gRealakteh) (VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., pp. 608 e
609). A este fenomeno acresce ainda a tendencia dominante, no direito alemao, para fazer da relacao juridica
o novo gcentroh da dogmatica administrativa, ocupando o lugar tradicionalmente ocupado pelo acto
administrativo. Sobre o problema da impugnabilidade do acto administrativo, em geral, vide por todos
WOLF-RUDIGER SCHENKE, áVerwaltungsprozessrechtâ, 8a edicao, C.F. Muller, 2002, mx. pp.175 e ss. e
236 ess.; FRIEDHELM HUFEN, áVerwaltungsprozessrechtâ, 5a. Edicao, Beck, Munchen, 2003, pp. 227 e ss.
e 423 e ss.
36 A gescola classica de Lisboah, na esteira de MARCELLO CAETANO, distinguia entre um conceito
amplo de acto administrativo e um conceito restrito de acto impugnavel, que se caracterizava pelas
caracteristicas (substantivas) da definitividade e da executoriedade. Neste sentido, vide MARCELLO
CAETANO, áManual de D. A.â, cit., vol.I, cit., pp. 427 e ss.; FREITAS DO AMARAL, áCurso de D. A.â,
cit., vol. II, pp 203 e ss. (mx. pp. 253 e ss.).
37Tradicional, na gescola de Coimbrah (mas com defensores tambem em Lisboa) era a adopcao de um
conceito restrito de acto administrativo, tanto para efeitos substantivos como processuais, caracterizado pela
ideia de regulacao ou de determinacao de efeitos juridicos novos, e afastando dessa qualificacao outras
actuacoes juridicas unilaterais denominadas como gactos instrumentaish (ROGERIO SOARES) ou gactos
auxiliaresh (SERVULO CORREIA). Neste sentido, vide por todos, em Coimbra, ROGERIO SOARES,
áDireito Administrativoâ, licoes policopiadas, Coimbra, 1978, paginas 51 e seguintes; em Lisboa, SERVULO
CORREIA, áNocoes de Direito Administrativoâ, volume I, Danubio, Lisboa, 1982, paginas. 288 e seguintes.
38 VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A. P.â, cit., p. 627.
51
Temas e Problemas de Processo Administrativo
categoria delesâ. Impugnaveis ásao todos os actos administrativos que, em razao da sua
gsituacaoh, sejam susceptiveis de provocar uma lesao ou de afectar imediatamente posicoes
subjectivas de particularesâ. Tao importante e esta abertura da nocao processual de acto
administrativo, que o legislador constituinte lhe atribuiu mesmo natureza de direito
fundamental, incluindo expressamente a faculdade de impugnar quaisquer actos
administrativos susceptiveis de lesar posicoes subjectivas dos particulares no proprio
conteudo do direito de acesso a justica administrativa (artigo 268o, n.o 4, da Constituicao).
A reforma, na linha das opcoes constitucionais e do que ja tinha sido consagrado ao
nivel da regulacao do procedimento, vai tambem proceder a áhaberturah do Contencioso
Administrativo, que nao trata mais apenas dos actos da Administracao Agressiva, mas que
passou tambem a ter de se ocupar da multiplicidade e diversidade das formas de actuacao
da Administracao Prestadora e Infra-estrutural, fazendo incidir a sua apreciacao sobre o
universo do procedimento e da relacao juridica administrativaâ (bilateral e multilateral)39.
Assim concretizando o modelo constitucional de uma Justica Administrativa plenamente
jurisdicionalizada e destinada a garantir de forma integral e efectiva os direitos dos
particulares nas relacoes juridicas administrativas (conforme estabelecido nos artigos 202o e
seguintes e nos numeros 4 e 5 do artigo 268o da Constituicao).
Se se atentar na nocao de acto administrativo, pressuposta e adoptada pelo
legislador da reforma do contencioso, pode-se dizer que ela apresenta, em relacao as
concepcoes tradicionais, dois tipos de transformacoes, que se podem distinguir entre:
- externas, na medida em que sao determinadas pelas opcoes globais em materia
de processo, mas que nao podem deixar de se reflectir em tal nocao;
- internas, uma vez que resultam da propria modificacao da nocao de acto, em si
mesma, resultando da mudanca de pressupostos e de condicoes da respectiva
apreciacao contenciosa 40.
Das transformacoes externa, a titulo de sintese e realcando (de forma esquematica)
apenas aquelas opcoes da justica administrativa que mais directamente se prendem com a
(evolucao da) nocao de acto administrativo, permito-me realcar as seguintes:
39 VASCO PEREIRA DA SILVA, áhO Nome e a C.h . A A. C. R. de A. e a R. do C. A.â, in áVentos de
M. no C. A.â, cit., p. 136.
40 Como e obvio, esta distincao, entre transformacoes externas ou internas tem mais que ver com uma
tentativa de garrumacao logicah do tratamento da materia, do que com a criacao de gcategorias cientificash,
mais ou menos estanques.
52
Temas e Problemas de Processo Administrativo
a) a gaberturah do Processo Administrativo ao controlo da relacao juridica e do
procedimento (concretizando assim a disposicao constitucional do artigo 212o, no. 3, que
estabelece que o objecto do contencioso administrativo sao as árelacoes juridicas
administrativas e fiscaisâ e que se encontra plasmada no artigo 1o do Estatuto). Abertura a
relacao juridica material que se traduziu, entre outras coisas, no principio de que a todo o
direito do particular deve corresponder uma tutela judicial adequada . e efectiva - (artigo
2o, do Codigo de Processo); na regra pela qual se permite a cumulacao de pedidos a fim de
permitir a apreciacao da integralidade da relacao controvertida (artigo 4o, do Codigo de
Processo); ou na norma que, para salvaguarda dos direitos da relacao juridica
administrativa, permite mesmo a apreciacao, a titulo incidental, de um acto administrativo
que se tornou inimpugnavel (artigo 38o do Codigo) . afastando assim a ideia de um
pretenso efeito convalidatorio (substantivo) dos actos cuja anulacao ja nao e mais possivel
pelo decurso do prazo (de efeitos meramente processuais) 41 .; ou ainda na disposicao que,
ao estabelecer a impugnabilidade dos actos procedimentais (vide o artigo 51o, do Codigo),
atribui relevancia juridica autonoma as relacoes estabelecidas no decurso de um
procedimento administrativo. Sendo certo que tal abertura a relacao material vai implicar,
igualmente, o estabelecimento de uma relacao juridica processual, mediante a consagracao
de principios como o da igualdade das partes (artigo 6o, do Codigo de Processo), ou o da
cooperacao e da boa fe processual (artigo 8o, do Codigo de Processo), que sao o espelho,
ao nivel do Contencioso Administrativo, do que se verifica no plano substantivo;
b) o abandono do classico recurso de anulacao42 e sua substituicao por uma accao
administrativa especial, em que o juiz administrativo goza de poderes de plena jurisdicao.
Assim, se superando definitivamente os gtraumas de infanciah da Justica Administrativa,
41 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA, áA Accao para o Reconhecimento de Direitosâ, in áVentos de
M. no C. A.â, cit., pp. 49 e ss. (mx. 58 e ss.).
42 Conforme anteriormente escrevi, áo grecurso por excesso de poderh comecou por ser um simples
recurso hierarquico jurisdicionalizado, uma vez que tanto o autor do acto como a entidade controladora se
integravam na esfera da Administracaoâ. Mas, posteriormente ao gbaptismoh e a gconfirmacaoh da Justica
Administrativa, o recurso de anulacao . tal como existia, no direito portugues, depois da reforma de 1984/85,
mas antes da presente reforma do contencioso - ánao e um recurso nem e somente de anulacao, pelo que o
nome nao condiz com a realidade designadaâ. E acrescentava-se que nao e um recurso, mas sim uma accao,
porque ánao versa sobre uma decisao judicial nem consiste numa apreciacao judicial de segunda instanciaâ,
antes se trata áde uma primeira apreciacao jurisdicional de um litigio emergente de uma relacao juridica
administrativa, na sequencia da pratica de um acto pela Administracaoâ (VASCO PEREIRA DA SILVA, ágO
Nome e a C.h . A A. C. R. de A. e a R. do C. A.â, in áVentos de M. no C. A.â, cit., p. 138). Mas tambem nao
e áapenas de anulacao, uma vez que, por um lado, sob essa denominacao, podem tambem ser proferidas
sentencas condenatorias (v.g. quando estiver em causa o exercicio de poderes vinculados) ou de simples
apreciacao (v.g. a declaracao de nulidade de um acto administrativo), por outro lado, as sentencas ditas de
anulacao nao possuem apenas efeitos demolitorios mas gozam igualmente de uma eficacia repristinatoria e
conformadoraâ (VASCO PEREIRA DA SILVA, ágO Nome e a C.h . A A. C. R. de A. e a R. do C. A.â, in
áVentos de M. no C. A.â, cit., p. 142).
53
Temas e Problemas de Processo Administrativo
que estiveram na origem da concepcao do recurso de anulacao como gprocesso ao actoh.
O que implicou substituir um conceito restritivo de acto administrativo, construido em
funcao da actuacao autoritaria da Administracao Agressiva e delimitado em razao de um
exclusivo meio processual, e de efeitos limitados, como era o classico recurso de anulacao,
por uma nocao ampla de acto administrativo, susceptivel de compreender tambem as
actuacoes da Administracao Prestadora e Infra-estrutural, no ambito de um contencioso
em que os meios processuais sao diversificados em razao dos pedidos, mas em que tambem
os proprios pedidos podem ser cumulados, de modo a permitir uma tutela plena e efectiva
dos direitos dos particulares nas relacoes juridicas administrativas (vide os artigos 4.o e 47.o,
do Codigo);
c) a delimitacao do Contencioso Administrativo em razao da funcao administrativa, e
ja nao do poder administrativo. Tambem aqui se verificando a superacao dos gtraumash da
ginfancia dificilh do Contencioso Administrativo . o qual, nos primordios, correspondera a
um gprivilegio de foroh, mediante a consagracao de um juiz privativo para a Administracao
. e que conservara dessa origem historica, de acordo com os canones da concepcao classica
da gdoutrina do processo ao actoh (HAURIOU), o entendimento da Justica Administrativa
com um ambito limitado apenas aos actos de autoridade, tipicos da Administracao
Agressiva. Ora, a referida evolucao dos modulos de Estado e de Administracao, assim
como a concomitante transformacao do Contencioso Administrativo, nos Estados de
Direito, implicou o alargamento do ambito da justica administrativa, que deixou de incidir
apenas sobre os actos de gautoridadeh, para se ocupar tambem dos actos da gfuncaoh
administrativa, que deixou de apreciar somente as grelacoes de poderh para passar a
controlar todas as relacoes juridicas administrativas (vide o artigo 212o, no 3, da
Constituicao portuguesa). Tal transicao de um contencioso ainda muito marcado pela ideia
de controlo do poder, para uma justica tendo por objecto a globalidade da funcao
administrativa e notoria, por exemplo, no que respeita a opcao de por termo a
(anteriormente existente) dualidade de jurisdicoes em materia de contratos e de
responsabilidade da Administracao (vide os artigos 4.o, n.o 1, alineas e, f, g, h, i, do Estatuto
e 37o seguintes do Codigo, relativos a gaccao administrativa comumh). Assim se
transferindo para o ambito do Contencioso Administrativo todas as questoes em materia
contratual e de responsabilidade, que correspondam ao exercicio da funcao administrativa.
Pena e que, no que respeita a responsabilidade civil publica, a reforma tivesse ficado ga
meio do caminhoh e que a unidade jurisdicional, agora consagrada, nao tivesse sido
54
Temas e Problemas de Processo Administrativo
acompanhada da necessaria unificacao e reforma do respectivo regime juridico substantivo
(continuando a manter-se em vigor a indesejavel e inadequada dualidade legislativa, assente
na ilogica e obsoleta distincao entre actos de gestao publica e de gestao privada).
Mas, como se disse, mais importantes do que estas transformacoes externas, sao as
proprias transformacoes internas do conceito de acto administrativo, por comparacao com
os paradigmas classicos, que foram introduzidas pela reforma do contencioso, e das quais
se podem destacar as seguintes:
a) O alargamento da impugnabilidade dos actos administrativos, que passa a ser
determinada em razao da eficacia externa e da lesao dos direitos dos
particulares (artigo 51o, no. 1 do Codigo). Desta forma se dando cumprimento
ao disposto no artigo 268o, n.o 4, da Constituicao, que estabelece um direito
fundamental de impugnacao dos actos administrativos lesivos dos particulares,
no ambito de um Contencioso Administrativo plenamente jurisdicionalizado e
de natureza predominantemente subjectiva, porque destinado a garantir a tutela
integral e efectiva dos particulares.
Relativamente a susceptibilidade de lesao de direitos deve dizer-se, em
primeiro lugar, que ela consiste num pressuposto processual relativo ao acto
administrativo e nao a legitimidade das partes, pois uma coisa e afirmar que um
acto administrativo esta em condicoes de produzir uma lesao em posicoes
substantivas dos particulares, outra coisa diferente e a alegacao pelo particular
da titularidade de um direito, que foi lesado por um acto administrativo ilegal43.
No primeiro caso, a questao diz respeito a situacao do acto administrativo e a
sua susceptibilidade de provocar ou nao uma lesao, pelo que esta em causa a
verificacao de um pressuposto processual relativo ao comportamento da
Administracao, no segundo caso, do que se trata e da alegacao pelo particular
de uma posicao de vantagem, pelo que se esta perante um pressuposto
processual relativo aos sujeitos.
Em segundo lugar, ha ainda que esclarecer que, ao estabelecer um direito
fundamental de impugnacao de actos administrativos susceptiveis de lesar os
direitos dos particulares (artigo 268.o, n.o 4, da Constituicao), a Constituicao
43 Em sentido contrario, vide SERVULO CORREIA, áUnidade ou Pluralidade de Meios Processuais
Principais no Contencioso Administrativoâ, in áCadernos de Justica Administrativaâ, n.o 22, Julho/ Agosto,
2000, pagina 31.
55
Temas e Problemas de Processo Administrativo
esta a consagrar um modelo de Justica Administrativa de matriz
predominantemente subjectiva, que tem por funcao e natureza principais a
proteccao dos direitos dos particulares. Mas, a Constituicao nao e uma lei de
processo, pelo que se e inequivoco que, sempre que estao em causa direitos dos
particulares, o criterio de apreciacao jurisdicional das actuacoes administrativas
nao pode deixar de ser o da susceptibilidade de lesao das respectivas posicoes
substantivas, tal nao significa, contudo, que o Contencioso Administrativo de
um Estado de Direito nao possa desempenhar tambem, complementarmente,
uma funcao de tutela directa da legalidade e do interesse publico . o que no
nosso sistema e realizado atraves dos mecanismos da accao publica e da accao
popular. Impunha-se, assim, ao legislador da reforma que, por um lado,
consagrasse o criterio do acto lesivo (ou, melhor dito, do acto susceptivel de
lesao) sempre que esteja em causa a accao para defesa de posicoes substantivas
dos particulares . concretizando assim as opcoes da Constituicao - e, por outro
lado, estabelecesse outro criterio de impugnabilidade de actos administrativos
sempre que esteja em causa a tutela directa da legalidade e do interesse publico.
Nesta medida, o criterio da impugnabilidade do acto administrativo, sem se
confundir com o pressuposto processual da legitimidade - repita-se -, esta com
ela intimamente relacionado, pois depende da questao de saber se esta em causa
uma accao juridico-subjectiva ou, em alternativa, uma accao publica ou uma
accao popular.
Assim, julgo correcta a solucao material adoptada pelo legislador em materia
de impugnabilidade (no referido artigo 51.o, n.o 1, do Codigo), ao referir-se a
actos com eficacia externa e a actos lesivos, o que e de entender a luz da
Constituicao. Pelo que o criterio de impugnabilidade depende da funcao e da
natureza da accao de impugnacao, havendo que distinguir consoante:
1) se trata de uma accao para a tutela de um direito (ou, se se
preferir, de uma posicao substantiva de vantagem) do particular
em face da Administracao, caso em que o meio processual de
impugnacao (nos termos do direito fundamental do artigo 268o,
no 4, da Constituicao) assume uma funcao predominantemente
subjectiva . pois se destina a garantir, em primeira linha, uma
tutela plena e efectiva do particular e so em segunda linha,
56
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ainda que simultaneamente, se destina a tutela da legalidade e
do interesse publico . e, nesse caso o criterio da
impugnabilidade e determinado pela lesao dos direitos dos
particulares;
2) ou se trata de uma accao para defesa da legalidade e do
interesse publico (como sucede nos casos da accao publica e da
accao popular), em que a funcao do meio processual e
predominantemente objectiva e, entao, a recorribilidade
depende da eficacia externa do acto administrativo.
Mas, se a solucao e correcta, a formulacao do n.o 1, do artigo 51.o, do
Codigo, resulta algo infeliz. Pois ela parece dar a entender que o criterio mais amplo
e o da eficacia externa, sendo o criterio da susceptibilidade de lesao de direitos uma
mera especificacao dentro do primeiro (ásao impugnaveis os actos administrativos
com eficacia externa, especialmente aqueles cujo conteudo seja susceptivel de lesar
direitos ou interesses legalmente protegidosâ), quando se trata antes de dois
criterios autonomos, com distinta natureza e funcao. Ora, esta aparente
subalternizacao do criterio da susceptibilidade de lesao de direitos nao so e
teoricamente insustentavel . tanto da perspectiva qualitativa (segundo a
Constituicao, a funcao principal da justica administrativa e a da proteccao juridica
subjectiva), como quantitativa (a maior parte dos processos julgados nos tribunais
administrativos correspondem a accoes para defesa de direitos, sendo muito menos
frequentes os casos de accao publica e de accao popular) -, como tambem e
expressamente contrariada pelo regime juridico consagrado pelo Codigo, que preve
a impugnacao de actos desprovidos de eficacia externa (artigo 54.o), desde que
lesivos (a provar que o criterio da lesao funciona para alem do da eficacia externa).
Susceptibilidade de lesao de direitos e eficacia externa sao, pois, dois criterios
distintos de impugnabilidade dos actos administrativos, que dependem da natureza
e da funcao do meio processual em causa.
b) A extensao da impugnabilidade decorrente da possibilidade de apreciacao dos
actos procedimentais. O que implica a relevancia juridica autonoma do
procedimento e o abandono de uma qualquer ideia de gdefinitividade horizontalh
dos actos administrativos como criterio de impugnabilidade, tambem aqui dando
57
Temas e Problemas de Processo Administrativo
cumprimento, pela via legislativa, ao imperativo da lei fundamental que (desde a
revisao constitucional de 1989) tornara inconstitucional aquela exigencia 44.
Assim, os actos de procedimento sao susceptiveis de impugnacao autonoma
(artigo 51o, no 1, do Codigo)45, o que significa a continuacao da transformacao de
um Contencioso Administrativo outrora exclusivamente centrado no acto
administrativo, num processo que passa a alargar o seu objecto as relacoes juridicas
administrativas, designadamente as que tem lugar no decurso do procedimento.
Uma vez que áqualquer acto administrativo e susceptivel de impugnacao
contenciosa (...) em resultado da verificacao do pressuposto processual da lesao de
direitos dos particulares, nao ha qualquer problema em admitir que uma medida
administrativa produza simultaneamente efeitos extermos e lesivos e efeitos
internos de preparacao de outras decisoes, em cujo procedimento esteja inserida.
Pois, perante um acto administrativo, a unica coisa que e preciso saber e se ele
afecta imediatamente, ou nao, os direitos dos particulares, para nada interessando o
facto dele ter sido praticado no inicio, no meio, ou no fim do procedimentoâ46.
E isto sem que se ponha em causa o direito fundamental a tutela judicial do
particular, na medida em que a nao impugnacao do acto de procedimento (ásalvo
quando o acto em causa tenha determinado a exclusao do interessado do
procedimentoâ) nao preclude a possibilidade de impugnar a decisao áfinal com
fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimentoâ (artigo 51o, no 3,
do Codigo). Dai que, perante um acto de procedimento lesivo dos seus direitos, o
particular possa escolher entre impugnar desde logo essa actuacao, ou esperar antes
pela decisao final do procedimento, sem que o seu direito fundamental a proteccao
judicial possa ser por isso afectado47. 48
44 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA áEm Busca do A. A. P.â, cit., p.p. 629 e ss..
45 Como se estabelece no artigo 51o, n.o 1, do Codigo de Processo Administrativo, áainda que inseridos
num procedimento administrativo, sao impugnaveis os actos administrativos ...â.
46 VASCO PEREIRA DA SILVA áEm Busca do A. A. P.â, cit., pp. 701 e 702.
47 Conforme escrevi antes da reforma, mas tendo em conta o paradigma constitucional, áo alargamento
do universo dos actos recorriveis, intencionado pelo legislador constituinte (artigo 268.o, n.o 4), nao pode
significar a diminuicao das hipoteses de recurso contencioso por parte do particular, nomeadamente, atraves
da preclusao da possibilidade de impugnar a decisao administrativa final. A nova formulacao do direito
fundamental (...) constitui um plus e nao um minus relativamente a tradicional garantia de recurso contra os
actos definitivos e executorios, pelo que o recurso contra actos de procedimento de caracter lesivo deve
acrescer ao (e nao substituir o) tradicional direito de recurso contra decisoes finaisâ (VASCO PEREIRA DA
SILVA áEm Busca do A. A. P.â, cit., p. 702).
48 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA áEm Busca do A. A. P.â, cit., pp. 691 e ss., mx. pp. 708 e 709.
Conforme ja entao se escrevia, e áutil analisar, a esta nova luz, alguns exemplos de actos administrativos cuja
recorribilidade era discutida (e, em regra, negada) mas que, hoje em dia, nao podem deixar de se entender
abrangidos pela garantia de recurso contencioso (...): [v.g.] os actos administrativos praticados no decurso do
procedimento, os pareceres vinculativos, as verificacoes constitutivas, os actos internos, as decisoes
provisorias, os actos postos em execucao a titulo experimental, os actos de execucao, as ordens de
58
Temas e Problemas de Processo Administrativo
c) A possibilidade de controlo judicial imediato dos actos dos subalternos. Trata-se,
tambem aqui, de retirar todas as consequencias do direito fundamental de
impugnacao contenciosa de actos administrativos (artigo 268o, no 4, da
Constituicao), desde que lesivos dos particulares, o qual, conforme tenho
defendido, feriu de inconstitucionalidade as disposicoes legais que estabelecem o
recurso hierarquico necessario49. E, pois, de saudar a orientacao do legislador no
sentido de determinar a impugnabilidade dos actos administrativos em razao da
eficacia externa e da lesao dos direitos dos particulares, afastando assim
expressamente toda e qualquer exigencia de recurso hierarquico necessario (artigo
51o, n.o 1, do Codigo)50.
A exigencia do previo esgotamento das garantias administrativas como
condicao necessaria de acesso aos tribunais constituia, de resto, uma das mais
persistentes manifestacoes dos gtraumas de infanciah do Contencioso
Administrativo, enquanto resquicio dos tempos do administrador-juiz. E mesmo
quando, em nossos dias, os defensores da sua manutencao propoem gnovas
justificacoes para velhos recalcamentosh, nomeadamente o de que se trataria da
ámanifestacao de uma procura de meios alternativos de resolucao de litigios . de
acordo com a filosofia da moda, [segundo a qual] o acesso ao direito nao se
confunde com o acesso ao juiz.â -, áforcoso e constatar [que elas representam] uma
tendencia (uma tentacao?) de restricao do acesso ao juiz (...) [,] um sinal, entre
outros, do estrangulamento persistente das jurisdicoes administrativasâ (PIERREFRANCOIS
RACINE)51.
Antes da reforma, sempre defendi a inconstitucionalidade da regra do
recurso hierarquico necessario, com base nos argumentos seguintes (que passo a
enunciar, em termos muito sinteticos), por entender que ela configurava a violacao:
regularizacao de situacoes ilegais, as declaracoes de incompetencia, as promessas, os actos confirmativosâ (p.
691).
49 Para maior desenvolvimento da questao, vide VASCO PEREIRA DA SILVA áEm Busca do A. A. P.â,
cit., pp. 660 e ss., mx. pp. 677 e ss. ; áBreve Cronica de uma Reforma Anunciadaâ, in áCadernos de Justica
Administrativaâ, n.o 1, Janeiro / Fevereiro de 1997, paginas 3 e seguintes; áO Contencioso Administrativo
como gDireito Constitucional Concretizadoh ou gainda por Concretizarh?â, in áVentos de M. no C.A.â, cit.,
pp. 87 e ss..
50 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA, áDe Necessario a Util: a Metamorfose do Recurso Hierarquico
no Novo Contencioso Administrativoâ, in áCadernos de Justica Administrativaâ, n.o 47, Setembro / Outubro
2004, paginas 21 e seguintes (texto que resultou da autonomizacao, para efeito de publicacao, com as
necessarias adaptacoes, de excertos do presente livro relativos ao recurso hierarquico necessario).
51 PIERRE-FRANCOIS RACINE, áLes Grands Principes Specifiques au Proces Administratifâ, in
REMY CABRILLAC / MARIE-ANNE FRISON-ROCHE / THIERRY REVET, áLibertes et Droits
Fondamentauxâ, 8.a edicao, 2002, Dalloz, Paris, pagina 627.
59
Temas e Problemas de Processo Administrativo
a) do principio constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares
(artigo 268o, n.o 4, da Constituicao), pois a inadmissibilidade de recurso
contencioso, quando nao tenha existido previamente o recurso hierarquico
necessario, equivale, para todos os efeitos, a uma verdadeira negacao do direito
fundamental de recurso contencioso;
b) do principio constitucional da separacao entre a Administracao e a Justica (vide
os artigos 114o, 205o e seguintes., 266o e seguintes, da Constituicao), por fazer
precludir o direito de acesso ao tribunal em resultado da nao utilizacao de uma
garantia administrativa (que nao podera ser outra coisa se nao facultativa);
c) do principio constitucional da desconcentracao administrativa (artigo 267o, n.o
2, da Constituicao), que implica a imediata recorribilidade dos actos dos
subalternos sempre que lesivos, sem prejuizo da logica do modelo hierarquico
de organizacao administrativa, pois o superior continua a dispor de
competencia revogatoria (artigo 142o do Codigo de Procedimento
Administrativo52);
d) do principio da efectividade da tutela (artigo 268o, no 4, da Constituicao), em
razao do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisao administrativa, no
caso de nao ter havido interposicao previa de recurso hierarquico, no prazo de
trinta dias (artigo 168o, n.o 2, do Codigo de Procedimento Administrativo)53,
reduzindo assim drasticamente o prazo de impugnacao de actos
administrativos54, o qual, por ser manifestamente curto, poderia equivaler, na
pratica, a inutilizacao da possibilidade de exercicio do direito e, como tal,
susceptivel de ser equiparada a lesao do proprio conteudo essencial do direito.
52 O artigo 148o, n.o 1, do Codigo de Procedimento Administrativo, considera ácompetentes para a
revogacao dos actos administrativos, para alem dos seus autores, os respectivos superiores hierarquicos, desde
que nao se trate de acto da competencia exclusiva do subalternoâ.
53 Segundo o artigo 168.o, n.o 1, do Codigo de Procedimento Administrativo, ásempre que a lei nao
estabeleca prazo diferente, e de 30 dias o prazo para a interposicao do recurso hierarquico necessarioâ.
54 Este argumento ja era decisivo antes da presente reforma do Contencioso Administrativo, pois o prazo
normal de interposicao de recurso contencioso era de dois meses, pelo que a exigencia de recurso hierarquico
necessario significava, na pratica, a reducao desse prazo a metade (vide o artigo 28.o, n.o 1, da LEPTA, que
estabelecia prazos de impugnacao que variavam de dois meses a um ano). Mas o argumento continua a fazer
sentido em face dos novos prazos de impugnacao (3 meses a um ano, segundo o artigo 58.o, do Codigo de
Processo), ja que a reducao pratica de tais prazos a um mes, que e o prazo de utilizacao do recurso
hierarquico necessario, continua a poder considerar-se como uma restricao grave a efectividade do exercicio
do direito de acesso a justica, susceptivel de ser equiparada a lesao do proprio conteudo essencial da posicao
juridica subjectiva constitucional.
60
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Tal posicao nao era, no entanto, sufragada pela jurisprudencia nem por
importantes sectores da doutrina55. Pela minha parte, reitero a posicao defendida (e
a respectiva argumentacao), que julgo manter-se valida e actual, mas considero
tambem que nao basta, agora, repetir acriticamente os argumentos da gvelhah
discussao relativa as vantagens e aos inconvenientes, ou a conformidade ou
desconformidade com a Constituicao do recurso hierarquico necessario, tal como a
questao se colocava antes da presente reforma, pois isso se assemelharia ao
comportamento de Charlot, no filme gTempos Modernosh, que, saido da cadeia de
montagem de uma fabrica, continuava mecanicamente a apertar porcas e parafusos,
como se ainda nao tivesse parado de trabalhar... Antes e imperioso repensar o
problema, considerando tanto as opcoes constitucionais como a forma como elas
foram efectivamente concretizadas pelo legislador do Processo Administrativo.
Ora, em minha opiniao, o legislador da reforma veio afastar, de modo expresso e
inequivoco, a necessidade de recurso hierarquico como condicao de acesso a justica
administrativa, daqui decorrendo novos argumentos favoraveis a posicao que
defendia, de inconstitucionalidade da referida exigencia56.
De referir, ainda, para melhor enquadrar o problema, que a distincao entre
recurso hierarquico necessario e facultativo tinha unica e exclusivamente que ver
com a questao de saber se o acto administrativo era áou nao insusceptivel de
recurso contenciosoâ (artigo 167o, n.o 1, do Codigo de Procedimento
Administrativo). Desta forma, a gnecessidadeh do recurso hierarquico nao dizia
respeito a existencia, nem a producao de efeitos do acto administrativo, mas tao so
a respectiva impugnabilidade contenciosa, constituindo um mero pressuposto
processual daquele. O acto administrativo praticado pelo subalterno era, pois,
gidenticoh ao praticado pelo superior hierarquico, produzindo os mesmos efeitos
juridicos, pelo que a gnecessidadeh da intervencao do orgao de topo da hierarquia
so se verificaria se o particular pretendesse contesta-lo judicialmente, caso contrario
ele continuaria a sua vigencia normal. A semelhanca das glagrimash do conhecido
poema de Antonio Gedeao, se se gpedisse para analisarh o acto administrativo de
55 Vide, por todos, o Acordao n.o 499 / 96, do Tribunal Constitucional, pronunciando-se no sentido da
nao inconstitucionalidade do recurso hierarquico necessario, e respectiva anotacao feita por VIEIRA DE
ANDRADE (VIEIRA DE ANDRADE, áEm Defesa do Recurso Hierarquico Necessario . Ac. n.o 499/96,
do Tribunal Constitucionalâ, in áCadernos de Justica Administrativaâ, n.o 0, Novembro / Dezembro de 1996,
paginas 13 e seguintes).
56 Neste sentido, embora manifestando (algo estranhas e contraditorias) duvidas quanto a efectividade de
tal solucao, vide tambem PAULO OTERO, áImpugnacoes Administrativasâ, in áCaderno de Justica
Administrativaâ, n.o 28, Julho / Agosto, 2001, paginas 50 e seguintes (maxime pagina 54).
61
Temas e Problemas de Processo Administrativo
um subalterno e de um superior hierarquico, forcoso seria concluir pela sua
identidade juridica...
Segundo creio, o Codigo de Processo afasta inequivoca e definitivamente a
gnecessidadeh de recurso hierarquico, como pressuposto de impugnacao
contenciosa dos actos administrativos, atraves das seguintes disposicoes:
- Consagracao da impugnabilidade contenciosa de qualquer acto
administrativo que seja susceptivel de lesar direitos ou interesses
legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficacia
externa (artigo 51o, n.o 1, do Codigo). Ora, os actos dos subalternos, da
mesma maneira como os actos dos superiores hierarquicos, sao
susceptiveis de preencher as referidas condicoes e, como tal, de ser
autonomamente impugnados, pelo que, ao nao haver no Codigo de
Processo Administrativo qualquer referencia - expressa ou implicita 57- a
necessidade de previa interposicao de uma garantia administrativa para o
uso de meios contenciosos, ela deve ser considerada como afastada pela
legislacao contenciosa (mesmo que, porventura, conste de uma qualquer
lei substantiva, a qual, em face da lei processual, fica desprovida de
objecto). O que vale tanto para as disposicoes do Codigo de
Procedimento Administrativo que regulam o recurso hierarquico
necessario, como relativamente a qualquer lei avulsa que consagre a
obrigatoriedade de recurso hierarquico ou outra garantia administrativa
(reclamacao, recurso improprio);
- Atribuicao de efeito suspensivo do prazo de impugnacao contenciosa do
acto administrativo a utilizacao de garantias administrativas (artigo 59.o,
n.o 4)58. O que significa conferir uma maior eficacia a utilizacao de
garantias administrativas, dado que o particular, que decida optar
57 Diferentemente do que agora se verifica, antes da reforma, as leis de processo faziam referencia ao
recurso hierarquico necessario, tanto de forma expressa (vide o artigo 34.o da LEPTA, que estabelecia o
regime juridico da gprecedencia de impugnacao administrativah), como implicita (vide o artigo 25o, n.o 1, da
LEPTA, que determinava so ser áadmissivel recurso dos actos definitivos e executoriosâ, remetendo
implicitamente para a construcao teorica da gdefinitividade verticalh, que dependia da previa interposicao de
recurso hierarquico necessario).
58 De acordo com o artigo 59o, n.o 4, do Codigo, áa utilizacao de meios de impugnacao administrativa
suspende o prazo de impugnacao contenciosa do acto administrativo, que so retoma o seu curso com a
notificacao da decisao proferida sobre a impugnacao administrativa ou com o decurso do respectivo prazo
legalâ.
62
Temas e Problemas de Processo Administrativo
previamente por essa via, sabe agora que o prazo para a impugnacao
contenciosa so voltara a correr depois da decisao do seu pedido de
reapreciacao do acto administrativo.
Assim, da perspectiva do particular, passa a poder valer a pena
solicitar previamente uma gsegunda opiniaoh por parte da Administracao,
nao vendo precludido o seu direito de impugnacao contenciosa pelo
decurso do prazo, restando igualmente esperar que, do lado da
Administracao, as garantias administrativas sejam efectivamente
consideradas como uma oportunidade de proceder a reapreciacao da
questao e aproveitadas para, sendo caso disso, satisfazer, logo ai, as
pretensoes dos privados (e nao vistas como uma gpratica rotineirah,
determinada pela inercia ou pela logica da gnao-contradicaoh, que conduz
a confirmacao, por sistema, da decisao anterior - como, na pratica,
infelizmente, hoje tantas vezes sucede). So assim as garantias
administrativas podem funcionar como verdadeiros instrumentos de
proteccao subjectiva e de tutela objectiva da legalidade e do interesse
publico, adquirindo igualmente uma funcao de composicao preventiva de
litigios contenciosos59. Numa so frase, de acordo com o novo Codigo, o
recurso hierarquico, tal como as demais garantias administrativas, passam
a ser sempre gdesnecessariash, mas tornam-se agora tambem sempre
guteish.
Da minha perspectiva, o legislador poderia ter dado ainda gum
passo maish, no sentido de garantir a plena eficacia e utilidade das
garantias administrativas. Que era o de determinar nao apenas o efeito
suspensivo do prazo de impugnacao contenciosa, mas tambem o efeito
suspensivo da propria execucao de decisao administrativa, generalizando
assim, a todas as garantias administrativas, o regime juridico que se
encontra estabelecido para os casos de recurso hierarquico necessario60.
Mas sempre se pode dizer, em abono da solucao encontrada, que tal
59 Pronunciando-se acerca do Projecto de Codigo de Processo Administrativo, PAULO OTERO refere
que, em virtude da regra da suspensao dos prazos, se áacaba por transformar a impugnacao administrativa
facultativa em impugnacao recomendavelâ (PAULO OTERO, áImpugnacoes A.â, cit., in áCadenos de J. A.â,
cit., p. 52.
60 De acordo com o n.o 1, do artigo 170.o, do Codigo de Procedimento Administrativo, áo recurso
hierarquico necessario suspende a eficacia do acto recorrido, salvo quando a lei disponha em contrario ou
quando o autor do acto considere que a sua nao execucao imediata crie grave prejuizo para o interesse
publicoâ.
63
Temas e Problemas de Processo Administrativo
medida nao e ja de natureza estritamente processual, pelo que a
consagracao desse regime suspensivo da eficacia dos actos
administrativos devera ser antes realizado pela necessaria revisao do
Codigo de Procedimento Administrativo, a fim de o compatibilizar com
o novo regime processual. Oxala...
- Estabelecimento da regra segundo a qual, mesmo nos casos em que o
particular utilizou previamente uma garantia administrativa e beneficiou
da consequente suspensao do prazo de impugnacao contenciosa, isso nao
impede a possibilidade de imediata impugnacao contenciosa do acto
administrativo (artigo 59o, n.o 5, do Codigo)61. O que significa o
afastamento inequivoco da gnecessidadeh de recurso hierarquico, bem
como de qualquer outra garantia administrativa, ja que doravante e
sempre possivel ao particular aceder de imediato a via contenciosa,
independentemente de ter ou nao feito uso dessa via graciosa.
Assim, nao so o particular tem agora sempre a possibilidade de
escolher entre utilizar previamente uma garantia graciosa ou de aceder
desde logo ao tribunal, como tambem, mesmo naqueles casos em que
decidiu fazer uso previo da via administrativa (o que vale para todas as
garantias administrativas, quer as antes consideradas gnecessariash, quer
as ditas gfacultativash), tal em nada obsta, nem condiciona, a faculdade de
suscitar a imediata apreciacao jurisdicional do litigio, ja que o privado
continua a poder optar (a qualquer momento e sem ter de esperar pela
decisao da Administracao) por proceder a impugnacao contenciosa do
acto administrativo, assim como requerer as providencias cautelares que
entender adequadas.
Desta forma, desaparece a gnecessidadeh tanto do recurso
hierarquico como de qualquer outra garantia administrativa. E isto, no
duplo sentido de nao mais ser necessaria a sua previa utilizacao para
aceder ao Contencioso Administrativo, e de nao ser mais tambem
necessario, nos casos em que o particular optou por usar
antecipadamente a via administrativa, esperar pelo resultado dessa
61 Segundo o n.o 5, do artigo 59o, do Codigo de Processo Administrativo, áa suspensao do prazo prevista
no numero anterior nao impede o interessado de proceder a imediata impugnacao contenciosa do acto na
pendencia da impugnacao administrativa, bem como de requerer a adopcao de providencias cautelaresâ.
64
Temas e Problemas de Processo Administrativo
diligencia para, desde logo, impugnar contenciosamente o acto
administrativo. Todas as garantias administrativas passaram a ser,
portanto, gfacultativash, delas deixando de depender o acesso ao juiz.
Tudo visto, forcoso e concluir que o Codigo de Processo Administrativo
consagrou o afastamento da regra do recurso hierarquico necessario, bem como de
outras garantias administrativas susceptiveis de ser consideradas como necessarias,
estabelecendo, nos termos da Constituicao, um regime juridico que permite o
imediato acesso a apreciacao contenciosa de actos administrativos. Isto, ao mesmo
tempo, que comina o efeito suspensivo automatico do prazo de impugnacao
contenciosa das decisoes administrativas, decorrente da previa utilizacao das
garantias administrativas, de forma a aumentar a respectiva eficacia tanto do ponto
de vista da proteccao subjectiva como da tutela objectiva da legalidade e do
interesse publico.
Mas, se e pacifico afirmar que áo CPTA nao exige (...), em termos gerais,
que os actos administrativos tenham sido objecto de previa impugnacao
administrativa para que possam ser objecto de impugnacao contenciosa
(M.AROSO DE ALMEIDA)62, tende agora a surgir uma interpretacao restritiva
deste regime juridico63, segundo a qual se estaria aqui apenas perante uma
revogacao da regra geral da exigencia de recurso hierarquico necessario, constante
do Codigo de Procedimento Administrativo, mas que ela nao implicaria a
revogacao de eventuais regras especiais, que consagrassem tal exigencia, quando
existissem, nem afastaria a possibilidade do estabelecimento de similares exigencias
em lei especial.
Assim, de acordo com esta interpretacao restritiva, independentemente da
revogacao da regra geral, o Codigo ánao tem (...) o alcance de revogar as multiplas
determinacoes legais avulsas que instituem impugnacoes administrativas
necessarias, disposicoes que so poderiam desaparecer mediante disposicao expressa
que determinasse que todas elas se consideram extintasâ (MARIO AROSO DE
ALMEIDA)64. Pelo que, ána ausencia de determinacao legal expressa em sentido
62 MARIO AROSO DE ALMEIDA, áO Novo Regime do P. nos T. A.â, cit., p. 147.
63 Neste sentido, vide MARIO AROSO DE ALMEIDA, áAs Implicacoes de Direito Substantivo da
Reforma do Contencioso Administrativoâ, in áCadernos de Justica Administrativaâ, no 34, Julho / Agosto
2002, paginas 71 e seguintes; VIEIRA DE ANDRADE, áA Justica A. (L.)â, cit., pp. 203 e ss., mx. p. 222,
nota 470.
64 MARIO AROSO DE ALMEIDA, áO Novo R.do P. nos T. A.â, cit., p. 147.
65
Temas e Problemas de Processo Administrativo
contrario, deve entender-se que os actos administrativos com eficacia externa sao
imediatamente impugnaveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade
da previa utilizacao de qualquer via de impugnacao administrativa. As decisoes
administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnacao administrativa
necessaria nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado
de uma opcao consciente e deliberada do legislador, quando este a considere
justificadaâ (M.AROSO DE ALMEIDA)65.
Nao acompanho esta interpretacao restritiva ou minimalista, que me parece
contrariar tanto as disposicoes constitucionais como o regime juridico consagrado
no Codigo de Processo Administrativo, e cuja justificacao me parece residir mais
em consideracoes de politica legislativa do que em argumentos estritamente
juridicos. Da minha perspectiva, nao e de adoptar tal interpretacao restritiva,
designadamente, pelas seguintes razoes:
- Em primeiro lugar, nao vejo como e possivel compatibilizar a gregra
geralh da admissibilidade de acesso a justica, independentemente de
recurso hierarquico necessario, com as gregras especiaish que
supostamente manteriam tal exigencia. Pois, se a unica razao de ser da
gnecessidadeh do recurso hierarquico era, como se viu, a de permitir a
impugnacao do acto administrativo e se, agora, se consagra sempre a
possibilidade de impugnacao contenciosa imediata dessa decisao
administrativa, independentemente da via administrativa previa e do
respectivo efeito suspensivo, entao qual e o sentido de considerar que tal
exigencia se mantem, apesar de ja nao poder produzir qualquer efeito do
ponto de vista contencioso? Faz algum sentido dizer que a impugnacao
administrativa previa se tornou desnecessaria, para efeito de impugnacao
contenciosa (que era, precisamente, a unica razao de ser da sua
existencia), mas que continua a poder ser exigida? E se sim, para que
efeitos, pois nao esta aqui em causa a existencia nem a eficacia do acto
administrativo, mas tao so a possibilidade da respectiva impugnacao
contenciosa, sendo certo que tal possibilidade, agora, foi expressamente
consagrada pelo Codigo de Processo Administrativo, pelo que uma
65 MARIO AROSO DE ALMEIDA, áO Novo Regime do P. nos T. A.â, cit., p. 147.
66
Temas e Problemas de Processo Administrativo
eventual lei especial, que mantivesse tal exigencia, deixaria forcosamente
de ter quaisquer consequencias contenciosas?
Em sintese, considerar que, a partir de agora, o recurso
hierarquico passou a ser sempre gdesnecessarioh (mesmo que gutilh), mas
que ele pode continuar a ser exigido como condicao previa de
impugnacao, mesmo quando ja nao pode mais continuar a ser
considerado como condicao de impugnacao, ou como pressuposto
processual, e um absurdo. Trata-se de uma contradicao insanavel, que
equivaleria a criar uma nova categoria conceptual: a do grecurso
hierarquico necessario desnecessarioh ou, se se preferir (porque, no
dominio do gsem-sentidoh, a ordem dos factores e arbitraria), do
grecurso hierarquico desnecessario necessarioh66.
- Em segundo lugar, para justificar a dualidade de regimes de impugnacao
de actos administrativos e utilizado um argumento formal para retirar
conclusoes que, salvo o devido respeito, me parecem infundadas. Diz-se
que o Codigo de Processo revogou a gregra geralh do recurso hierarquico
necessario, do Codigo de Procedimento Administrativo, mas nao as
gregras especiaish. Ora, admitindo (sem conceder) que isso era assim,
entao seria forcoso concluir que, antes da reforma, tais normas ditas
gespeciaish nao possuiam especialidade alguma, ja que eram apenas a
confirmacao, ou a reiteracao da gregra geralh da impugnacao hierarquica
necessaria. Qual e, pois, o sentido de utilizar o argumento formal de que
o Codigo revogou a gregra geralh, mas nao as normas que se limitavam a
reiterar a gregra geralh e que, portanto, estavam nela incluidas, nada tendo
de especial? Sera que a revogacao da gregra geralh nao tem implicita a
revogacao de todas as outras normas que se limitavam a reiterar o mesmo
regime juridico? A admitir, sem conceder, o argumento formal aduzido,
entao, ele so poderia valer para o futuro, perante novas hipoteses de
previsao legal de recursos hierarquicos necessarios - esses sim, especiais,
perante a nova regra geral . e nao para o passado, relativamente a
66 Sobre o problema da necessidade de ter em conta a manutencao da razao de ser das normas juridicas
para efeito da continuacao da respectiva vigencia, em tese geral, vide WOLFGANG LOEWER, áCessante
ratione legis cessat ipsa lex - Wandlung einer gemeinrechtlichen Auslegungsregel zum Verfassungsgebot?â, Walter
de Gruyter, Berlin / New York, 1989.
67
Temas e Problemas de Processo Administrativo
previsoes avulsas de impugnacoes administrativas necessarias que mais
nao tinham feito do que confirmar a regra geral anterior, e que se deverao
considerar igualmente revogadas pela revogacao da regra geral.
- Em terceiro lugar, o proprio argumento formal, antes referido, de que o
novo regime do Contencioso Administrativo revoga a gregra geralh do
recurso hierarquico necessario, constante do Codigo de Procedimento
Administrativo, mas nao leis gespeciaish avulsas, parece-me ser, ele
proprio, improcedente. Ja que, da minha perspectiva, o modo mais
correcto de colocacao do problema do relacionamento entre as normas
do Codigo de Processo Administrativo, que permitem o acesso imediato
ao juiz sem qualquer condicao de utilizacao previa de vias administrativas,
e as normas que continuem a prever a existencia de garantias
administrativas necessarias . o que vale tanto para as constantes do
Codigo de Procedimento Administrativo, como para as que estejam
contidas em legislacao avulsa, da mesma maneira como vale tanto para o
caso de elas serem anteriores como posteriores a reforma . nao tem a ver
com o fenomeno da revogacao, mas sim com o da caducidade destas
ultimas, por falta de objecto.
Se, como vimos, a unica razao de ser da exigencia do recurso
hierarquico necessario era a de permitir o acesso ao juiz, e se, agora, o
Codigo de Processo estabelece que tal garantia previa nao e mais um
pressuposto processual de impugnacao de actos administrativos, entao
isso so pode significar que a exigencia do recurso hierarquico em normas
avulsas deixa de ter consequencias contenciosas, pelo que se deve
considerar que (pelo menos, nessa parte) tais normas caducam, pelo
desaparecimento das circunstancias de direito que as justificavam.
Caducidade esta, por falta de objecto, que acresceria ao fenomeno, antes
referido, de caducidade decorrente da inconstitucionalidade da exigencia
do recurso hierarquico necessario (por violacao do conteudo essencial do
direito a tutela plena e efectiva, assim como dos principios da divisao de
poderes e da descentralizacao).
E isto vale tanto para previsoes especiais de garantias
administrativas necessarias que sejam anteriores como posteriores a
68
Temas e Problemas de Processo Administrativo
reforma (situacao esta que so a titulo de hipotese meramente academica e
de admitir, uma vez que, como e sabido, se deve presumir que o
legislador ordinario nao consagra solucoes inconstitucionais ou ilogicas,
para alem de atentatorias da unidade do sistema juridico no seu todo).
Pois, a admitir, por hipotese absurda, que o legislador ordinario viesse a
consagrar, ja depois da reforma do Contencioso Administrativo, normas
que estabelecessem a necessidade de recurso hierarquico necessario, ainda
que a titulo especial, para alem da questao da respectiva
inconstitucionalidade, sempre haveria que considerar que a criacao dessas
ggarantias administrativas necessarias desnecessariash nao teria qualquer
efeito util, ja que tal gcategoriah seria desprovida de consequencias
contenciosas (em face do novo regime do Codigo de Processo, lido a luz
da Constituicao).
- Em quarto lugar, do ponto de vista constitucional, se ja era dificil
considerar que a exigencia do recurso hierarquico necessario nao era
inconstitucional, antes da Reforma, como se fez referencia, eu diria tratarse
agora de uma gmissao impossivelh justificar, nomeadamente, que,
depois da concretizacao legislativa do direito fundamental de acesso a
Justica Administrativa, mediante a consagracao da regra da
desnecessidade de impugnacao administrativa previa ao acesso ao juiz,
pudessem existir excepcoes a um tal regime, levando a criacao de uma
especie de contencioso gprivativoh de certas categorias de actos
administrativos, em derrogacao ao regime geral, conforme a Constituicao.
Seria assim como que a gressurreicaoh da categoria das ultrapassadas
grelacoes especiais de poderh67, so que agora ao nivel do Contencioso
Administrativo, decorrente da criacao de um regime de impugnacao
especifico para certas categorias de actos, a margem dos direitos
fundamentais, da Constituicao e do Codigo de Processo Administrativo.
Dai que, mesmo aqueles que entendessem que o recurso
hierarquico necessario nao era inconstitucional, como regra geral, antes
da reforma do Contencioso Administrativo, sempre teriam, agora, pelo
67 Conforme escreve lapidarmente MAURER, as relacoes especiais de poder sao áum instituto que
pertence ao passadoâ, pois e constitucionalmente inadmissivel a ideia de um ádominio estadual livre do
direitoâ, a margem do principio da legalidade e dos direitos fundamentais (HARTMUT MAURER,
áAllgemeines V.â, cit., paginas 177 e ss.).
69
Temas e Problemas de Processo Administrativo
menos, de reconsiderar a questao, nao apenas perante as disposicoes
constitucionais, mas tambem em face da intervencao legislativa que as
concretiza e que poe termo a tal exigencia, sem prever quaisquer
excepcoes. Pois, mesmo (admitindo sem conceder) que nao se
considerasse, antes, que a exigencia do recurso hierarquico necessario era
inconstitucional, agora, perante um novo regime juridico concretizador
das disposicoes constitucionais, e que afasta expressamente essa
exigencia, nao se ve como e que regras excepcionais ou avulsas, que nao
apenas afectam de forma drastica o exercicio do direito de aceder a
tribunal como tambem restringem o respectivo conteudo, em termos que
se podem considerar como arbitrarios (porque desprovidos de criterio
logico ou de utilidade material), podem deixar de ser consideradas como
incompativeis com a Constituicao, por violacao do conteudo essencial do
direito fundamental de acesso a justica administrativa.
Desta forma, nao so sao desde logo de afastar, por
manifestamente inconstitucionais, disposicoes normativas, anteriores a
reforma do contencioso, que previssem a necessidade de impugnacao
administrativa previa, como tambem julgo que seriam igualmente
inconstitucionais eventuais derrogacoes legislativas (posteriores) do novo
regime processual conforme a Constituicao, nomeadamente por violacao
do conteudo essencial do principio constitucional da tutela plena e
efectiva dos direitos dos particulares, assim como do principio da
igualdade de tratamento dos particulares perante a Administracao e
perante a Justica administrativa, ao criarem gprivilegios de foroh para
certas categorias de actos administrativos.
- Em quinto lugar, ainda se pode aduzir outro argumento, de ordem
sistematica e constitucional, invocavel quer perante um qualquer
legislador que, gcontra ventos e maresh, viesse eventualmente a consagrar
regras especiais de garantias administrativas necessarias, quer, sobretudo,
perante a jurisprudencia que, nao obstante o novo regime processual,
continuasse a persistir na exigencia do grecurso hierarquico necessario
desnecessarioh. E que o Codigo de Processo Administrativo,
concretizando o direito fundamental de acesso ao Contencioso
70
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Administrativo (do art. 268.o, n.o 4, da Constituicao), estabelece um
principio de ápromocao do acesso a justicaâ (artigo 7.o do Codigo),
segundo o qual o gmeritoh deve prevalecer sobre as gformalidadesh, o
que implica, entre outros corolarios, a regra segundo a qual devem ser
evitadas gdiligencias inuteish (artigo 8.o, n.o 2, do Codigo).
Ora, nao e possivel imaginar nada mais inutil e despropositado do
que continuar a exigir uma qualquer garantia administrativa previa,
quando tal exigencia deixou de ser um pressuposto processual de
impugnacao dos actos administrativos, pelo que, tambem por esta via, se
verificaria a ilegalidade (e inconstitucionalidade) de uma qualquer decisao
judicial, bem como a inconstitucionalidade de uma qualquer intervencao
legislativa, que persistisse na regra do grecurso hierarquico necessario
desnecessarioh.
De tudo o que fica dito, resulta que o Codigo de Processo Administrativo,
concretizando as opcoes constitucionais em materia de direito fundamental de
acesso a Justica Administrativa, permite a imediata impugnacao dos actos
administrativos praticados pelos subalternos, afastando a exigencia de recurso
hierarquico necessario. Sendo agora necessario que o legislador, tendo em conta a
Constituicao e o novo regime processual, proceda a gharmonizacaoh das
disposicoes do Codigo do Procedimento Administrativo e demais legislacao avulsa,
nomeadamente daquelas que ainda procedem a distincao entre recurso hierarquico
necessario e facultativo (vide os artigos 166.o e seguintes, do Codigo de
Procedimento Administrativo), em termos que nao mais se justificam.
Da minha perspectiva, a solucao mais adequada, para compatibilizar os
regimes juridicos do procedimento e do processo, passaria pela revogacao expressa
das disposicoes que preveem o recurso hierarquico necessario (por uma questao de
certeza e de seguranca juridicas, uma vez que, como se viu, deve-se considerar que
elas ja caducaram), ao mesmo tempo que procedesse a generalizacao da regra de
atribuicao de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas (nomeadamente,
reclamacao, recurso hierarquico, recurso administrativo improprio) - eventualmente
acompanhada da fixacao de um prazo (curto) para o exercicio da faculdade de
impugnacao administrativa pelos particulares (que poderia bem ser o prazo de 30
71
Temas e Problemas de Processo Administrativo
dias)68, prazo este que nao teria qualquer relevancia para a questao da
impugnabilidade do acto administrativo, mas que interessaria, tao so, para a
aplicacao do regime de suspensao automatica da eficacia, ate a decisao da garantia
administrativa.
Trata-se de uma solucao (que, se bem me lembro, chegou a ser considerada,
aquando da feitura do Codigo de Procedimento Administrativo, ao nivel da
comissao encarregada dessa tarefa) que permitiria satisfazer todos os interesses
relevantes em presenca:
- o do particular, que passava a ter um estimulo acrescido para utilizar as
garantias administrativas, decorrente do efeito suspensivo automatico do
acto administrativo, sem nunca ver prejudicado, nem precludido o
respectivo direito de acesso ao tribunal - direito este que poderia exercer
sempre que o entendesse (bem entendido, desde que verificados os
pressupostos processuais, designadamente o da oportunidade);
- o da Administracao, que passaria a gozar, em termos mais alargados, de
uma gsegunda oportunidadeh, para melhor cumprir a legalidade e realizar
o interesse publico, podendo tambem, sendo caso disso, satisfazer desde
logo as pretensoes do particular e por termo ao litigio;
- o do bom funcionamento do sistema de justica administrativa, pois o
eficaz funcionamento das garantias administrativas poderia servir de
gfiltroh a litigios susceptiveis de ser preventivamente resolvidos. Sendo
certo que, em minha opiniao, e para que o sistema de garantias graciosas
pudesse ser verdadeiramente eficaz, seria ainda necessario criar tambem
orgaos administrativos especiais, a semelhanca dos gtribunalsh do sistema
britanico, de modo a salvaguardar a autonomia e a imparcialidade das
entidades decisoras, assim como criar simultaneamente novos e
especificos meios administrativos . sem que tudo isso, obviamente, em
68 Tal como se estabelece no artigo 168o, n.o 1, do Codigo de Procedimento Administrativo, segundo o
qual ásempre que a lei nao estabeleca prazo diferente, e de 30 dias o prazo para a interposicao do recurso
hierarquico necessarioâ. Tal prazo, por um lado, poderia valer como regra geral, alargando-se a todas as
garantias administrativas (o que nao obstava a que se pudesse pensar em estabelecer prazos mais curtos para
procedimentos especiais, ou para certas especies de garantias, nomeadamente de algumas reclamacoes) por
outro lado, deixaria de ter que ver com a impugnabilidade, uma vez que o particular poderia sempre optar
desde logo pelo acesso ao tribunal, mas tao so com a possibilidade de usufruir do regime de suspensao
automatica da eficacia do acto administrativo.
72
Temas e Problemas de Processo Administrativo
caso algum, pudesse por em causa a faculdade do particular aceder
imediatamente ao tribunal, se assim o entendesse.
Mas, se essa era, em minha opiniao, a solucao desejavel de conciliacao das
regras de procedimento e de processo, resta saber qual vai ser a orientacao do
legislador, no exercicio da respectiva gdiscricionaridade legislativah, sendo certo,
como se viu, que a opcao de proceder a meros gretoques cosmeticosh e de
gressuscitarh o recurso hierarquico necessario como condicao de impugnabilidade,
pela via da regulacao do procedimento, nao se afigura ser juridicamente possivel (ja
que ele, entretanto, se tornou desnecessario, de acordo com a regulacao do
processo), nem constitucionalmente admissivel. Entretanto, e enquanto nao
sobrevier a intervencao do legislador do procedimento, deve-se entender que
caducam todas as normas que prevejam a gnecessidadeh de recurso hierarquico, ou
de qualquer outro meio gracioso, pelo que todas as garantias administrativas sao de
considerar como facultativas, no sentido de que nao impedem o particular de
utilizar imediata, ou simultaneamente, a via contenciosa, alem de possuirem um
efeito suspensivo dos prazos de impugnacao contenciosa.
Mas, se a gnecessidadeh de recurso hierarquico nao pode mais ter efeitos
contenciosos, que dizer das normas de procedimento que preveem a suspensao da
eficacia dos actos administrativos submetidos a essa via graciosa, antes considerada
necessaria (vide o artigo 170.o do Codigo de Procedimento Administrativo)69. Da
minha perspectiva, e a titulo transitorio, enquanto nao sobrevier a intervencao do
legislador do procedimento, deve-se considerar que o particular lesado por um acto
administrativo de um subalterno, que preenchesse a previsao do anterior recurso
hierarquico necessario, pode optar por fazer uma de tres coisas:
- intentar, desde logo, a accao administrativa especial, acompanhada ou nao
do respectivo pedido cautelar de suspensao da eficacia do acto
administrativo (sendo certo que, como se vera, a concessao de tutela
cautelar se encontra facilitada pelo novo Codigo), optando
exclusivamente pela via judicial para a resolucao do litigio;
69 Segundo o artigo 170o, n.o 1, do Codigo de Procedimento Administrativo, áo recurso hierarquico
necessario suspende a eficacia do acto recorrido, salvo quando a lei disponha em contrario ou quando o autor
do acto considere que a sua nao execucao imediata causa grave prejuizo para o interesse publicoâ. Enquanto,
por seu lado, o n.o 3, do mesmo artigo, estabelece que áo recurso hierarquico facultativo nao suspende a
eficacia do acto recorridoâ.
73
Temas e Problemas de Processo Administrativo
- proceder a previa impugnacao hierarquica que, para alem do efeito geral
de suspensao do prazo de recurso contencioso, deve continuar a gozar,
neste caso, de efeito suspensivo da execucao do acto administrativo e, so
depois, em funcao do resultado da garantia administrativa, utilizar ou nao
a via contenciosa;
- impugnar hierarquicamente a decisao administrativa, que goza do referido
efeito de suspensao da eficacia, mas tendo ainda a possibilidade de aceder
imediatamente a tribunal, sem ter necessidade de esperar pela decisao do
recurso hierarquico70.
d) A sindicabilidade de actos administrativos que, sendo juridicos, nao sao
necessariamente de definicao do direito. O que decorre da evolucao historica antes
referida, uma vez que áo acto da Administracao Prestadora e Infra-estrural, dos
nossos dias, ja nao pode mais ser caracterizado como definidor do direito aplicavel, a
semelhanca das decisoes judiciais, de acordo com o paradigma de OTTO MAYER.
Pois, enquanto forma de actuacao da Administracao . e manifestacao de um poder
estadual que nao se confunde com a Justica ., o acto administrativo e uma decisao
destinada a satisfacao de necessidades colectivas (e dotado de valor material, para
alem de natureza juridica). A Administracao nao utiliza o direito como um gfim em si
mesmoh, que lhe caiba definir no caso concreto, como e tarefa da Justica, antes
utiliza o direito como um gmeioh para a satisfacao dessas mesmas necessidades
colectivasâ71.
A superacao do modelo tradicional de equiparacao do acto administrativo a
sentenca - que levava a qualificar o primeiro como regulador ou como
horizontalmente definitivo, consoante se adoptasse as classicas concepcoes da escola
de Coimbra ou de Lisboa - decorre, entre outras coisas, do regime de impugnacao
dos actos meramente conformativos (artigo 53o, do Codigo), que amplia a
admissibilidade de impugnacao desses actos 72 - os quais sao desprovidos de efeitos
70 Como e sabido, o efeito suspensivo do recurso hierarquico nao impede, no caso, a possibilidade de
impugnacao imediata, nos termos do artigo 54o, n.o 1, alinea b), do Codigo de Processo Administrativo, dado
tratar-se de acto lesivo e susceptivel de produzir efeitos juridicos, os quais so se encontram temporariamente
suspensos em virtude do respectivo destinatario ter optado pela utilizacao previa da garantia administrativa.
71 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA, ágO Nome e a C.h . A A. C. R. de A. e a R. do C. A.â, in
áVentos de M. no C. A.â, cit., p. 139.
72 De acordo com o artigo 53o, do C, áuma impugnacao so pode ser rejeitada com fundamento no
caracter meramente confirmativo do acto impugnado quando o acto anterior:
a) tenha sido impugnado pelo autor;
b) tenha sido objecto de notificacao ao autor;
c) tenha sido objecto de publicacao, sem que tivesse de ser notificado ao autorâ.
74
Temas e Problemas de Processo Administrativo
juridicos novos e, como tal, nao possuem o dito caracter regulador, da mesma
maneira como sao insusceptiveis de ser considerados como definidores do direito
aplicavel, pelo que nao gozam da dita definitividade material.
Mas a superacao da ideia de gdefinicao do direitoh, enquanto gresquicio
historicoh da assimilacao do acto administrativo a sentenca (MAYER), manifesta-se
ainda noutras disposicoes da reforma do contencioso, designadamente, quando se
admite a impugnabilidade dos actos de execucao (vide o n.o 2 e o n.o 3, do artigo 52o,
do Codigo, relativo a possibilidade de impugnacao de actuacoes de execucao e de
aplicacao tanto de actos administrativos contidos em norma, como de actos que nao
procedam a identificacao dos respectivos destinatarios)73. Pois, os actos de execucao,
sendo actuacoes administrativas susceptiveis de lesar direitos dos particulares e como
tal impugnaveis, nao gozam de caracter regulador nem de definitividade material.
Conforme se escrevia em momento anterior, ha que comecar por ádistinguir,
de forma nitida, as operacoes materiais dos actos administrativos de execucao. Se as
meras operacoes materiais (v.g. a efectiva demolicao de um predio em ruinas,
mediante a utilizacao de processos manuais ou mecanicos, ou a colocacao de flores
na secretaria de um director-geral) sao simples factos juridicos e nao actos
administrativos, ja todas as decisoes das autoridades administrativas destinadas a
producao de efeitos juridicos num caso concreto sao de considerar, na nossa ordem
juridica, como verdadeiros e proprios actos administrativos (art. 120.o do Codigo de
Procedimento Administrativo). O que significa que, entre nos, a nocao de acto
(administrativo) de execucao nao deve compreender apenas os actos reguladores, ou
definidores do direito aplicavel, ou constitutivos de direitos e deveres . como
pretendiam as orientacoes doutrinarias substancialistas e restritivas do acto
administrativo . mas deve igualmente abranger todas as actuacoes administrativas
simplesmente produtoras de efeitos juridicos (v.g. o acto que especifica o dia, a hora,
em que vai ter lugar a demolicao do predio em ruinas)â. Ora, nestes termos, qualquer
acto de execucao e, a partida, susceptivel de impugnacao contenciosa, a qual apenas
depende ádo facto do acto administrativo se encontrar [,ou nao,] em posicao de
73 De acordo com o artigo 52o, n.o2, do Codigo de Processo Administrativo, áo nao exercicio do direito
de impugnar um acto contido em diploma legislativo ou regulamentar nao obsta a impugnacao dos seus actos
de execucao ou aplicacaoâ. Determinando ainda o n.o 3, do referido artigo, que áo nao exercicio do direito de
impugnar um acto que nao individualize os seus destinatarios nao obsta a impugnacao dos seus actos de
execucao ou aplicacao cujos destinatarios sejam individualmente identificadosâ.
75
Temas e Problemas de Processo Administrativo
afectar imediatamente a posicao juridica dos particulares, ou seja, da verificacao do
pressuposto processual da lesao de direitosâ74.
e) A delimitacao do ambito da impugnabilidade em razao da eficacia e ja nao da
executoriedade dos actos administrativos. Uma vez mais, verifica-se aqui a
superacao da concepcao gautoritariah de acto administrativo (de acordo com o
modelo ja estabelecido na Constituicao, desde 1989), abandonando a ideia de
executoriedade, que nao pode ser mais considerada como caracteristica dos actos
administrativos . porque a maior parte dos actos administrativos nao e, por
natureza, susceptivel de execucao coactiva (v.g. actos favoraveis, permissivos,
declarativos); porque certas categorias de actos nao sao susceptiveis de execucao
por imposicao legal (os actos que imponham deveres de natureza pecuniaria, como
resulta do artigo 155o, no 1); porque em materia de policia e em estado de
necessidade e legitima a passagem a execucao coactiva da lei sem previo acto
administrativo75. Daqui decorrendo que a susceptibilidade de execucao coactiva
corresponde antes a um poder de autotutela da Administracao, o qual, de acordo
com o principio da legalidade, so pode existir nos casos expressamente previstos na
lei76.
De referir, tambem, que o legislador da reforma propoe mesmo a
possibilidade de impugnacao de actos ineficazes ainda que lesivos (artigo 54o, do
PCTA), se bem que em termos limitados (quando o acto tenha comecado a ser
executado, ou quando a eficacia decorra de condicao suspensiva dependente da
vontade do beneficiario). O que, mais uma vez, vem realcar a importancia da lesao
dos direitos dos particulares como gchaveh do acesso ao juiz administrativo, num
contencioso de natureza subjectivista, como e o nosso.
2.2- Outros pressupostos processuais: legitimidade e oportunidade
74 VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A P.â, cit., pp. 725 e 726.
75 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA, áEm Busca do A. A P.â, cit., pp. 489 e ss..
76 Tambem no que se refere a execucao coactiva se me afigura aconselhavel a revisao do CPA,
harmonizando as normas de procedimento com as de contencioso, uma vez que aquele codigo, nao obstante
todas as inovacoes e modificacoes positivas que introduziu nesta materia, continua a fazer referencia a nocao
de executoriedade.
76
Temas e Problemas de Processo Administrativo
O Codigo, nos seus preceitos iniciais, para alem das referidas regras relativas aos
elementos do processo, contem tambem disposicoes referentes aos pressupostos
processuais especificos do Contencioso Administrativo, e comuns a todos os meios
processuais, nomeadamente a legitimidade (artigos 9.o e seguintes do CPTA), o patrocinio
judiciario (artigo 11.o do CPTA), a competencia do tribunal (artigos 13.o e seguintes do
CPTA). Se correcta me parece ser esta opcao de estabelecer regras e principios comuns
respeitantes aos pressupostos processuais do Contencioso Administrativo, menos
adequado julgo ser o facto da lei nao ter procedido a uma diferenciacao efectiva do que era
comum e do que era especial, acabando por repetir, a proposito de cada um dos meios
processuais, o que ja antes tinha deixado dito em termos gerais . o que, por um lado, se
pode considerar como uma (assumida) gvirtude pedagogicah do legislador, por outro lado,
e susceptivel de causar problemas ao interprete e aplicador do direito (sobretudo, quando
sao utilizadas expressoes distintas, nas normas em questao), no que respeita a saber o que e
gque esta apenas a ser repetidoh e o que e gque e novoh, dando origem a um regime
especial.
No que respeita a legitimidade . que, do ponto vista da teoria do processo,
constitui o elo de ligacao entre a relacao juridica substantiva e a processual, destinando-se a
trazer a juizo os titulares da relacao material controvertida, a fim de dar sentido util as
decisoes dos tribunais -, existem as regras gerais constantes dos artigos 9o. e seguintes (que
nao ha agora que referir especificadamente77). Mas, utilizando o referido metodo
grepetitivo-pedagogicoh, o Codigo, contem ainda uma Subseccao II (Da Legitimidade), a
proposito da accao administrativa especial qualificada em razao do pedido de impugnacao,
onde se estabelece um regime gespecialh (embora, para alem da formulacao, quase nao
difira do ggeralh), onde se encontram regras relativas a glegitimidade activah (artigo 55.o) e
aos gcontra-interessadosh (artigo 57.o), para alem da questao (que, em rigor, nao e de
legitimidade) da gaceitacao do actoh (artigo 56.o).
77 Vide VASCO PEREIRA DA SILVA, áO Contencioso Administrativo no Diva da Psicanalise. Ensaio
sobre as Accoes no Novo Processo Administrativoâ, 2a. edicao, Almedina, Coimbra, 2009, paginas 254 e
seguintes.
77
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Procurando elaborar uma tipologia, nos termos do artigo 55.o do CPTA78, ha que
considerar as seguintes categorias de actores processuais:
8- Os sujeitos privados. Em causa esta o exercicio do direito de accao por privados,
que actuam para a defesa de interesses proprios, mediante a alegacao da titularidade
de posicoes subjectivas de vantagem, e que podem ser:
a) Os individuos (art. 55o, n.o 1, alinea a), do CPTA), que possuem um
ginteresse directo e pessoalh na demanda, o qual resulta da alegacao da
titularidade de um direito subjectivo (vide o artigo 9o, n.o 1, do CPTA).
Como se sabe, adopta-se aqui uma nocao ampla de direito subjectivo
publico, de acordo com a doutrina da norma de proteccao lida a luz dos
direitos fundamentais, mas a identica conclusao se chegaria se se preferisse
a classificacao tripartida tradicional, pois a alegacao da qualidade de parte,
que aqui esta em causa, engloba tanto os denominados direitos subjectivos
(em sentido restrito, ou gclassicoh), como os interesses legitimos, como
ainda os interesses difusos. Gozam, portanto, da accao para defesa de
interesses proprios todos os individuos que possam alegar a titularidade de
posicoes juridicas de vantagem, ou a qualidade de parte na relacao material
controvertida (para adoptar formulacoes gideologicamenteh mais neutras,
mas ainda assim de grande amplitude, como faz o legislador para identificar
esta categoria de sujeitos privados);
b) As pessoas colectivas privadas (artigo 55o, n.o 2, alinea b), do CPTA), que
sao entidades ficcionadas para efeitos juridicos, mas que sao dotadas de
78 De acordo com o artigo 55o, n.o 1, do CPTA (legitimidade activa), átem legitimidade para impugnar um
acto administrativo:
a) Quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado nos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos;
b) O Ministerio Publico;
c) Pessoas colectiva publicas e privadas, quanto aos direitos e interesses que lhes cumpra defender;
d) Orgaos administrativos, relativamente a actos praticados por outros orgaos da mesma pessoa
colectiva;
e) Presidentes de orgaos colegiais, em relacao a actos praticados pelo respectivo orgao, assim como
outras autoridades, em defesa da legalidade administrativa, nos termos previstos na lei;
f) Pessoas e entidades mencionadas no n.o 2 do artigo 9oâ (accao popular).
Acrescentando o n.o 2, do referido artigo, que áa qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e
politicos, e permitido impugnar as deliberacoes adoptadas por orgaos das autarquias locais sediadas na
circunscricao onde se encontre recenseadoâ. E o n.o 3, desse mesmo artigo, que áa intervencao do interessado
no procedimento em que tenha sido praticado o acto administrativo constitui uma mera presuncao de
legitimidade para a sua impugnacaoâ.
78
Temas e Problemas de Processo Administrativo
direitos e de deveres gcomo se fossemh individuos. Apesar da tecnica da
subjectivizacao, contudo, as pessoas colectivas sao uma realidade
instrumental para a realizacao de interesses das pessoas humanas,
encontrando-se submetidas ao gprincipio da especialidadeh, pelo que
apenas ágozam dos direitos e estao sujeitas aos deveres compativeis com a
sua naturezaâ (artigo 12.o, n.o 2, da Constituicao);
9- Os sujeitos publicos (55o, n.o 2, alineas b) e e), CPTA), sendo de incluir nesta
categoria tanto as pessoas colectivas publicas como os orgaos administrativos, tanto
mais que o legislador faz . e muito bem . uma referencia expressa as relacoes
juridicas interpessoais e interorganicas. Assim se possibilitando a superacao do
gdogma da impermeabilidade da pessoa juridicah e a relativizacao da nocao de
personalidade publica, mediante a consideracao dos orgaos como gsujeitos
funcionaish dessas mesmas relacoes;
10- O actor popular. Refira-se que a lei parece considerar aqui duas modalidades de
accao popular:
a) A generica (artigo 55o, n.o 1, alinea f), do CPTA), que remete para o artigo
9o, n.o 2, do CPTA, e que engloba particulares e pessoas colectivas
actuando, de forma objectiva, para a defesa da legalidade e do interesse
publico (e, designadamente, de ávalores e bens constitucionalmente
protegidosâ), gindependentemente de possuirem interesse directo na
demandah79.
b) A de ambito autarquico (art. 55o, n.o 2, do CPTA), segundo a qual áa
qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e politicos, e permitido
impugnar as deliberacoes adoptadas por orgaos das autarquias locais
sediadas na circunscricao onde se encontre recenseadoâ. Mas, apesar da
redundancia legislativa, indo buscar uma instituicao as gbrumas da
memoriah, cabe perguntar se ainda se justifica manter tal dualidade de
79 Em sentido diferente, ligando a accao popular a tutela de interesses difusos e conferindo-lhe uma
componente subjectiva, vide LUIS FILIPE COLACO ANTUNES, áA Tutela dos Interesses Difusos em
Direito Administrativoâ, Coimbra, 1980; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, áA Legitimidade Popular na
Defesa de Interesses Difusosâ, Lex, Lisboa, 2003.
79
Temas e Problemas de Processo Administrativo
regimes de accao popular? Ou se, pelo contrario, se deve entender que a
denominada gaccao popular correctivah80, no dominio do contencioso
autarquico81, foi absorvida pela previsao generica da accao popular, de
maior amplitude e susceptivel de tutelar os mesmos bens? Pela minha parte,
entendo que a previsao da gaccao popular correctivah caducou, em face da
gaccao popular genericah, ja que esta ultima goza de requisitos de
admissibilidade mais amplos e que forcosamente absorvem os anteriores82.
E isto, quer se trate da perspectiva dos sujeitos . a previsao de gqualquer
pessoah, da accao popular generica abrange forcosamente gqualquer
eleitorh da accao popular autarquica -, dos bens . a expressao gbens e
valores constitucionalmente protegidosh e suficientemente expansiva para
abarcar tambem gos bens e valores autarquicosh -, ou do ambito de
aplicacao . pois, o ambito de aplicacao da accao popular generica abrange
toda e qualquer decisao administrativa e, por isso, forcosamente tambem as
gdecisoes de orgaos autarquicosh. Pelo que nao subsiste qualquer ambito de
aplicacao proprio da accao popular autarquica, que nao esteja ja
compreendido na accao popular generica, que absorveu (ou gengoliuh)
literalmente a primeira, faltando agora so gavisar o legisladorh de que a
primeira gcaducouh em face da segunda, nao sendo mais necessaria a
duplicacao da regra da legitimidade popular.
4. O Ministerio Publico, que e titular do direito de accao publica (tambem) no
contencioso administrativo, cabendo-lhe actuar, a titulo institucional, para a defesa da
legalidade e do interesse publico.
80 A accao popular no contencioso administrativo, como explica FREITAS DO AMARAL, denomina-se,
áem linguagem tecnica, accao popular correctiva, uma vez que visa corrigir os efeitos de um acto ilegal da
Administracaoâ, nao se confundindo ácom outra modalidade de accao popular, chamada accao popular
supletivaâ (antes prevista no artigo 369.o do Codigo Administrativo), em áque o particular, arvorando-se em
defensor dos interesses da autarquia, propoe uma accao civil para fazer valer os direitos dela contra o terceiro
que os violouâ (FREITAS DO AMARAL, áDireito A.â, vol. IV, cit., pp. 179 a 181).
81 Sobre a importancia historica da accao popular no anterior contencioso administrativo portugues vide
ROBIN DE ANDRADE, áA Accao Popular no Direito Administrativo Portuguesâ, Coimbra Editora,
Coimbra, 1967; FREITAS DO AMARAL, áDireito A.â, vol. IV, cit., pp. 176 e ss.; NUNO MARQUES
ANTUNES, áO Direito de Accao Popular no Contencioso Administrativo Portuguesâ, Lisboa, 1997.
82 Em sentido diferente, vide LUIS FABRICA, áA Accao Popular no Projecto de Codigo de Processo
nos Tribunais Administrativosâ, in MINISTERIO DA JUSTICA, áReforma do Contencioso Administrativoâ,
volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, paginas 231 e seguintes; JORGE MIRANDA, áOs Parametros
Constitucionais da Reforma do Contencioso Administrativoâ, in MINISTERIO DA JUSTICA, áReforma do
C. A.â, vol. I, cit., pp. 363 e ss..
80
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Referente a legitimidade e tambem o artigo 57.o do CPTA (Contra-interessados)83,
que qualifica como sujeitos processuais os particulares dotados de glegitimo interesseh na
manutencao do acto administrativo ou, dito de outra forma, que sao gdirectamente
prejudicadosh pelo provimento do pedido de impugnacao. Estes particulares sao
verdadeiros sujeitos de relacoes juridicas administrativas multilaterais (paradigmaticas do
novo direito administrativo, sobretudo, em dominios como o urbanismo, o ambiente, o
consumo, a cultura), as quais, para alem da Administracao e dos destinatarios imediatos da
actuacao administrativa em causa, dao origem a uma gredeh de ligacoes juridicas entre
multiplos sujeitos, uns do lado activo, outros do lado passivo, que sao titulares de posicoes
de vantagem juridicamente protegidas, pelo que devem gozar dos correspondentes poderes
processuais.
Ao considerar que, nos processos de impugnacao, os sujeitos das relacoes
multilaterais, com interesses coincidentes com os da autoridade autora do acto
administrativo, sao obrigatoriamente chamados a intervir no processo, o CPTA esta a
gabrirh (ainda que timidamente) o contencioso administrativo a proteccao desses direitos
impropriamente chamados de gterceirosh. Mas, ao mesmo tempo, ao adoptar a designacao
tradicional de gcontra-interessadosh, que e muito gmarcadah pela logica bilateralista
classica, e ao nao definir de modo rigoroso qual o seu efectivo papel no processo, o
legislador relega tal intervencao para o lado passivo, numa posicao gsecundarizadah em face
da Administracao.
Ora, em minha opiniao, o novo paradigma das relacoes administrativas multilaterais
no Direito Administrativo (substantivo) implica a revalorizacao da posicao dos
gimpropriamente chamados terceirosh no Contencioso Administrativo, como sujeitos
principais dotados de legitimidade activa e passiva. Dai que seja de lamentar a ausencia de
tratamento, ao nivel das regras gerais, da posicao dos gimpropriamente chamados
terceirosh, assim como o facto de, no que respeita aos processos impugnatorios, nao existir
uma regulacao mais detalhada da sua participacao. Mesmo se ja se verificaram progressos
em relacao a situacao anterior, e se a qualificacao substantiva desses particulares como
sujeitos de relacoes multilaterais gabre a portah para o seu tratamento como sujeitos
principais.
83 De acordo com o artigo 57o do CPTA (Contra-interessados), ápara alem da entidade autora do acto
sao obrigatoriamente demandados os contra-interessados a quem o provimento do processo impugnatorio
possa directamente prejudicar ou tenham legitimo interesse na manutencao do acto impugnado e que possam
ser identificados em funcao da relacao material em causa ou dos documentos contidos no processo
administrativoâ.
81
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Por ultimo, a aceitacao do acto administrativo surge regulada ao lado das questoes
de legitimidade (vide o artigo 56.o do CPTA), quando, em rigor, se trata de algo totalmente
diferente. A razao para este tratamento galgo deslocadoh prende-se, uma vez mais, com os
gtraumas da infancia dificilh do Contencioso Administrativo. Pois, ao negar aos particulares
a titularidade de direitos subjectivos perante a Administracao e ao qualificar, por isso, a
legitimidade processual em termos de ginteresse directo, pessoal e legitimoh,
gsubstancializandoh esse ginteresse como condicao de legitimidadeh, que funcionava como
sucedaneo das posicoes subjectivas cuja existencia nao se admitia, a consequencia pratica
de tal doutrina era a nao consideracao do interesse em agir como pressuposto processual
autonomo. Dai que a questao da aceitacao do acto administrativo fosse tradicionalmente
considerada, no direito portugues, como uma questao de legitimidade e nao de interesse em
agir.
Ora, afastados tais pressupostos objectivistas e delimitando-se a legitimidade
processual em razao da alegacao da titularidade de direitos, nao faz mais sentido continuar
a reconduzir a aceitacao do acto a uma questao de legitimidade. Pelo que, das duas uma, ou
se considera que a aceitacao do acto administrativo constitui um ápressuposto processual
autonomo, diferente da legitimidade e do interesse em agirâ (VIEIRA DE ANDRADE)84,
ou se reconduz tal aceitacao a falta de interesse processual. Da minha perspectiva, e
acompanhando VIEIRA DE ANDRADE na separacao da aceitacao do acto do
pressuposto da legitimidade, nao vejo quaisquer vantagens em autonomizar a aceitacao
como pressuposto autonomo, antes me parece mais adequada a reconducao da questao ao
interesse em agir, em termos similares aos do processo civil.
Pois, o que se verifica nestes casos, em que, ou existe uma declaracao expressa de
aceitacao (artigo 56.o, n.o 1, do CPTA), ou ela esta implicita na ápratica, espontanea e sem
reserva, de facto incompativel com a vontade de impugnarâ (n.o 2, do referido artigo) e que
o particular perdeu o interesse na impugnacao desse acto administrativo. Mas, isso nao
impede que (v.g. alteradas as circunstancias em que foi emitida a declaracao, ou adoptado o
comportamento), estando ainda a correr os prazos de impugnacao, o particular nao possa
revogar tal declaracao ou alterar o referido comportamento, em virtude de um qualquer
efeito preclusivo do direito de agir em juizo (solucao que careceria, em absoluto, de base
legal e que seria manifestamente inconstitucional, por violacao do direito fundamental de
acesso ao juiz administrativo, do artigo 268.o, n.o 4 da Constituicao). Antes, o juiz deve
apreciar o comportamento do particular, tanto no que se refere a aceitacao como a sua
84 VIEIRA DE ANDRADE, áA Aceitacao do Acto Administrativoâ, in áBoletim da Faculdade de
Direito . Volume Comemorativoâ, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2003, paginas 907 e seguintes.
82
Temas e Problemas de Processo Administrativo
posterior revogacao, a luz do pressuposto processual do interesse em agir, so podendo
rejeitar o pedido quando este faltar.
Pressuposto processual especifico da modalidade de impugnacao da accao
administrativa especial e o da oportunidade do pedido. Assim, o artigo 58o do CPTA
estabelece os prazos de impugnacao de acto administrativo (introduzindo um ligeiro
aumento destes, quando comparados com o direito anterior), consagrando um prazo de
tres meses, sempre que se trate de accao para defesa de interesses proprios ou de accao
popular, e um prazo de um ano, se se tratar de uma accao publica (n.o 2, do referido artigo).
Trata-se de um prazo substantivo e nao processual (diferentemente do que se defendeu no
passado, de acordo com a tese monista, de continuidade entre procedimento e processo,
que confundia gadministrarh e gjulgarh)85, pelo que segue o regime dos prazos de
propositura de accoes do Processo Civil (n.o 3, do referido artigo).
Mas, de saudar vivamente, no novo Codigo, e a superacao do gfeticheh dos prazos
de impugnacao, mediante a introducao de mecanismos de flexibilizacao da glogica da
irremediabilidade dos prazosh, que e um corolario do principio da justica material ou
principio pro actione (artigo 7o do CPTA). Assim, no artigo 58o, n.o 4, do CPTA, preve-se a
possibilidade de alargamento do prazo de impugnacao ate um ano, se existirem motivos
relevantes, caso áse demonstre, com respeito pelo principio do contraditorio, que, no caso
concreto, a tempestiva apresentacao da peticao nao era exigivel a um cidadao normalmente
diligenteâ, designadamente por erro induzido pela propria Administracao (alinea a), do n.o
4, do artigo 58.o, do CPTA); por se verificarem dificuldades na identificacao do acto, ou
problemas de qualificacao da conduta administrativa como acto ou como norma (alinea b),
do n.o 4, do artigo 58.o, do CPTA); ou numa situacao de justo impedimento (alinea a), do
n.o 4, do artigo 58.o, do CPTA).
Tambem no que se refere a contagem dos prazos se estabelece, no artigo 59o, n.o 1,
do CPTA, que aquele so corre áa partir da data da notificacao, ainda que o acto tenha sido
objecto de publicacao obrigatoriaâ. O que representa a concretizacao da garantia do artigo
268o, n.o 3, da Constituicao, que consagra um direito fundamental a notificacao dos actos
administrativos (áos actos administrativos estao sujeitos a notificacao aos interessados, na
forma prevista na leiâ). Trata-se de um direito de procedimento, que integra os direitos
85 Diga-se, no entanto, que esta vexata questio, da continuidade entre procedimento e processo, se ja foi,
ha muito, resolvida no Direito Administrativo, nao e, contudo, ghistoria antigah, ja que no Direito Fiscal
perduram ainda gresquiciosh desses gvelhos traumash de gpromiscuidadeh entre Administracao e Justica,
nomeadamente na propria existencia de um gCodigo de Procedimento e de Processo Tributarioh (sic), assim
como em muitas das suas regras.
83
Temas e Problemas de Processo Administrativo
fundamentais da terceira geracao, e que tem, neste caso, o alcance de considerar que a
notificacao e uma condicao de eficacia (subjectiva), ou de oponibilidade, relativamente ao
destinatario, nao sendo suficiente a respectiva publicacao. Da mesma maneira como, mais
adiante, se consagra que a notificacao deve ser completa sob pena de inoponibilidade aos
particulares (artigo 60.o, CPTA).
Isto, sem prejuizo de se dispor no artigo 59o, n.o 2, do CPTA, que a ausencia de
notificacao ánao impede a impugnacao, se a execucao do acto for desencadeada sem que a
notificacao tenha tido lugarâ. Da mesma maneira como, quando esteja em causa uma
relacao multilateral, com multiplos interessados, se estabelece (artigo 59.o, n.o 3, do CPTA)
que, em relacao aos particulares que nao sejam destinatarios imediatos dessa actuacao
administrativa, o prazo comeca a correr áa partir do seguinte facto que primeiro se
verifique: a) notificacao; b) publicacao; c) conhecimento do acto ou da sua execucaoâ.
Refira-se, ainda, que o artigo 38.o do CPTA, nao impede o tribunal de áconhecer, a
titulo incidental, da ilegalidade de um acto administrativoâ (n.o 1), em accao administrativa
comum, ainda que ela nao possa áser utilizada para obter o efeito que resultaria da anulacao
do acto impugnavelâ (n.o 2). O que vai ao encontro das posicoes que tenho defendido, de
que nao existe uma eficacia substantiva de gcaso decididoh do acto que se tornou
inimpugnavel, por decurso do prazo, ja que este apenas produz efeitos meramente
processuais86.
86 Para maior desenvolvimento da questao, vide VASCO PEREIRA DA SILVA áO Contencioso A. no
D. da P.. E. sobre as A. no N. P. A.â, 2a. ed., cit., mx pp. 439 e ss..
84
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A impugnacao dos regulamentos no
Contencioso Administrativo Portugues
Carlos Blanco de Morais1
Introducao
O plano da presente intervencao envolve a analise de quatro rubricas.
A primeira, visitara os fundamentos historicos das imunidades contenciosas dos
regulamentos e da sua gradual remocao e periodizara os modelos de contencioso
regulamentar na ordem juridica portuguesa.
A segunda, que configurara a parte central do tema abordado, dissecara as linhas axiais de
conservacao e mudanca do novo contencioso regulamentar.
A terceira abordara quatro situacoes problematicas na arquitectura do novo sistema.
Finalmente, a quarta, tecera algumas observacoes globais.
1 Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
85
Temas e Problemas de Processo Administrativo
I. As imunidades contenciosas dos regulamentos administrativos
1. Generalidades
1. Uma analise aos principais sistemas europeus de Administracao Executiva transmite-nos
a ideia de que, um pouco como a lei, os regulamentos foram, nos ultimos cento e cinquenta
anos, defendidos por um poderoso circulo de imunidades contenciosas.
Na Europa, o contencioso constitucional da lei constitui uma realidade recente, por
contraposicao a gjudicial reviewh norte americana. A heranca revolucionaria francesa,
vedou a uma judicatura politicamente suspeita a possibilidade de questionar a validade de
uma lei omnipotente que foi blindada ao ponto de nominalizar o primado juridico da
Constituicao.
Foi com a criacao da Justica Constitucional concentrada que se garantiu a normatividade
plena do Direito Constitucional.
Mas, curiosamente, a mitica lei oitocentista experimentou relativamente as normas da
administracao um fenomeno de nominalizacao analogo ao que atingiu a Constituicao, dado
que a impugnabilidade contenciosa dos regulamentos governamentais questionava a
efectividade da sua supremacia e forca geral.
E, como se vera, os privilegios impugnatorios do regulamento revelaram-se mais coriacios
do que os da lei, na medida em que algumas das suas manifestacoes ainda subsistem.
2. Afonso Queiro, num escrito de 1945, assinalou que a questao da impugnabilidade dos
regulamentos se reconduziu, desde o periodo oitocentista ate a primeira metade do Sec.
XX, a duas questoes cronologicamente inter-relacionadas:
i) A primeira, interroga-se sobre a admissibilidade da impugnacao contenciosa dos
regulamentos ou de todos eles;
86
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ii) E a segunda, sobre se, sendo admissivel essa impugnacao, sera legitimo o seu
sindicato directo pelos lesados.
3. A inimpugnabilidade contenciosa dos regulamentos fundava-se em razoes
constitucionais, politicas e juridico-normativas.
No que respeita as razoes constitucionais a teoria revolucionaria da divisao de poderes
pressupunha uma separacao entre as autoridades administrativas e jurisdicionais, que
proibia aos tribunais interferir na actividade da Administracao. O conhecimento de vicios
de legalidade de actos da Administracao constituia dominio da tutela graciosa a qual caberia
a propria Administracao (Garcia de Enterria).
Quanto as razoes politicas, entendeu-se, mesmo ja no seculo XX, que as razoes de prudencia
objectiva que nao admitiam ou restringiam a impugnacao contenciosa das leis, deveriam,
igualmente, impedir ou restringir a impugnacao dos regulamentos (Lafuente Benach).
Finalmente, duas razoes de ordem juridico-normativa.
A primeira, centrava-se no entendimento de que, como norma geral e abstracta, o
regulamento nao teria destinatarios individualizados e, como tal, nao poderia violar direito
algum (Joaquim Lobo DfAvila).
A segunda, centrava-se na tese de que o regulamento seria uma lei em sentido material,
pelo que, sendo a leis contenciosamente insindicavel, tal tambem deveria suceder com os
regulamentos.
5. Mas, a inimpugnabilidade dos regulamentos foi abalada ainda no periodo oitocentista. A
historia do contencioso regulamentar, desde o momento em que se admitiu o sindicato
incidental, foi o da gradual remocao de barreiras seja a impugnacao directa, seja ao
sindicato de alguns vicios, seja ao controlo de certos regulamentos privilegiados.
Assim, em Franca, a impugnacao regulamentar foi, na primeira metade do seculo XIX,
admitida em relacao a regulamentos locais. Posteriormente, a reforma de 1864 pressupos a
87
Temas e Problemas de Processo Administrativo
necessidade de a lei se impor aos regulamentos, porque a independencia destes ante a
jurisdicao significava, igualmente, a sua independencia ante a lei.
Esta reforma admitiu o recurso directo de anulacao contra regulamentos, com fundamento
em desvio de poder, por quem tivesse interesse pessoal e directo, mas imunizou desse meio
impugnatorio os reglements dfadministration publique emitidos ao abrigo de autorizacoes
legislativas e tidos como para-legislativos.
Mais tarde, a jurisprudencia (e a lei, em 1872), alargaram o controlo da legalidade
regulamentar a outros vicios (violacao de lei e excesso de poder) tendo em 1987 uma
decisao do Conseil DfEtat admitido, o sindicato directo dos reglements dfadministration
publique.
Em Italia, depois da reforma de 1865 ter consagrado o controlo incidental de
regulamentos, instituiu-se em 1889, o recurso directo de anulacao das normas lesivas dos
particulares. A jurisprudencia fez coexistir o recurso directo de anulacao contra os
regulamentos lesivos auto-aplicativos com um recurso directo cumulado, contra o
regulamento ilegal nao imediatamente operativo e o respectivo acto de aplicacao.
Em Espanha, o fim da inimpugnabilidade deu-se no termo do seculo XIX, passando a
admitir-se o sindicato indirecto das normas da Administracao. A Lei de 1956 instituiu o
sistema de impugnacao directa contra normas da administracao local e das corporacoes,
mas restringiu o sindicato directo as normas da administracao central auto-aplicativas.
Apenas em 1998 se alargou o sindicato directo contra qualquer acto normativo ilegal ao
lesado.
O caso contemporaneo mais paradigmatico desta resistencia ao controlo de legalidade
parece ser o alemao. Sem prejuizo da sindicabilidade indirecta dos regulamentos, a sua
impugnacao em via directa, apenas tem por objecto os regulamentos federais em materia
urbanistica e os regulamentos dos Lander, desde que a sua legislacao o admita. Os
regulamentos federais, em geral, continuam a beneficiar de imunidades contenciosas, muito
criticadas na doutrina (Maurer).
88
Temas e Problemas de Processo Administrativo
6. Em sintese, tendo a impugnacao incidental dos regulamentos pelos particulares
constituido a primeira brecha na muralha das imunidades regulamentares, a atencao passou
a voltar-se, posteriormente: para a eliminacao dos privilegios impugnatorios de certos
regulamentos; para a impugnacao directa dos regulamentos auto-aplicativos, directamente
lesivos; e hoje, para o alargamento dos pressupostos subjectivos de impugnacao directa de
qualquer regulamento ilegal.
A defesa pelos tribunais do primado da lei sobre o poder normativo da Administracao,
passou a aliar-se, dentro de certos limites, ao imperativo da defesa dos particulares contra
regulamentos ilegais.
Verifica-se, finalmente, que nos sistemas espanhol e portugues, a jurisprudencia e a lei tem
andado a reboque das Constituicoes. Estas, tem-se antecipado na previsao de mecanismos
de defesa dos particulares contra actos ilegais da Administracao, realidade que se tem
repercutido no dominio do contencioso dos regulamentos.
2. Sinopse sobre a evolucao historica do contencioso regulamentar na ordem
juridica portuguesa
7. Atentando no criterio da impugnabilidade directa ou indirecta das normas regulamentares havera a
considerar, desde aprovacao do Codigo Administrativo de 1936, ate ao momento presente,
cinco periodos.
O 1o Periodo (1836/1917) caracterizou-se por um regime dualista de impugnacao contenciosa dos
regulamentos em razao da respectiva autoria: nele coexistia um sistema de impugnacao directa
dos regulamentos locais e um sistema de impugnacao indirecta dos actos regulamentares do
Governo.
O 2o Periodo (1917/ 1956) foi marcado por um sistema monista de impugnacao directa quer dos
regulamentos locais, quer dos actos regulamentares do Governo.
Em 19172 foi admitida a interposicao de recurso contencioso directo contra regulamentos
governamentais, seguindo-se a linha de orientacao jurisprudencial estabelecida pelo Conseil D
2 Decreto do Governo, sob consulta do STA, de 26 de Novembro de 1917
89
Temas e Problemas de Processo Administrativo
LEtat frances, uma decada atras. Este sistema de impugnacao foi posteriormente concretizado
por dois decretos 3 que consagraram explicitamente a recorribilidade directa de normas que
ameacassem direitos e interesses de qualquer pessoa4.
O 3o periodo (1956/1985) pautou-se por um retorno ao dualismo das formas de impugnacao em
razao da autoria do acto normativo sindicado: o do recurso directo de anulacao contra os
regulamentos locais e o da sindicabilidade indirecta das normas administrativas do Governo.
A primeira fase deste periodo, marcada por um dualismo integral, nao foi estranha a
prevalencia da posicao de Marcelo Caetano, a qual era desfavoravel ao recurso directo contra
regulamentos, por contraposicao a tese de Afonso Queiro que defendia a sua subsistencia.
Tendo a Lei Organica do Supremo Tribunal Administrativo em 8-9-1956 determinado a
inimpugnabilidade directa dos decretos regulamentares., veio, posteriormente, o Supremo
Tribunal Administrativo, alargar por via interpretativa, o novo regime de sindicato indirecto, as
portarias e aos despachos normativos.
O sistema foi conservado depois da entrada em vigor da Constituicao de 1976, a qual
inaugurou a segunda fase deste periodo caracterizada por duas pequenas inovacoes no plano da
impugnacao directa.
Com a Revisao de 1982 atribuiu-se ao Tribunal Constitucional (TC), em substituicao do STA5,
a faculdade de, mediante requerimento de alguns orgaos constitucionais, declarar com forca
obrigatoria a ilegalidade dos regulamentos estaduais e regionais violadores dos estatutos e,
ainda, de regulamentos regionais violadores leis gerais da Republica, criando-se, ainda, junto da
mesma jurisdicao, um sistema concreto e incidental de impugnacao desses regulamentos.
Na esfera das relacoes juridico-laborais6 a lei atribuiu as associacoes patronais e sindicais, bem
como aos trabalhadores e entes interessados, a faculdade de proporem junto dos tribunais de
trabalho uma accao de anulacao directa de portarias de regulamentacao e extensao.
3 Concretizacao operada pelo art.o 17 ˜3 Decreto no 9894 de 4-6 e mantido pelo art.o 3 do art. 32.o do
Decreto n.o 19 243 de 16-1 do Supremo Conselho de Administracao Publica.
4 A existencia de divergencias jurisprudenciais levou o Tribunal de Conflitos a precisar que a apreciacao dos
recursos interpostos contra os regulamentos do Executivo caberia na competencia do STA.
5 Cfr. o no 3 do art. 236o do texto originario da CRP, conjugado com a Lei 15/79 de 19-5,
6 Cfr. o art.o 24o do Decreto-Lei no 164-A/76, de 28-2, alterado pelo Decreto-Lei no 887/76 de 29-12
90
Temas e Problemas de Processo Administrativo
O 4o Periodo (1985/ 2002) pautou-se pela criacao de um regime misto caracterizado pela:
i) Subsistencia da faculdade de impugnacao indirecta das normas administrativas do
Governo atraves do recurso contencioso de anulacao dos respectivos actos
administrativos de aplicacao;
ii) Subsistencia do controlo abstracto e concreto incidental da legalidade, exercido
pelo TC sobre os regulamentos estatais e regionais violadores de leis parametricas do
regime autonomico.
iii) Subsistencia da impugnacao directa de regulamentos nao estaduais (ou seja, das
autarquias, das regioes, e as normas oriundas de entes de utilidade publica
administrativa, concessionarios e associacoes publicas) reconhecendo-se as pessoas
lesadas ou passiveis de virem a ser proximamente lesadas, a faculdade de interporem
recurso de anulacao dessas normas junto dos tribunais administrativos de circulo7;
iv) A consagracao inovatoria, no ETAF e na LPTA, da faculdade de impugnacao directa de
regulamentos administrativos, embora com sujeicao a significativos limites.
Neste ultimo caso, qualquer pessoa lesada ou susceptivel de o vir proximamente a ser por
quaisquer regulamentos (neles incluidos os do Governo) teria a faculdade de pedir a declaracao
da sua ilegalidade com forca obrigatoria geral em duas situacoes, a saber: sempre que essas
normas produzissem efeitos imediatos, sem dependencia de acto administrativo; sempre que os
regulamentos tivessem sido ja julgados ilegais em tres casos concretos, sendo neste caso o
recurso obrigatorio para o Ministerio Publico8.
Para os regulamentos estaduais, o STA comecou por ser a jurisdicao competente, mas desde
1996 essa competencia foi cometida ao Tribunal Central Administrativo.
Embora a doutrina se refira a este sistema de contencioso regulamentar como gdualistah
importa relativizar ou situar essa designacao.
7 Cfr. alinea e) do no 1 do art.o 51o do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais ( ETAF- 1984) e
art. 63oda Lei do Processo dos Tribunais Administrativos ( LPTA-1985).
8 Cfr art. 11o do ETAF e art.o 66o da LPTA e correspondentes remissoes para o recurso de anulacao.
91
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Na verdade o sistema era misto, coexistindo tres diferentes formas processuais de impugnacao
directa com duas outras processadas por via incidental, sendo igualmente diversas as jurisdicoes
competentes.
Dai que, quando se fala no modelo dualista que marcou este periodo, ele alude nao ao velho
sistema que diferenciava a impugnacao directa de regulamentos nao estaduais e indirecta de
regulamentos do Governo. Alude, sim, aos dois processos de controlo directo da legalidade regulamentar
pelos tribunais administrativos: o da impugnacao dos regulamentos nao estaduais por via do recurso
de anulacao e o da impugnacao de todos os regulamentos, mediante um pedido de controlo
abstracto da legalidade.
Finalmente, o 5o periodo (2002) que coincidiu com a aprovacao do CPTA, acompanhado de
alteracoes introduzidas no ETAF, fez subsistir a natureza mista do modelo anterior
(subsistindo processos de controlo directo da legalidade regulamentar pelos tribunais
administrativos coexistindo com processos de controlo incidental), mas introduziu alteracoes
em sede de impugnacao directa.
Assim, manteve-se o sindicato incidental da validade dos regulamentos9 e a fiscalizacao da
legalidade, concreta e abstracta, de regulamentos regionais e estaduais violadores dos estatutos
de autonomia.
A principal inovacao consistiu no termo do regime dualista de impugnacao directa por accao,
passando a prever-se uma unica forma processual de sindicato de normas junto dos tribunais
administrativos, atraves da accao administrativa especial.
A competencia para a declaracao passou para a esfera dos tribunais administrativos de circulo,
excepto as normas editadas pelo Conselho de Ministros e pelo Primeiro-Ministro, cujo
julgamento foi cometido ao STA.
Inovadora foi, tambem a consagracao da fiscalizacao da legalidade por omissao10 e das
providencias cautelares de suspensao de regulamentos11.
9 No 2 do art. 1o e art. 2o do ETAF e no 2 do art. 52o da CPTA.
10 Art. 77o do CPTA.
11 Alinea a) do no 2 do art. 112o do CPTA.
92
Temas e Problemas de Processo Administrativo
1.2.2. Observacoes
8. Do quadro exposto, importaria extrair cinco breves notas:
1a. O ordenamento manteve em todas as fases descritas, embora sem relevo no segundo
periodo, o sindicato indirecto dos regulamentos, em sede do contencioso de anulacao
dos actos administrativos;
2a. O Ordenamento portugues sempre conservou, em todas as suas fases de evolucao
historica desde 1836, a faculdade de impugnacao directa de normas nao estaduais
(embora sem autonomia processual no 5o periodo);
3a.A ordem juridica oscilou, quanto ao sindicato dos regulamentos estaduais, entre sistemas
de impugnacao indirecta (1o e 3o periodos), sistemas de impugnacao directa (2o periodo); e
sistemas mistos com coexistencia da impugnacao indirecta com formas dominantes de
impugnacao directa (4o e 5o periodos).
4a. Um nicho de regulamentos estaduais e regionais violadores dos estatutos de
autonomia foi subtraido ao contencioso administrativo, passando, desde 1982, a sua
legalidade a ser julgada pela Justica Constitucional, em controlo abstracto e concreto
incidental;
5a O termo do modelo dito dualista de formas impugnacao contenciosa directa entre normas locais
e estaduais, ocorrida no 5o periodo, nao fez desaparecer, contudo, uma dualidade de regimes
impugnatorios em razao da legitimidade do autor e da operatividade da norma.
III. Linhas de conservacao e mudanca no contexto da aprovacao do Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos
1. Institutos processuais subsistentes
1.1. A impugnacao indirecta por via incidental dos regulamentos no ambito do
contencioso administrativo
93
Temas e Problemas de Processo Administrativo
9. Embora a doutrina estime que o instituto da apreciacao incidental da legalidade de
normas subsistiu apos a reforma de 2002, essa subsistencia opera, contudo, sem uma
previsao tao clara como a que resultava da anterior redaccao dada ao no 4 do arto 3o do
ETAF12
Alguns autores (Delgado Alves) entendem que a impugnacao indirecta se retiraria do arto
204o da CRP e do no 3 do arto 1o do ETAF, o que nao procede, na medida que ai se
aborda, apenas, a desaplicacao de normas inconstitucionais e nao de disposicoes ilegais.
Intentam, ainda, retirar o sindicato indirecto dos regulamentos do no 2 do arto 52o do
CPTA13. So que o preceito tem por objecto, actos administrativos praticados sob forma
regulamentar14 permitindo-se, excepcionalmente, impugnar os respectivos actos de
execucao sindicando-se indirectamente o pretenso regulamento. Ora, nao sera adequado
sustentar que uma regra excepcional, que questiona os efeitos de regulamentos aparentes, sirva
para justificar um regime geral de impugnacao indirecta dos regulamentos em sentido
proprio.
Eventualmente, o art. 203o da CRP, que consagra o principio da legalidade administrativa,
pode fundar a impugnacao indirecta dos regulamentos. Se um acto administrativo ilegal se
encontrar inquinado, a titulo consequente, pela ilegalidade do regulamento que executa,
sera legitimo tambem arguir em juizo a ilegalidade dessa norma dado que, da sua
desaplicacao ao caso concreto, decorrera a invalidacao do acto singular que fora impugnado
a titulo principal.
1.2. A impugnacao de regulamentos desconformes com os estatutos politicoadministrativos
das regioes autonomas
10. A revisao constitucional de 2004, articulada com o CPTA, manteve, o bizarro sistema
que comete, nao a jurisdicao administrativa, mas ao TC, o controlo, abstracto e concreto da
12 Preceito que determinava que os tribunais administrativos deveriam recusar a aplicacao de normas que
contrariassem outras de hierarquia superior.
13 Entendendo que dai decorreria a faculdade de os particulares impugnarem, por excepcao, a legalidade
dos regulamentos, questionando os seus actos de aplicacao, no caso de nao terem exercido o direito de os
impugnar directamente
14 Art. no 4 do art. 268o e no 1 do art. 52o do CPTA.
94
Temas e Problemas de Processo Administrativo
legalidade de regulamentos estaduais e regionais que violem os estatutos de autonomia15.
Ainda assim, a categoria das leis gerais da Republica foi suprimida, deixando de ser padrao
de legalidade dos regulamentos regionais.
Este sistema exclui, da competencia dos tribunais administrativos, sem fundamento, um
dominio do contencioso da legalidade regulamentar, para o cometer a um Tribunal
Constitucional, vocacionado para administrar a justica em materias de constitucionalidade
ou de garantia das leis reforcadas.
A ausencia de razoes para tratar a violacao regulamentar dos estatutos, de um modo
diverso da violacao das demais leis com valor reforcado e a logica uniformizadora das
formas impugnatorias da legalidade regulamentar no CPTA, justifica o fim deste genclave
historicoh que reserva a Justica Constitucional uma area natural do contencioso
administrativo.
2. Inovacoes do novo contencioso regulamentar por accao aprovado pelo CPTA
2.1. A unificacao da forma de processo
11. Vimos que o regime legal anterior consagrava duas formas processuais, nao alternativas,
para a impugnacao directa dos regulamentos.
No CPTA, consagrou-se uma unica forma processual, a accao administrativa especial, destinada a
impugnacao de actos da administracao, ai compreendido o sindicato directo de regulamentos.
A doutrina saudou a alteracao por ter permitido uma simplificacao e uniformizacao processual,
traduzida:
i) Na criacao de uma unica accao impugnatoria, pondo-se termo ao que foi qualificado
de gesquizofreniah, com dois processos, dotados de requisitos diferentes e um ambito de
aplicacao parcialmente sobreposto (Vasco Pereira da Silva);
15 Alineas b), c) e d) do no 1 do art. 280o e alineas c) e d) do no 1 do art. 281o da CRP e no 2 do art. 72o do
CPTA.
95
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ii) No termo do bizantino, confuso e assistematico quadro de remissoes respeitantes ao
Direito aplicavel a tramitacao processual, designada de gBabilonia de regras processuaish
( Paulo Otero) .
2. 2. Subsistencia de uma pluralidade de regimes impugnatorios
12. A unidade formal da impugnacao directa nao uniformizou o regime impugnatorio,
porque continuam a subsistir diversos modos de controlo directo de legalidade com objectos
parcialmente sobreponiveis. Sera, entao que nao terao subsistido novas formas de dualismo
processual ?
A imbricacao entre a legitimidade activa e os requisitos objectivos do sindicato directo dos regulamentos
criou, no CPTA, dois regimes de impugnacao:
i) O pedido de declaracao da ilegalidade em concreto que, o no 2 do art. 73o, restringe a
normas imediatamente operativas e que pode ser proposto pelo lesado ou pelos autores
populares;
ii) O pedido de declaracao abstracta da ilegalidade, formulado pelo lesado apenas quando
haja repeticao do julgado, e pelo Ministerio Publico, dirigindo-se a todas as normas seja
qual for a sua operatividade ( no 1 do art. 73o).
13. O gdualismoh do periodo anterior, que diferenciava os regulamentos nao estaduais dos
regulamentos em geral, cedeu pois lugar a uma pluralidade de regimes impugnatorios que, cobertos
por uma unica accao, se distinguem em razao da legitimidade do demandante agregada a um objecto
marcado pela diferenca entre normas imediata ou mediatamente operativas. Assim:
i) As normas imediatamente operativas podem ser questionadas pelos regimes de
impugnacao concreta e abstracta, embora seja o controlo concreto, o meio privilegiado
para a sua impugnacao pelos lesados e actores populares; isto porque, como se vera,
em controlo concreto, e diferentemente do controlo abstracto, nao se preve que por
razoes de seguranca juridica ou outras, o tribunal fixe os efeitos da sentenca apenas
para o futuro, evitando-se assim que o demandante se depare com decisoes de
96
Temas e Problemas de Processo Administrativo
acolhimento ficticias em que a norma e julgada invalida, mas ainda assim aplicada ao
caso gsub iuditioh.
ii) Ja os regulamentos mediatamente operativos so podem ser sindicados atraves do controlo
abstracto da legalidade.
14. O controlo abstracto, por assentar em demandantes e pressupostos objectivos diferentes,
desdobra-se em dois sub-regimes impugnatorios:
i) O particular apenas dispoe da faculdade de impugnar a validade de regulamentos
mediatamente operativos, se estes tiverem sido previamente julgados ilegais em tres casos concretos.
ii) O Ministerio Publico, nao esta sujeito a esse limite para impugnar normas ja que,
oficiosamente ou a solicitacao dos actores populares, pode pedir a declaracao abstracta da
ilegalidade independentemente da repeticao do julgado, devendo, todavia, propor a
accao, se a repeticao envolver tres casos concretos.
15. Continuam, pois, a subsistir dois regimes de impugnacao directa de normas, com varios
sub-regimes. E existem entre eles areas de sobreponibilidade, dado que, atraves do
sindicato concreto e abstracto, os lesados podem questionar normas imediatamente operativas,
sem prejuizo de em controlo abstracto essa impugnacao ter uma utilidade processual mais
escassa para os particulares.
2. 3. Notas sobre os pressupostos processuais
A. Os pressupostos subjectivos da impugnacao de normas
a) Legitimidade processual activa
i) Ministerio Publico
16. A legitimidade do Ministerio Publico e a pedra angular da componente objectiva que
domina o sindicato dos regulamentos, pois e-lhe conferida competencia para requerer, sem
limites, o controlo abstracto da legalidade de qualquer norma regulamentar,
97
Temas e Problemas de Processo Administrativo
independentemente da sua operatividade. O controlo concreto nao tem para ele, utilidade
de maior, pese o facto de ai poder agir como actor popular.
Em controlo abstracto e na qualidade de defensor da legalidade objectiva geral, nao se
encontra vinculado ao requerimento feito pelos autores populares. E dai, tambem, que o
unico vinculo legal a sua demanda, assuma natureza objectiva, consistindo na sua
vinculacao a impugnacao de uma norma previamente julgada ilegal em tres casos concretos.
ii) Legitimidade activa do lesado
17. Para alem do que ja foi exposto sobre a legitimidade do particular lesado, havera que
apreciar se o CPTA elevou ou reduziu as garantias impugnatorias deste, em comparacao
com o regime anterior.
Alguns entendem (Vasco Pereira da Silva) que os lesados receberam no CPTA, um
tratamento mais desfavoravel do que na LPTA.
Julgamos que, por si so, a glesaoh como gpriush da legitimidade activa, nao experimentou
uma alteracao significativa em relacao ao art. 63o da LPTA, pois subsiste uma legitimidade
interessada (quando a lesao se consumar) e uma legitimidade pre-interessada (que corresponde a
lesao em momento proximo)16. Quanto ao resto, tudo depende da natureza do regulamento
sindicado.
18. No que toca aos regulamentos de operatividade imediata, o lesado continua a poder impugnalos
directamente, nao sendo possivel afirmar que o CPTA tenha desguarnecido a dimensao
contenciosa subjectiva de normas aptas a violar a esfera juridica dos particulares em termos
analogos aos actos administrativos.
Isto porque o no 4 do art. 268o da CRP e a alinea c) do no 1 do art. 4o ETAF continuam a
permitir impugnar actos administrativos praticados sob forma regulamentar. E porque o no 2 do art.
73o do CPTA permite ao lesado pedir a declaracao concreta da ilegalidade de regulamentos
auto-aplicativos, cujo conteudo, geral e abstracto, nao e assimilavel ao dos actos
16 Reclamando os tribunais uma exigente fundamentacao desta ultima.
98
Temas e Problemas de Processo Administrativo
administrativos. A legitimidade do particular tao pouco se alterou em relacao a impugnacao
de regulamentos mediatamente operativos do Estado, previamente julgados ilegais em tres casos
concretos.
19. Onde e possivel registar um retrocesso sera nos regulamentos mediatamente operativos
oriundos da administracao local, que antes eram directamente impugnados e que agora o lesado
so os pode sindicar depois de julgados ilegais em tres casos concretos.
Alguma doutrina (Pedro Delgado Alves) defende que o facto de o no 2 do art. 55o do
CPTA (que se reporta a accao popular local) permitir a impugnacao de deliberacoes de
orgaos autarquicos17, o que mitigaria esta insuficiencia. Todavia o preceito nao se insere,
sistematicamente, na impugnacao de normas, mas na de actos administrativos (Esteves de
Oliveira) e, mesmo que proceda interpretacao diversa, nao poderiam accionar este meio as
empresas e as pessoas nao recenseadas na circunscricao que fossem lesadas por normas
locais.
Este preco pago pela eliminacao do dualismo, nao sera excessivo, ja que prejudicando os
pre-interessados, nao obsta que os lesados sindiquem indirectamente a norma, por via
incidental
iii) Da ausencia de legitimidade dos actores populares na fiscalizacao abstracta da
legalidade de regulamentos
20. Apesar de o no 2 do art. 9o do CPTA atribuir legitimidade generica aos actores
populares para intervirem em processos principais, na defesa de certos bens
constitucionalmente protegidos, a qual tem uma traducao especifica em controlo concreto,
o no 2 do art. 73o do CPTA nao a estendeu ao controlo abstracto da legalidade de normas.
Alguma doutrina considera que o actor popular deveria ser assimilado ao Ministerio
Publico, de forma a poder impugnar normas de operatividade mediata, pois os referidos
actores gactuariam para a defesa da legalidade e do interesse publicoh sem possuirem ginteresse proprio
na demandah. Nao e possivel defender semelhante equiparacao, pois o no 2 do art. 9o do
17 Feita por qualquer eleitor recenseado na respectiva circunscricao.
99
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Codigo nao nega ao actor popular interesse pessoal na demanda, mas antes lhe reconhece
legitimidade para intervencao processual, nos termos da lei, gindependentemente de ter interesse
pessoal na demandah.
Assim, se, uma autarquia com interesse subjectivo numa demanda em materia de
ordenamento do territorio, impugnar uma norma nao imediatamente operativa que entenda
violar a legalidade objectiva, verificar-se-a uma relativa sobreponibilidade entre interesses
diversos, pois o ganimush subjectivo de impugnacao da norma pode ser disfarcado por
uma garantia objectiva da legalidade.
Outros interpretam a legislacao em vigor no sentido de o no 2 do art. 9o do Codigo permitir
o controlo abstracto de normas, mediante accao interposta pelos autores populares.
21. Nao acolhemos este entendimento, por tres razoes fundamentais.
1a. O no 3 do art. 52o da CRP atribui o direito de accao popular para a defesa de bens
qualificados, gnos casos e termos previstos na lei,hconferindo esta remissao ao legislador
liberdade para, no Codigo, outorgar aos autores populares legitimidade para requererem a
declaracao concreta da ilegalidade e excluirem essa legitimidade no controlo abstracto. Nao
e, assim, possivel afirmar que o no 2 do art. 72o do Codigo restringe indevidamente o
alcance da CRP, ja que esta nao garante a legitimidade dos actores populares em todo o
tipo de regimes impugnatorios, deixando a lei a sua determinacao.
2a. Tao pouco se aceita que o no 2 do art. 9o do Codigo se possa cumular ao no 2 do art.
72o, como um norma destinada a alargar aos autores populares, a legitimidade para
impugnar regulamentos em controlo abstracto. E que a primeira norma confere aos
referidos actores legitimidade directa para intervirem em processos principais e cautelares,
gnos termos previstos na leih.
Ora essa lei tanto pode ser a LAP, como o Codigo. No primeiro caso, a remissao seria
inutil, dado que a norma restringe esse meio a anulacao de actos administrativos. Ja no
segundo, verifica-se que normas especiais do Codigo estabelecem legitimamente, diferentes
niveis de intervencao contenciosa dos actores populares, niveis se conjugam perfeitamente
com o no 2 do art. 9o desse acto, na qualidade de norma geral.
100
Temas e Problemas de Processo Administrativo
3a. O sentido logico-sistematico no 2 do arto 73o do Codigo e o de negar aos autores
populares a propositura do controlo abstracto. E que, a ser-lhes reconhecida legitimidade
para esse controlo, qual o fim do no 2 do art. 73o que lhes atribui, apenas, o poder de
requerem essa impugnacao ao Ministerio Publico? Quem possa impugnar directamente
uma norma, nao necessitara de requerer a outro sujeito que proceda, facultativamente, a
essa impugnacao, nem de se constituir na posicao subsidiaria de seu assistente.
c) Tribunais administrativos competentes
22. Assiste-se, no que toca aos regulamentos ministeriais, a mais uma manifestacao de
gdowngradingh do foro competente para a apreciacao abstracta da legalidade dessas
normas. Se em 1984 as normas estaduais eram julgados pelo STA, uma alteracao legislativa
efectuada em 1996 atribuiu a mesma competencia ao TCA, passando agora o Codigo a
remete-los para as jurisdicoes de primeira instancia.
Exceptuam-se as normas praticadas pelo Primeiro-Ministro e pelo Conselho de Ministros
que devem ser impugnadas junto do STA.
Esta solucao nao dignifica o exercicio dos poderes dos titulares de orgaos de soberania e
coloca a validade abstracta de importantes normas (portarias e diversos decretos
regulamentares), exposta a imponderabilidade dos juizes do TAC, menos experimentados.
Podera defender-se que o recurso de revista gper saltumh para o STA evitaria a
definitividade das declaracoes de ilegalidade. Mas o facto e que o alcance do instituto e
limitado. De acordo com o art. 151o e suas remissoes para o art. 150o do Codigo, o recurso
restringe-se a questoes de Direito, so podendo fundar-se em violacao de lei substantiva e
processual, deixando de fora normas relativas ao funcionalismo publico e proteccao social.
Defende-se, ao inves, que os pedidos de declaracao da legalidade de normas administrativas
aprovadas pelos membros do Governo sejam julgados em primeira instancia, pelos Tribunais
Centrais Administrativos.
B. Pressupostos objectivos da demanda
101
Temas e Problemas de Processo Administrativo
a) Prazo
23. O art. 75o do Codigo determina que a declaracao de ilegalidade pode
ser pedida a todo o tempo, sendo o regime identico ao anterior. Tal predicaria uma logica
sancionatoria de nulidade (incaducabilidade da accao).
b) Requisitos processuais da impugnacao directa
24. Sobre os requisitos objectivos de impugnacao, duas breves notas.
1a.No que tange ao controlo abstracto a recusa da aplicacao da norma em tres casos
concretos constitui condicao da propositura da accao pelo particular e fundamento do
dever de impugnar do Ministerio Publico, entendendo-se que:
i) A expressao gqualquer tribunalh envolve todo o foro onde se julgue a ilegalidade de
um regulamento, abrangendo os juizos incidentais proferidos pela jurisdicao comum
ou administrativa e as declaracoes concretas feitas nos tribunais administrativos;
ii) Nao e exigivel na contabilizacao da repeticao do julgado, que o vicio que predicou
a ilegalidade da norma em cada caso concreto seja o mesmo, dado que o Codigo
apenas se refere a recusa da aplicacao daquela com fundamento em ilegalidade,
independentemente do motivo;
iii) O gprocesso em massah nao permite inserir na referida contabilizacao cada um dos
processos apensados ao processo-modelo, ja que: - o no 1 art. 48o do Codigo ao
referir-se a gaplicacao das mesmas normas a identicas situacoes de factoh reportar-se-ia a actos
administrativos e nao a regulamentos; um sector da doutrina (Esteves de Oliveira)
considera que a expressao gpronunciah da entidade administrativa afastaria accoes que
tenham por objecto a ilegalidade de normas; e o escopo dos tres casos concretos visa
conferir uma distancia temporal minima que permita aos tribunais
consciencializarem a necessidade de remocao da norma suspeita, da ordem juridica.
2a. No que respeita a fiscalizacao concreta da legalidade, o requisito objectivo que
condiciona a sindicabilidade do regulamento e a circunstancia deste ter aptidao para
produzir singularmente efeitos lesivos sem carecer da imediacao de um acto administrativo.
102
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Dai que, se vier a ser praticado um acto administrativo de execucao de regulamento autooperativo
ilegal, essa aprovacao nao constituira fundamento para a nao admissao da accao
contra essa norma, ja que esta reune ga seh, as condicoes objectivas de impugnacao directa.
2.4. Marcha do processo
25. Remete-se esta materia para os art.s 46o e 49o do Codigo.
2.5. Efeitos da declaracao de ilegalidade
A. Regime sancionatorio inerente a declaracao da ilegalidade com forca obrigatoria
geral: tracos dominantes do novo regime
26.Ja na reforma de 1984/85 se verificara uma aproximacao parcial ao sistema de
fiscalizacao da constitucionalidade, traduzido no instituto da declaracao com forca
obrigatoria geral da ilegalidade das normas, com ressalva dos casos julgados. Foi uma
aproximacao algo nominal e ginvertidah, ja que manteve, no plano dos efeitos da
declaracao, os topicos da sancao que Marcelo Caetano baptizara de gnulidade radicalh, a qual
consistia numa sancao mista de invalidade.
A declaracao da legalidade tinha, por regra, efeitos gex nunch preservando-se os actos
postumos ilegais, salvo se o tribunal conferisse a decisao efeitos gex tunch, com
fundamento em razoes de equidade, seguranca juridica e interesse publico de especial
relevo.
27. Com a aprovacao do Codigo pos-se termo a regra geral da preservacao de efeitos
postumos de normas invalidas, a qual fora estimada por parte da doutrina como
inconstitucional mas que, bem vistas a coisas, se afigurava mais prudente do que o actual.
Os tracos do novo regime sancionatorio do controlo abstracto, previstos no art. 76o do
CPTA sao textualmente mais proximos do paradigma do art. 282o da CRP, dado que:
103
Temas e Problemas de Processo Administrativo
i) A declaracao de ilegalidade originaria da norma produz efeitos sancionatorios
retroactivos desde a sua data de emissao (leia-se, entrada em vigor) e determina a
repristinacao da norma revogada pelo regulamento ilegal;
ii) Razoes de seguranca juridica, equidade e interesse publico podem levar o tribunal
a determinar eficacia gex nunch, aos efeitos da sentenca, a partir do transito em
julgado, invertendo-se o sentido do regime precedente;
iv) Preserva-se os casos julgados dos efeitos retroactivos da sentenca mas passa a
alargar-se essa salvaguarda aos actos administrativos inimpugnaveis.
3. Declaracao da ilegalidade por omissao
28. O instituto, previsto no art. 77o do Codigo firmou-se como uma importante inovacao
do CPTA. Atraves dele, tentou-se contrariar uma patologia enraizada na ordem juridica, no
sentido da nao emissao de regulamentos que concretizem leis nao exequiveis por si
proprias.
Tendo, uma vez mais, colhido a sua inspiracao na Constituicao, o regime instituido vai
todavia mais longe, ja que:
i) O tribunal administrativo nao se limita a verificar a ilegalidade por omissao e a dar
dela conhecimento a entidade competente (tal como sucede na CRP) dado que fixa
um prazo nao inferior a seis meses para que a omissao seja suprida;
ii) E defensavel que o nao acatamento da sentenca permitira ao lesado desencadear
os mecanismos de execucao adequados a fixacao de uma sancao pecuniaria
compulsoria aos responsaveis pela subsistencia da omissao ( no 2 do art. 3o do
Codigo).
III. Aspectos problematicos do novo regime: examinaremos quatro questoes em
particular.
1. A sindicabilidade em controlo concreto e incidental de actos preservados por
uma declaracao ex nunc da ilegalidade
104
Temas e Problemas de Processo Administrativo
29. Se uma sentenca determinar que a declaracao de ilegalidade em controlo abstracto
produz efeitos gex nunch, sera possivel impugnar actos administrativos editados ao abrigo
da norma ilegal?
A resposta parece ser negativa. O sentido util de uma restricao temporal de efeitos da
declaracao proferida com forca obrigatoria geral e o de imunizar situacoes postumas
constituidas ao abrigo do regulamento ilegal, em relacao a sancao que o atingiu.
Se, os mesmos actos pudessem ser sindicados atraves de outros meios contenciosos, a
forca de caso julgado formal e material inerente a declaracao abstracta de ilegalidade com
eficacia ex nunc seria posta em causa. O gtelosh de uma declaracao de ilegalidade de tipo
manipulativo e o de que os efeitos da decisao se exprimam bidireccionalmente, expulsando
a norma do ordenamento mas preservando, postumamente, os seus actos de execucao.
Claro esta que a declaracao de ilegalidade que determine efeitos ex nunc a decisao, deve
salvaguardar da preservacao de efeitos postumos inconstitucionais os casos pendentes, tal
como o faz o Tribunal Constitucional, ja que se garante o investimento na confianca do
cidadao que entretanto impugnou acto ou contracto consequentemente ilegal e que
pretende ver tutelados os seus direitos (Ac. no 497/2007).
2. A preclusao da repristinacao de regulamentos invalidos
30. Da letra do no 1 do art. 76o do Codigo parece retirar-se o caracter automatico da
repristinacao que inere a declaracao abstracta da ilegalidade. Ora, mais ainda do que sucede
com as leis repristinadas em controlo de constitucionalidade, existe o serio risco de muitos
regulamentos revivescentes colidirem com a legislacao vigente.
De acordo com o no 4 art. 282o da CRP, a declaracao da inconstitucionalidade pode fixar
os seus efeitos com um alcance mais restrito do que o do no 1 do mesmo preceito. Tal
permite ao TC conhecer gex officioh a invalidade do Direito repristinavel e vedar essa
repristinacao, dado que essa proibicao constitui um efeito restritivo. So que a redaccao do
art. 76o do Codigo nao e identica a do no 4 do art. 282o da CRP, focando apenas a hipotese
de se declarar a ilegalidade com eficacia futura.
105
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Entende-se que a jurisprudencia nao deve fazer uma leitura literal do preceito, no sentido
da automaticidade da repristinacao, mas sim uma leitura conforme ao principio
constitucional da legalidade (vide em materia de planeamento territorial a posicao de Alves
Correia). O principio da legalidade impede os tribunais de aplicarem normas que infrinjam
os principios constitucionais. Dai que se interprete o arto 76o como fixando a regra da
repristinacao, salvo se as normas renascidas forem ilegais.
3.A querela relativa a salvaguarda do caso administrativo decidido
A. Introducao ao problema
31. Se o Codigo pos termo a gnulidade radicalh que parecia pontificar no regime juridico
processual anterior, o facto e que subsistem refraccoes dessa estranha sancao que implica a
salvaguarda dos actos administrativos que executam a norma declarada invalida. O no 3 do
art. 76o do Codigo reza que, nos juizos de invalidade proferidos com efeitosgex tunch, se
tem por salvaguardados, a par do caso julgado, os actos administrativos inimpugnaveis, expressao
relativamente indeterminada no seu efectivo alcance.
Entende-se que o legislador, atenta a jurisprudencia do Tribunal Constitucional que se
dobrou a jurisprudencia classica do STA sobre esta materia, pretendeu salvaguardar o
chamado caso decidido administrativo.
A aproximacao do instituto do caso julgado ao caso decidido nao e nova. Marcello Caetano
teria extraido de Otto Mayer o entendimento, segundo o qual, tal como a sentenca
transitada em julgado seria imodificavel, na medida em que nao admitiria recurso ordinario,
o acto administrativo relativamente ao qual tivesse transcorrido o prazo de impugnacao
contenciosa, consolidar-se-ia, fazendo gcaso decididoh ou gcaso resolvidoh.
A razao de ser dessa consolidacao radicaria na necessidade de se obter seguranca na ordem
juridica, na medida em que nao seria possivel gsuportar anos sem fim a incerteza sobre se um acto
juridico e legal ou ilegal, valido ou invalidoh (FREITAS DO AMARAL). A certeza seria obtida
por via negativa, gope legish, sanando-se o vicio na medida em que transcorra o prazo para a
sua impugnacao. De acordo com o mesmo autor, o caso decidido constitui uma situacao
juridica consolidada pelo facto de o acto que lhe deu origem se ter tornado inimpugnavel, em virtude de ter
106
Temas e Problemas de Processo Administrativo
transcorrido o prazo legal para poder ser sindicado contenciosamente com fundamento em vicios que
prediquem a sua anulabilidade.
No caso, porem, de os vicios que atingem um dado acto administrativo serem
suficientemente graves para fundamentarem a sancao da nulidade, nos termos do art. 133o
do Codigo do Procedimento Administrativo (CPA), nao havera caso decidido, podendo o
referido acto ser impugnado contenciosamente a todo o tempo.
32. Expoentes doutrinarios de uma corrente subjectivista do Direito Administrativo
(VASCO PEREIRA DA SILVA) tem defendido que a entrada em vigor do novo
contencioso administrativo em 2004 teria extinguido a figura do caso decidido, na medida em
que o no 1 do art. 51o CPTA teria alargado o ambito da impugnabilidade dos actos
administrativos, em razao da sua eficacia externa e do seu caracter lesivo dos direitos dos
particulares, dando cumprimento ao disposto no no 4 do art. 268 o da CRP. Seria, portanto,
inconstitucional toda a decisao que tivesse como inimpugnavel um acto lesivo de direitos e
interesses legalmente protegidos dos particulares. Nestes termos, o decurso do prazo de
impugnacao nao convalidaria o vicio, transformando o acto ilegal num acto legal, mas teria
apenas o efeito processual de impedir a impugnacao do acto mediante a proposicao de uma
accao administrativa especial. Os efeitos materiais do acto seriam, contudo, a luz do no 2 do
art. 37o do CPTA, susceptiveis de apreciacao atraves de uma accao administrativa comum,
podendo atraves dela proceder-se ao reconhecimento de direito e a responsabilizacao civil
extracontratual do Estado, sem que a logica do caso decidido possam vedar a proposicao
desse meio processual.
Qualquer eventual concordancia com a posicao exposta nao preclude a possibilidade
abstracta de sustentacao de um entendimento inverso, nos termos do qual, o proprio
CPTA excepciona a regra geral da faculdade de impugnacao de actos lesivos, ao prever
expressamente a existencia de actos inimpugnaveis atraves de qualquer meio processual quanto aos
seus efeitos materiais, independentemente do criterio da lesao (no 3 do art. 76o), decorrendo os
fundamentos dessa inimpugnabilidade do transcurso do prazo impugnatorio, previsto no
no 58o e seguintes do CPTA para os actos anulaveis, em conjugacao com o regime legal da
anulabilidade constante dos art.s 135o e 136o do CPA. Sem prejuizo da doutrina em exame
poder indo fazer o seu caminho amparada na preceptividade da norma do no 4 do art. 268o
da CRP (e com alguns resultados no campo da responsabilidade civil extracontratual), se
atentarmos no teor da jurisprudencia administrativa que sera examinado mais adiante,
107
Temas e Problemas de Processo Administrativo
verificaremos a noticia da morte precoce do caso decidido sera, para ja, talvez um pouco
exagerada. Como tal, considera-lo-emos como uma realidade do tempo presente,
independentemente das criticas de merito que a sua subsistencia possa merecer.
B. Sentidos possiveis da norma do no 3 do art. 76o do CPTA
33. O sentido do preceito em epigrafe nao e claro e permite duas interpretacoes
alternativas:
i) A de que a norma seria invalida (nula), mas que os actos administrativos de
execucao de regulamento que enfermassem de vicios proprios geradores de
anulabilidade e que nao tivessem sido impugnados no prazo maximo de um ano
(prazo maximo de impugnacao, concedido ao Ministerio publico), se tornariam
intangiveis e como tal, imunes aos efeitos de posterior declaracao de invalidade do
regulamento:
ii) A de que haveria uma dissociacao sancionatoria ente nulidade do regulamento e
anulabilidade dos actos de execucao do regulamento que enfermem de vicios
consequenciais, tornando-se esses actos inimpugnaveis caso nao sejam, em controlo
incidental impugnados dentro dos prazos legais (3 meses pelos particulares contados
da data da sua notificacao e o prazo de um ano pelo Ministerio publico).
A primeira interpretacao, mais literal, deve ser afastada. Ela implicaria uma estranha
bonificacao ao acto ilegal atingido por vicios proprios geradores de anulabilidade na medida em que,
ficando esse vicio sanado pelo decurso do prazo de impugnacao, o acto ficaria defendido
de invalidacao posterior decorrente da existencia de vicios mais graves que lhe tenham sido
propagados pelo regulamento a que da execucao: a sanacao do vicio proprio menos grave
tornaria o acto inimpugnavel em face de vicios consequenciais de caracter mais grave.
A segunda interpretacao, mais verosimil, e a que radica numa muito controversa
jurisprudencia
34. Tudo tera surgido a proposito de decisoes do STA relativas a inconstitucionalidade
consequente de actos administrativos e que comecaram a consolidar-se em torno de
108
Temas e Problemas de Processo Administrativo
orientacoes sustentadas em decisoes prolatadas na decada de oitenta relativas nao apenas a
ilegalidade, mas a inconstitucionalidade consequente de actos administrativos fundados em
lei ou regulamento inconstitucional.
O Acordao referencial do STA sobre esta materia tera sido proferido em 16-4-1982 (in
gAcordaos. Doutrinaish no 247), tendo o mesmo aresto rezado o seguinte: gA declaracao de
inconstitucionalidade de normas legais nao pode ofender o caso julgado, o caso resolvido ou os negocios
juridicos esgotadosh. Como tal, essa declaracao de inconstitucionalidade g (c) so atinge as
situacoes ainda nao resolvidas a face daquele diploma [ o DL 47/77], deixando intactos os direitos
adquiridos pelo caso resolvido administrativamenteh.
Semelhante orientacao foi retomada em outros acordaos do mesmo Tribunal,
nomeadamente o Acordao de uniformizacao de jurisprudencia, de 12-2-85, o qual
considerou que, tal como sucede com o caso julgado, tambem o caso resolvido ( ou seja gos
actos administrativos nao impugnados contenciosamenteh) se consolidam, ficando com g (c) caracter
de incontestabilidade e estabilidade na ordem juridica por razoes de certeza e segurancah. E a par do
caso resolvido, tambem os efeitos civis ja produzidos pelo cumprimento da mesma
obrigacao ficariam imunizados aos efeitos da declaracao de inconstitucionalidade.
Importa, ainda, atentar no teor do Ac. do STA de 16-3-1993. Ai se considerou que go acto
que aplica norma inconstitucional nao e inexistente ou nulo, por vicio da vontade, estando antes viciado por
erro no pressuposto de direito, o que integra violacao de lei, causa de mera anulabilidadeh.
Assim, a anulabilidade seria, por regra, a forma de invalidade do acto consequentemente
inconstitucional que nao padecesse simultaneamente de outros vicios proprios que
reclamassem uma sancao mais grave. Importa, contudo, referir que toda a jurisprudencia
mencionada nao fundamentou a equiparacao que fez entre o regime do caso julgado e o do
caso decidido, esbocando a este respeito uma construcao carente de um percurso metodico
solido, ausente de preocupacoes dogmaticas e embrenhada num objectivismo de gfavor
legislatorish que, a pretexto da defesa de direitos consolidados, pretendeu salvaguardar a
perenidade dos actos inconstitucionais da Administracao.
35. O Tribunal Constitucional, durante um largo periodo de tempo, escusou-se, no que
respeita a salvaguarda de actos administrativos, a entrar na querela doutrinaria da
equiparacao entre o caso julgado e o acto decidido (cfr., de entre outros, os Ac. n.o 869/96
e n.o 254/90. Considerando frequentemente que certas situacoes abrangidas pelo gacto
109
Temas e Problemas de Processo Administrativo
decididoh administrativo mereceriam ser imunizadas dos efeitos sancionatorios de uma
decisao de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional preferiu preserva-las, so que a
luz do n.o 4 do art. 282.o da CRP.
Ainda assim, desde a prolacao do Ac. n.o 786/96, de 19-6, o Tribunal Constitucional tera
esbocado uma interpretacao mais ousada no sentido da equiparacao do acto decidido ao
caso julgado.
Reza o mesmo aresto o seguinte gOra, na situacao presente, a aplicacao da norma passou certamente
pela pratica de actos administrativos de que podera ter decorrido um de dois desfechos, conforme tenha
havido (ou nao) recurso contencioso. Se houve recurso contencioso ou ainda puder haver, nao e indispensavel
nem adequada a fiscalizacao abstracta para resolver o caso, abrindo-se sempre a via do recurso de
constitucionalidade. Se nao houve recurso contencioso, o acto administrativo acabou por se consolidar na
ordem juridica, deixando de ser impugnavel. Nesta ultima hipotese, tal consolidacao, mesmo nao
constituindo caso julgado em sentido estrito, por nao proceder de decisao judicial, ha-de, no entanto, a ele ser
equiparada para efeito do disposto no artigo 282o, no 3, da Constituicaoh.
A equiparacao entre o caso julgado e caso decidido atraves de uma sentenca aditiva
(inconstitucional) constituiu a peca que faltava para o TC criar um regime de nulidade para
a norma e anulabilidade para a o acto, independentemente do vicio consequencial de que
este pudesse enfermar.
Ora, o CPTA, quando aproximou o regime de controlo concreto da legalidade
regulamentar do regime do controlo abstracto da constitucionalidade das normas,
incorporou na lei aquilo que falta na constituicao mas o Tribunal Constitucional intentou
suprir: a intangibilidade de todos os actos administrativos de execucao de regulamento nao
impugnados com fundamento em ilegalidade consequente no prazo de um ano.
36. Trata-se de uma solucao com controversos precedentes legais: o no 2 do art. 104o do
Regime Juridico dos Instrumentos de Gestao Territorial (RJIGT) salvaguarda os actos de
execucao de Plano de Gestao territorial nulo (sem que se entenda se se trata da nulidade
declarada pela Administracao pelos tribunais ou por ambos); e outra, uma verdadeira
aberracao juridica, consta do no 4 do art. 64o do Regime Juridico da Urbanizacao e da
Edificacao (RJUE) que dita uma limitacao temporal de dez anos a possibilidade de arguicao
110
Temas e Problemas de Processo Administrativo
de certas nulidades (sic) de actos de licenciamento, admissao de comunicacao previa e autorizacao de
utilizacao !?
C. Apreciacao critica a solucao legal consagrada
37. Importaria sobre esta materia tecer tres ordens de consideracoes.
1a. Julga-se que a solucao consagrada pelo Tribunal Constitucional, relativamente a
preservacao do caso decidido no contexto das declaracoes abstractas da
inconstitucionalidade das normas a que esses actos dao execucao) e ela propria
inconstitucional, pois nao cabe ao mesmo Tribunal alterar a CRP aditando uma regra que
equipara o caso julgado ao caso decidido no no 3 do art. 282o. Trata-se nao de analogia (que
e proibida no ambito de normas excepcionais) nem de interpretacao extensiva mas de uma
sentenca aditiva de revisao constitucional a qual ofende o principio da separacao de
poderes e viola a reserva de Constituicao.
2a. A construcao juridica criticada assenta na equiparacao feita entre caso julgado e caso decidido
a qual e inaceitavel.
Na verdade:
i) Enquanto o caso julgado se define como um efeito de Direito, em regra
imodificavel, constituido a favor de terceiros por decisoes transitadas em julgado, o caso
decidido constitui uma situacao juridica consolidada por falta de oportuna impugnacao
contenciosa;
ii) Enquanto o caso julgado e uma sentenca e, como tal, resulta do exercicio da
funcao jurisdicional, o caso decidido nao e mais do que um mero acto administrativo,
emerge do exercicio da funcao executiva;
iii) Enquanto o caso julgado intenta ser a ultima palavra proferida pelo sistema
juridico relativamente a uma luta pelo Direito, mediante a tomada de uma decisao
jurisdicional ordinariamente irrecorrivel, ja o caso decidido visa precisamente precludir a
certos interessados o uso de meios de defesa contenciosa, depois de esgotado o prazo legal
111
Temas e Problemas de Processo Administrativo
concedido para que os mesmos possam agir, concedendo a ultima palavra a Administracao
por efeito da inercia desses interessados e do ministerio Publico;
iv) Enquanto a estabilidade do caso julgado se deve a necessidade,
constitucionalmente garantida, de preservar a paz juridica relativa a um litigio ou a
composicao de um conflito, beneficiando quem recorreu aos tribunais e foi parte
vencedora, o caso decidido visa acautelar um interesse publico da Administracao ( bem
como de potenciais interessados) carente de garantia constitucional, em por termo a
incerteza sobre a subsistencia ou nao de um acto potencialmente viciado por uma
deformidade menor, fazendo intervir o factor tempo como fundamento da
inimpugnabilidade do acto;
v) Enquanto o caso julgado inconstitucional e, em regra, insusceptivel de revisao por efeito
da declaracao da inconstitucionalidade da norma em que se funda (no 3 do art. 283o da
CRP) excluindo, em principio, o direito do particular a uma indemnizacao, o caso decidido
cujo vicio se tenha sanado pelo decurso do tempo, pese o facto de ter deixado de ser
invalido, continua a ser ilicito, o que implica que, apurada culpa, pode relevar em termos
responsabilidade civil extracontratual por prejuizos que tenha causado (art. 4o da Lei n.o
67/2007 de 31 de Dezembro e no 1 do art. 38o do CPTA).
No fundo, a consolidacao do julgado funda-se, a luz de uma dimensao superior do
principio da seguranca juridica, no respeito por uma decisao judicial definitiva enquanto a
consolidacao do caso resolvido opera a margem da intervencao jurisdicional e estriba-se
numa dimensao inferior e utilitaria da seguranca juridica que reclama estabilidade dos actos
administrativos e das situacoes por eles constituidos, em face de potenciais impugnacoes
judiciais radicadas em vicios menores.
No caso julgado, a seguranca juridica beneficia quem impugnou e venceu definitivamente a
causa por ter o direito do seu lado, enquanto na orbita do caso decidido o mesmo
principio beneficia, por inercia, a Administracao e os contra-interessados na manutencao
do acto, quando o lesado e o Ministerio Publico se mostram inaptos para defender
atempadamente a sua invalidade atraves de meios processuais adequados.
112
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Nao e possivel, por conseguinte sustentar uma desigualdade censuravel entre o destinatario
de acto transitado em julgado e o destinatario de caso decidido relativamente ao modo
diverso de projeccao dos efeitos ex tunc da declaracao de inconstitucionalidade da lei onde
os dois actos se fundavam. E nao e, materialmente consistente que se proceda, sem
qualquer justificacao razoavel, a uma assimilacao pretoriana, mesmo que gfuncionalh, entre
dois institutos que nao sao assimilaveis.
3a. O transplante da preservacao do acto decidido inconstitucional para o CPTA, de forma
a consagrar identica salvaguarda ao acto resolvido que execute um regulamento ilegal nao e
igualmente sustentavel. Na verdade a solucao:
- E inconstitucional pois permite que actos ilegais continuem no ordenamento e o
regulamento invalido possa, atraves da preservacao dos seus efeitos passados a derrogar
ilegitimamente a lei (violacao dos art.s 3o e 112o no 5 da CRP;
- Pode ser, igualmente, inconstitucional pois permitiria a subsistencia de actos lesivos dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares (no 4 do art. 268o da CRP);
- Permite que a norma seja declarada nula por violacao do principio da proporcionalidade
ou igualdade mas que os actos de execucao desproporcionais e arbitrarios subsistem;
- E dogmaticamente absurda pois afronta o conceito da nulidade da norma, a qual a luz do
principio da imediatividade implica a eliminacao ex tunc dos actos praticados a sua sombra
e a reconstituicao da situacao preexistente na medida do possivel;
- E ilogica, pois se da alinea i) do no 2 do art. 133o do CPA resulta a sancao da nulidade
para os actos consequentes de actos ja anulados e revogados, nao fara sentido, por maioria
de razao, que o mesmo nao suceda com os actos consequentes de regulamentos nulos;
- E desproporcionada pois permite que uma incidencia cega da seguranca juridica obnubile
o principio da constitucionalidade, o principio da legalidade e as garantias contenciosas dos
particulares contra a impugnabilidade a todo o tempo de actos de execucao de normas
nulas que violem os seus direitos e interesses legalmente protegidos.
113
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Entendemos que seria essencial uma alteracao do CPTA que eliminasse a salvaguarda cega
do acto decidido consequentemente ilegal e encontre outra solucao mais segura, a saber: i)
a do regime anterior que nao era a nulidade mas uma invalidade mista (preservacao de
todos os actos de execucao, excepto os salvaguardados em razao da seguranca juridica); ii)
a do regime da nulidade semelhante ao do art. 282o da CRP sem a salvaguarda do acto
inimpugnavel; iii) uma nova solucao que acolhesse a inimpugnaveis de certos actos mas
acautelasse a eliminacao de todos os actos de execucao de norma ilegal que enfermasse de
vicios mais graves.
38. Observe-se que embora num quadro de grande incerteza a terceira solucao exposta tem
tido acolhimento na evolucao mais recente dos tribunais administrativos.
Assim, passou a acentuar-se o entendimento segundo o qual a forma de invalidade
aplicavel depende do tipo de vicio de que o acto impugnado enferma como efeito de
aplicacao de norma inconstitucional, tendo admitido, por exemplo, um Acordao de 3-6-
2009 do STA, que a desaplicacao de norma ilegal ou inconstitucional pode gerar tanto a anulabilidade
como a nulidade do acto de execucao.
Nesse sentido, havendo acto fundado em norma inconstitucional que implique a violacao
do conteudo de direitos fundamentais, esse acto sera nulo na medida em que o CPA fere
com nulidade a violacao desses direitos (a alinea d) do no 1 do art. 133o do CPA comina
explicitamente a nulidade do acto administrativo que viole o conteudo essencial de um
direito fundamental). No sentido da nulidade pronunciaram-se, por exemplo, o Ac. de 9 de
Dezembro de 2003 (direito a greve) e, em obiter dictum, a sentenca de 5 de Julho de 2008
Nos Tribunais de segunda instancia, o apelo referencial ao art. 133o do CPA e igualmente
convocado para a determinacao da sancao a aplicar ao acto consequentemente
inconstitucional ou ilegal. Veja-se o caso da decisao de 11 de Novembro de 2008 (Proc. no
1897/07), do Tribunal Central Administrativo Sul (TCA), que considera que a nulidade se
aplica sempre que ocorram os requisitos plasmados no referido artigo do CPA, com relevo
para a alinea d) do no1. E o mesmo Tribunal tanto na decisao anterior, como na relativa ao
processo no 2264/2008, tambem de 11 de Novembro de 2008, alude tambem, no tocante
ao acto consequente da norma invalida, ao criterio doutrinal do interesse predominante, publico
114
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ou privado, para a afericao do tipo de sancao a aplicar ( supra ˜ 161, Tomo I), factor que
alarga o campo da nulidade, embora num universo pautado por uma grande incerteza.
E, pois possivel sustentar, mesmo sem alteracao do CPTA, que, se os vicios do
regulamento corresponderem aos que o 133o refere como vicios proprio do acto
administrativo justificativos de nulidade, o acto administrativo que execute esse
regulamento ilegal sera nulo e nao anulavel nao podendo ser tido como acto inimpugnavel.
Trata-se de uma solucao mais razoavel embora coxa (pois o art. 133o do CPA nao foi
pensado para ilegalidade consequente o acto) e propiciadora de incerteza se se apelar ao
criterio do interesse publico para identificar a sancao adequada como fez o TCA Sul.
4. O controlo concreto da legalidade e a sua espuria e problematica natureza
39. O CPTA nao explicita os efeitos da declaracao concreta da ilegalidade de um
regulamento, havendo que os deduzir directamente do no 2 do art. 73o e, ga contrarioh, do
art. 76o do mesmo Codigo.
40. Em termos gerais verifica-se que:
i) A declaracao pressupoe um juizo de ilegalidade que opera apenas em relacao ao
caso concreto, e tem efeitos inter-partes, sem prejuizo de, na accao popular, poder
vincular outros que nao apenas a autoridade demandada;
ii) Desse juizo de ilegalidade resulta, a desaplicacao da norma ao caso singular
(privacao de eficacia concreta da norma invalida), pelo que, nao sendo a norma
removida do ordenamento, ela podera ser aplicada a outros casos, se a
Administracao ou outros tribunais a nao julgarem invalida;
iii) A desaplicacao fundada em invalidade produz efeitos gex tunch e, como o CPTA
nao preve uma restricao temporal de efeitos analoga a da declaracao abstracta, esta
via e tida como mais favoravel aos direitos dos lesados (Vieira de Andrade).
115
Temas e Problemas de Processo Administrativo
41. O instituto em estudo revela um caracter algo alienigena, ja que opera como controlo
por via directa ou principal (tipico da fiscalizacao abstracta), que produz, todavia, os seus
efeitos em termos identicos aos de um controlo de legalidade incidental.
Alguma doutrina criticou o instituto, pela incoerencia e quebra da certeza juridicas
derivadas da possibilidade de uma norma poder ser julgada ilegal em dado processo e legal
noutros. E suscitou a inconstitucionalidade da solucao por violar os principios da legalidade
e da igualdade e, ainda, por restringir o conteudo essencial do direito de impugnacao de
normas lesivas de direitos dos particulares.
O controlo concreto revela-se uma figura espuria e de importacao constitucional
desnecessaria que complica o sistema e que deveria ser suprimida. E que, a fiscalizacao
incidental junta-se um segundo controlo concreto por via principal com identico efeito, que
perturba a seguranca juridica ao permitir a subsistencia transitoria no sistema, de normas
zoombies enfraquecidas por juizos de ilegalidade. O argumento favoravel que sustentaria a
necessidade de a Administracao ir poupando regulamentos, com o arrastamento dos
julgamentos concretos de ilegalidade e improcedente pois dessa gpoupancah estrategica nao
se recolhe qualquer principio juridico, devendo a mesma ceder em face do principio da
seguranca juridica. E tao pouco convence o argumento de que o regime de controlo
concreto, sem o efeito da forca obrigatoria geral, evitaria juizos apressados, ja que o sistema
oferece um regime de recursos e reclamacoes que atenuaria certos riscos de ligeireza
decisoria, pelo menos no tocante a normas nao governamentais.
E, se e certo que o instituto em si mesmo considerado nao diminuiu genericamente as
garantias dos particulares em termos de tutela jurisdicional efectiva o facto e que a
supressao do recurso directo de anulacao de normas do poder local acabou por gerar algum
retrocesso no plano garantistico em face da legislacao anterior. Isto porque o lesado por
regulamentos ilegais mediatamente operativos oriundos da administracao autarquica deixou de
os poder impugnar directamente.
42. Seria, no nosso entendimento, preferivel suprimir o controlo concreto e consagrar,
apenas, a par da impugnacao incidental, uma via directa controlo abstracto que permitisse:
116
Temas e Problemas de Processo Administrativo
- Ao Ministerio Publico (tal como presentemente sucede) impugnar quaisquer
normas a todo o tempo (sendo obrigado a faze-lo em caso de repeticao do julgado
em tres casos concretos);
- Ao lesado sindicar, por via directa, quer normas imediatamente operativas a todo o
tempo, quer normas mediatamente operativas incidentalmente julgadas ilegais em tres
casos concretos, tendo os efeitos da declaracao da ilegalidade forca obrigatoria geral.
A ser aceite a supressao do controlo concreto, seria recomendavel que se assegurasse a tutela dos
interesses do particular relativamente aos regulamentos ilegais. Nesse sentido importaria consagrar no
art. 76o, uma disposicao que garantisse que, no caso de o tribunal determinar uma fixacao
gex nunch dos efeitos temporais da declaracao de ilegalidade tal restricao nao afectaria a
inaplicabilidade do regulamento ilegal imediatamente operativo a esfera juridica do autor e
aos autores de outros processos pendentes. Equilibrar-se-ia, com essa solucao, a tutela
subjectiva dos direitos do particular que impugnou a norma com o interesse publico em
eliminar esse regulamento do ordenamento juridico.
IV. Observacoes Finais
43. Importaria rematar este excurso com tres observacoes.
1a. Um sistema composito. A criacao de um contencioso decalcado da CRP, heteroclito,
armado de todo o tipo de meios impugnatorios revela um sistema algo inseguro,
acumulativo, com uma duvidosa identidade propria.
O controlo concreto revela-se uma figura algo espuria e de importacao constitucional que
complica desnecessariamente o sistema e que deveria ser suprimida. E que, a fiscalizacao
incidental junta-se um segundo controlo concreto por via principal, que perturba a
seguranca juridica e que permite a subsistencia no sistema de normas enfraquecidas por
juizos de ilegalidade.
Teria sido preferivel consagrar, a par da impugnacao incidental, uma via controlo abstracto,
proxima a que existia no regime anterior, que permitisse ao ministerio Publico impugnar
117
Temas e Problemas de Processo Administrativo
quaisquer normas e ao lesado sindicar, quer normas imediatamente operativas, quer normas
mediatamente operativas incidentalmente julgadas ilegais em tres casos concretos.
2a. O gdeve e haverh entre objectivismo e subjectivismo
O novo contencioso regulamentar equilibra os diversos niveis de interesses objectivos e
subjectivos na tutela da legalidade. Os interesses subjectivos foram beneficiados com a
unidade da tramitacao dos processos de impugnacao directa; com o controlo da ilegalidade
por omissao; com a introducao dos procedimentos cautelares e, mais duvidosamente, com
a impugnacao concreta.
Tera, contudo, havido um retrocesso pontual da tutela subjectiva, na medida em que o
particular viu dificultado o controlo abstracto dos regulamentos locais nao imediatamente
operativos, os quais antes podia impugnar sem limites. Nao sendo este retrocesso grave
para o lesado, que pode recorrer a impugnacao incidental, o mesmo ja se nao passa,
todavia, com o pre-lesado.
Nao se considera, ainda assim, que a nao outorga de uma legitimidade incondicionada ao
particular para sindicar normas ilegais em via abstracta tenha defraudado a tutela de
interesses subjectivos, ja que nao faz sentido que esse direito seja concedido relativamente a
regulamentos mediatamente operativos.
3a. Uma evolucao na continuidade
O modelo de contencioso do Codigo, nao rompeu com regime precedente, tambem ele
misto. Unificou os meios impugnatorios directos numa unica accao, mas manteve regimes
impugnatorios distintos, alguns dos quais com raizes no sistema anterior. Dai que as
principais inovacoes constituam uma evolucao na continuidade.
As alteracoes mais expressivas foram, afinal, a introducao do controlo por omissao e, em
controlo abstracto, a substituicao da nulidade radical pela regra geral da nulidade da norma
ilegal, a qual nao resulta ser clara e convincente no tocante a salvaguarda do chamado caso
decidido.
118
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Bibliografia portuguesa
AFONSO QUEIRO gNota Sobre o Contencioso de Normas Administrativash- Revista
gO Direito e Estudos Sociaish-Ano I-1-1945.
CARLOS BLANCO DE MORAIS gBrevissimas Notas Sobre a Revisao do CPTA e do
ETAF em Materia de Contencioso Regulamentarh in gCadernos de Justica administrativah-
no 65.
CARLOS BLANCO DE MORAIS gA invalidade dos regulamentos e os Fundamentos da
sua Impugnacao Contenciosah- grevista juridica (AAFDL) no 8.
CARLOS F. CADILHA gDicionario do Contencioso Administrativoh - Coimbra-2006
DINAMENE DE FREITAS gO Acto Administrativo Inconstitucionalh-Coimbra-2010.
DIOGO FREITAS DO AMARAL gDireito administrativoh- Lisboa Vol IV (1988) e Vol
III (1989).
FERNANDO ALVES CORREIA gA Impugnacao jurisdicional de Normas
Administrativash-Cadernos de Justica administrativa2-no 16-1999.
JOAO RAPOSO gSobre o Contencioso dos Regulamentos Administrativosh-Revista de
Direito Publico . no 7-1990.
JOSE CARLOS VIEIRA DE ANDRADE gJustica Administrativah-Coimbra-2005.
MARCELLO CAETANO gManual de Direito Administrativo IIh-Coimbra 1999
MARCELO REBELO DE SOUSA-ANDRE SALGADO DE MATOS gDireito
Administrativo Geralh-III-Lisboa-2009.
MARIO ESTEVES DE OLIVEIRA g A impugnacao e Anulacao Contenciosa dos
regulamentos-Apontamentos sobre o Novo regime Legal2-revista de Direito Publico - Ano
1-no 2-1986.
MARIO ESTEVES DE OLIVEIRA-RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA g Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos e estatuto dos Tribunais administrativos e Fiscaish-
I-2006.
PAULO OTERO gLegalidade e Administracao Publicah-Coimbra-2003.
PEDRO DELGADO ALVES gO Novo Regime de Impugnacao de Normash in gNovas e
Velhas Andancas do contencioso Administrativoh-Lisboa-2005.
VASCO PEREIRA DA SILVA gO Contencioso Administrativo no Diva da Psicanaliseh-
Coimbra-2005- RUI MEDEIROS, gA Decisao de Inconstitucionalidadeh - Lisboa-1999
119
Temas e Problemas de Processo Administrativo 120
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Os Processo Cautelares na Justica Administrativa - Uma Parte da Categoria
da Tutela Jurisdicional de Urgencia
Isabel Celeste Fonseca1
SUMARIO: 0. Proposicao. I. Primeira explicitacao: o genero (tutela de urgencia) e
a especie (tutela cautelar). II. Segunda explicitacao: as tecnicas necessarias para a existencia
da especie. III. Terceira explicitacao: as tecnicas obrigatorias para a existencia do genero
0. Proposicao
Nao e por mero acaso que o Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos (=
CPTA) acolhe uma categoria processual para realizar a proteccao jurisdicional das pretensoesjuridicas-
substantivas-de-urgencia. Na realidade, por razao de varios factores, esta foi a solucao
acolhida tanto para dar resposta as exigencias de ordem social, ditadas pela sociedade tardomoderna,
sociedade de risco ou sociedade-da-urgencia, como para satisfazer as imposicoes
decorrentes do direito ao processo efectivo e temporalmente justo, com sede na Lei
Fundamental e no Direito Processual Europeu2.
Precisamente, a categoria da tutela jurisdicional de urgencia ganhou imediatamente
autonomia do ponto de vista da forma processual, quando o legislador decidiu atribuir-lhe
uma tramitacao especial, sendo certo que tal estirpe processual tambem ganhou tracos
estruturais e funcionais distintivos. Falamos, assim, num genero de tutela jurisdicional que,
a partir de um criterio formal, se afirma com autonomia por determinacao legal. E falamos
de uma especie de tutela dentro daquele genero que se distingue sobretudo pelo seu perfil
funcional. Alias, a partir de uma perspectiva funcional, percebe-se bem a razao pela qual as
tecnicas da acessoriedade-instrumentalidade e da provisoriedade estao concretizadas nos
processos urgentes cautelares, dada a sua natural funcao servil. De facto, estamos a falar de
processos que desembocam na adopcao de uma decisao judicial provisoria, com vista a
assegurar a efectividade da decisao de merito a emitir em outro processo (I. Primeira
explicitacao).
1 Doutora em Direito. Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho.
2 Sobre o tema, vd. o nosso Processo Temporalmente Justo e Urgencia. Contributo para a autonomizacao da categoria
da tutela jurisdicional de urgencia na justica administrativa, Coimbra, 2009, esp. pp. 209 ss.
121
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Contudo, se esta relacao entre tutela de urgencia, processos cautelares e tecnicas de
acessoriedade e provisoriedade se encaixa bem num contencioso de tipo classico, facil e
perceber que a tutela das pretensoes juridicas tambem pode ser assegurada com urgencia
sem que para o efeito se concretizem no processo as tecnicas de acessoriedadeinstrumentalidade
e de provisoriedade. E, precisamente a este proposito, importa dizer que a
esta conclusao tambem chegou o legislador em 2002/2003, quando veio afastar essas
tecnicas de alguns dos processos urgentes, o que fez em relacao aos processos
contemplados no titulo IV do CPTA, e quando, a luz do acolhido no artigo 121.a e 132.o,
n.o 7, veio permitir ao juiz dispensa-las. Portanto, as tecnicas da acessoriedade-instrumentalidade
e da provisoriedade sao concretizadas em obrigatoriamente em processos cautelares e sao
adequadas para caracterizar a categoria da tutela de urgencia. Contudo, tambem podem ser
dispensadas desses processos, uma vez que a categoria da urgencia se pode concretizar
atraves de outras tecnicas. Alias, a concretizacao do direito ao processo efectivo e
temporalmente justo impoe tambem a previsao da tecnica da antecipacao em processos
simplificados e estruturalmente adequados para as situacoes-de-urgencia. E, no que concerne
aos processos urgentes cautelares, a tecnica da antecipacao revela-se sobretudo numa
perspectiva qualitativa e funcional. Ja em outros tipos de processos urgentes autonomos a
antecipacao manifesta-se fundamentalmente como quantitativa, oferecendo abreviacao e
aceleracao na composicao da questao litigiosa existente entre as partes. De um modo ou de
outro, cumpre dizer que esta tecnica desempenha um papel determinante na realizacao do
direito ao processo efectivo e temporalmente justo, uma vez que, merce dos seus efeitos, a
decisao antecipatoria assegura, ainda que de diferentes modos, a proteccao judicial das
pretensoes-de-urgencia, antes do tempo processual devido. Assim, no processo urgente
acessorio, a antecipacao diz-se qualitativa (ou funcional) porque ela apenas deve permitir a
emissao de uma decisao-judicial-de-urgencia-antecipatoria-provisoria. E neste contexto que se
percebe que a tecnica da antecipacao qualitativa ou funcional seja condicionada, nao
permitindo alcancar aos sujeitos-no-processo-acessorio senao uma realizacao provisoria de
pretensoes-juridicas-substantivas que se fazem valer no processo principal (II. Segunda
explicitacao).
A categoria da tutela de urgencia afirma-se definitivamente como autonoma a partir
do perfil estrutural e a partir do momento em que se verifica que a tecnica da sumariedade
e concretizada em todos os processos urgentes autonomos e cautelares, sendo, alias,
absolutamente identica a concretizacao da sumariedade procedimental. Na verdade,
previstos como processos sumarios, tanto os processos urgentes autonomos como os
122
Temas e Problemas de Processo Administrativo
processos urgentes cautelares tem consagrados instrumentos de sumarizacao processual. E,
igualmente, cumpre considerar que em cada um dos Titulos IV e V se concretizam
excepcoes e desvios (incluindo serias atenuacoes) ao regime juridico ordinario que rege o
procedimento de instrucao e producao de prova. De qualquer modo, nao se duvida de que
o juizo sumario produzido no contexto dos processos urgentes cautelares resulta da
impossibilidade de neles o sujeito-jurisdicional-de-urgencia realizar um exame de concludencia
completo. De resto, a presenca obrigatoria da sumariedade nos processos urgentes
autonomos e nos processos urgentes cautelares demonstra que esta e a principal
caracteristica da categoria da tutela de urgencia do contencioso administrativo tardomoderno
(III. Terceira explicitacao).
I. Primeira explicitacao
Do ponto de vista formal, a categoria da tutela de urgencia esta assegurada
distintamente no contencioso administrativo, uma vez que a lei processual administrativa
veio contemplar dois modelos de tramitacao: um de tramitacao ordinaria, que se aplica aos
processos declaratorios e executorios ditos ordinarios ou comuns, e um outro, o modelo de
tramitacao urgente, que se aplica a um conjunto de processos especiais contemplados nos
Titulos IV e V do CPTA, sendo certo que a lei processual administrativa determina o
ambito deste modelo de tramitacao urgente. Fa-lo, na realidade, na seccao II (das formas de
processo) do capitulo V, da parte geral do Titulo I da lei processual administrativa. E, por
conseguinte, nos termos do artigo 36.o do CPTA, determina a lei que devem seguir a forma
urgente impugnatoria os processos relativos ao contencioso eleitoral e ao contencioso precontratual,
sendo certo que tambem tramitam de acordo com a forma urgente, os
processos relativos a intimacao para prestacao de informacoes, consulta de documentos ou
passagem de certidoes e os processos relativos a intimacao para proteccao de direitos,
liberdades e garantias. E, finalmente, tem andamento urgente o processo cautelar (1.).
Apurado que a lei processual administrativa configura a existencia de um modelo de
tramitacao urgente e apurado tambem que, neste contexto das formas de tramitacao, o
contencioso administrativo se revela bidimensional, cumpre agora perceber que, por
imperativo do principio da tipicidade das formas processuais, as pretensoes-urgentes devem ser
formuladas nos processos que seguem um modelo de tramitacao urgente, sendo certo que
cada tipo de pretensao-urgente tipificada nos Titulos IV e V do CPTA deve obrigatoriamente
constituir o objecto do respectivo processo e este deve tramitar segundo a forma urgente.
A tramitacao urgente revela-se assim como imperativa por ser especial e por causa da
123
Temas e Problemas de Processo Administrativo
situacao-de-urgencia em que se encontra a situacao juridica que e carente de tutela judicial e os
processos urgentes mostram-se, pois, com exclusividade, sendo certo que so servem para
realizar as respectivas pretensoes e estas nao podem ser satisfeitas atraves de outro
processo (2.).
1.
Em contas simples, seguindo muito de perto a sistematizacao escolhida pelo
legislador, cumpre, pois, precisar que seguem o modelo de tramitacao urgente duas accoes
urgentes impugnatorias (1.1.) e duas accoes urgentes condenatorias (1.2.). Finalmente,
como veremos, segue o modelo de tramitacao urgente o processo cautelar previsto no
artigo 112.o e seguintes do CPTA (1.3.).
1.1.
O processo eleitoral, previsto no artigo 97.o e seguintes do CPTA, segue o modelo
de tramitacao urgente exactamente porque o seu objecto integra uma modalidade tipica de
pretensoes-urgentes, id est, pretensoes que, concernentes a uma situacao de carencia de tutela
judicial envolvida numa situacao-de-urgencia-especificada, dizem respeito ou a um procedimento
eleitoral irregular, que acaba por viciar o acto final desse procedimento, ou a um tipo
especifico de invalidade de um acto pre-eleitoral (referente ao acto de exclusao ou omissao
de eleitores ou elegiveis) ou ao acto eleitoral propriamente dito. E, assim, as pretensoesurgentes
a realizar atraves deste processo dizem respeito tanto ao acto eleitoral propriamente
dito (e respectiva homologacao) como abrangem algumas questoes autonomas do
procedimento, nomeadamente as relativas a inscricao (exclusao ou pura omissao) nos
cadernos eleitorais ou a recusa de admissao de listas a sufragio. De facto, estando em causa
a proteccao efectiva dos direitos de eleger e ser eleito, podem lancar mao deste processo
eleitoral quem na eleicao em causa seja eleitor ou elegivel, ou as pessoas em relacao as
quais, devendo existir inscricao nos cadernos e listas eleitorais, haja essa omissao. De
qualquer modo, cumpre notar que a eleicao a que se refere este processo especial que segue
uma forma especial, sao aquelas atraves das quais se designam os titulares de orgaos
administrativos electivos (incluindo as eleicoes para orgaos burocraticos, por exemplo, no
ambito das escolas e de outros estabelecimentos e servicos publicos).
Em segundo lugar, segue a tramitacao urgente impugnatoria a situacao de urgencia
relacionada com o procedimento de formacao de quatro tipos de contratos publicos, quais
sejam o contrato de empreitada e concessao de obras publicas, o contrato de prestacao de
servicos e o de fornecimento de bens. Devendo o procedimento pre-contratual obedecer
aos principios da legalidade, da livre concorrencia, de igualdade e de imparcialidade, a
124
Temas e Problemas de Processo Administrativo
situacao de carencia que justifica o seguimento do modelo de tramitacao urgente neste
processo pressupoe, pois, a iminencia de celebracao do contrato sem que tais principios e
outras normas tenham sido respeitados e pressupoe a necessaria correccao atempada das
ilegalidades verificadas durante a formacao dos contratos em causa. Na realidade, por
imposicao comunitaria, o processo impugnatorio previsto no artigo 100.o CPTA segue o
modelo de tramitacao urgente, sendo que o seu objecto corresponde a dois tipos de
pretensoes-(impugnatorias)-urgentes relativas a formacao de contratos de empreitada e concessao
de obras publicas, de prestacao de servicos e de fornecimento de bens: a impugnacao de
actos administrativos praticados durante a fase de formacao de qualquer um desses
contratos, e a impugnacao de documentos normativos conformadores do procedimento de
formacao desses contratos com fundamento na ilegalidade das especificacoes tecnicas,
economicas ou financeiras, incluindo, o programa e o caderno de encargos (nos termos do
artigo 100.o, n.o 1 e n.o 2 do CPTA)3.
Cumpre notar tambem que, nao obstante ser designado como processo
impugnatorio, o objecto deste processo especial pode, na verdade, integrar outras
pretensoes e, assim, atraves dele pode o juiz declarar a invalidade de um destes contratos,
se entretanto o mesmo vier a ser celebrado na pendencia do processo, e pode fixar o valor
da indemnizacao a atribuir ao autor do processo, se entretanto se tiver consolidado uma
situacao de impossibilidade absoluta, que impeca o autor de obter a restauracao in natura da
sua pretensao juridica (nos termos do art. 102, n.o 4 e art. 63.o e n.o 5)4.
1.2.
O modelo de tramitacao urgente estende-se tambem a um conjunto de dois
processos previstos no Titulo IV do CPTA, que o legislador designa de áintimacoesâ. Eles
sao a intimacao para a prestacao de informacoes, consulta de processos ou passagem de
certidoes, contemplada no art. 104.o e seguintes da lei processual, e a intimacao para
proteccao de direitos, liberdades e garantias, que e acolhida no artigo 109.o e seguintes do
CPTA. O primeiro processo urgente de intimacao tem como objecto uma pretensao cuja
3 A este proposito, vd. PEDRO GONCALVES, áContencioso administrativo pre-contratualâ, CJA, 44,
2004, pp. 3 ss.
4 E, neste contexto, cumpre reflectir sobre o verdadeiro sentido da expressao pretensao-urgente, para este
efeito. E daqui decorrem duas questoes, a saber: se nao havera outras pretensoes-urgentes que devam ser
incluidas no objecto deste processo urgente, nao obstante o legislador o nao ter mencionado expressamente,
tal como o pedido de condenacao na emissao de acto devido ou de condenacao na substituicao de acto
impugnado, sem que daqui deva obrigatoriamente existir perda do caracter urgente do processo; se aquelas
novas pretensoes, previstas no artigo 102.o, n.o 4 e n.o 5, ainda podem ser classificadas como pretensoes-urgentes
e se, por isso, ainda faz sentido manter a tramitacao urgente quando o seu objecto se amplia nesses casos.
Sobre este assunto, vd. o nosso áO contencioso dos contratos da administracao publica. Notas sobre um
dominio do contencioso administrativo de feicao muito urgenteâ, RMP, n.o 108, 2006, esp. pp. 183 ss.
125
Temas e Problemas de Processo Administrativo
situacao de carencia o legislador considera como urgente, dando, assim origem a um tipo
de contencioso em que a urgencia e qualificada por determinacao legal5. Tal pretensao e
relativa ao exercicio do direito fundamental dos cidadaos a informacao em posse das
entidades administrativas (consagrado na Lei Fundamental no artigo 268.o, n.o 1 e n.o 2),
nas modalidades de direito a informacao procedimental (nos termos dos artigos 61.o a 64.o
CPA) e extra-procedimental ou direito de acesso aos arquivos e registos administrativos
(actualmente consagrada na LARDA, Lei n.o 46/2007, de 24 de Agosto, sendo que esta lei
veio revogar a Lei n.o 65/93, de 26 de Agosto, com a redaccao introduzida pelas Leis n.os
8/95, de 29 de Marco, e 94/99, de 16 de Julho, e transpor para a ordem juridica nacional a
Directiva n.o 2003/98/CE, do Parlamento e do Conselho, de 17 de Novembro, relativa a
reutilizacao de informacao do sector publico).
Se o contencioso que explicamos, ha pouco, e exemplo de um tipo de contencioso
urgente por determinacao legal, ja o contencioso que envolve o exercicio de direitos,
liberdades e garantias constitui um tipo de contencioso urgente por natureza, nao obstante
o legislador, cumprindo a imposicao legiferante constante do artigo 20.o, n.o 5 da Lei
Fundamental, ratificar tal caracter. O processo urgente de intimacao para proteccao de
direitos fundamentais, previsto no art. 109.o e seguintes do CPTA, tem, de facto, por
objecto pretensoes juridicas relativas a proteccao urgente de direitos, liberdades e garantias
perante entidades publicas e privadas, sendo certo que, nao obstante a lei processual
administrativa o nao especificar, estes direitos nao devem resumir-se aos de natureza
estritamente pessoal, como decorreria do cumprimento pontual do comando
constitucional, previsto no art. 20.o, n.o 5. Como teremos oportunidade de verificar, este
processo de intimacao esta estruturalmente configurado como processo sumario e por isso
beneficia de instrumentos de simplicidade e abreviacao. E, porque tem tramitacao urgente,
este processo beneficia, de igual modo, de instrumentos de aceleracao. De um modo e de
outro, e adequado para assegurar o exercicio de um direito, liberdade ou garantia dos
particulares perante o ameacador, pessoa colectiva publica, particulares ou concessionarios,
envolvidos em relacoes juridicas administrativas. E, ainda, porque configurado com
elementos de natureza excepcional, este processo (que nao e de natureza estritamente
declarativa) e apto para proporcionar uma antecipacao da tutela declaratoria e proporcionar
uma antecipacao de efeitos que normalmente so sao configuraveis no proprio momento de
execucao da sentenca.
5 No sentido de que ha vantagem neste tipo de classificacao, mormente tratando-se do contencioso tributario,
vd. JOSE CASALTA NABAIS, áJustica administrativa e justica fiscalâ, A reforma da justica administrativa,
Coimbra, 2005, pp. 282 e 283.
126
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Como se percebe, ate a partir da leitura da Exposicao de Motivos da respectiva
proposta de Lei, o legislador pretendeu instituir um processo dotado áde grande
elasticidade, que o juiz [portador de uma missao especial e dotado de poderes excepcionais]
devera dosear em funcao da intensidade da urgenciaâ, um processo que e disciplinado por
regras que a cada momento se revelam como excepcoes perante a regra, pois, a situacao de
carencia de tutela que atraves de si se protege e configurada como situacao excepcional. E,
de facto, um processo de tramitacao urgente que esta disciplinado por normas especiais e
tem especificidades de varia ordem6.
1.3.
Finalmente, nos termos da lei processual administrativa, as restantes pretensoesurgentes-
atipicas devem constituir o objecto do processo cautelar e este segue, de igual modo,
o modelo de tramitacao urgente, previsto, designadamente, no n.o 2 do artigo 36.o do
CPTA. Alias, e neste processo que se confirma que e a urgencia, rectius, periculum in mora ou
fundado receio de constituicao de uma situacao de facto consumado ou da producao de
prejuizos de dificil reparacao para os interesses que o requerente visa assegurar no processo
principal, que determina as diversas dimensoes ou as distintas configuracoes que os
processos urgentes podem apresentar na lei processual. Como se verificou, e a situacao-deurgencia
em que se encontra a situacao carente de tutela judicial que determina a
inconstancia e a instabilidade estrutural do processo que sobre ela versa. E e ela, a situacaode-
urgencia, que impoe a constante adaptacao da estrutura e da tramitacao do processo,
sendo que o andamento mais acelerado ou mais lento decorre da intensidade da urgencia
invocada e da natureza dos direitos e interesses envolvidos nas situacoes. Ora, nos termos
dos artigos 112.o e seguintes da lei processual administrativa, o processo cautelar apresentase
pluridimensional, sendo que uma das variacoes do processo cautelar prima mesmo pela
extrema aceleracao, simplicidade e abreviacao.
Assim, por um lado, a lei processual administrativa configura a existencia de um
processo cautelar comum, cujo regime consta dos artigos 112.o e seguintes do CPTA. E
atraves deste processo cautelar comum e possivel obter o decretamento de qualquer
providencia cautelar, conservatoria ou antecipatoria, que seja admitida no contencioso
administrativo. Depois, por outro lado, a lei processual administrativa consagra a existencia
6 Neste sentido, vd. M. AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentario ao Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos, 2.a ed., Coimbra, 2007, p. 547. Sobre este assunto, vd. J. C. VIEIRA DE
ANDRADE, áA proteccao dos direitos fundamentais dos particulares na justica administrativa reformadaâ,
RLJ, ano 134.o, 2001, n.o 3929, pp. 229 ss.; CARLA AMADO GOMES, áPretexto, contexto e texto da
intimacao para proteccao de direitos, liberdades e garantiasâ, in: Estudos em homenagem ao Professor Doutor
Inocencio Telles, Vol. V, 2003, pp. 541 ss., esp. pp. 563 ss.
127
Temas e Problemas de Processo Administrativo
de processos cautelares especiais, uma vez que preve a existencia de processos cautelares
que desembocam na adopcao de providencias cautelares especificadas, sendo certo que tais
processos estao igualmente sujeitos a disposicoes legais particulares. Na verdade, tanto a lei
processual administrativa como a lei processual civil, ex vi do artigo 112.o, n.o 2 e artigo 1.o
do CPTA, consagram a existencia de regimes especificos para a adopcao de certas
providencias cautelares especificadas, prevendo, pois, a existencia de processos cautelares
tipificados ou especiais, cuja disciplina e composta por normas que regem o processo
cautelar comum, a que acrescem normas particulares. Por exemplo, o processo cautelar de
suspensao da eficacia de um acto administrativo rege-se pelas disposicoes constantes do
artigo 128.o e seguintes. O processo de suspensao da eficacia de uma norma administrativa
tem a sua particular disciplina prevista no artigo 130.o do CPTA, sendo que nela se
consagra tanto a possibilidade de um interessado requerer a suspensao da eficacia de uma
disposicao normativa com efeitos circunscritos ao caso concreto, nos termos do n.o 1 do
artigo 130.o, como a possibilidade de obter a suspensao da eficacia da norma com alcance
geral, nos termos do n.o 2 do mesmo preceito. As providencias relativas a procedimentos
de formacao de contratos devem seguir os tramites do artigo 132.o da lei processual
administrativa. E a regulacao provisoria do pagamento de quantias rege-se pelo art. 133.o
do CPTA. Finalmente, a producao antecipada de prova e realizada segundo os termos
previstos no artigo 134.o do CPTA. Ora, daqui decorre, pois, a confirmacao de que a lei
processual administrativa consagra a existencia de processos cautelares especiais e de um
processo cautelar comum, sendo que todos eles devem seguir o modelo de tramitacao
urgente. E, ex vi do artigo 1.o e artigo 112.o, n.o 2 do CPTA, o decretamento das
providencias cautelares especificadas de natureza civil obedece igualmente as normas
especiais constantes da seccao II, do capitulo IV, do titulo I do livro III do CPC. Assim,
por exemplo, o arrolamento seguira as normas constantes dos artigos 421.o, especialmente
do artigo 423.o CPC.
Na senda do que apontamos inicialmente, cumpre ainda reter que o processo
cautelar comum, que desemboca na emissao de uma providencia cautelar nao especificada,
apresenta tres dimensoes ou tres configuracoes, a saber: uma configuracao regra, a do
processo cautelar comum-regra, cuja disciplina esta disposta nos artigos 112.o e seguintes,
especialmente nos artigos 114.o e seguintes, e duas configuracoes comuns especiais, uma
que esta prevista no artigo 131.o e e apta para desembocar no decretamento provisorio de
qualquer providencia cautelar nao especificada, e outra que esta configurada no artigo 121.o
e e apta para desembocar na antecipacao do juizo de fundo de qualquer processo principal,
128
Temas e Problemas de Processo Administrativo
sendo que estas duas ultimas variacoes podem combinar-se com todos os processos
principais, com a excepcao do processo de intimacao para proteccao de direitos, liberdades
e garantias.
2.
Enfim, chegados aqui, apurada a exclusividade e a imperatividade dos demais
processos urgentes, cumpre agora tracar o objecto do processo cautelar, uma vez que o
objecto deste processo albergara as pretensoes urgentes nao tipificadas a priori na lei processual
administrativa, sendo a partida todas aquelas que podem decorrer da demora de um
processo principal e ameacem inutilizar a respectiva sentenca final. E, neste sentido,
devendo constituir o objecto do processo cautelar e tendo bem presente que este se destaca
pelo seu caracter acessorio e instrumental perante a efectividade de um outro processo,
facil e perceber em que termos a AUC se configura como accao imperativa e exclusiva.
Assim, nos termos da lei processual administrativa, todas as pretensoes-urgentes-atipicas
que nao devam integrar o objecto dos processos urgentes consagrados nos no Titulo IV
devem constituir o objecto do processo cautelar, sendo certo que, nos termos do artigo
36.o, n.o 1, e) do CPTA, este processo segue, de igual modo, o mesmo modelo de
tramitacao urgente, previsto, designadamente, no n.o 2 daquele preceito. Como ja se
apontou, e a situacao-de-urgencia em que se encontra a pretensao que e carente de tutela
judicial que pre-determina e pre-condiciona as diversas dimensoes ou as distintas
configuracoes que os processos urgentes podem apresentar na lei processual administrativa.
3.
Cumpre, entao, perceber, em primeiro lugar, que todas as configuracoes dos
processos cautelares, que seguem sempre a forma de AUC, realizam pretensoes-urgentesatipicas.
E a atipicidade da pretensao juridica decorre do tipo nao especificado da situacao-deurgencia
que, em concreto, e carente de tutela judicial. Lembremo-nos que qualquer
providencia cautelar visa assegurar o efeito util de uma sentenca principal. E, por isso, a
situacao de urgencia so pode configurar-se em concreto e numa situacao individual, depois
de apurado o tipo de risco e a natureza do dano que decorre da demora do processo
principal e que ameaca a plena efectividade da sentenca a proferir nesse processo principal.
Como se sabe, e por forca do artigo 268.o, n.o 4 da Lei Fundamental e artigos 2.o, n.o 1 e
112.o, n.o 1 da lei processual administrativa, no contencioso administrativo garante-se o
decretamento de qualquer providencia cautelar que seja adequada a assegurar a efectividade
das pronuncias definitivas. E, por isso mesmo, hoje, os processos cautelares cobrem todas
as situacoes-de-urgencia nao configuradas a partida pelo legislador, isto e, todas as situacoes-de-
129
Temas e Problemas de Processo Administrativo
urgencia-nao-especificadas ou situacoes-de-urgencia que o legislador nao identificou e escolheu para
tutelar prioritariamente.
O objecto do processo cautelar comum abrange qualquer tipo de pretensao-urgente
que seja relativa a demora de um processo principal (tendo em conta o dano que a mesma e
susceptivel de causar aos direitos e interesses que se fazem valer em outro processo) e se
configure como ameacadora da plena efectividade do resultado final desse outro processo
principal. E, assim, a situacao-de-urgencia-atipica, que justifica a tramitacao urgente da AUC,
corresponde ao áfundado receio da constituicao de uma situacao de facto consumado ou
da producao de prejuizos de dificil reparacao para os interesses que o requerente visa
assegurar no processo principalâ. Com efeito, ainda que a gravidade do periculum in mora seja
diversa conforme esteja em causa a susceptibilidade de producao de uma situacao de facto
consumado ou a producao de prejuizos de dificil reparacao, nao se duvida que tal conceito
deva aproximar-se mais da irreparabilidade e menos da irreversibilidade, sendo certo
tambem que o conceito de irreparabilidade nao deve ser associado a impossibilidade (e
muito menos a dificuldade de calculo) de indemnizacao pecuniaria do dano. Tambem neste
aspecto, o conceito do direito ao processo efectivo (no sentido de que o processo deve
tendencialmente proporcionar aos sujeitos tudo aquilo que o direito material lhes garante,
como apontava CHIOVENDA) deve servir de orientacao na apreciacao do conceito de
prejuizo de impossivel reparacao, uma vez que o conceito de producao de facto
consumado e, por si so e objectivamente, a negacao da efectividade da tutela judicial.
Decorre do principio do numerus apertus, consagrado actualmente no artigo 112.o, n.o
1 CPTA, a abertura do modelo de tutela jurisdicional de urgencia, em termos que a AUC
visa obviar a todo o tipo de periculum in mora que seja susceptivel de ameacar a plena
utilidade da sentenca definitiva. E, como se sabe, o periculum in mora pode traduzir-se em
dois tipos de prejuizos, o de infrutuosidade e o de retardamento das sentencas a proferir nos
processos principais. E e em funcao destes dois tipos de prejuizos que sao configuradas as
pretensoes-urgentes que constituirao o objecto do processo cautelar, sendo que tais pretensoesurgentes
podem, em certos casos, identificar-se com as pretensoes que integrarao os objectos
dos processos principais, podendo, alias, existir uma coincidencia de pretensoes. Em todo
o caso, a diferenca entre elas residira sempre no caracter urgente daquelas e na
susceptibilidade de satisfacao provisoria que apresentam, em detrimento das segundas. Em
todo o caso, as pretensoes-urgentes realizam-se com o decretamento de uma providencia
natureza conservatoria ou com a adopcao de uma providencia de estrutura antecipatoria,
130
Temas e Problemas de Processo Administrativo
sendo que, num caso e noutro, a realizacao da pretensao-urgente atraves do processo cautelar
se realiza atraves da emissao de decisoes-judiciais-de-urgencia-provisorias.
Claro esta que as pretensoes-urgentes que sao o objecto dos processos cautelares
especiais apresentam alguns tracos especificos, uma vez que tais pretensoes-de-urgencia sao
contextualizadas pelo legislador. Na verdade, como a lei processual administrativa consagra
a existencia de regimes especificos para a adopcao de certas providencias cautelares
especificadas, prevendo, pois, a existencia de processos cautelares tipificados ou especiais,
cuja disciplina e composta por normas que regem o processo cautelar comum e por
normas particulares, estes processos so incluem no seu objecto pretensoes-urgentes preconfiguradas.
Por exemplo, o processo cautelar de suspensao da eficacia de um acto
administrativo, que se rege pelas disposicoes constantes do artigo 128.o e seguintes do
CPTA, inclui fundamentalmente as pretensoes-urgentes relativas a um especial tipo de periculum
in mora, que e aquele prejuizo que resulta agravado pela imediata execucao do acto
administrativo impugnado, juntando-se assim ao prejuizo atipico que decorre da propria
demora do processo que segue a forma de AAE. Neste contexto, visa assegurar-se que
enquanto decorre o processo principal nao acontece uma alteracao do statu quo ante,
propondo-se, assim, a providencia evitar ou impedir que a Administracao execute ou de
continuidade a execucao de acto administrativo, fundamentalmente de efeitos positivos,
cuja legalidade esta a ser apreciada (ou vai ser apreciada) no ambito de uma AAE. O
mesmo acontecendo com as pretensoes que integram o objecto do processo de suspensao
da eficacia de norma administrativa, previsto no artigo 130.o CPTA.
Por exemplo, no dominio do contencioso pre-contratual, e possivel decretar as
providencias que se mostrem adequadas a minimizar os prejuizos de infrutuosidade e de
retardamento da sentenca, por via do principio do numerus apertus, tambem consagrado no art.
132.o, n.o 1 CPTA. E, assim, o requerente tanto pode solicitar a suspensao da eficacia de
um acto administrativo referente ao procedimento de formacao do contrato como solicitar
a suspensao total do procedimento. E tanto pode solicitar a admissao provisoria num
concurso como pode solicitar a regulacao provisoria de uma situacao juridica, como seja o
decretamento provisorio de uma providencia, maxime, o diferimento da assinatura do
contrato por um periodo de tempo determinado ou ate que seja proferida a decisao no
processo cautelar, a semelhanca daquilo que hoje se permite atraves do refere-precontractuel e
sobretudo tendo em conta as orientacoes constantes da Directiva 2007/66/CE, de 11 de
Dezembro7.
7 Cumpre, pois, sublinhar, que as providencias cautelares desempenham um papel significativo no
contencioso da formacao dos contratos da Administracao, ja que sao elas que garantem a tutela jurisdicional
131
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A regulacao provisoria do pagamento de quantias, cujo processo se rege pelo art.
133.o, visa sobretudo obstar ao periculum de retardamento do processo que decidira sobre o
dever de a Administracao realizar prestacoes pecuniarias a favor do seu credor. E, neste
contexto, a pretensao-urgente a satisfazer nesta modalidade especial do processo cautelar
coincide parcialmente com a pretensao que se faz valer naquele processo principal. E certo
que a pretensao cautelar pressupoe a existencia de uma ásituacao de grave carencia
economicaâ, cujo áprolongamento pode acarretar consequencias graves e dificilmente
reparaveisâ e pressupoe que seja provavel que a pretensao a realizar no processo principal
venha a ser julgada procedente. Assim, cumpre notar que se identifica em parte com a
pretensao-juridica a realizar no processo principal. Basta pensar que a titulo de antecipacao, as
quantias a receber (ou as prestacoes a realizar) podem ser no montante igual ao da quantia
devida (ou da prestacao em falta), so nao podendo exceder as que resultariam do
reconhecimento dos direitos invocados pelo requerente, sendo que, em todo o caso, o
respectivo processamento se considera feito por conta das prestacoes alegadamente
devidas, nos termos do artigo 133.o, n.o 2 CPTA.
E a producao antecipada de prova, que e realizada segundo os termos previstos no
artigo 134.o CPTA, visa obstar a um especifico periculum in mora. Pressupoe-se, nestes casos,
que ha uma pretensao de urgencia na producao de certa modalidade de prova, por nao ser
possivel aguardar pelo momento legalmente determinado para a produzir. Este processo
especial visa precisamente obviar ao risco da espera pelo momento certo para proceder a
producao de certo meio de prova, que provavelmente nao pode vir a ser (ou muito
dificilmente pode vir a ser) produzido posteriormente, naquele que seria o momento
processualmente certo. O periculum in mora, que deve ser justificado sumariamente,
efectiva de interesses publicos e privados envolvidos, maxime, a posicao dos interessados em contratar com a
Administracao que tenham sido lesados. Estas providencias cautelares relativas a procedimentos de formacao
de todos os contratos sujeitos a jurisdicao administrativa, que sao adoptadas segundo um procedimento
cautelar especifico, podem traduzir-se em qualquer providencia que demonstre ser adequada a tutelar
provisoriamente a posicao do interessado e a impedir que sejam causados outros danos aos interesses em
presenca. Entre as providencias sugeridas pelo legislador para este dominio, constam duas agressivas: uma de
ingerencia significativa no merito da accao principal, a de correccao antecipada de ilegalidades
procedimentais, e outra de ingerencia agressiva na esfera juridica da entidade adjudicante e nos interesses por
si defendidos, a de suspensao do procedimento de contrato. No que se refere aos seus pressupostos de
decretamento, a concessao da providencia depende do juizo de probabilidade do tribunal quanto a saber se,
ponderados os interesses susceptiveis de serem lesados, os danos que resultariam da adopcao da providencia
sao superiores aos prejuizos que podem resultar da sua adopcao, sem que tal lesao possa ser evitada ou
atenuada pela adopcao de outras providencias (art. 132.o, n.o 6). Ainda assim, nos termos do artigo 120.o, n.o
1, alinea a), quando seja evidente a procedencia da pretensao formulada ou a formular no processo principal,
designadamente por estar em causa a impugnacao de acto manifestamente ilegal, de acto de aplicacao de
norma anteriormente anulada ou de acto identico a outro ja anteriormente anulado ou declarado nulo ou
inexistente, a procedencia da providencia requerida nao obedece ao requisito de ponderacao estabelecido no
n.o 6 do art. 132.o CPTA. Sobre este tema, vd. o nosso áA Directiva (recursos) n.o 2007/66/CE: o reforco da
efectividade do contencioso pre-contratual \ What else?â, Revista da Faculdade de Direito da Universidade
do Portoâ, ano V, 2008, pp. 49 ss.
132
Temas e Problemas de Processo Administrativo
corresponde ao ájusto receio de vir a tornar-se impossivel ou muito dificil o depoimento de
certas pessoas ou a verificacao de certos factos por meio de prova pericial ou por
inspeccaoâ.
Ora, daqui decorre, pois, a confirmacao de que a lei processual administrativa
consagra a existencia de processos cautelares especiais e de um processo cautelar comum,
sendo que todos encerram pretensoes-urgentes-atipicas, id est, aquelas que, em qualquer caso, se
configurem em funcao do periculum in mora, no caso concreto configuravel, sendo certo
tambem que as pretensoes-urgentes-atipicas vao sendo reconduzidas para os processos
cautelares. Assim, para o processo cautelar comum sumarissimo, previsto no artigo 131.o,
sao direccionadas as pretensoes-especialmente-urgentes-atipicas. Para o processo sumario previsto
no artigo 121.o sao direccionadas apenas algumas pretensoes urgentes: precisamente,
aquelas cuja tutela judicial nao se compadece com uma apreciacao provisoria do direito e
com a emissao de uma decisao-de-urgencia-provisoria. Para o processo cautelar comum-regra sao
dirigidas todas as outras pretensoes-urgentes-atipicas.
II. Segunda explicitacao
A concretizacao do direito ao processo efectivo e temporalmente justo impoe a
previsao de processos simplificados e estruturalmente adequados para as situacoes de
urgencia. Se tradicionalmente os processos cautelares garantiam a efectividade da tutela
judicial e respondiam a toda a demanda de tutela urgente, hoje a realizacao da tutela judicial
das pretensoes-de-urgencia acontece atraves da consagracao de processos especiais, de estrutura
simplificada e de tramitacao urgente, sendo que tais processos concretizam normalmente
diferentes tecnicas processuais. A tecnica da acessoriedade-instrumentalidade e a tecnica da
provisoriedade sao ainda as tecnicas comummente empregues nos sistemas europeus para
tutelar a urgencia, dando origem aos processos urgentes cautelares, de acordo com a
terminologia latina, ou processos acessorios que desembocam na emissao de decisoesjudiciais-
de-urgencia-provisorias.
E neste quadro que nos propomos revisitar o conceito de instrumentalidade, tanto
mais que os actuais processos cautelares, sendo instrumentos de concretizacao do direito
ao processo efectivo e temporalmente justo, realizam de forma autonoma, cada vez mais, a
tutela jurisdicional efectiva do direito material ou do direito substantivo, assegurando a
satisfacao de pretensoes juridicas substantivas. Com efeito, se tradicionalmente os
processos urgentes cautelares sao designados como processos duplamente instrumentais ou
como processos que se caracterizam pela sua instrumentalidade ao quadrado, a verdade e
133
Temas e Problemas de Processo Administrativo
que tais processos urgentes nem sempre assim podem ser caracterizados. De facto, so os
que desembocam em certo tipo de decisoes meramente conservatorias se podem assumir
como duplamente instrumentais perante o direito material ou perante a pretensao juridica
substantiva, ja que tramitando de forma dependente e tendo como funcao primordial
assegurar a efectividade de um processo ordinario, eles visam assegurar sobretudo a
utilidade da sentenca principal, sendo que neles, muitas vezes, o direito material nao chega
sequer a ser analisado, nem chega sequer a ser aplicado provisoriamente. E e por isso que a
instrumentalidade do processo cautelar existe perante outro processo e nao perante o
direito material. Contudo, se assim e no que concerne a certas providencias conservatorias,
ja o mesmo nao pode dizer-se no que respeita ao processo urgente cautelar que desemboca
na emissao de uma decisao-de-urgencia-antecipatoria-provisoria, uma vez que esta realiza
provisoriamente a tutela judicial das pretensoes juridicas substantivas, garantindo assim a
proteccao judicial provisoria do direito material ameacado de lesao. Neste contexto,
cumpre, pois, reconhecer que a funcao aqui desempenhada pelo processo urgente cautelar
e identica a desempenhada pelos processos urgentes autonomos. A diferenca reside taosomente
na tecnica concretizada na estrutura do processo. De facto, a diferenca existente
entre certos processos cautelares e outros processos urgentes nao e de funcao mas de
tecnica. Os processos urgentes autonomos nao estao condicionados pela acessoriedadeinstrumentalidade
e e por isso que desembocam em decisoes de fundo. Ja os processos
urgentes cautelares, concretizando a tecnica da acessoriedade-instrumentalidade, permitem, pois,
realizar a tutela judicial efectiva de todas as pretensoes-de-urgencia-atipicas, por referencia a uma
situacao litigiosa principal, sendo que a tutela judicial do direito material e apenas realizada
provisoriamente.
Neste sentido, importa perceber que o modelo dos processos urgentes previsto nos
titulos IV e V do CPTA integra processos que visam realizar o direito ao processo efectivo
e temporalmente justo e para o efeito concretizam esta tecnica. Alias, os processos urgentes
cautelares previstos no titulo V do CPTA concretizam a acessoriedade-instrumentalidade, sendo
que o laco de dependencia estrutural que liga o processo acessorio ao principal pode ser
mais forte ou mais tenue, dependendo da opcao de politica legislativa. Entre nos, o laco
existente entre o processo acessorio e o processo principal e muito mais forte do que
aquele que liga, por exemplo, o processo de refere ou o Eilverfahren (relativo a emissao da
einstweilige Rechtsschutz) aos respectivos processos principais. E esta caracteristica do
processo esta marcada no artigo 112.o, n.o 1, no artigo 113.o e no artigo 114.o CPTA. De
qualquer modo, esta instrumentalidade (ou áinstrumentalidade ao quadroâ), que combina
134
Temas e Problemas de Processo Administrativo
com a acessoriedade-instrumentalidade que caracteriza estruturalmente o processo cautelar, nao
caracteriza os processos urgentes abrangidos pelo titulo IV do CPTA (1.).
Enfim, avancando um pouco mais na caracterizacao da funcao dos processos
urgentes, cumpre tambem dizer que tais processos urgentes cautelares previstos no titulo V
do CPTA concretizam por regra a tecnica da provisoriedade qualitativa. E tal caracteristica
da interinidade da decisao-de-urgencia esta em sintonia com a sua funcao. Assim, a decisao
judicial que e proferida em processos que concretizam a acessoriedade-instrumentalidade tem
um conteudo preciso e produz efeitos apenas num periodo de tempo determinado. Assim,
a decisao-de-urgencia em causa nao e apenas provisoria porque realiza a tutela da pretensao
juridica de certo modo \ deixando aberta a questao litigiosa existente entre as partes. Ela e
tambem provisoria porque e temporaria e incapaz de adquirir autoridade de caso julgado.
Tal caracteristica da decisao proferida em processos urgentes acessorios esta marcada
designadamente no artigo 122.o, no artigo 123.o e no artigo 124.o CPTA. Cumpre, no
entanto, verificar que tais tecnicas de acessoriedade-instrumentalidade e de provisoriedade
qualitativa nao sao consagradas em duas modalidades do processo urgente cautelar. Com
efeito, por decisao do legislador, a acessoriedade-instrumentalidade e a provisoriedade nao sao
consideradas tecnicas adequadas para realizar as pretensoes-de-urgencia visadas nas modalidades
dos processos urgentes previstas no artigo 121.o e artigo 132.o, n.o 7 do CPTA (2.).
Finalmente, importa trazer a colacao a tecnica da antecipacao da tutela judicial. Ela
e normalmente empregue para tutelar a urgencia, sendo que ela e concretizada tanto em
processos urgentes cautelares como em outro tipo de processos. Na verdade, nos
processos urgentes cautelares a tecnica da antecipacao revela-se sobretudo numa
perspectiva qualitativa ou funcional, uma vez que, concretizando-se em simultaneo com a
concretizacao das tecnicas da acessoriedade-instrumentalidade e da provisoriedade, visa
assegurar a efectividade do processo principal (3.).
1.
E comum dizer-se que os processos cautelares visam assegurar a tutela jurisdicional
efectiva do direito material a realizar num outro processo principal, caracterizando-se,
assim, pela sua instrumentalidade perante este8. Ora, num primeiro momento, cumpre dizer
8 Sobre este tema, em geral, vd. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, áTutela cautelarâ, CJA, 34, 2002, pp.
45 ss; CARLA AMADO GOMES, áO regresso de Ulisses: um olhar sobre a reformada justica cautelar
administrativaâ, CJA, 39, 2003. pp. 3 ss.; TIAGO AMORIM, áApontamentos sobre as condicoes de
procedencia das providencias cautelares no novo processo administrativoâ, ROA, (ano 63) 2003, pp. 415 ss.;
MARIA FERNANDA MACAS, áAs formas de tutela urgente previstas no Codigo de Processo nos Tribunais
Administrativosâ, in: A reforma da justica administrativa, Coimbra, 2005, pp. 209 ss.; D. FREITAS DO
AMARAL, áAs providencias cautelares no novo contencioso administrativoâ, CJA, 43, 2004, pp. 4 ss.;
PAULO H. PEREIRA GOUVEIA, áAs realidades da nova tutela cautelar administrativaâ, CJA, 55, 2006, pp.
3 ss.; ANA GOUVEIA MARTINS, A tutela cautelar no contencioso administrativo. Em especial, nos procedimentos de
135
Temas e Problemas de Processo Administrativo
a este proposito que, quando falamos de instrumentalidade, queremos dizer duas coisas, a
saber: primo: que a expressao e aqui empregue para dizer que a tutela judicial que se
proporciona atraves do processo urgente acessorio visa garantir a efectividade da decisao
judicial que vier a ser proferida num outro processo principal (1.1.). E, secundo, que a
expressao acessoriedade-instrumentalidade decorre da dependencia estrutural do processo
perante outro processo (1.2.). So esta ultima dimensao do conceito de instrumentalidade
faz sentido a proposito das providencias antecipatorias (1.3.).
1.1.
Enfim, em primeiro lugar, a afirmacao da instrumentalidade do processo cautelar
surge tendo por pano de fundo a ideia de que todos os processos sao instrumentais perante
o direito material. E, neste sentido, o processo cautelar e caracterizado como duplamente
instrumental. Alias, remonta a escola italiana a corrente doutrinal que aponta a
instrumentalidade como a principal caracteristica do processo cautelar. E neste cenario que
o processo urgente cautelar e tido como duplamente instrumental, dizendo-se que padece
de instrumentalidade ao quadrado perante o direito material, uma vez que se revela
sobretudo instrumental perante outro processo e so depois e instrumental, ja num segundo
grau, perante o direito material, sendo que a sua funcao e precisamente assegurar a plena
utilidade da sentenca que vier a ser emitida nesse processo e nao realizar imediatamente a
tutela judicial do direito material. Alias, em relacao a este aspecto nao pode esquecer-se que
esta posicao da escola italiana assenta nos ensinamentos da escola germanica e na ideia de
que os processos cautelares nao sao senao meros instrumentos ao servico do processo de
execucao. De resto, o processo cautelar comecou por ser somente o processo de arresto e
comecou por ser um mecanismo de garantia do patrimonio do devedor, com vista a
execucao forcada da sentenca. E mesmo na actualidade, esta funcao garantistica da
execucao-efectividade da sentenca esta ainda presente. A sistematizacao da ZPO ainda
revela esta atitude, ao integrar os processos relativos a einstweilige Rechtsschutz no Livro VIII
da ZPO. Em suma, revelando-se em muitos momentos como incapaz de realizar o direito
material, o processo urgente cautelar surge como eminentemente instrumental perante
outro processo e e por isso mesmo que, tramitando sem autonomia, e acessorio e depende
do principal em muitos aspectos, sendo que a relacao de dependencia pode variar de
intensidade.
1.2.
formacao dos contratos, Coimbra, 2005, pp. 331 ss.; MIGUEL PRATA ROQUE, Reflexoes sobre a reforma da tutela
cautelar administrativa, Coimbra, 2005, pp. 31 ss.
136
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A instrumentalidade ao quadrado dos processos urgentes cautelares esta presente na clausula
aberta do art. 112.o, n.o 1 do CPTA ex vi do art. 2.o, n.o 1 do CPTA, sendo que ela traduz a
funcao servil das providencias nele decretadas para assegurar a efectividade do processo
principal \ e assim acontece fundamentalmente no que concerne as providencias
conservatorias. E a instrumentalidade funcional do processo urgente cautelar reflecte-se
fundamentalmente na acessoriedade estrutural do processo, ja que ha um ácordao
umbilicalâ que ata as duas vias processuais. De facto, a relacao de acessoriedadeinstrumentalidade
esta bem concretizada nas proprias disposicoes que regem a estrutura e a
tramitacao do processo urgente cautelar, uma vez que tais preceitos revelam que ha um
nexo ou um vinculo que liga as duas vias processuais, ainda que deixe espacos de relativa e
necessaria autonomia. O processo urgente cautelar e braco avancado do processo principal e,
por isso, o CPTA preve uma relacao de relativa autonomia e de relativa dependencia do
processo urgente cautelar perante o processo principal.
Reforcando a mesma ideia, cumpre sublinhar que essa relacao de relativa
autonomia e dependencia do processo cautelar perante o processo principal revela-se no
regime da legitimidade das partes, no criterio que determina a competencia do tribunal, na
vigencia da decisao e na duracao dos efeitos das providencias, bem como na origem da
extincao dos efeitos das mesmas, no momento em que o processo cautelar deve ser
instaurado e no modo como tramita. Assim, o processo cautelar tem tramitacao autonoma,
mas e apensado ao processo principal (113.o, n.o 2 e n.o 3); a legitimidade da parte no
processo cautelar afere-se pela legitimidade da parte no processo principal (art. 112.o, n.o 1
e art. 113.o, n.o 1); o tribunal competente para decidir a causa cautelar e o tribunal
competente para julgar o processo principal (art. 20.o, n.o 6 e art. 114.o, n.o 2); um conjunto
de causas de caducidade da providencia dizem respeito as vicissitudes do processo principal
(art. 122.o, n.o 2 e n.o 3 e art. 123.o); o processo cautelar pode ser instaurado tanto
previamente como juntamente com o processo principal, sendo que podem requerer-se
providencias cautelares durante a pendencia do proprio processo principal, quer em sede
de recurso jurisdicional quer em sede de execucao (art. 113.o, n.o1 e 114,o, n.o 1, a), b) e c).
Ou seja, quanto a regra temporal, ela e simples: a providencia pode ser pedida quando se
precisa dela e quanto a regra da necessidade do processo cautelar ela e tambem simples, a
saber: o processo urgente cautelar deve ser accionado quando, perante certa pretensao-deurgencia-
atipica ou periculum in mora, a efectividade de um processo principal esteja
(fundadamente) ameacada de perda.
1.3.
137
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Regressando a questao da instrumentalidade do processo cautelar, importa atentar
neste conceito, mormente quando pretendemos explica-lo no quadro das providencias
antecipatorias. E assim e porque o processo urgente cautelar tambem realiza a pretensao
juridica substantiva, ou seja tambem tem como finalidade realizar o direito material, sendo
que nestes casos a tal dupla instrumentalidade que normalmente se invoca como tipica do
processo cautelar e bem menor, e muito tenue, chegando a desaparecer em certos
momentos, pois a decisao cautelar que sera proferida nesse processo vai incidir
verdadeiramente sobre a situacao material controvertida.
Com efeito, um pouco a semelhanca do modelo cautelar alemao (previsto
sobretudo nos art. 19. 4 da GG e ˜˜ 80. e 123. VwGO, onde se preve a adopcao da
Sicherungsanordnung (que visa ámanter o status quoâ) e da Regelungsanordnung (que visa
áampliar o status quoâ)]9, a actual disciplina processual administrativa permite a decretacao
de providencias cautelares com natureza conservatoria e as providencias cautelares com
natureza antecipatoria. E estas cumprem no contencioso administrativo duas funcoes
diferentes: uma funcao asseguradora e uma funcao realizadora interina do direito \
identicas, respectivamente, a Sicherungsfunktion e a interimistische Befriedungsfunktion,
vulgarmente atribuidas aquelas ordens provisorias10. E neste contexto que se percebe que a
providencia cautelar antecipatoria, segundo a matriz latina, ou a decisao-de-urgencia-provisoriareguladora,
segundo a terminologia alema, realiza uma tutela de urgencia do direito material,
sendo que tal realizacao e apenas provisoria, manifestando-se, por exemplo, no processo
urgente cautelar quando a pretensao juridica acautelanda coincide na totalidade com a
pretensao juridica acautelada. Assim acontece designadamente no processo urgente cautelar
atraves do qual se solicita a condenacao da entidade administrativa num facere e tal conduta
(por exemplo, a entrega de uma coisa ou o pagamento de uma quantia) corresponde a
pretensao juridica que e deduzida na causa principal, ou quando atraves do processo
cautelar se obtem a providencia antecipatoria constitutiva de admissao, de autorizacao ou
nomeacao, sendo estes os efeitos a ver reconhecidos na accao principal. Nestes casos,
sendo muito tenue a relacao de instrumentalidade, e evidente que a concretizacao da
tecnica da acessoriedade-instrumentalidade depende de uma opcao de politica legislativa. E esta
conclusao decorre simplesmente quer da praxis nacional dos tribunais, quer do
conhecimento que se tem sobre o modo como no panorama legislativo frances se
9 Neste sentido, F. HUFEN, Verwaltungsprozesrecht Kommentar, 13. Auflage, Munchen, 2003, p. 566.
10 Por todos, e para uma sintese, vd. F. SCHOCH, áDer verwaltungsprozessuale vorlaufige
Rechtsschutz (Teil I), JURA (10), 2001, pp. 671 ss., esp. 673, (Teil II), JURA (2), 2002, (Teil III), JURA (5),
2002; S. DETTERBECK, Allgemeines Verwaltungsrecht mit Verwaltungsprozessrecht, 7. Auflage, 2009, Munchen,
pp. 595 ss., esp. 620 ss.
138
Temas e Problemas de Processo Administrativo
experiencia o refere-provision, quer no contexto do processo civil, quer no quadro do
contencioso administrativo, acontecendo o mesmo no panorama processual alemao.
Cumpre, pois, perceber que uma coisa e a acessoriedade e a dependencia estrutural
do processo outra e a instrumentalidade-funcional, em termos que a acessoriedade pode ser
prevista mesmo que a dupla instrumentalidade ou a tal instrumentalidade ao quadrado seja
muito fraca. Em suma, tres sao as ideias a apurar, a saber: primo: o processo cautelar que
desemboca na emissao de uma providencia antecipatoria e fundamentalmente instrumental
perante o direito material, ja que o realiza provisoriamente, e e instrumental perante o
direito material como sao de resto todas decisoes de urgencia proferidas nos processos
urgentes autonomos. Secundo: independentemente do maior ou menor grau de
instrumentalidade do processo cautelar perante outro processo, a tecnica da acessoriedade
ou dependencia estrutural do processo esta consagrada na lei, nao fazendo diferenca o tipo
de providencia decretada e o tipo de periculum in mora invocado. Tertio, o legislador pode
moldar a acessoriedade-instrumentalidade, dando maior ou menor independencia ao processo
acessorio perante o principal. Por exemplo, o legislador pode dispensar as partes de
accionarem o processo principal, ou pode sujeitar apenas uma das partes a tal encargo ou
pode fazer depender do juiz a determinacao do periodo de tempo de vigencia da
providencia. Por exemplo, no contexto da ZPO, a parte onerada com tal encargo e a parte
que sofre com o decretamento da providencia, sendo que e ela quem tem de solicitar ao
juiz que determine um prazo para que a parte que beneficia da providencia desencadeie o
processo principal. Portanto, a vigencia da decisao-de-urgencia proferida no processo acessorio
pode ser maior ou menor, podendo ate adquirir estabilidade, dependendo de opcao de
tecnica legislativa. Alias, no ordenamento juridico italiano, por exemplo, a legislador veio
precisamente introduzir significativas alteracoes no que concerne as providencias
antecipatorias, permitindo que as mesmas ganhem estabilidade e autonomia processual se o
processo principal nao for proposto no prazo legal ou judicial determinado. Esta alteracao
introduzida recentemente no c.p.c. italiano, ja ha muito tempo sugerida por PROTO
PISANI, e a confirmacao da ideia de que as providencias cautelares antecipatorias tem esta
capacidade para realizar o direito11.
Entre nos, estabelece-se fundamentalmente a regra da caducidade dos efeitos da
providencia em conexao com as vicissitudes do processo principal e as variacoes do direito
substantivo. O legislador pode igualmente fazer depender o decretamento da providencia
provisoria da previa propositura da accao principal ou, pelo contrario, pode simplesmente
11 Sobre este tema, vd. o prefacio de F. LAZZARO a G. IOFRIDA/A.SCARPA, I nuovi procedimenti
cautelari dopo la legge n.o 80 del 2005, il D.L. n.o 271 del 2005 e la Legge n.o 51 del 2006, Milano, 2006, p. VI a VIII.
139
Temas e Problemas de Processo Administrativo
exigir que o processo principal seja accionado posteriormente, durante um periodo
determinado, permitindo assim obter uma providencia ante causam. Alias, como veremos
com mais cuidado, a relacao de acessoriedade do processo cautelar perante o principal
determina o thema decidendum do processo cautelar e condiciona o tipo de cognicao a
efectuar sobre esse thema decidendum do processo acessorio, bem como restringe o
julgamento da quaestio facti e da quaestio iuris.
Finalmente, nao pode deixar de se reconhecer que a relacao funcional do processo
cautelar perante o processo principal varia de grau, sendo que, em certas situacoes, o
processo urgente cautelar ganha autonomia funcional, assumindo-se como qualquer outro
processo urgente, como realizador interino do direito material e das pretensoes juridicas
substantivas. Ora, nestes casos, tambem o laco que prende o processo acessorio ao
processo principal varia de intensidade, podendo ser totalmente dispensado. Afinal, a
tecnica da acessoriedade-instrumentalidade pode revelar-se como aspecto nao desejado, por
condicionar o tipo de tutela que nele se decreta. Nao e de estranhar, alias, que um dos
fenomenos do contencioso pos-moderno seja o da anulacao do caracter acessorio do
processo cautelar perante o processo principal, sendo que tal anulacao e imediatamente
contemplada na lei processual como legitima, sendo noutros casos remetida para o sujeitojurisdicional-
da-urgencia. Assim acontece entre nos, quer no processo civil, quer no processo
administrativo.
2.
Associada a acessoriedade-instrumentalidade anda a provisoriedade. Cumpre dizer, alias,
que a provisoriedade tem especial significado no contexto da tutela de urgencia, nao
obstante tambem poder ser concretizada noutro dominio de situacoes juridicas carentes de
tutela judicial e com vista a realizar outro tipo de valores. A provisoriedade chega a ser para
um sector da doutrina, sobretudo francesa e alema, a principal caracteristica dos processos
que sao concebidos para tutelar a urgencia. E, neste quadro, a provisoriedade diz-se
qualitativa. Tambem entre nos, a decisao de urgencia tem tal perfil quando e emitida no
ambito dos processos urgentes cautelares, revelando-se a decisao cautelar ser provisoria
quanto ao fim. Contudo, tambem aqui a provisoriedade da decisao do processo cautelar
continua a ser entendida em varios sentidos, tal como decorre dos preceitos do CPTA.
Como se indicou nas consideracoes introdutorias, a tecnica da provisoriedade esta
consagrada nos processos previstos no titulo V do CPTA. E assim, cumpre reconhecer que
este conceito se nos apresenta em dois sentidos. O primeiro, que associamos ao verdadeiro
sentido (ou sentido qualitativo) da provisoriedade, concerne ao conteudo da decisao de
140
Temas e Problemas de Processo Administrativo
urgencia proferida no ambito do processo de urgencia acessorio e ele relaciona-se com a
impossibilidade de, no processo cautelar, a questao juridica a decidir na causa principal ser
antecipadamente analisada e na impossibilidade de tal questao ser naquele processo
acessorio decidida de forma conclusiva. Uma vez que a decisao de urgencia que e proferida
no processo cautelar e fundamentalmente provisoria quanto ao fim, o termo qualitativo
decorre mais do perfil funcional da decisao provisoria do que propriamente da natureza
provisoria dos efeitos a produzir (2.1.). Alias, o segundo, que associamos ao sentido
quantitativo da provisoriedade, esse sim concerne a duracao limitada dos efeitos da decisao
cautelar no tempo e a sua incapacidade para produzir efeitos de caso julgado, quer no
proprio processo cautelar, quer perante a causa principal12 (2.2.).
2.1.
Apelando ao sentido qualitativo da provisoriedade, cumpre dizer que tal
caracteristica e tradicionalmente associada aos processos urgentes que tambem concretizam
a tecnica da acessoriedade-instrumentalidade. E, assim, falando de decisoes que sao proferidas
no seio de processos urgentes cautelares, a provisoriedade decorre do conteudo limitado
dessas decisoes e da impossibilidade de tais decisoes decidirem de forma definitiva a
pretensao juridica que e objecto da lide principal. E, assim, nao querendo descrever todo o
processo evolutivo do estudo desenvolvido pela ciencia do direito processual sobre esta
questao, que passou, por exemplo, por considerar a decisao de urgencia como minus e
depois como um aliud perante a causa principal, cumpre agora tao-somente relembrar que a
provisoriedade decorre do caracter instrumental do processo urgente cautelar perante a
efectividade de outro processo, em termos que o conteudo daquela decisao se encontra
condicionado pela funcao do processo em que e emitida e pelo conteudo da decisao
principal a acautelar. E, assim, hoje tem-se por certo que a provisoriedade da decisao de
urgencia cautelar (ou de urgencia em sentido restrito, tratando-se da decisao de refere ou da
einstweilige Rechtsschutz) significa fundamentalmente tres coisas, a saber: primo: que a
apreciacao da quaestio iuris da causa principal pode realizar-se no processo cautelar, sendo
que tal apreciacao, por referencia ao direito material a aplicar na causa principal, deve ser
sempre inconclusiva; secundo, que o julgamento da quaestio iuris pode acontecer na condicao
de o mesmo ficar em aberto, isto e, na condicao de tal questao vir a ser definitivamente
decidida pelo juiz da causa principal; e, tertio, que do julgamento antecipado nao resulte a
12 Neste sentido, como ja fizermos referencia, E. GARCIA DE ENTERRIA (áPrologoâ a ISABEL
CELESTE M. FONSECA, Introducaoc cit., esp. pp.12 e 13; tb. publ. in REDA, 115, 2002, pp. 393 ss.)
considera a provisoriedade, avaliada pela incapacidade de formar caso julgado, (juntamente com a
sumariedade) a principal caracteristica distintiva da tutela cautelar.
141
Temas e Problemas de Processo Administrativo
emissao de uma decisao-de-urgencia que crie um estado de direito e de facto impossivel de
reversao. De resto, reportando-nos sobretudo ao contexto da emissao de providencias
antecipatorias, a provisoriedade da apreciacao e do julgamento da quaestio iuris exige
sobretudo que o efeito de facto e de direito decorrente da regulacao ou composicao provisoria
seja passivel de reversao pela regulacao ou composicao definitiva que vier a ser realizada pelo
juiz da causa principal. Ora, esta caracteristica da decisao proferida no processo urgente
cautelar esta prevista no art. 112.o, n.o 1, no artigo 120.o, n.o 1, alinea b) e c) e esta
consagrada fundamentalmente no artigo 121.o a contrario do CPTA.
2.2.
No que respeita a provisoriedade dos efeitos da decisao proferida no seio do
processo urgente cautelar, cumpre dizer que esta caracteristica da decisao esta associada a
incapacidade de a mesma adquirir efeitos de caso julgado. E, assim, a provisoriedade da
decisao judicial manifesta-se na limitacao temporal da sua eficacia e na temporalidade dos
seus efeitos. Assim, limitada a sua eficacia no tempo, as providencias cautelares sao sempre
interinas (art. 122.o, n.o 3), uma vez que so subsistem ate caducarem, e sao temporarias (art.
122.o, n.o 2), pois, podendo a sua eficacia ser sujeita a termo ou condicao, as providencias
podem ser revogadas ou alteradas rebus sic stantibus pelo tribunal (oficiosamente) ou a
pedido das partes ou do Ministerio Publico (quando tenha sido este o requerente), na
especial situacao em que se configure uma alteracao de circunstancias inicialmente
existentes (art. 124.o). Ademais, preve-se na nova lei a possibilidade de decretacao
provisoria de uma medida cautelar (art. 131.o), em casos áde especial urgenciaâ ou quando
esteja em causa a tutela cautelar de direitos, liberdades e garantias. Esta providencia cautelar
interlocutoria (duplamente interina ou duplamente provisoria, que pode ser emita no prazo
de quarenta e oito horas e sem que o processo cautelar seja concluso), so subsistira ate ao
dia em que for emitida uma nova decisao de levantamento, manutencao ou alteracao da
decisao cautelar anterior.
Como se referenciou a tecnica da acessoriedade-instrumentalidade e a da provisoriedade
sao tecnicas ao servico da urgencia. E tais tecnicas estao fundamentalmente previstas nos
processos consagrados no titulo V do CPTA. Contudo, o legislador veio consagrar na lei
processual administrativa situacoes em que e possivel dispensar a tecnica de acessoriedadeinstrumenalidade
e a tecnica da provisoriedade, cabendo ao juiz avaliar, em cada caso, se os
pressupostos de que depende a anulacao de tais caracteres se verificam. E resulta fielmente
da leitura da lei processual administrativa que, nessas modalidades consagradas no titulo V
142
Temas e Problemas de Processo Administrativo
do CPTA, tais tecnicas nao sao necessarias para tutelar a situacao-de-urgencia que no caso
concreto e carente de tutela.
Nestas situacoes, o processo urgente cautelar transforma-se em processo de
urgencia autonomo. Com efeito, quer na modalidade do processo urgente consagrada no
artigo 121.o quer na modalidade consagrada no artigo 132.o, n.o 7 do CPTA, acontece tanto
a anulacao do nexo de acessoriedade-instrumentalidade como a anulacao do sentido qualitativo
de provisoriedade. Consequentemente, estando ambas as modalidades consagradas como
processos urgentes cautelares, tanto uma como outra se transformam em processos
urgentes autonomos, por um lado. E, por outro, pese embora deverem ambas as
modalidades desembocar, a partida, em decisoes provisorias sobre a quaestio iuris, ambas as
modalidades permitem, na verdade, a obtencao da resolucao definitiva da quaestio iuris da
causa principal. Nestes casos, ambos os processos urgentes cautelares se transformam em
processos urgentes autonomos, integrando ambos a mesma estirpe de tutela13.
3.
Do ponto de vista dogmatico, a tecnica da antecipacao esta trabalhada no contexto
dos estudos que versam sobre a tutela de urgencia cautelar. Este tecnica surge moldada
numa perspectiva funcional e em conexao com a tecnica da provisoriedade, em termos que
a antecipacao cautelar so e legitima se desembocar numa decisao-de-urgencia-provisoria. E mais.
No contencioso administrativo, a validade da antecipacao cautelar e tambem aferida a partir
de um conceito de identidade de conteudo entre a decisao antecipatoria e a decisao judicial
antecipada, em termos que aquele e resultado imediato dos poderes de pronuncia do sujeitojurisdicional-
de-urgencia, e a antecipacao legitima pressupoe que este poderes nao possam ser
mais amplos dos que aqueles de que e titular o sujeito-jurisdicional. E esta questao coloca-se
com acuidade no contexto dos poderes de pronuncia dos tribunais administrativos perante
o exercicio de poderes discricionarios do sujeito-administrativo. Numa primeira nota, e
premente acentuar que, por regra, os processos cautelares previstos no titulo V do CPTA
13 Assim, no contexto do contencioso pre-contratual, e nos termos do art. 132.o, n.o 7, pressupondo
que na causa principal, a questao juridica a tratar concerne a validade das disposicoes normativas constantes
dos documentos do concurso por os mesmos conterem especificacoes tecnicas, economicas ou financeiras
ilegais, o legislador permite que se dispense tanto a tecnica da acessoriedade-instrumentalidade como a da
provisoriedade de tal processo, uma vez que se permite que, no ambito do processo cautelar referente a
adopcao de providencias relativas a procedimentos de formacao de contratos, quando tenha sido requerida
uma providencia destinada a corrigir a ilegalidade daquelas especificacoes, o juiz possa realizar todo o
julgamento da questao juridica. E, assim, a lei permite que o juiz subsuma os factos as mesmas normas
juridicas ou ao mesmo direito material a aplicar a situacao juridica litigiosa que fundamenta a causa principal,
podendo decidir o fundo da causa. Nestes casos, percebe-se tambem que a pretensao-urgente alegada nesta
modalidade especial do processo urgente cautelar, sendo totalmente identica a que se pretenderia realizar no
processo principal, acaba por obter total satisfacao. Nao se afigura a existencia de nenhuma instrumentalidade
ao quadro, nem se visa assegurar a efectividade de nenhum outro processo. Pelo contrario, o que acontece e a
restauracao do direito material a aplicar, por actuacao processual independente.
143
Temas e Problemas de Processo Administrativo
permitem aos sujeitos-no-processo alcancar, atraves de uma decisao-judicial-de-urgencia, a realizacao
provisoria de pretensoes-juridicas desde que essa antecipacao seja adequada para salvaguardar a
efectividade de uma decisao jurisdicional a proferir em outro processo (no processo
principal). E esta caracteristica da decisao antecipatoria do processo cautelar esta marcada,
designadamente, no artigo 112.o, n.o 1 e n.o 2, no artigo 120.o, n.o 1, alinea c), no artigo
122.o e artigo 121.o (a contrario) e no artigo 3.o do CPTA.
Numa segunda nota, e importante realcar que os demais processos urgentes
previstos no titulo IV do CPTA permitem obter uma decisao judicial que realiza o direito
material de forma antecipada processualmente no tempo. Alias, o processo de intimacao
para tutela de direitos, liberdades e garantias traduz uma modalidade especial de
antecipacao, uma vez que concretiza nao so uma antecipacao declaratoria como permite
realizar uma antecipacao do momento executorio. Assim e ex vi do artigo 109.o, n.o 2 e n.o 3
do CPTA. Contudo, forcoso e tambem reconhecer que a tecnica da antecipacao
quantitativa ou antecipacao tout court substitui a tecnica da antecipacao qualitativa em certas
modalidades de processos urgentes cautelares, previstos no titulo V, modificando-os e
aproximando-os dos processos urgentes autonomos, previstos no titulo IV do CPTA. E,
mais uma vez, assim acontece nas modalidades dos processos urgentes cautelares previstas
nos artigos 121.o e 132.o, n.o 7 CPTA.
3.1.
A antecipacao cautelar decorre da necessidade de se obstar ao prejuizo de
retardamento da decisao judicial definitiva. Sem que exista no CPTA os limites de que
padece nomeadamente o refere conservatoire, o juiz cautelar portugues pode, nos termos do
art.o 112.o, n.o 2 CPTA, emitir todas as providencias cautelares conservatorias ou
antecipatorias que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade de uma sentenca. O juiz
cautelar so nao pode antecipar definitivamente a causa \ tal como nao pode o juiz cautelar
administrativo espanhol, nem o italiano, nem o alemao e nem o juge des referes14 \, nem pode
dar ao requerente mais, ou coisa diferente, do que a este e permitido alcancar pela
pronuncia de merito. No modelo cautelar portugues, sao, por um lado, as proprias
caracteristicas da tutela cautelar, ou seja a instrumentalidade perante a efectividade da tutela
principal e a provisoriedade da decisao cautelar, e, por outro, a identidade de conteudos
entre a decisao antecipatoria e a decisao judicial antecipada, o que limita os contornos da
14 A proposito do refere, vd. B. PACTEAU, Contentieux administratif, Paris, 6e edition, 2002, p. 305; R.
CHAPUS, Droit du contentieux administratif, Paris, 10e edition, 2002, pp. 1236 e 1237; C. DEBBASCH/J.-C.
RICCI, Contentieux administratif, Paris, 8e edition, 2001, p. 512.
144
Temas e Problemas de Processo Administrativo
antecipacao. Com efeito, e em funcao do proprio conteudo das sentencas principais, sendo
que este decorre dos poderes de pronuncia dos tribunais administrativos perante a
Administracao, que surgem os limites do conteudo da decisao antecipatoria, sendo que esta
e delimitada tambem pela instrumentalidade e pela provisoriedade.
3.1.1.
Cumpre, em primeiro lugar, distinguir uma providencia cautelar conservatoria de
uma antecipatoria. Seguimos o metodo calamandreiano15: Assim, e segundo esta metodologia,
enquanto que a conservatoria serve para anular ou minimizar o risco de ser posteriormente
impossivel proceder a execucao de sentenca favoravel \ por entretanto se ter alterado o
status quo ante (áo estado em que estava a coisaâ) \, a antecipatoria serve para anular ou
minimizar os prejuizos que decorrem por si so do retardamento da sentenca e do facto de
nao ser possivel proporcionar, no imediato, a satisfacao da pretensao juridica substantiva
que esta a cargo do sujeito-jurisdicional. Dizendo o mesmo por outras palavras, enquanto a
providencia conservatoria produz um efeito hermetico de modo a manter o status quo \ áo
estado em que se encontra a coisaâ, a antecipatoria actua por via da ampliacao provisoria de
uma situacao juridica existente, proporcionando a aceleracao e a realizacao antecipada do
direito material para a situacao litigiosa controvertida.
E neste contexto que surgem os condicionamentos impostos pela provisoriedade.
Apontamos ha pouco que o termo áprovisoriedade qualitativaâ significa fundamentalmente
tres coisas, a saber: primo: que a apreciacao da quaestio iuris da causa principal pode realizarse
no processo cautelar, sendo que tal apreciacao, por referencia ao direito material a
aplicar na causa principal, deve ser sempre inconclusiva; secundo, que o julgamento da
quaestio iuris pode acontecer na condicao de o mesmo ficar em aberto, isto e, na condicao
de tal questao litigiosa existente entre as partes poder vir a ser definitivamente decidida pelo
juiz da causa principal; e tertio, que do julgamento antecipado nao resulte a emissao de uma
decisao-de-urgencia que crie um estado de direito impossivel de reversao. De resto,
reportando-nos, sobretudo, ao contexto da emissao de providencias antecipatorias, a
provisoriedade da apreciacao e do julgamento da quaestio iuris exige fundamentalmente que
o efeito de direito decorrente da regulacao ou composicao provisoria seja passivel de reversao pela
regulacao ou composicao definitiva, que vier a ser realizada pelo juiz da causa principal. Ora, a
providencia antecipatoria deve apresentar o caracter de provisoriedade. Assim, exige-se que
15 P. CALAMANDREI (Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, Padova, 1936, pp. 56
ss.) distinguia dois tipos de periculum in mora: o ápericolo di infruttuositaâ e o ápericolo di tardivitaâ do
processo principal, fazendo corresponder a cada um deles as diferentes providencias cautelares conservatorias
e antecipatorias.
145
Temas e Problemas de Processo Administrativo
o exame do direito material a aplicar a causa principal seja um exame sumario (id est: nao
conclusivo) e que o julgamento da quaestio iuris seja provisoria (id est: que o julgamento nao
consuma ou nao esgote a questao juridica a decidir), exigindo-se tambem que o estado de
direito e de facto seja passivel de reversao pela sentenca que vier a ser proferida na causa
principal. De resto, a provisoriedade nao e anulada se existir analise do direito material que
rege o merito da causa, nem se a decisao-de-urgencia vier satisfazer provisoriamente a
pretensao juridica substantiva. Ela so deixa de ser provisoria se criar um estado de direito
que seja impossivel de reversao ou se produzir efeitos de direito que sejam irreversiveis ou
impossiveis de eliminar a posteriori pelo juiz da causa principal. Com efeito, a proibicao da
antecipacao da solucao para a causa principal, uma regra qui interdit au juge de prejudicier au
principal, segundo a terminologia francesa, ou formulado na dogmatica alema como áVerbot
der Vorwegnahme der Hauptsacheentscheidungâ), constituiu um dos dois principios
correctivos do poder geral de cautela, necessario para estremar a provisoriedade da medida,
tanto no que concerne a perspectiva da cognicao e do julgamento como no que diz respeito
a provisoriedade do conteudo e dos efeitos a produzir. Assim, em principio, se nao pode
nem deve ser decretada a providencia antecipatoria que decida definitivamente o merito da
causa principal e que retire a utilidade a prolacao da sentenca principal, por maioria de
razao nao devem ser antecipados efeitos que nao podem ser confirmados pela sentenca de
merito.
Por exemplo, faltara a provisoriedade a providencia que autorize a realizacao de um
evento nao duradouro, marcado para certo dia, no caso de esta pretensao constituir o
objecto da causa principal e esta ficar assim anulada de utilidade se vier a ser decidido
depois de decorrido a data determinada. E, de igual modo, a providencia que suspenda a
decisao administrativa que requisita servicos minimos, no quadro de uma greve geral
prevista para uma data muito proxima, e igualmente destituida de provisoriedade, uma vez
que consome a questao juridica e retira o objecto a causa principal, por ser impossivel (e
inutil) decidir posteriormente sobre a mesma quaestio iuris. E de igual modo, padece de
provisoriedade a decisao que antecipe efeitos que nao podem imputar-se a sentenca
antecipada.
Cumpre dizer, no entanto, que nao somos adeptos da posicao daqueles que
defendem que a provisoriedade fica logo posta em causa quando a decisao-de-urgenciaprovisoria
cria efeitos de facto definitivos, isto e, efeitos de facto de impossivel ou dificil
reversao. E isto por duas razoes. Primeiro, porque a producao de tal tipo de efeitos de
facto acontece sempre e na realidade para o periodo de tempo que medeia ate a chegada da
146
Temas e Problemas de Processo Administrativo
sentenca final esses efeitos sao sempre definitivos, ja que o tempo nao volta para tras e
cada momento e novo, e depois porque a definitividade de facto, tantas vezes temida como
efeito decorrente do decretamento provisorio, tambem pode decorrer de uma improvidencia
cautelar, isto e, do indeferimento da providencia cautelar antecipatoria. Afinal, por causa do
factor tempo, ha sempre um espaco de tempo, aquele que abrange o periodo de tempo que
vai desde a proprositura da accao ate a emissao da regulacao definitiva da causa, em relacao
ao qual havera sempre a producao de efeitos de facto contra um dos sujeitos-no-processo, que
podem ate ser insusceptiveis de reversao, dando lugar ao chamado estado de facto
consumado.
Coisa diferente, em que ha verdadeira anulacao da provisoriedade, e aquela que diz
respeito a definitividade da quaestio iuris. Com efeito, ha situacoes em relacao as quais a
decisao-de-urgencia-antecipatoria pode traduzir a formacao de um estado de facto e de direito,
em termos que se torna impossivel reverter o estatuido (a titulo provisorio). E essas
situacoes abrangem sobretudo pretensoes juridicas que so tem existencia numa dimensao
do tempo presente e que so podem ser realizadas judicialmente num periodo de tempo
determinado, sendo que a realizacao judicial de tais pretensoes so pode acontecer numa
unica dimensao do tempo em que tem existencia, numa data, dentro de um prazo, ate que
aconteca certo evento, uma vez que qualquer proteccao judicial que seja oferecida depois,
noutra dimensao do tempo, nao faz sentido, porque, entretanto, as mesmas pretensoes
juridicas desapareceram. Assim, nao sendo tuteladas no presente, nao faz sentido que seja
proporcionada a tutela judicial depois de decorrido o periodo de campanha eleitoral, depois
de ter sido concluido o ano escolar, depois de ter decorrido o dia da manifestacao, a data
da reuniao ou o dia da greve ou depois de ter definhado a pessoa sem ajuda social ou
depois de o estrangeiro a residir ilegalmente no territorio nacional ter sido expulso do pais.
Assim, ha pretensoes juridicas que devam ser realizadas num periodo de tempo
curto (incluindo prazos e datas fixas), como por exemplo uma questao relativa a uma
eleicao, a uma campanha eleitoral, ao exercicio de um direito num certo dia ou numa data
proxima, como exames escolares ou o inicio do ano lectivo. E tais pretensoes juridicas so
podem ser tuteladas atraves da antecipacao de uma decisao-de-urgencia. E se a antecipacao
acontecer no quadro dos processos urgentes cautelares, cumpre perceber que tal
antecipacao pode deixar de ser provisoria. E o que significa isto? Significa que o juiz pode
ser obrigado a criar um estado de direito e de facto irreversivel para garantir a plena e a
147
Temas e Problemas de Processo Administrativo
efectiva realizacao da tutela judicial da pretensao juridica substantiva16. Este e, portanto, o
tipo de situacoes que conduzem a verdadeira situacao de anulacao da provisoriedade17.
De qualquer modo, o desejavel e que existam processos urgentes adequados para o
efeito ou que a antecipacao aconteca no quadro do processo urgente atipico previsto no
artigo 121.o do CPTA18. Como sabemos, nos sistemas em que nao ha tal mecanismo, tem
vindo a aceitar-se que o processo cautelar desemboque numa decisao do genero. Alias, na
falta de um mecanismo do genero, a doutrina e a jurisprudencia alemas tem vindo a admitir
excepcionalmente que tal antecipacao aconteca no contexto da einstweilige Rechsschutz, por
aplicacao directa do art. 19. 4 da GG19. E assim, no ambito do processo das medidas
provisorias (˜ 123 VwGO, relativo a einstweilige Anordnung), os tribunais administrativos tem
procedido a antecipacao da decisao de fundo quando o consideram absolutamente
necessario para assegurar a efectividade na proteccao jurisdicional de certa pretensao
juridica, por entenderem que sem essa antecipacao se poderia anular o principio da tutela
jurisdicional efectiv, sendo certo que, quanto ao requisito da aparencia do direito, os
tribunais administrativos exigem a demonstracao de um grau serio de probabilidade quanto
ao sucesso da causa principal (áein hoher Grad an Wahrscheinlichkeit fur einen Erfolg in
der Hauptsacheâ)20.
3.2.
Ha ainda a antecipacao prevista nas modalidades dos processos cautelares previstas
nos artigo 121.o e 132.o, n.o 7 CPTA. Neste ultimo preceito esta consagrada a possibilidade
de ser proferido de imediato o julgamento da questao de fundo. No que respeita a primeira
situacao, cumpre dizer que a possibilidade de ser proferida a decisao de merito resulta da
iniciativa do proprio tribunal, por este entender que, a luz de todos os elementos de que
dispoe e verificando-se os pressupostos previstos na lei, estao preenchidos os requisitos
16 A este proposito, vd. M. AROSO DE ALMEIDA, áO objecto do processo no novo contencioso
administrativo, CJA, 36, 2002, pp. 10 e 11.
17 Neste sentido, cumpre dizer que concordamos e aderimos ao pensamento de F. SCHOCH, áDer
verwaltungsprozessuale vorlaufige Rechtsschutz (Teil III)c cit., p. 326.
18 Neste sentido, e para a configuracao de um exemplo, vd. M. AROSO DE ALMEIDA, áBreve
introducao a reforma do contencioso administrativoâ, CJA, 2002, 32, p. 8.
19 A doutrina tem vindo a sistematizar, com base em varios criterios, o conjunto de situacoes que
podem especialmente beneficiar desta tutela definitiva urgente. A este proposito, vd., para maiores
desenvolvimentos, K. FINKELNBURG/K. P. JANK, Vorlaufiger Rechtsschutz im Verwaltungsstreitverfahren, 4.
Auflage, Munchen, 1998, ns.ms. 202 ss., pp. 95 ss e ns. ms. 225, pp. 109 ss.; F. SCHOCH em anotacao ao ˜
123 VwGO in: F. SCHOCH/E. SCHMIDT-AƒÀMANN/R. PIETZNER, Verwaltungsgerichtsordnung,
Kommentar, Band II, Munchen, 2002, n.m. 148, pp. 67 e 68 e n.m. 155, p. 71.
20 Neste sentido, F.O. KOPP/W.-R. SCHENKE, Verwaltungsgerichtsordnung. Kommentar, 13. Auflage, Munchen,
2003, esp. n.m. 14, p. 1447, mas tb., para maiores desenvolvimentos, ns.ms. 14a, 14b e 14c, pp. 1448 ss. Vd.
tb. S. GONZALEZ-VARAS IBANEZ, La jurisdiccion contencioso-administrativa en Alemania, Madrid, 1993, cit.,
pp. 290 ss.; esp. 292 a 293.
148
Temas e Problemas de Processo Administrativo
que lhe permitem avancar para a prolacao da decisao de fundo. Assim, quanto a estes
pressupostos, eles sao dois, a saber: o primeiro, prende-se com a manifesta urgencia na
resolucao do caso e o segundo com o exercicio do contraditorio. O primeiro pressuposto
atende a duas razoes e considera-se preenchido se duas situacoes se verificarem. E assim,
atende a razao de a situacao carente de tutela judicial nao se compadecer com a adopcao de
uma simples providencia cautelar (que seja provisoria) e justifica-se por a instrucao e a
producao de prova se considerarem suficientemente esgotadas para o efeito. O segundo, de
natureza eminentemente processual, prende-se com a realizacao do contraditorio sobre a
possibilidade da antecipacao da decisao de merito.
Ora, voltando ao primeiro pressuposto, cumpre dizer que ele atende a duas razoes
e considera-se preenchido se duas situacoes se verificarem. E assim, cumpre notar que,
quanto a primeira situacao, referente ao primeiro pressuposto, ela resulta da analise dos
seguintes parametros: da necessaria resolucao definitiva da quaestio iuris e da necessidade da
realizacao da pretensao juridica substantiva, sendo que esta depende da ánatureza das
questoesâ e áda gravidade dos interesses envolvidosâ. No que concerne a interpretacao do
primeiro conceito indeterminado, julgamos que deve atender-se, por um lado, a
simplicidade da questao de facto e de direito a tratar, e, por outro, a natureza da questao
que suscita a composicao, rectius, o tipo de pretensoes juridicas que suscitam a proteccao
judicial. Havera, de facto, situacoes em que as pretensoes-juridicas-urgentes que constituem o
objecto do processo cautelar e que reivindicam uma proteccao judicial imediata coincidem
com as que integram o objecto da causa principal. E, nestas situacoes, devendo o juiz
pronunciar-se sobre tais pretensoes-juridicas, nada mais restara para apreciar no processo
principal. No que concerne a interpretacao do segundo tipo de conceitos indeterminados, a
proposito áda gravidade dos interesses envolvidosâ, julgamos que se deve atender, por um
lado, a intensidade do dano ou da lesao a que os interesses publicos e privados em presenca
ficam expostos com a nao antecipacao da decisao para a causa principal, por a tutela desses
interesses nao se compadecer com uma simples providencia cautelar, e, por outro lado,
numa logica de reparticao de riscos, deve atender-se a seriedade, ou ao grande significado e
ao valor dos interesses em presenca, em termos que o tribunal deve ponderar se o dano
que eventualmente decorrera para o interesse publico da decisao de antecipacao da causa e
superior ao danos que resultara da nao antecipacao. A natureza dificilmente reparavel dos
bens e valores subjacentes aos interesses envolvidos e um factor importante a ter em conta
na consideracao daquilo que e a urgencia (que tem de ser ostensiva) na resolucao definitiva
da questao de facto e de direito que fundamenta o processo sumario. O tribunal devera
149
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ouvir as partes pelo prazo de dez dias sobre a decisao de antecipar a causa, sendo esta
passivel de impugnacao nos termos gerais. De qualquer modo, quis o legislador que este
modus procedendi tenda para a emissao de uma decisao de fundo, prevendo, pois, a priori, a
anulacao do nexo de acessoriedade-instrumentalidade do processo cautelar perante o
processo principal, substituindo a tecnica da antecipacao qualitativa ou cautelar pela tecnica
da antecipacao tout court.
III. Terceira explicitacao
Como apontamos nas consideracoes anteriores, a lei processual administrativa
integra um conjunto de processos que seguem a mesma forma processual, desempenham
uma mesma funcao e sao estruturalmente concebidos em termos simplificados e
abreviados. E, com efeito, no contexto dessa funcao, tais processos concretizam
normalmente diferentes tecnicas processuais. A tecnica da sumariedade procedimental e a
tecnica da sumariedade da cognicao vem acrescer as tecnicas de acessoriedadeinstrumentalidade,
provisoriedade e antecipacao, sendo que, ao contrario de todas as
outras, a tecnica da sumariedade procedimental e obrigatoriamente concretizada em todos
os processos de urgencia.
Com tivemos ocasiao de estudar, o processo pode definir-se como sumario quando
se desenvolve segundo formas e termos simplificados e abreviados por contraste com os
previstos para os processos ordinarios ou comuns, quer esta simplificacao resulte directa e
imediatamente da lei, quer decorra da actuacao do sujeito-jurisdicional-da-urgencia na
determinacao estrutural do processo, de acordo com os parametros delineados, a priori, de
forma mais ou menos precisa, pelo sujeito-legislativo. E como tivemos ocasiao de apurar
tambem, o processo pode dizer-se sumario de cognicao sumaria quando, para alem de possuir
especificidades de matriz procedimental, possuir especificidades que atingem o seu
momento instrutorio (1.).
Enfim, cumpre, pois, verificar que a lei processual administrativa consagra um
modelo de processos especiais, simplificados e abreviados, que foram especialmente
desenhados para realizar o direito ao processo efectivo e temporalmente justo, sendo que
tal modelo tem a sua disciplina prevista tanto no titulo IV como no titulo V do CPTA. E,
depois, cumprira perceber que os processos especiais previstos no titulo IV e no titulo V
do CPTA nao sao somente processos especiais de tramite urgente e processos sumarios
quanto ao modus procedendi. Para alem dos instrumentos de aceleracao e do tratamento
prioritario e, fundamentalmente, para alem de a sua configuracao pontual pressupor
150
Temas e Problemas de Processo Administrativo
simplificacao e abreviacao estruturais, apraz verificar que alguns deles concretizam
instrumentos da tecnica da cognicao sumaria, sendo que tais processos sumarios de cognicao
sumaria sao acolhidos tanto no titulo IV como no titulo V do CPTA. Na realidade, Parte-se
da analise dos contornos do modelo instrutorio ordinario ou modelo ordinario de plena
cognitio e verifica-se que esse regime-regra (que disciplina o modelo de plena cognitio e que e
sobretudo moldado segundo as normas e os principios de matriz civilista) sofre desvios e
verdadeiras excepcoes quando adoptado nos processos de cognicao sumaria (2.).
Se e um facto que todos os processos urgentes sao processos sumarios e se e um
facto que alguns deles sao tambem processos sumarios de cognicao sumaria, ja que em
alguns deles se pressupoe uma reducao da cognicao do thema decidendum, atingindo logo, a
montante, a producao de prova, so nos processos cautelares e possivel decidir tendo
subjacente um juizo sumario (3.).
1.
Quanto as modalidades de concretizacao da simplificacao e abreviacao por
determinacao legal, cumpre verificar o modus procedendi dos processos previstos no titulo IV
(1.1.), para se perceber como as modalidades de simplificacao sao exactamente iguais as
previstas nos processos cautelares (1.2.).
1.1.
Comecemos pelo contencioso eleitoral e pelo processo pre-contratual. Eles
caracterizam-se da seguinte forma. Integram um numero reduzido de articulados, um
numero reduzido de fases do processo e preveem o encurtamento de prazos, quer para a
propositura da accao quer para a pratica dos actos processuais. Assim, e sem prejuizo da
aplicacao do regime previsto para a AAE, especialmente do disposto na seccao I do
capitulo II do titulo III, o processo pre-contratual deve ser accionado no prazo de um mes
(e nao de quinze dias, como era estabelecido no sistema anterior), a contar da notificacao
dos interessados ou, nao havendo lugar a notificacao, da data do conhecimento do acto. E
o encurtamento dos prazos decorre tambem do facto de se prever que o prazo para
apresentacao de contestacao e alegacoes (quando estas tenham lugar) e de vinte dias,
correndo em simultaneo para a entidade demandada e para contra-interessados, sendo de
dez dias o prazo para a prolacao de decisao do juiz ou do relator (ou para este submeter a
julgamento) e sendo reduzido o prazo para cinco dias nos restantes casos. E integra ainda
um modus procedendi com abreviacao de fases, sendo que a possibilidade de abreviacao das
fases do processo surge delegada na figura do juiz. Assim, quanto a primeira possibilidade,
ela decorre do facto de neste processo so haver lugar a alegacoes, se nao for requerida ou
151
Temas e Problemas de Processo Administrativo
produzida prova com a contestacao, sendo que deve ter-se em conta que, o facto de a
entidade demandada estar obrigada a remeter ao tribunal o processo administrativo (nos
termos do art. 84.o ex vi do art. 102.o, n.o 1), tal nao pode ser entendido no sentido de
producao de prova, pelo que, neste caso, nao devem ser apresentadas alegacoes finais se a
entidade demandada apenas juntar o processo e documentos a que o demandante pudesse
ter tido acesso. Depois, quanto a segunda, muito mais significativa, ela resulta do facto de o
legislador permitir que, por iniciativa das partes ou por iniciativa do tribunal, e, tendo por
razao o mais rapido esclarecimento da questao, seja realizada uma audiencia publica, onde
deve ser possivel produzir prova (designadamente testemunhal e pericial) e onde se
procede a discussao da materia de facto, bem como a discussao da materia de direito, sendo
assim, possivel apresentar de forma oral as alegacoes finais. No final da audiencia e suposto
ser ditada a sentenca.
O processo de intimacao para prestacao de informacoes, consulta de processos ou
passagem de certidoes, previsto no art. 104.o e seguintes, concretiza fundamentalmente o
primeiro tipo de modalidades de simplificacao e abreviacao. E assim, concretiza a tecnica
da determinacao (legal) simplificada (muito simplificada, alias) e abreviada (ou mesmo
acelerada) do modus procedendi, uma vez que integra um numero reduzido de articulados,
resumindo-se a peticao e contestacao, um numero reduzido de fases do processo e preve o
encurtamento de prazos, quer para a propositura da accao quer para a pratica dos actos
processuais. Assim, no que respeita aos pressupostos, estando muito proximo do processo
dirigido a imposicao de deveres a Administracao, quer por esta ter permanecido omissa,
quer por ter respondido parcialmente a pretensao do interessado (nos termos do art. 67.o),
o processo relativo a intimacao para obtencao de informacao deve ser requerida ao tribunal
competente no prazo de vinte dias (art. 105.o) (e nao ja no prazo de um mes, como era no
regime anterior), a contar do decurso do prazo legalmente estabelecido, sem que a entidade
requerida satisfaca o pedido que lhe foi dirigido, ou a contar do indeferimento do pedido
ou a contar da satisfacao parcial do pedido (nos termos do art. 105.o). E, no que respeita ao
modus procedendi, tambem proxima da accao administrativa comum quando esta visa a
condenacao da Administracao na adopcao de simples actuacoes ou actos que nao sejam
verdadeiramente administrativos, o processo de intimacao para prestacao de informacoes
traduz, como menciona AROSO DE ALMEIDA, uma áespecie de accao administrativa
comum urgenteâ21 e, por isso, este processo concretiza-se de forma simplificada, sendo a
abreviacao visivel no encurtamento de prazos para apresentacao de resposta e nas fases
21 Vd. M. AROSO DE ALMEIDA, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4.a ed.,
Coimbra, 2005, p. 282.
152
Temas e Problemas de Processo Administrativo
seguintes do processo. Esta deve ser apresentada em dez dias (art. 107.o). Segue-se a
decisao do juiz, ate porque as questoes apresentam-se normalmente pouco complexas e
nao ha vulgarmente lugar a outras diligencias. So assim nao sera se o juiz decidir proceder a
diligencias complementares.
O processo de intimacao para proteccao de direitos, liberdades e garantias e de
todos os processos urgentes principais o que concretiza com mais intensidade as duas
modalidades de simplificacao e abreviacao. E, de facto, um verdadeiro processo sumario,
cuja natureza simplificada e abreviada tem na urgencia a sua razao de ser. E assim, tal
processo concretiza a tecnica da determinacao (legal) simplificada e abreviada (ou
acelerada) do modus procedendi, uma vez que integra um numero reduzido de articulados, um
numero reduzido de fases do processo e preve o encurtamento de prazos para a pratica dos
actos processuais. E integra ainda a possibilidade de a abreviacao das fases do processo
acontecer atraves da condensacao em audiencia oral, sendo que a elasticidade, de que o
legislador quis dotar este processo, e doseada pelo juiz, cumprindo-lhe adaptar o modus
procedendi do processo a complexidade das questoes e a situacao de urgencia invocada.
Assim, em primeiro lugar, cumpre notar que, quanto ao modus procedendi do processo
de intimacao para tutela de direitos, liberdades e garantias, o legislador veio prever tres ritos
distintos, tendo em conta o caracter mais ou menos simples e mais ou menos abreviado do
procedimento. E, isto porque, no mais simples e mais abreviado, os prazos sao ainda mais
curtos e as fases em menor numero. Vejamos, contudo, em primeiro lugar, o modelo
menos simples e menos abreviado do modus procedendi do processo para tutela de direitos,
liberdades e garantias, que se aplica quando a complexidade da materia o justifique,
designadamente pela eventual necessidade de fazer intervir no processo contrainteressados.
Neste caso, menciona o art. 110.o, n.o 3, que o processo segue a tramitacao
estabelecida para a accao administrativa especial, no capitulo III do titulo III, sendo, nesse
caso, os prazos reduzidos a metade. Ja num outro modelo mais simples e mais abreviado
do que este, que se pode dizer modus procedendi normal ou comum do processo para
intimacao para proteccao de direitos, liberdades e garantias, que esta consagrado no art.
109.o e 110.o, o processo pressupoe uma tramitacao que comeca com a apresentacao do
requerimento inicial, em duplicado, e a remessa do duplicado a entidade demandada para
contestar no prazo de sete dias. Se a complexidade da materia nao justificar a adopcao da
tramitacao mais lenta e cuidada supra indicada, o juiz pode ordenar as diligencias que se
mostrem adequadas, devendo decidir no prazo de cinco dias. E, enfim, ha o modelo mais
simples e mais abreviado do modus procedendi do processo para tutela de direitos, liberdades e
153
Temas e Problemas de Processo Administrativo
garantias, sendo que pressupoe dois pressupostos: a especial urgencia e a simplicidade das
questoes de facto e de direito. Assim, este processo sumarissimo para tutela de direitos,
liberdades e garantias e oficiosamente seguido quando a peticao permita reconhecer a
possibilidade de lesao iminente e irreversivel do direito, ou da garantia ou liberdade
ameacados. E, uma vez que a estrutura do processo nao esta determinada legalmente,
cumpre ao juiz, em alternativa, seguir um de dois caminhos tracados na lei. Assim, por um
lado, o legislador permite-lhe seguir em parte os tramites previstos para o modus procedendi
normal deste processo, devendo ainda assim reduzir o prazo fixado no n.o 1 do artigo
110.o. Ora, o encurtamento do prazo para a entidade demandada apresentar resposta, deixa
de ser de sete dias para passar a ser um diferente, aquele que o juiz entenda adequado a
urgencia da ameaca a um dos direitos fundamentais alegados. Por outro lado, e em
alternativa, o legislador autoriza o juiz a intensificar mais ainda a simplificacao e a
abreviacao do modus procedendi normal, permitindo-lhe optar pela realizacao, no prazo de
quarenta e oito horas, de uma audiencia oral, no termo da qual decidira de imediato, sendo
que a audicao oral pode acontecer por qualquer meio de comunicacao que se mostre
adequado. Ora, percebe-se que, neste caso, o juiz escolhe a via e a estrutura do processo a
seguir e determina a forma a observar. Por exemplo, o juiz pode em vez de ouvir o
requerido em audiencia proceder a sua audicao por qualquer meio de comunicacao que se
revele adequado, incluindo o telefone, por exemplo, ou o proprio correio electronico (art.
111.o, n.o 1 e n.o 2)22.
1.2.
Tambem o processo cautelar comum e um processo sumario. E assim e porque o
CPTA preve um processo mais simplificado ainda do que aquele que estudamos ha pouco.
Alias, o processo cautelar e ainda mais flexivel, podendo o seu modus procedendi desdobrar-se
em diversas configuracoes comuns, para alem das configuracoes especiais de matriz
administrativa ou de natureza civil. Como se apontou o processo cautelar comum, que
desemboca na emissao de uma providencia cautelar nao especificada, apresenta tres
dimensoes ou tres configuracoes, a saber: uma configuracao regra, a do processo cautelar
comum-regra, cuja disciplina esta disposta nos artigos 112.o e seguintes, e duas
configuracoes comuns especiais, uma que esta prevista no artigo 131.o e e apta para
desembocar no decretamento provisorio de qualquer providencia cautelar nao especificada,
e outra que esta configurada no artigo 121.o e e apta para desembocar na antecipacao do
juizo de fundo de qualquer processo principal, sendo que estas duas ultimas variacoes
22 Sobre este tema, vd. M. AROSO DE ALMEIDA, O novo regimec cit., pp. 287 e 288.
154
Temas e Problemas de Processo Administrativo
podem combinar-se com todos os processos principais, com excepcao do processo de
intimacao para proteccao de direitos, liberdades e garantias.
Ora, a disciplina que versa sobre o processo cautelar comum, preve sempre, e
independentemente de qual seja a sua configuracao especial, um modus procedendi muito
simplificado, quando comparado com o do processo que tem por objecto pretensoes
emergentes da pratica ou omissao ilegal de actos administrativos e normas, sendo que esta
simplificacao decorre imediatamente por determinacao legal. E esta traduz-se
fundamentalmente no numero reduzido de articulados, que inclui apenas a peticao inicial e
a contestacao, no numero reduzido de fases do processo e no encurtamento de prazos para
a pratica dos actos processuais. A sumariedade do processo cautelar-comum acentua-se na
modalidade consagrada no artigo 131.o do CPTA.
E, depois, traduz-se igualmente nas particularidades de abreviacao que decorrem do
exercicio do poder que a lei entrega ao juiz para concretizar no caso concreto a estrutura do
processo. A concretizacao da estrutura e a escolha das formas procedimentais e
fundamentalmente entregue ao juiz em processos cautelares especiais, maxime, no processo
cautelar de suspensao da eficacia do acto e no processo cautelar comum que e apto para
proceder ao decretamento provisorio de qualquer providencia cautelar. Alias, nesta
modalidade do processo cautelar, a simplificacao mais significativa resulta, sem duvida
alguma, do exercicio dos poderes conformadores do juiz cautelar (1.2.1.).
1.2.1.
Vejamos, em primeiro lugar, a configuracao do processo cautelar comum-regra, cuja
configuracao esta prevista nos artigos 112.o e seguintes. Ele inicia-se com o requerimento
inicial, que e acompanhado de prova sumaria da existencia dos fundamentos do pedido, e
prova sumaria significa toda a prova documental pertinente. Segue-se o despacho liminar
de admissao ou rejeicao do requerimento, com possibilidade de correccao do requerimento
inicial (nos termos do artigo 116.o). A citacao da entidade requerida e dos contrainteressados
(se os houver) para deduzirem oposicao acontece em simultaneo, devendo
esta acontecer no prazo de dez dias, sendo que nas suas contestacoes, a entidade requerida
e os contra-interessados podem \ rectius, devem \ apresentar meios de prova ou solicitar a
producao de provas. Segue-se a realizacao de diligencias de prova, que sao ordenadas pelo
juiz, quando consideradas necessarias e a producao de prova requerida, designadamente
testemunhal. E, finalmente, e proferida a providencia cautelar.
Contudo o modus procedendi do processo cautelar comum sofre ainda mais
simplificacao quando desemboca no decretamento provisorio de uma providencia cautelar.
155
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Assim, nos termos do art. 131.o, este processo cautelar assume-se como sumarissimo na
medida em que o legislador optou pela tecnica da inversao do contencioso (ou tecnica do
processo de cognicao unilateral), concretizando um procedimento inaudita altera parte, com a
consequente previsao de uma excepcao ou derrogacao ao principio do pleno contraditorio.
Para alem deste aspecto, o art. 131.o consagra um regime que difere o mais possivel do
regime tracado para o processo previsto no artigo 46.o e seguintes, sendo que, em
comparacao com o regime previsto no capitulo III do titulo III, a simplificacao e a
abreviacao e levada ao extremo nesta modalidade do processo comum cautelar. Em abono
da verdade, por razoes de especial urgencia, este processo assume-se como um verdadeiro
processo sumarissimo.
Assim, o processo sumarissimo cautelar concretiza diversas modalidades de
sumariedade procedimental, para alem daquela de que ja falamos. E, assim, constitui um
regime especial, determinado fundamentalmente por uma especial urgencia,
designadamente, por estar em causa a possibilidade de lesao iminente e irreversivel de
direitos, liberdades e garantias ou simplesmente por a situacao de carencia de tutela judicial
se configurar como uma situacao-de-especial-urgencia-atipica ou por ser relativa a um tipo de
periculum in mora qualificado pela iminencia da lesao. Entre outros aspectos previstos no
artigo 131.o do CPTA, destacam-se os seguintes pontos: o decretamento provisorio da
providencia acontece em 48 horas; o requerimento inicial deve especificar, de forma
articulada, os fundamentos do pedido, oferecendo prova sumaria da respectiva existencia,
incluindo a prova documental pertinente; depois de distribuido, o processo e concluso ao
juiz ou relator com maior urgencia (art. 131.o, n.o 2); o juiz ou relator deve colher apenas os
elementos a que tenha acesso imediato e dispensar quaisquer outras formalidades ou
diligencias; surge, de imediato, o decretamento provisorio da providencia. Contudo, se as
circunstancias o exigirem, deve o juiz ou relator proceder a audicao do requerido antes do
decretamento, podendo faze-lo por qualquer meio de comunicacao que se revele adequado.
Nao se admite qualquer tipo de impugnacao. Surge a notificacao urgente da decisao as
entidades que a devem cumprir. Posteriormente, e dado um prazo de cinco dias as partes
para que estas se pronunciem sobre a possibilidade do levantamento, manutencao ou
alteracao da providencia, devendo, entao, ser emitida a decisao cautelar que produzira
efeitos ate final do processo principal, no prazo de cinco dias.
2.
Se e verdade que nao deve confundir-se o processo sumario com o processo sumario de
cognicao sumaria, tambem e verdade que os processos sumarios previstos no CPTA so poderao
156
Temas e Problemas de Processo Administrativo
denominar-se de processos sumarios de cognicao sumaria se neles se concretizar algumas das
modalidades de sumariedade de cognicao, a saber:
1. a configuracao de um modelo de cognicao nao plena por determinacao legal
a. que atenua ou constitui excepcao ao modelo de contraditorio
participativo-igualitario entre as partes
i. que pressupoe a tecnica da inversao do contencioso ou tecnica do
processo de cognicao unilateral: procedimento inaudita altera parte
ii. contraditorio diferido
iii. contraditorio incompleto
b. que traduz simplificacao e incompletude ou nao esgotamento de prova
i. que pressupoe a prova sumaria:
1. enquanto prova restrita e prova imediata
2. enquanto material probatorio restrito, limitado a parte dos
factos da causa
2. a configuracao de um modelo de cognicao nao plena por actuacao do juiz
a. que atenua ou constitui excepcao perante o modelo de contraditorio
participativo-igualitario
i. em termos que a discricionariadade pressupoe que o juiz possa
realizar uma instrucao informal, uma instrucao que nao obedeca ao
mesmo modelo paritario de contraditorio \ discricionariedadeinquisitoriedade
b. que traduz simplificacao e incompletude de prova
i. em termos que o procedimento instrutorio se desenrola de modo
atipico, atraves de modalidades de prova consideradas nao
normais ou nao comuns
Importa pois saber se a disciplina que versa sobre a prova a realizar nos processos
urgentes preve principios e normas especiais quanto a forma procedimental de aquisicao do
material probatorio, sobre o qual devera formar-se a conviccao do juiz e se estabelece
principios de julgamento de prova especiais, sendo que certo que importa perceber se esta
legitimada a nao realizacao do contraditorio ou se esta legitimada a desobediencia as
áformalidades essenciais do contraditorioâ (2.1.).
157
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Pois bem, e um facto que, em relacao a disciplina que versa sobre certos processos
sumarios, o sujeito-legislativo veio concretizar a tecnica da inversao do contencioso ou tecnica
da cognicao unilateral e a tecnica da prova prima-facie, id est, genero de prova que se opoe a
plena probatio e so pode ser identificada com o de prova restrita, prova imediatamente disponivel e
prova liquida, nao devendo ser identificada com prova menos forte ou prova menos
convincente. De resto, tais processos pressupoem uma reducao da cognicao do thema
decidendum, atingindo logo, a montante, a producao de prova (2.2.).
2.1.
Cumpre, no entanto, anunciar de imediato que, nao obstante o principio do
contraditorio sofrer alguns desvios e algumas atenuacoes, tal nao e suficiente para se
classificar os processos urgentes impugnatorios e o processo de intimacao para prestacao
de informacoes como sendo processos de cognicao sumaria e isto porque em nenhum
destes processos especiais estao concretizados instrumentos e modalidades de cognicao
sumaria. Assim e por contraste com o modelo dito ordinario, em cada um destes processos
sumarios urgentes vigora, com igual intensidade, o principio do dispositivo e da
disponibilidade das partes, o do inquisitorio e da oficiosidade. Alem disso, sao realizados os
mesmos meios de prova ou pelo menos nao ha restricoes significativas ou ampliacoes de
maior significado que traduzam aceleracao na producao de prova e que possam obstar ao
pleno conhecimento do thema decidendum.
Ja o modelo instrutorio da intimacao para proteccao de direitos, liberdades e
garantias apresenta novidades quando comparado com os modelos anteriores, pois este
acolhe tres modalidades da sumariedade cognitiva. E isto deve-se as situacoes de especial
urgencia em que a situacao de carencia de tutela judicial se encontra, em termos que,
tratando-se de uma ameaca qualificada ao exercicio de um direito, liberdade ou garantia, o
legislador quis assegurar a devida tutela, fazendo intervir, como escrevem certos autores,
uma valvula de seguranca do sistema de garantias contenciosas23 \ ou que, dizemos nos, faz
desencadear um modelo de cognicao sumaria. E a concretizacao de derrogacoes que o
mesmo processo consagra perante a disciplina que versa sobre o modelo de plena cognitio
deve-se exactamente a sua natureza excepcional. Assim, sao fundamentalmente tres as
especificidades consagradas neste processo, uma que traduz nao so a diminuicao
significativa quantitativa ou de duracao do contraditorio mas que inclui a diminuicao
qualitativa (ou de substancia) do contraditorio; outra que resulta da entrega ao sujeitojurisdicional-
de-urgencia de poderes excepcionais em materia de prova, que podem
23 Neste sentido, vd. M. AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentarioc cit., p. 538.
158
Temas e Problemas de Processo Administrativo
desequilibrar o modelo participativo-paritario de contraditorio; e outra que tem que ver
com o acolhimento da prova sumaria, ja que o material instrutorio pode ser
quantitativamente limitado, deixando, por isso, de ter em conta todos os factos
controvertidos. Falamos designadamente do modelo mais simples previsto no artigo 111.o
do CPTA, onde claramente se acolhe a tecnica da prova restrita, prova nao esgotada e
prova imediata, ou prova que for possivel em 48 horas24.
2.2.
Em contas simples, cumpre dizer que, por razoes de urgencia, o sujeito-legislativo veio
prever no titulo IV do CPTA tres processos de cognicao plena acelerada (que se caracteriza
sobretudo pela diminuicao da duracao do contraditorio) e uma de cognicao sumaria. Se
assim e no que respeita aos processos urgentes previstos no titulo IV, cumpre, de seguida,
verificar que no titulo V, o legislador veio consagrar duas formas de cognicao sumaria para
o processo cautelar e uma de cognicao plena abreviada, que atinge uma dimensao do processo
cautelar, prevista no artigo 121.o CPTA. Ora, como ja se apontou nas consideracoes
anteriores, a lei processual administrativa configura a existencia de um processo cautelar
comum, cujo regime consta dos artigos 112.o e seguintes do CPTA, atraves do qual e
possivel obter o decretamento de qualquer providencia cautelar, conservatoria ou
antecipatoria, que seja admitida no contencioso administrativo. A configuracao prevista no
artigo 131.o, que e apta para desembocar no decretamento provisorio e mais rapido de
qualquer providencia cautelar nao especificada, e de todas aquela que mais acolhe os
instrumentos de prova sumaria.
E, contudo, na modalidade sumarissima do processo cautelar comum, prevista no
artigo 131.o do CPTA que o sujeito-legislativo veio instituir as modalidades mais ostensivas de
sumariedade da cognicao, sendo que as mesmas se justificam pela situacao especial de
urgencia e pelo decretamento provisorio da tutela cautelar, podendo tal configuracao
decorrer oficiosamente pelo juiz ou pelo relator, sempre que a peticao permita reconhecer a
possibilidade de lesao iminente e irreversivel do direito, liberdade ou garantia ou outra
situacao-especial-de-urgencia-atipica. Traduzindo-se num processo que inclui fundamentalmente
dois momentos, um sem contraditoriedade e outro com diminuicao dela, esta modalidade
do processo cautelar comum visa sobretudo assegurar que qualquer uma das providencias
24 Neste sentido, vd. acordao do TCA-N de 26.01.2006, processo n.o 1157/05.0BEBRG, no qual o
TCA, justifica o caracter excepcional do recurso ao meio processual exactamente por ele ter ánatureza
sumariaâ, sendo que áobviamente que estas sumariedade e urgencia nao podem deixar de traduzir-se, de
alguma maneira e em maior ou menor grau, no correspondente sacrificio de alguns valores, quica mesmo do
cumprimento integral do contraditorio das partes e a livre utilizacao de alguns meios de prova. O TCA
considerou que átambem por isso se compreende e justifica o caracter subsidiario deste meio processual
principal em relacao a outros meios, onde tais valores nao sao sujeitos a um tao grande sacrificioâ.
159
Temas e Problemas de Processo Administrativo
cautelares a decretar, uma providencia conservatoria ou uma antecipatoria, seja emitida de
imediato, numa fase inicial do processo cautelar, id est, seja emitida logo apos a
apresentacao do requerimento inicial, num momento previo aquele que e normalmente tido
como o momento certo para o decretamento de qualquer providencia cautelar. Nesta
modalidade do processo cautelar comum, antecipa-se, pois, provisoriamente, o momento
de decretamento da propria providencia cautelar, uma vez que, existindo uma especial
urgencia, designadamente, por estar em causa a lesao iminente e irreversivel de direitos,
liberdades e garantias, se receia que a demora do proprio processo cautelar comum seja a
causa do dano e acresca a ameaca de lesao aos direitos e interesses em causa invocados.
Claro esta que, apos o decretamento provisorio da providencia cautelar, que, como se
apontou, surge numa primeira fase deste processo, ou na fase daquele que pode ser
classificado como procedimento inaudita altera parte, se segue um segundo momento com
vista a obter a confirmacao da providencia cautelar ou o seu levantamento, seguindo-se
finalmente, numa segunda fase, os tramites do processo cautelar comum para obter a
providencia cautelar definitiva, isto e, a providencia que devera permanecer ate que seja
decidido o processo principal. Como se percebe, o artigo 131.o consagra um processo
cautelar sumarissimo que surge enxertado no processo sumario cautelar comum.
Ora, em primeiro lugar, cumpre notar que o processo cautelar sumarissimo se
configura num primeiro momento como um processo de cognicao unilateral ou
procedimento inaudita altera parte, e, por isso, e nele concretizada uma excepcao ao principio
do contraditorio, atraves da tecnica do contencioso invertido, que como vimos configura
uma modalidade privilegiada de concretizacao da summaria cognitio. Estao tambem
consagradas neste normativo outros desvios as regras de prova, em termos que se consagra
uma restricao e uma ampliacao. Alias, o processo sumario cautelar mais simples concretiza
diversas modalidades de sumariedade cognitiva, para alem daquele de que ja falamos. O
poder instrutorio do juiz e aqui moldado com caracter excepcional, susceptivel de
desequilibrar o modelo participativo-igualitario do contraditorio.
3.
Daqui nao resulta, todavia, que em todos os processos sumarios de cognicao
sumaria a decisao judicial dependa da formulacao de um juizo sumario. Antes pelo
contrario: uma coisa e o julgamento da materia de facto e de direito nos processos
sumarios e outra coisa e o julgamento da materia de facto e o julgamento da materia de
direito nos processos cautelares. Mas isso e um tema dificil que nao pode ser aqui
amplamente desenvolvido. Ele levar-nos-ia a justificar porque e que so o julgamento da
160
Temas e Problemas de Processo Administrativo
materia de direito nos processos cautelares tem algo de especial: e sempre inconclusivo. Na
realidade, o juizo nos processos cautelares e sumario porque o exame da quaestio iuris nao
pode ser aqui esgotado \ nao obstante o juiz cautelar dever trazer a colacao o mesmo
direito material a aplicar a situacao juridica da causa principal. E o que decorre da analise
do preceito que disciplina as condicoes de procedencia das providencias cautelares. Na
verdade, porque acolhe uma solucao leipoldiana, que obriga a lancar mao do criterio
adicional de decisao (ponderacao de interesses) para os casos em que nao ha evidencia
quanto ao sucesso da pretensao a formular no processo principal, o legislador veio prever
no artigo 120.o do CPTA a seguinte solucao: nao se configurando a ásituacao de evidenciaâ,
prevista no artigo 120.o, n.o 1 a), em que se contempla a realizacao de um exame de
concludencia completo (ainda que provisorio), e possivel ao tribunal realizar um juizo de
subsuncao limitado, que pode ser mais ou menos intenso consoante esteja em causa o
decretamento de uma ou de outra providencia cautelar (nos termos do art. 120.o, n.o 1 , b),
c) e n.o 2), sendo certo que em qualquer caso tal operacao e combinada com uma operacao
de ponderacao de interesses. Assim, enquanto que para o decretamento da providencia
conservatoria, o tribunal deve considerar suficiente a aparencia de nao mau direito \ o
fumus non mali iuris25 \, porque a solucao para a causa deve permanecer sempre em aberto,
para o decretamento da antecipatoria o tribunal deve apreciar o fumus (áaparencia de
direitoâ) na sua formulacao positiva. E, assim, uma vez que deve, em termos sumarios,
subsumir os factos provados ao direito material, esse exame so pode ir ate onde lhe permita
apurar a existencia do direito invocado pelo requerente, de tal modo que, em termos de
conviccao, o juiz conclua que a pretensao juridica obtera provavelmente sucesso na causa
principal. Ou, por outras palavras, o exame de concludencia nao e completo porque havera
ponderacao obrigatoria de interesses \ e, se chega ser completo ele nao e conclusivo, uma
vez que ao juiz so e possivel verificar em que termos a pretensao formulada ou a formular
nesse processo principal vira a ser julgada procedente.
Enfim, tendo possibilidade de desenvolver esse raciocinio, que aqui fica a meio, tal
levar-nos-ia a concluir que e somente por causa deste aspecto, um aspecto que somente se
verifica nos processos sumarios cautelares, que se justifica a incompletude do julgamento
da questao juridica, visto que quanto ao julgamento da materia de facto, ele e completo,
ainda que incida sobre material probatorio instruido e produzido sumariamente, ou seja,
ainda que incida sobre um material probatorio quantitativamente reduzido. Claro esta, de
25 A expressao usada no texto, áfumus non mali iurisâ, cuja formulacao atende ao facto de o
adjectivo malus se apresentar declinado no genitivo \ mali, tal como o substantivo, iuris \ e empregue na
doutrina espanhola por M. BACIGALUPO, La nueva tutela cautelarc cit., p. 111.
161
Temas e Problemas de Processo Administrativo
acordo com o mesmo raciocinio que aqui nao pode ser desenvolvido, o mesmo ja nao
acontece nos demais processos urgentes, nem mesmo em relacao ao processo cautelar com
antecipacao do juizo sobre a causa principal, uma vez que, aqui, a manifesta urgencia na
antecipacao total do julgamento da quaestio iuris o exige. Assim, se deveria perceber
finalmente o que significa summatim cognoscere na justica administrativa.
Bibliografia
AROSO DE ALMEIDA, Mario, O novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4.a ed.,
Coimbra, 2005
AROSO DE ALMEIDA, Mario/CADILHA, Carlos, Comentario ao codigo de processo nos
tribunais administrativos, 2.a ed. Coimbra, 2007
CAUPERS, Joao, Introducao ao direito administrativo, 8.aed, Lisboa, 2005
ESTEVES DE OLIVEIRA, Mario/ESTEVES DE OLIVEIRA, Rodrigo, Codigo de Processo
nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2004
FREITAS DO AMARAL, Diogo, áAs providencias cautelares no novo contencioso
administrativoâ, Cadernos de Justica Administrativa, 43, 2004, pp. 4 ss.
FONSECA, Isabel Celeste M., Processo temporalmente justo e urgencia. Contributo para a
autonomizacao da categoria da tutela jurisdicional de urgencia na justica administrativa, Coimbra, 2009
\.\ áAs (in)justicas do artigo 121.o do CPTA: depressa e bem ha pouco
comoâ, Cadernos de Justica Administrativa, 67, 2008, pp. 63 ss.
... áContencioso administrativo e contencioso administrativo autarquico:
resenha dos casos urgentes mais recentesâ, Direito Regional e Local, 00, 2007
\.\ áO contencioso dos contratos da Administracao Publica: notas sobre
um dominio do contencioso administrativo de feicao muito urgenteâ, in: Estudos em
Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Coimbra Editora, Coimbra, 2006 (tb.
publicado in Revista do Ministerio Publico, n.o 108, 2006, pp. 151 a 196)
162
Temas e Problemas de Processo Administrativo
\.\ áVerdade e verosimilhanca: o (provavel) erro de CALAMANDREIâ,
Boletim da Faculdade de Direito (da Universidade de Coimbra), n.o 81, 2005, pp. 633 a
671
\.\ áIndeferimento da condenacao (cautelar) a emissao de parecer: porque
o ceu nao e o limiteâ, Cadernos de Justica Administrativa, n.o 52, Julho/Agosto, 2005
\.\ áO processo cautelar comum no novo contencioso administrativo: por
novos caminhos de tempo divididoâ, Scientia Ivridica, Maio-Agosto, 2004, Tomo
LIII, n.o 299, pp. 237 a 286
\.\ áA garantia do prazo razoavel: o juiz de Estrasburgo e o juiz nacionalâ,
Cadernos de Justica Administrativa, n.o 44, Marco/Abril, 2004, pp. 56 a 67
\.\ Dos novos processos urgentes no contencioso administrativo (funcao e estrutura),
Lisboa, 2004
\.\ Introducao ao estudo sistematico da tutela cautelar no processo administrativo,
Coimbra, 2002
\.\ áSuspensao da expropriacao da Quinta dos Milagres: Uma aguarela de
mil cores inacabadac.â, Cadernos de Justica Administrativa, 30,
Novembro/Dezembro, 2001
\.\ áA urgencia na reforma do processo administrativoâ, in: Reforma do
Contencioso Administrativo. O debate Universitario, Vol. I, Ministerio da Justica, 2000
(Tambem publicado, com algumas alteracoes, na Scientia Ivridica, Janeiro/Junho, n.os
283/285, 2000, pp. 85 a 104)
\.\ áPara uma nova tutela cautelar na justica administrativa. Prologo de
uma batalha...â, Cadernos de Justica Administrativa, 8, Marco/Abril, 1998
GARCIA, Maria da Gloria, áOs procedimentos cautelares. Em especial, a suspensao da
eficacia do acto administrativoâ, Separata de Direito e Justica, Volume X, Tomo, 1, 1996
GOMES, Carla Amado, áO regresso de Ulisses: um olhar sobre a reforma da justica
cautelar administrativaâ, CJA, 39, 2003, pp. 3 ss.
\.\ áPretexto, contexto e texto da intimacao para proteccao de direitos,
liberdades e garantiasâ, in: Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocencio Galvao Telles,
Vol. V, 2003, pp. 541 e ss.
163
Temas e Problemas de Processo Administrativo
GONCALVES, Pedro, áContencioso administrativo pre-contratualâ, CJA, 44, 2004, pp. 3
ss.
MACAS, Fernanda, áAs formas de tutela urgente previstas no Codigo de Processo nos
Tribunais Administrativosâ, in: A reforma da justica administrativa, Coimbra, 2005, pp. 209 ss.
\.\ áMeios urgentes e cautelares \ Perplexidades quanto ao sentido e
alcance de alguns mecanismos de tutela urgentesâ, in: A nova justica administrativa,
Trabalhos e conclusoes do seminario comemorativo do 1.o ano de vigencia da reforma do
contencioso administrativo, Centro de Estudos Judiciarios, Coimbra, 2006, pp. 93 ss.
MARTINS, Ana Gouveia, A tutela cautelar no contencioso administrativo. Em especial, nos
procedimentos de formacao dos contratos, Coimbra, 2005
PEREIRA DA SILVA, Vasco, O contencioso administrativo no diva da psicanalise \ Ensaio sobre
as accoes no novo processo administrativo, Coimbra, 2005
ROQUE, Miguel Prata, Reflexoes sobre a reforma da tutela cautelar administrativa, Coimbra, 2005
SERVULO CORREIA, Jose Manuel, Direito do contencioso administrativo, Lisboa, 2005
VIEIRA DE ANDRADE, Jose Carlos, A justica administrativa (licoes), 9.a ed., Coimbra, 2007
\.\ áA tutela cautelarâ, CJA, n.o 34, 2002, pp. 45 ss.
\.\ áA proteccao dos direitos fundamentais dos particulares na justica
administrativa reformadaâ, RLJ, ano 134.o, 2001, n.o 3929, pp. 226 ss.
164
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Processo Executivo
Pedro Machete1
O tema do áprocesso executivoâ ganhou uma importancia acrescida na ultima reforma do
contencioso administrativo. E um tema vasto e complexo: muitos dos processos tramitados
nos tribunais administrativos, sob a designacao de áexecutivosâ, nao sao processos
administrativos; e muitos dos que sao processos administrativos nao sao verdadeiramente
processos executivos. Procurarei dar uma ávisao panoramicaâ sobre a materia,
acompanhando o texto legal, e depois focar algumas questoes particulares. A exposicao
seguira a seguinte ordem:
˜ 1.o - Significado e importancia do processo administrativo executivo
˜ 2.o - Especificidades do processo administrativo executivo
˜ 3.o - Pressupostos e estrutura geral do processo administrativo executivo
˜ 4.o - Execucao para prestacao de factos ou de coisas
˜ 5.o - Execucao para pagamento de quantia certa
˜ 6.o - Execucao de sentencas de anulacao de actos administrativos
˜ 1.o - Significado e importancia do processo administrativo executivo
1. áExecutarâ significa etimologicamente fazer aquilo que se contem numa coisa
principal. De acordo com um significado juridico corrente, a execucao corresponde a
actividade de realizar qualquer coisa ja existente em abstracto (v.g. executar uma lei).
Caso esteja em causa um dever juridico, a sua execucao ou cumprimento significa a
modificacao da realidade de modo a obter o resultado pratico visado com a imposicao
do mesmo dever. Do ponto de vista processual, o áprocesso executivoâ visa a
execucao forcada de um dever constante de um titulo.
Na verdade, embora de um modo geral os deveres sejam cumpridos voluntariamente,
importa prevenir a possibilidade de assim nao acontecer. Nessa situacao sao de
considerar tres hipoteses: nada fazer, a execucao imposta pelo proprio credor (sistema
1 Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catolica Portuguesa.
165
Temas e Problemas de Processo Administrativo
de justica privada) e a imposicao pelo poder publico (sistema de justica publica). Na
primeira hipotese, o direito permanece letra morta; na segunda, o direito e imposto
pelo proprio interessado, o que cria o risco de abusos; e na ultima, e um terceiro
imparcial que forca o cumprimento do dever.
Num Estado de Direito as pessoas nao podem resolver os seus litigios pela propria
forca, e necessario recorrer a um terceiro imparcial, o Estado de forma a resolver o
litigio. O Estado dispoe da forca e esta obrigado a respeitar os direitos fundamentais
dos litigantes. Quanto mais o Estado impede os particulares lesados com a agressao
alheia, nao os deixando recorrer a forca para fazerem valer os seus direitos, maior e a
responsabilidade do mesmo Estado de repor a paz juridica perturbada: se quem e
lesado no seu direito se ve impedido pelo Estado de agir directamente na defesa desse
direito, o mesmo lesado tem de poder fazer agir o Estado no seu proprio interesse. O
direito de accao e, assim, uma pretensao dirigida ao Estado para que restabeleca a paz
juridica e, consoante o fim do autor, pode ter por objecto accoes declarativas ou
accoes executivas.
2. Quem queira realizar uma pretensao substantiva contra outrem e remetido para o
processo declarativo a fim de obter uma sentenca condenatoria que a titule,
confirmando-a e tornando-a exigivel coercivamente. Somente com base no titulo
executivo pode o credor exigir ao Estado que force o devedor inadimplente a cumprir.
Existe um titulo, um documento que comprova a existencia do dever e que define o
fim e os limites das accoes executivas.
Assim, o processo declarativo destina-se a clarificacao juridica do litigio e a proteccao
do devedor contra uma execucao coerciva injustificada. E assim que as coisas se
passam no processo civil: o Estado intervem numa primeira fase para clarificar do
ponto de vista juridico a situacao litigiosa e tambem para acautelar os direitos
fundamentais daquele sobre quem recai a obrigacao e que alegadamente nao a cumpre,
para que o mesmo nao seja confrontado imediatamente com a forca publica a executar
coercivamente o seu dever e, ao inves, tenha a possibilidade de se defender no ambito
do processo declarativo.
166
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A sentenca condenatoria, por sua vez, coloca o poder coercivo do Estado na
disponibilidade do credor em vista da efectiva realizacao do seu direito subjectivo. O
poder em causa e actuado mediante o processo executivo. A finalidade deste e, com
efeito, forcar alguem a fazer algo que nao quer fazer.
Na sintese do art. 2.o-1 do CPC, ga proteccao juridica atraves dos tribunais implica o direito de
obter, em prazo razoavel, uma decisao judicial que aprecie, com forca de caso julgado, a pretensao
regularmente deduzida em juizo, bem como a possibilidade de a fazer executarh. A possibilidade de
fazer executar as sentencas condenatorias e uma componente da garantia da tutela
jurisdicional. E as gaccoes executivas [sao] aquelas em que o autor requer as providencias
adequadas a reparacao efectiva do direito violadoh (art. 4.o-3 do CPC).
3. Este modelo de plena jurisdicionalizacao dos litigios vale, por imposicao
constitucional, igualmente para os litigios emergentes de relacoes juridicas
administrativas, mesmo quando se pretende fazer valer um direito subjectivo publico
(arts. 268.o-4 e 2.o da CRP e do CPTA, respectivamente). Cabe aos tribunais
administrativos a ultima palavra sobre a existencia e satisfacao daqueles direitos,
devendo para o efeito julgar gdo cumprimento pela Administracao das normas e principios que a
vinculamh (art. 3.o-1 do CPTA). Por isso, as suas decisoes sao obrigatorias e prevalecem
sobre quaisquer outras (art. 205.o-2 da CRP e art. 158.o-1 do CPTA).
Enquanto decisoes jurisdicionais, as mesmas, desde que exequiveis, podem ser
executadas a pedido do interessado (art. 205.o-3 da CRP). Com efeito, gos tribunais
administrativos asseguram [c] a execucao das suas sentencas, designadamente daquelas que proferem
contra a Administracao, seja atraves de sentenca que produza os efeitos do acto administrativo devido,
quando a pratica e o conteudo deste acto sejam estritamente vinculados, seja providenciando a
concretizacao material do que foi determinado na sentencah (art. 3.o-3 do CPTA; v. tambem o
art. 4.o-1, al. n), do ETAF). O legislador chama a atencao para os aspectos mais
importantes do processo executivo, mas o que vale e a clausula geral.
O legislador teve ainda o cuidado de dotar os mesmos tribunais dos poderes
adequados a garantir a efectividade da tutela que devem dispensar: gos tribunais
administrativos podem fixar oficiosamente um prazo para o cumprimento dos deveres que imponham
167
Temas e Problemas de Processo Administrativo
a Administracao e aplicar, quando tal se justifique, sancoes pecuniarias compulsoriash (art. 3.o-2 do
CPTA).
Deste modo, e em conformidade com o direito fundamental a tutela jurisdicional
efectiva, nao so o processo administrativo comporta, ao lado dos pedidos de simples
apreciacao e constitutivos, pedidos de condenacao num facere ou num non facere, como
o resultado pratico visado por este ultimo tipo de pedidos pode, em principio, ser
obtido pelo particular credor atraves do recurso ao tribunal que tenha condenado a
Administracao (a distincao entre deveres positivos e negativos tem importancia a
proposito das accoes inibitorias e das condicoes em que as mesmas podem ser
executadas).
˜ 2.o - Especificidades do processo administrativo executivo
4. O processo administrativo executivo tem por objecto a execucao de titulos de que
resultem direitos para um particular (exequente) relativamente a Administracao
(executada), maxime das sentencas proferidas pelos tribunais administrativos contra
entidades publicas. Conforme resulta do art. 157.o-2 do CPTA, nem todos os
processos executivos tramitados nos tribunais administrativos seguem o regime do
CPTA: no que se refere as sentencas proferidas pelos tribunais administrativos contra
particulares, a sua tramitacao corre os seus termos nos tribunais administrativos, mas
obedece a disciplina consignada no CPC.
Por outro lado, o CPTA consagra duas formas de processo executivo em sentido
proprio (a execucao para prestacao de facto ou de coisa e a execucao para pagamento
de quantia certa) e uma forma de processo que, embora seja crismada como a
áexecucao de sentencaâ, na realidade e uma accao declarativa que pode redundar em
processos executivos. Na verdade, ha que distinguir a execucao de sentencas
proferidas em processos impugnatorios . uma tutela objectiva e meramente cassatoria,
correspondente ao tradicional contencioso de anulacao . da execucao com base em
titulos executivos, mormente as sentencas condenatorias da Administracao.
168
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Em virtude da diversidade de pedidos nao impugnatorios (arts. 37.o-2, 108.o, 110.o-5 e
127.o, todos do CPTA) e das multiplas possibilidades de cumulacao de pedidos
impugnatorios com pedidos nao impugnatorios (arts. 4.o-2, 63.o-1 e 95.o- 3 a 6, todos
do CPTA), e, bem assim, do alargamento da tutela cautelar, o segundo tipo de
execucoes tem vindo a registar uma importancia crescente. Quanto ao primeiro tipo,
importa considerar, quer a sua propria natureza mista, quer as particularidades
decorrentes do dever de ponderar o interesse publico na fase de execucao, o qual, por
via do instituto da causa legitima de inexecucao, determina a estrutura do processo
executivo e pode justificar modificacoes objectivas do mesmo.
5. A anulacao de actos administrativos . e o mesmo vale para a sua declaracao de
nulidade ou inexistencia ou para a declaracao de ilegalidade sem forca obrigatoria geral
de normas cujos efeitos se produzam independentemente da pratica de um acto
administrativo . determina a eliminacao retroactiva de uma dada regulacao juridica (ou
o reconhecimento da sua ineficacia juridica), pelo que, a primeira vista parece tratar-se
de accoes meramente constitutivas: nada ha a executar, uma vez que os efeitos de tal
eliminacao se produzem apenas no plano juridico; a regulacao que existia e eliminada.
Do ponto de vista da legalidade, tal seria suficiente. Porem, os interesses de quem
impugna e a propria reposicao da legalidade exigem frequentemente que a realidade
material constituida com base na regulacao eliminada seja modificada de modo a
traduzir a nova situacao juridica: alem da eliminacao da regulacao, ha tambem que
reconstituir a situacao modificada de acordo com a regulacao eliminada). E preciso nao
esquecer que os actos administrativos, a menos que seja pedida e obtida a suspensao
da sua eficacia, nao deixam de produzir efeitos ate que sejam anulados (e, na pratica, o
mesmo vale para os casos em que a sombra do acto nulo se tenham criado situacoes
de facto).
Deste modo, as sentencas que julgam procedentes os pedidos anulatoria, alem do efeito
constitutivo (a eliminacao da regulacao) podem ter tambem um efeito reconstitutivo . aquele
que decorre da repristinacao da situacao modificada pela regulacao eliminada e, bem
assim, do cumprimento dos deveres entretanto nao observados por causa da dita
regulacao: a reconstituicao da situacao hipotetica actual . aquela que existiria, caso o
acto anulado nao tivesse sido praticado. Por outro lado, a obrigatoriedade da sentenca
169
Temas e Problemas de Processo Administrativo
anulatoria (art. 158.o do CPTA) pode determinar um efeito conformativo da conduta
administrativa futura, porquanto a Administracao fica impedida de renovar o acto
anulado ou declarado nulo com os mesmos vicios conhecidos e julgados procedentes
pelo tribunal . as causas de invalidade a que se refere o artigo 95.o-2 do CPTA.
Quando e anulado um acto administrativo, ele e anulado com fundamento numa ou
mais causas de invalidade e, portanto, nem todas as anulacoes precludem a
possibilidade de o acto ser renovado, tudo depende dos fundamentos concretamente
considerados pelo tribunal. A administracao tem de considerar aquele efeito
conformativo.
Estes efeitos áultraconstitutivosâ, conjugados com o principio da separacao de
poderes, impoem a Administracao o dever de reexaminar a situacao de facto a luz da
lei aplicavel e da propria sentenca, e de agir em conformidade:
gSem prejuizo do eventual poder de praticar novo acto administrativo, no respeito pelos limites ditados
pela autoridade do caso julgado, a anulacao de um acto administrativo constitui a Administracao no
dever de reconstituir a situacao que existiria se o acto anulado nao tivesse sido praticado, bem como de
dar cumprimento aos deveres que nao tenha cumprido com fundamento no acto entretanto anulado, por
referencia a situacao juridica e de facto existente no momento em que deveria ter actuadoh (art. 173.o-
1 do CPTA).
Ou seja, a execucao de tais sentencas nao se limita a extrair consequencias materiais de
deveres juridicos ja definidos na propria sentenca . nao e uma execucao em sentido
estrito; o respectivo objecto e, num primeiro momento, apreciar se a Administracao
cumpriu correctamente o seu dever de retirar as consequencias juridicas e materiais
devidas em funcao da decisao da accao impugnatoria . e, em rigor, uma accao
declarativa complementar que, por sua vez, e num segundo momento, pode culminar
numa decisao com efeitos condenatorios (art. 179.o-1 do CPTA).
6. Quanto a presenca do interesse publico no ambito da execucao das sentencas
anulatorias, a mesma e patente no instituto da ácausa legitima de inexecucao. Esta
corresponde a uma factualidade invocada pela Administracao e admitida por acordo
com o interessado ou reconhecida por decisao judicial que, em virtude de uma
impossibilidade absoluta ou por estar em causa um grave prejuizo para o interesse
170
Temas e Problemas de Processo Administrativo
publico, justifica o nao cumprimento do dever de execucao, obrigando, no entanto, ao
pagamento de uma indemnizacao compensatoria ao titular do direito a execucao. O
dever de reconstituicao ou de satisfacao do proprio interesse lesado, mediante uma
execucao proprio sensu (no caso de estar em causa o cumprimento de uma obrigacao
positiva) ou a repristinacao (no caso de estar em causa o cumprimento de uma
obrigacao negativa), e convertido num dever de compensacao (cfr. o principio geral do art.
566.o-1 do CC).
A impossibilidade absoluta (ou impossibilidade material) e apreciada de forma
objectiva e a sua relevancia como fundamento da compensacao a atribuir ao titular do
direito a execucao decorre da circunstancia de tal impossibilidade ser ulterior a
ilegalidade cometida pela Administracao: o risco de uma eventual impossibilidade
corre por conta desta, uma vez que o que esta em causa e o seu dever de reconstituir
uma situacao que foi modificada ilegalmente. A transferencia do risco e consequencia
de um anterior comportamento ilegal.
Diversamente, o grave prejuizo para o interesse publico corresponde a uma valvula de
seguranca do sistema enformada pelo principio da proporcionalidade: admite-se que
excepcionalmente este principio possa impor um sacrificio especial ao titular do direito
a execucao, em ordem a salvaguardar interesses publicos ou interesses de eventuais
terceiros de boa fe, devendo tal sacrificio ser compensado pelo pagamento de uma
quantia em dinheiro.
˜ 3.o - Pressupostos e estrutura geral do processo administrativo executivo
7. Entre os pressupostos processuais do processo administrativo executivo, cumpre
destacar:
(i) O titulo executivo;
(ii)O Incumprimento do dever de execucao espontanea e a tempestividade da peticao
de execucao;
(iii) A competencia do tribunal;
(iv) A legitimidade activa e passiva.
171
Temas e Problemas de Processo Administrativo
(i) O titulo executivo
Em primeiro lugar, importa considerar as sentencas proferidas pelos tribunais administrativos
contra entidades publicas (art. 157.o-1 CPTA), em principio, ja transitadas em julgado (art.
160.o CPTA). A expressao áentidades publicasâ deve ser entendida no sentido de
abranger tambem sujeitos de direito privado que no plano substantivo tenham
exercido uma actividade de gestao publica, a funcao administrativa (v.g. o
concessionario de obras publicas ou de servicos publicos e, para este efeito, uma
entidade publica). Por outro lado, tambem relevam os acordaos do STA ou dos
tribunais centrais administrativos em que estes tenham decidido em primeira instancia
(arts. 24.o, n.o 1 alineas a) a c), e 37.o, alinea c), do ETAF) ou, ainda, outros titulos
executivos judiciais (despachos e outras decisoes de autoridades judiciais que
condenem no cumprimento duma obrigacao . art. 48.o-1 CPC). Em particular, cumpre
nao esquecer as sentencas proferidas por tribunais arbitrais, nos casos em que seja
admissivel o recurso a arbitragem (arts. 180.o e 181.o do CPTA e art. 26.o-2 da 31/86,
de 29 de Agosto).
Em segundo lugar, e titulo executivo o acto administrativo inimpugnavel de que resulte um
direito para um particular (art. 157.o-3 I CPTA). O acto administrativo e dotado de
executividade, constitui um titulo executivo, desde logo, contra os proprios
particulares (art. 149.o-1/2 CPA), O CPTA reconhece a executividade dos actos
administrativos, agora nao contra os particulares, mas contra as entidades publicas. A
inimpugnabilidade e aferida nos termos do art. 58.o-2, alinea b), do CPTA . prazo mais
longo. A accao executiva com base no titulo em apreco pode ser pedida pelo
beneficiario do acto: pensemos no interessado directo que viu reconhecido o seu
direito a uma subvencao ou o direito a adjudicacao num concurso; mas tambem o
contra-interessado para quem do acto em causa resulte um direito correlativo do dever
imposto pelo acto: por exemplo, num caso em que tenha sido ordenada a demolicao
administrativa de uma construcao e a Administracao nao a execute, pode o vizinho, se
lhe tiver sido reconhecido um direito a demolicao da obra pedir a execucao desse acto
e que a Administracao cumpra o seu dever de executar aquele acto).
Finalmente, a lei considera outros titulos executivos passiveis de serem accionados contra a
Administracao (art. 157.o-3 II CPTA), nomeadamente os referidos no art. 46.o-1 do
172
Temas e Problemas de Processo Administrativo
CPC. Deve entender-se que esta abertura esta condicionada por aquilo que se diz nos
arts. 1.o e 4.o do ETAF, ou seja, trata-se de titulos executivos que tenham sido
constituidos no quadro de relacoes integradas no ambito da jurisdicao administrativa,
nao uma letra ou um cheque sem mais.
Vamos concentrar-nos na execucao de sentencas proferidas pelos tribunais
administrativos.
(ii)O Incumprimento do dever de execucao espontanea e a tempestividade da peticao
de execucao
A execucao de sentencas e um dever da Administracao: por lei, tem o dever de
espontaneamente, sem ser convidada a faze-lo, a providenciar no sentido de ou serem
extraidas as consequencias da dita sentenca ou de a realidade material ser transformada
em conformidade com a sentenca. Ha um periodo de tempo durante o qual a
Administracao pode escolher o momento para o fazer ou, se for o caso, para invocar
um impedimento a execucao, ou seja, a causa legitima de inexecucao. Esse periodo
tem a duracao maxima de 3 meses (arts. 162.o-1 e 175.o-1 CPTA), salvo nos casos em
que esteja em causa o pagamento de uma quantia certa, hipotese em que o prazo de
execucao espontanea e de 30 dias (art. 170.o-1 CPTA). Decorrido esse prazo ou
invocada a causa legitima de inexecucao, o interessado tem um prazo de 6 meses para
pedir a execucao (arts. 164.o-2, 170.o-2 e 176.o-2 CPTA).
Estes prazos sao importantes, porque houve uma modificacao significativa
relativamente ao regime anterior. Colocam-se tres questoes: a natureza do prazo de
execucao espontanea (como se conta); a natureza do prazo para pedir a execucao; e as
consequencias do decurso do prazo para pedir a execucao.
A execucao espontanea corresponde a um dever da administracao, pelo que o prazo
respectivo e de natureza procedimental, ou seja, conta-se nos termos do art. 72.o-1.o do
CPA (dias uteis . Acs. STA-P, 25.1.2006, P. 24690; e STA, 2.2.2006, P. 48017-A). No
que se refere ao prazo para pedir a execucao, esta em causa o exercicio de um direito
por parte do interessado, pelo que tal prazo reveste natureza substantiva . e um prazo
de caducidade (art. 298.o-2 CC; quanto a contagem, v. arts. 279.o e 296.o do mesmo
173
Temas e Problemas de Processo Administrativo
diploma - Acs. STA-P, 12.12.2001, P. 26025-A; e STA, 2.2.2006, P. 48017-A). Mas a
Administracao continua obrigada a executar. Deste modo, o unico meio de defesa do
particular que deixe caducar o direito de pedir a execucao e a responsabilidade civil
(art. 159.o-1 CPTA), sendo necessario considerar a sua propria culpa na ocorrencia da
caducidade. A razao de ser destes prazos, que correm sucessivamente, e, de facto,
aceleraram as coisas, e o objectivo de uma rapida estabilizacao das situacoes juridicas.
Estes sucessivos automatismos podem criar dificuldades. O prazo de execucao
espontanea conta-se a partir do transito em julgado, cuja determinacao, na pratica, nem
sempre e obvia; depois, ha o prazo de execucao espontanea que tambem e corrido,
quer dizer, nao sofre interrupcoes, conta-se em dias uteis; logo a seguir tem inicio o
prazo para pedir a execucao. Ha, por isso, quem avente a possibilidade de se aplicar
neste contexto o regime do erro desculpavel ou do erro induzido pela Administracao,
nos termos do art. 58.o-4 do CPTA (VIEIRA DE ANDRADE).
(iii) A competencia do tribunal
Quanto ao tribunal competente, vale aqui a competencia residual: portanto, salvo
indicacao em contrario, sao competentes os tribunais administrativos de circulo (art.
44.o-1 ETAF; o STA e competente para a execucao das decisoes que tenha proferido
em primeira instancia, art. 24.o-1,alinea d), ETAF).
(iv) A legitimidade activa e passiva
Nao ha regras especificas em materia de legitimidade activa e passiva. Tem
legitimidade activa os que tiverem obtido ganho de causa na accao declarativa;
relativamente a legitimidade passiva, vale a disciplina do art. 10.o do CPTA, ou seja,
quem tem legitimidade passiva nos processos administrativos e a propria pessoa
colectiva ou o ministerio no ambito da Administracao central e, portanto, o executado
tambem e a pessoa colectiva ou o ministerio. Isto sem prejuizo de, para certos efeitos,
ser necessario determinar qual o orgao dentro da pessoa colectiva ou dos ministerios
competente para praticar determinados actos necessarios a execucao. Os arts. 162.o-2 e
174.o do CPTA . que revestem a natureza de preceitos substantivos . concretizam tal
ideia.
174
Temas e Problemas de Processo Administrativo
8. Quanto a estrutura geral do processo administrativo executivo, devemos ter presente a
mudanca significativa que ocorreu em relacao ao antigo regime do DL 256-A/77 e da
LPTA. Ai . alem de somente se prever a execucao de sentencas anulatorias . a
Administracao tinha 30 dias, a contar do transito em julgado, para proceder a execucao
espontanea; e, na falta desta, o interessado tinha 3 anos para requerer a execucao ao
autor do acto anulado. So na sequencia deste requerimento comecava a correr novo
prazo para a Administracao proceder a execucao voluntaria. No primeiro caso, falavase
em execucao espontanea, porque, por sua iniciativa, a Administracao procedia a
execucao; execucao voluntaria no segundo caso, porque, embora sem ser necessario
dar inicio ao processo de execucao, a Administracao era instada pelo particular a
proceder a execucao. A fase judicial so se iniciava com o pedido de declaracao de
inexistencia de causa legitima de inexecucao, ou, caso o particular concordasse com a
causa invocada, de fixacao de indemnizacao. Portanto, entrava-se logo na apreciacao
da declaracao de inexistencia de causa legitima de inexecucao. Nao se verificando tal
causa, era fixado o conteudo da execucao a semelhanca do que acontece hoje;
verificando-se que existia uma causa legitima de inexecucao, era fixada uma
indemnizacao.
No ambito do CPTA . e relativamente a todos os processos executivos previstos .
nao e autonomizada qualquer fase administrativa: a Administracao dispoe, isso sim, de
um periodo para proceder a execucao espontanea. Findo este sem que haja execucao,
o interessado pode dirigir-se ao tribunal e dar inicio ao processo executivo. O prazo de
execucao espontanea aumentou significativamente . passou de 30 dias para 3 meses,
em regra -; e houve uma diminuicao do prazo para apresentar a peticao de execucao:
como referido, agora sao seis meses.
Durante o prazo para a execucao espontanea de uma sentenca a Administracao pode
adoptar uma de tres atitudes fundamentais: executar a sentenca; justificar a sua
inexecucao; ou pura e simplesmente nao executar.
Na medida em que exista execucao espontanea, o processo executivo nao se chega a
iniciar.
175
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Se o exequente concordar com a existencia da causa legitima de inexecucao invocada
pela Administracao, pode pedir a fixacao da indemnizacao devida, a titulo de
responsabilidade por facto licito, sendo nesse caso aplicavel o disposto no art. 166.o do
CPTA (cfr. arts. 164.o-6 e 176.o-7 do mesmo diploma).
Caso a Administracao nao tenha pura e simplesmente procedido a execucao
espontanea, ou no caso de o exequente discordar da causa legitima de execucao
invocada, este pode dar inicio ao processo de execucao mediante a apresentacao de
uma peticao de execucao no tribunal competente. Aqui e necessario distinguir consoante
se trate de um verdadeiro processo executivo - o que so se verifica nos casos de
execucao para prestacao de facto ou de coisa ou para pagamento de quantia certa -, ou
nao.
No ambito dos primeiros, a Administracao e notificada para executar a sentenca ou
deduzir a sua oposicao. Se executar, o processo termina ai. Se nada fazer, o tribunal
adopta as providencias necessarias para efectivar a execucao da sentenca (arts. 167.o-1
e 172.o-1 CPTA). Mas se deduzir oposicao, a execucao suspende-se (arts. 165.o-2 e 171.o-
3 CPTA) e inicia-se um subprocedimento de caracter declarativo tendo em vista a
decisao da oposicao: replica do exequente, eventuais diligencias instrutorias e decisao (arts.
165.o-3/4/5 e 171.o-4/5 CPTA). A execucao so retoma o seu curso, uma vez julgada
improcedente a oposicao.
Nos processos de execucao de sentencas anulatorias, depois de apresentada a peticao
de execucao, o tribunal notifica a Administracao e os contra-interessados a quem a
satisfacao da pretensao possa prejudicar para contestarem (art. 177.o-1 CPTA). Aqui nao
ha suspensao da execucao, porque do que se trata e de um processo declarativo tendo
em vista (i) a especificacao, no respeito pelos espacos de valoracao proprios da funcao
administrativa, do conteudo dos actos e operacoes a adoptar para dar execucao a
sentenca; (ii) a identificacao do orgao ou orgaos administrativos responsaveis pela sua
adopcao; e (iii) a fixacao do prazo em que os referidos actos e operacoes devem ser
praticados (art. 179.o-1 CPTA). Tal processo integra, a seguir a contestacao, replica do
exequente, eventuais diligencias instrutorias e decisao.
176
Temas e Problemas de Processo Administrativo
˜ 4.o - Execucao para prestacao de factos ou de coisas
9. A execucao para prestacao de factos ou de coisas encontra-se regulada nos arts. 162.o a
169.o do CPTA. No caso do processo administrativo executivo existem algumas
particularidades relativamente a disciplina homologa do CPC.
Em primeiro lugar, no que se refere ao objecto, ha que distinguir a entrega de coisas e
as prestacoes de facto fungivel das prestacoes de facto infungivel e, dentro destas, as
de facto positivo das de facto negativo. Relativamente as primeiras, o tribunal pode
proceder a entrega judicial da coisa devida ou determinar a prestacao do facto devido
por outrem, em termos similares aos previstos no CPC (art. 167.o-5 CPTA). Ja quanto
as segundas, nao podem ser adoptadas providencias estruturalmente executivas. Alias,
as prestacoes de facto negativo, em rigor, nem sequer sao susceptiveis de execucao
forcada.
Em segundo lugar, e admitida a invocacao de causa legitima de inexecucao (art. 163.o
CPTA . alias, os mesmos fundamentos justificam, na pendencia do processo
declarativo a modificacao objectiva da instancia (art. 45.o-1 CPTA).
10. Se o facto devido consistir na pratica de um acto administrativo, a lei preve, desde
logo, a notificacao dos orgaos com poderes hierarquicos ou de superintendencia sobre
o orgao competente para a pratica do acto para dar execucao a sentenca em
substituicao deste (art. 167.o-2 CPTA). Tal pressupoe naturalmente a possibilidade de
exercer a competencia primaria. Por outro lado, a lei admite, relativamente aos actos
administrativos devidos de conteudo vinculado, a emissao de sentenca que produza os
efeitos do acto ilegalmente omitido (art. 167.o-6 CPTA).
Ja quanto aos actos administrativos devidos cuja pratica envolva valoracoes proprias
do exercicio da funcao administrativa e, bem assim, quanto as operacoes materiais
infungiveis, vigora o regime especial dos arts. 168.o e 169.o do CPTA: fixacao de um
prazo e, caso tal nao tenha sido feito na sentenca condenatoria, imposicao de uma
sancao pecuniaria compulsoria. Expirando o prazo fixado sem que a Administracao tenha
177
Temas e Problemas de Processo Administrativo
cumprido, pode o exequente requerer ao tribunal a fixacao da indemnizacao devida a
titulo de responsabilidade civil por inexecucao ilicita da sentenca, seguindo-se os
tramites do art. 166.o-2 do CPTA: na falta de acordo, diligencias instrutorias seguidas
da fixacao do montante da indemnizacao devida.
11. As accoes inibitorias suscitam, como referido, dificuldades. Fala-se numa accao inibitoria
quando se pede ao tribunal que condene a um facto negativo, a abstencao de
comportamentos, designadamente, a condenacao da administracao a nao emissao de
um acto administrativo quando seja provavel a emissao de um acto lesivo. E uma
modalidade de tutela preventiva que hoje se encontra prevista nos arts. 3.o-2, alinea c)
e 37.o-2, alinea c) ambos do CPTA. As sentencas em causa tem tambem uma natureza
constitutiva e determinativa devendo a solucao para assegurar o respeito pelas mesmas ser
encontrada no quadro actual.
Se estiver em causa a abstencao da pratica de um acto administrativo, a situacao e facil:
ha uma violacao do caso julgado e o acto sera, em principio, nulo (art. 158.o-2 CPTA).
A execucao da sentenca consistira, entao, no pedido de declaracao de nulidade. Mas
sao concebiveis, outras situacoes e solucoes que passem por especificar as operacoes
necessarias a reconstituicao ex ante, a semelhanca do que sucede no CPC quando se
fala na demolicao duma construcao (art. 941.o-1, alinea a). Ou entao, a cessacao da
conduta proibida, ou a proibicao da sua renovacao e finalmente a destruicao do
resultado. Nestes casos a aplicacao de sancoes pecuniarias compulsorias pode revelarse
particularmente eficaz (cfr. arts. 3.o-2 e 44 CPTA).
12. No que se refere as principais pecas do processo, cumpre indicar a peticao de
execucao e a decisao.
A primeira tem um conteudo necessario (actos e operacoes em que a execucao), a que
pode acrescer um conteudo facultativo, e, caso tenha sido invocada causa legitima de
inexecucao, deve indicar as razoes da discordancia (art. 164.o-4/5 CPTA).
178
Temas e Problemas de Processo Administrativo
No caso da decisao, alem de deverem ser adoptadas as providencias necessarias para
efectivar a execucao da sentenca, sao declarados nulos os actos desconformes com a
sentenca e anulados aqueles que mantenham, sem fundamento valido, a situacao ilegal
(art. 167.o-1 CPTA). Esta ultima referencia e uma expressao do principio da plenitude do
processo de execucao e visa acautelar as situacoes em que a administracao, parecendo que
cumpre a sentenca, faz uma execucao aparente: por exemplo, estando em causa a
classificacao obtida por alguem num concurso de pessoal, a Administracao corrige a
pontuacao de todos os candidatos e na pratica a ordenacao dos candidatos e a mesma.
Com efeito, o citado principio garante que todos estes problemas possam ser
discutidos e decididos no ambito da execucao.
˜ 5.o - Execucao para pagamento de quantia certa
13. Na execucao para pagamento de quantia certa o exequente pode pedir a compensacao
do seu credito com eventuais dividas que o onerem para com o executado (a mesma
pessoa colectiva ou o mesmo ministerio) ou o pagamento por conta de uma dotacao
orcamental inscrita a ordem do CSTAF (art. 170.o-2 CPTA). A Administracao nao
pode invocar causa legitima de inexecucao; apenas pode defender-se com fundamento
em facto superveniente, modificativo ou extintivo da obrigacao (mesmo a inexistencia
de verba ou cabimento orcamental nao constitui fundamento de oposicao - (art. 171.o-
1/2 CPTA).
Todo o processo executivo esta neste caso orientado no sentido de assegurar que a
exequente receba efectivamente aquilo a que tem direito: quando tenha sido requerida
a compensacao de creditos entre exequente e Administracao obrigada, o juiz decreta a
compensacao, funcionando esta decisao como titulo de pagamento da divida que o
exequente tinha para com a Administracao (art. 172.o-2 CPTA); ou, sendo caso disso,
o juiz da conhecimento ao CSTAF da sentenca e da sua inexecucao para que este
emita, no prazo de 30 dias, a correspondente ordem de pagamento por conta da
dotacao a ordem do dito Conselho e afecta ao pagamento de quantias devidas a titulo
de cumprimento de decisoes jurisdicionais (art. 172.o-4 CPTA). Em caso de
insuficiencia, admite-se que o exequente requeira ao tribunal o seguimento da
179
Temas e Problemas de Processo Administrativo
execucao, aplicando o regime da execucao para pagamento de quantia certa
disciplinado no CPC (art. 172.o-8 CPTA).
˜ 6.o - Execucao de sentencas de anulacao de actos administrativos
14. Na execucao de sentencas de anulacao de actos administrativos o interessado pretende
que a Administracao traduza, em termos de facto e de direito, a modificacao operada
pela sentenca, praticando os actos administrativos e as operacoes materiais necessarias
para o efeito. E esse o conteudo do dever de executar aqui em causa (art.. 173.o
CPTA). O processo destinado a fazer cumprir este dever tem natureza declarativa e
corresponde a uma fase complementar das accoes administrativas especiais de
impugnacao. O seu objecto principal consiste nos aludidos efeitos áultraconstitutivosâ
das sentencas anulatorias e, bem assim, na apreciacao de eventuais causas legitimas de
inexecucao invocadas pela Administracao: o tribunal e chamado a pronunciar-se sobre
o dever da Administracao de extrair as consequencias da sentenca, as quais podem
justificar decisoes condenatorias da Administracao. Se assim acontecer, as mesmas sao
executadas segundo as formas do processo executivo ja analisadas (execucao para
prestacao de factos ou de coisas e execucao para pagamento de quantia certa). Em
suma, a sentenca anulatoria nao e, em rigor, um titulo executivo; e um ponto de
partida para uma accao declarativa complementar no quadro da qual se pode chegar a
uma decisao que, essa sim, reveste as caracteristicas de um titulo executivo.
O art. 47.o-2, alinea b), do CPTA admite hoje, a titulo facultativo, a consideracao logo
no pedido inicial da accao declarativa daqueles efeitos áultraconstitutivosâ - pelo
menos, dos que possam ser antecipados (e os arts. 44.o e 45.o do CPTA tambem sao
aplicaveis no ambito desta accao administrativa especial ex vi art. 49.o). Mas,
justamente porque e facultativo, nao fica precludida a possibilidade de as mesmas
pretensoes serem accionadas no ambito do processo de execucao da sentenca de
anulacao (art. 47.o-3 CPTA). E, se tal ocorrer, a apreciacao das mesmas nesse processo
tambem tem natureza declarativa.
De resto, a peticao de execucao no processo de execucao de sentencas de anulacao de
actos administrativos . que e apresentada pelo áautorâ e nao pelo áexequenteâ - pode
180
Temas e Problemas de Processo Administrativo
conter pedidos de condenacao da Administracao ao pagamento de quantias pecuniarias, a
entrega de coisas, a prestacao de factos ou a pratica de actos administrativos (art.
176.o-3 CPTA). A decisao judicial do art. 179.o vem responder a este pedido,
compreendendo-se, por isso, as condenacoes previstas nos seus n.os 4, 5 e 6.
181
Temas e Problemas de Processo Administrativo 182
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Revisitando a Tramitacao da Accao Administrativa Especial
Joao Raposo1
CONSIDERACOES INTRODUTORIAS
1. Sede legal da materia e ambito de aplicacao da tramitacao da accao
administrativa especial
Diversamente daquilo que se passa com a accao administrativa comum . cuja tramitacao e
a do processo de declaracao do Codigo de Processo Civil, nas formas ordinaria, sumaria e
sumarissima (artigo 42.o, n.o 1, do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos) . , a
accao administrativa especial tem uma tramitacao propria, tributaria, em parte, do modelo
do recurso contencioso de anulacao da antiga Lei Organica do Supremo Tribunal
Administrativo, e respectivo Regulamento, e do Codigo Administrativo, dirigido as
manifestacoes de um poder publico de autoridade2.
Sob a epigrafe Marcha do processo, a tramitacao da accao administrativa especial constitui
objecto do Capitulo III do Titulo III (artigos 78.o a 96.o) do Codigo de Processo nos
Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.o 15/2002, de 22 de Fevereiro,
alterada pela ultima vez pela Lei n.o 59/2008, de 11 de Setembro. Mas com interesse
directo ou indirecto para esta materia, cumpre nao descurar a Parte Geral deste . que se
ocupa, sucessivamente, de disposicoes fundamentais, das partes, da competencia do
tribunal, dos actos processuais, e do valor das causas e das formas de processo . , bem
como, em sede de disposicoes gerais respeitantes a accao administrativa especial, os artigos
46.o (objecto, com indicacao dos pedidos principais admissiveis), 47.o (cumulacao de
pedidos), 48.o (processos em massa) e 49.o (que manda aplicar as sentencas proferidas neste
ambito as regras dos artigos 44.o e 45.o relativas a accao administrativa comum em materia
de fixacao de prazo para o cumprimento de deveres por parte da Administracao e
1 Mestre em Direito. Advogado.
2 Conforme se respiga da Exposicao de Motivos da Proposta de Lei n.o 92/VIIII, áNo plano da
tramitacao da accao administrativa especial, procedeu-se, em diversos aspectos, a uma aproximacao as solucoes do processo civil,
sem prejuizo das especialidades provenientes do modelo do recurso contencioso de anulacao que se entendeu justificado manter por
estarem directamente relacionadas com a circunstancia de o processo se reportar a pratica ou omissao de manifestacoes do poder
publico, por regra associadas a um procedimento administrativo e, por outro lado, relacionadas com interesses publicos cuja tutela
no processo merece especial atencaoâ. O ambito da accao administrativa especial nao se esgota, porem, no contencioso
de anulacao de actos e normas, compreendendo tambem os pedidos de condenacao a pratica de actos devidos
e de declaracao da ilegalidade de omissao regulamentar.
183
Temas e Problemas de Processo Administrativo
imposicao de sancao pecuniaria compulsoria, bem como modificacao objectiva da
instancia); e, ainda, em sede de Disposicoes particulares, dos artigos 61.o a 65.o (a proposito da
impugnacao de actos administrativos), 70.o (alteracao da instancia na accao de condenacao
a pratica de acto devido) e 71.o (poderes de pronuncia do tribunal nos mesmos processos).
Sublinhe-se ainda que, para alem da sua aplicacao directa a accao administrativa especial, as
regras de tramitacao de que aqui nos vamos ocupar sao tambem aplicaveis, com algumas
especialidades, a outros processos, como e o caso do contencioso eleitoral (artigo 99.o, n.o
1) e do contencioso pre-contratual (artigo 102.o, n.o 1), podendo ainda, se a complexidade
da materia o justificar, ser mandadas aplicar pelo juiz a intimacao para proteccao de
direitos, liberdades e garantias (artigo 110.o, n. 3). Bem assim, se a pedidos cumulados
corresponderem diferentes formas de processo, este segue a da accao administrativa
especial, com as necessarias adaptacoes, conforme se prescreve no artigo 5.o, n.o 1, do
codigo.
AS FASES DO PROCESSO
E possivel distinguir na tramitacao da accao administrativa especial estabelecida pelo CPTA
cinco fases ou momentos processuais, correspondentes ao itinerario completo ou geral do
processo: fase dos articulados; saneamento; instrucao; discussao e julgamento.
2. A fase dos articulados
Os articulados da accao administrativa especial sao, em regra, a peticao inicial e a contestacao.
Em certas situacoes podem ser apresentados pelas partes articulados supervenientes, a que
podera ser contraposta resposta.
A lei nao preve replica (nem treplica) na accao administrativa especial. No entanto, se
forem invocadas questoes que obstem ao conhecimento do objecto do processo, o
tribunal, no respeito pelo contraditorio, ouvira necessariamente o autor antes de proferir o
despacho saneador [cfr. artigo 87.o, n.o 1, alinea a), do CPTA].
2.1. A propositura da accao: a peticao inicial
184
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Conforme se dispoe no artigo 78.o, n.o 1, do Codigo de Processo nos Tribunais
Administrativos, a instancia constitui-se com a propositura da accao; e esta considera-se
intentada com a recepcao da peticao inicial na secretaria do tribunal a que e dirigida ou com
a respectiva remessa a juizo, nos termos em que e admitida na lei processual civil . ou seja,
e preferencialmente, por transmissao electronica de dados, valendo como data da pratica
do acto processual a da respectiva expedicao; ou mediante remessa pelo correio, sob
registo, ou envio atraves de telecopia, valendo entao como data da pratica do acto,
respectivamente, a da efectivacao do registo postal e a da expedicao, conforme se dispoe
no artigo 150.o, n.o 2, alineas b) e c), do Codigo de Processo Civil (CPC).
No tocante as mencoes obrigatorias da peticao inicial, e em consonancia com o disposto
no artigo 467.o deste, acrescentaram-se ao elenco das constantes do artigo 36.o da antiga Lei
de Processo nos Tribunais Administrativos para os recursos de anulacao a indicacao do
valor da causa [que releva para determinar se o processo e julgado em tribunal singular ou
em formacao de tres juizes e, bem assim, se e admissivel recurso da sentenca proferida em
primeira instancia, e de que tipo . cfr. artigos 31.o, n.o 2, alineas b) e c), do codigo e 40.o,
n.o 3, do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais; e ainda para efeitos de
custas]; a indicacao da forma do processo3; e a indicacao dos factos a provar (juntando os
documentos que desde logo os provem ou informando que os mesmos constam do
processo administrativo).
Com vista a permitir a desejavel celeridade processual, sobretudo nas accoes de menor
complexidade, o n.o 4 do artigo 78.o do CPTA confere ao autor a faculdade de requerer no
seu articulado inicial a dispensa da producao de prova e da apresentacao de alegacoes finais,
as quais nao terao lugar se a entidade demandada, na sua contestacao, convier
expressamente na dispensa ou nada disser em contrario (artigo 83.o, n.o 2).
Sendo obrigatoria a constituicao de advogado nos processos da competencia dos tribunais
administrativos (cfr. artigo 11.o, n.o 1), e sem prejuizo das regras proprias da representacao
da Administracao Publica nestes processos (cfr. artigo 11.o, n.os 2 a 5), a peticao deve ser
instruida com procuracao forense e, bem assim, com documento comprovativo do previo
pagamento da taxa de justica ou da concessao de apoio judiciario (artigos 79.o, n.o 1, do
Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos).
Nos n.os 3 a 5 deste mesmo preceito consagram-se algumas especialidades em materia de
instrucao da peticao inicial. Assim, sendo pedida a declaracao de inexistencia juridica de um
3 Especial ou urgente, pois como se referiu a tramitacao da accao administrativa especial aplica-se
tambem a alguns processos urgentes (cfr. artigos 99.o, n.o 1, 102.o, n.o 1, e 110.o, n.o 1, do Codigo de Processo
nos Tribunais Administrativos).
185
Temas e Problemas de Processo Administrativo
acto administrativo, deve o autor produzir ou requerer a producao da prova da respectiva
aparencia; e sendo pedida a condenacao a pratica de acto devido, deve o autor instruir a
peticao com documento comprovativo do indeferimento, caso tenha existido, ou, na falta
de acto expresso, com copia do requerimento apresentado, recibo ou outro documento
comprovativo da entrada do respectivo original nos servicos competentes.
A semelhanca daquilo que se passa no processo civil (cfr. artigo 474.o do CPC), a secretaria
deve recusar o recebimento da peticao inicial, justificando-a por escrito, nos casos previstos
no n.o 1 do artigo 80.o do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos. Atenta a
remissao para a lei processual civil feita no n.o 2 deste preceito, da recusa de recebimento
cabe reclamacao para o juiz, cabendo sempre agravo do despacho que confirme o
indeferimento (independentemente, portanto, do valor da causa), como resulta do artigo
475.o, n.os 1 e 2, do CPC. Por outro lado, tem-se por segura a aplicabilidade a accao
administrativa especial do beneficio concedido ao autor pelo artigo 476.o do Codigo de
Processo Civil, que consiste na apresentacao de outra peticao inicial ou de juncao do
comprovativo do previo pagamento da taxa de justica dentro dos dez dias subsequentes a
recusa de recebimento ou de distribuicao da peticao ou a notificacao da decisao judicial que
a haja confirmado, valendo como data da propositura da accao aquela em que a primeira
peticao foi apresentada.
2.2. A distribuicao
O Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos dedica apenas um artigo (26.o) a
distribuicao, fixando a respectiva periodicidade e os criterios que a ela presidem, no
respeito pelos principios da imparcialidade e do juiz natural. Assim, a distribuicao tem lugar
diariamente, com observancia dos criterios da especie do processo, carga de trabalho dos
juizes e respectiva disponibilidade para o servico. Se no tribunal considerado houver um
minimo de tres juizes afectos a apreciacao de cada tipo de materia, atender-se-a igualmente
a essa especializacao.
Cabe ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais estabelecer os criterios
que devem presidir a distribuicao de processos, conforme decorre do disposto nos artigos
26.o, alinea a), do CPTA e 74.o, n.o 2, alinea o), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais.
186
Temas e Problemas de Processo Administrativo
2.3. A citacao da entidade demandada e dos contra-interessados e a notificacao do
Ministerio Publico
Tal como acontece no processo civil (cfr. artigo 479.o do respectivo codigo), uma vez
recebida a peticao inicial cabe a secretaria promover a citacao da entidade demandada e dos
contra-interessados, se existirem, para contestarem (artigo 81.o, n.o 1, do Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos). Isso significa que, em regra, o processo so e
concluso ao juiz depois da apresentacao da contestacao ou decorrido o respectivo prazo.
No entanto, e conforme visto, pode acontecer que o juiz seja chamado a decidir a
reclamacao da eventual recusa de recebimento da peticao inicial pela secretaria. Por outro
lado, quando existam mais de 20 contra-interessados, o tribunal pode promover a citacao
destes mediante a publicacao do anuncio a que se refere o n.o 1 do artigo 82.o. Bem assim,
tratando-se de processo de declaracao com forca obrigatoria geral da ilegalidade de uma
norma, o juiz, no despacho que ordene ou dispense a citacao da entidade demandada,
mandara publicar anuncio da formulacao do pedido pelo meio e no local utilizados para dar
publicidade a norma, com vista a permitir a intervencao de eventuais contra-interessados
(n.o 5).
Aquando da citacao da entidade demandada e dos contra-interessados, e fornecida ao
Ministerio Publico copia da peticao e dos documentos que a instruem (salvo, naturalmente,
se este figurar no processo como autor), de modo a permitir-lhe a sua intervencao nos
autos, nos termos que adiante veremos.
2.4. A contestacao da entidade demandada e dos contra-interessados. O envio do
processo administrativo.
O prazo de contestacao e de 30 dias, correndo em simultaneo para a entidade demandada e
os contra-interessados (artigo 81.o, n.o 1, do CPTA). Existindo, porem, motivo ponderoso
que impeca ou dificulte anormalmente a organizacao da defesa, esse prazo podera ser
prorrogado pelo tribunal ate ao limite de mais 30 dias, precedendo requerimento nesse
sentido, ao abrigo do n.o 5 do artigo 486.o do CPC.
Os n.os 2 e 3 do artigo 81.o do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos
contemplam os casos de citacao erronea de orgao da entidade demandada, por motivo imputavel ao
autor. Nessa eventualidade (por exemplo, na peticao inicial o autor indicou como autor do
acto impugnado um director-geral quando, afinal, se trata de um acto do ministro, sendo,
187
Temas e Problemas de Processo Administrativo
por tal motivo, a citacao feita na pessoa do primeiro; ou nomeou como autor da decisao o
chefe da secretaria da camara municipal, quando o acto foi praticado por um vereador,
sendo que, por essa razao, citado foi aquele e nao este), o orgao efectivamente citado deve
dar conhecimento imediato do processo ao autor do acto, beneficiando a entidade
demandada de um prazo suplementar de 15 dias para contestar a accao.
Cumpre sublinhar que este regime nao se aplica aos casos de ilegitimidade passiva, isto e,
aqueles em que a accao administrativa especial foi erroneamente proposta contra uma
pessoa colectiva ou ministerio diferentes daquele a cujos orgaos e imputavel a accao ou
omissao (cfr. artigo 10.o, n.os 2, 3 e 5, nomeadamente, do CPTA). Nessa eventualidade, a
entidade demandada devera arguir a excepcao de ilegitimidade passiva, seguindo-se os
demais tramites (v.g., despacho de aperfeicoamento, nos termos do artigo 88.o, n.o 2).
A entidade demandada deve deduzir na contestacao toda a materia relativa a defesa,
juntando os documentos para demonstracao dos factos cuja prova se propoe fazer (artigo
83.o, n.o 1). Se for caso disso, devera tomar posicao sobre o requerimento do autor de
dispensa de prova e alegacoes finais (n.o 2 do mesmo preceito).
A falta de contestacao ou de impugnacao especificada seguem-se as consequencias
previstas no n.o 4 do artigo 83.o do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos: a
mesma nao importa confissao dos factos articulados pelo autor, mas o tribunal aprecia
livremente essa conduta para efeitos probatorios (artigo 83.o, n.o 4).
No artigo 8.o, n.o 3, do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos consagra-se o
dever de remessa ao tribunal, em tempo oportuno, do processo administrativo e demais
documentacao respeitante a materia do litigio por parte da entidade demandada. O envio
deve ter lugar com a contestacao ou dentro do respectivo prazo, dando-se conhecimento
da juncao a todos os intervenientes no processo (artigo 84.o, n.os 1 e 6). Sem prejuizo da
sua requisicao pelo tribunal, o processo administrativo pode ser substituido por fotocopias
autenticadas, devidamente ordenadas (artigo 84.o, n.o 3). Na falta de envio tempestivo do
processo administrativo sem justificacao aceitavel, e para alem da efectivacao da
responsabilidade que ao caso couber, podera ser imposta pelo tribunal uma sancao
pecuniaria compulsoria (n.o 4 do artigo 84.o).
Quais as consequencias dessa falta para a tramitacao da accao? Com vista a obviar a
demora do processo, o codigo estatui que a mesma nao impede o prosseguimento dos
autos, acarretando uma importante consequencia desfavoravel para a entidade que lhe deu
causa: se a omissao tiver tornado a prova impossivel ou de dificuldade consideravel,
consideram-se provados os factos invocados pelo autor (n.o 5 do artigo 84.o).
188
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Entretanto, os contra-interessados tem direito de consulta do processo administrativo com
vista a apresentacao da sua propria contestacao. Nos termos do n.o 5 do artigo 83.o do
CPTA, se a consulta nao lhes tiver sido facultada durante o prazo da contestacao, o juiz
devera autorizar a apresentacao da contestacao no prazo de 15 dias a contar da notificacao
da respectiva juncao aos autos.
2.5. Articulados supervenientes
Nos n.os 1, 2, 5 e 6 do artigo 86.o do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos,
que correspondem, com as devidas adaptacoes, aos numeros homologos do artigo 506.o do
Codigo de Processo Civil, admite-se, em certos casos, a apresentacao de articulados
supervenientes. Porem, em vez do despacho liminar sobre a admissao do articulado
superveniente previsto no artigo 506.o, n.o 4, do CPC, o n.o 4 do artigo 86.o do Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos incumbe a secretaria de proceder, de imediato, a
notificacao das partes para responderem (e, naturalmente, tambem do Ministerio Publico,
para o exercicio dos poderes de intervencao de que dispoe), so depois se decidindo da
admissibilidade do articulado . solucao para a qual, todavia, nao se encontra especial
vantagem.
2.6. A intervencao do Ministerio Publico
Nos dez dias subsequentes a notificacao da juncao aos autos do processo instrutor ou, nao
havendo lugar a esta, da apresentacao das contestacoes (n.os 5 do artigo 85.o e 6 do artigo
84.o), pode o Ministerio Publico (i) solicitar a realizacao de diligencias instrutorias, (ii)
pronunciar-se sobre o merito da causa, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadaos,
de interesses publicos especialmente relevantes ou dos valores ou bens constitucionalmente
protegidos, e (iii), no caso dos processos impugnatorios, invocar causas de invalidade
diversas daquelas que tenham sido arguidas pelo autor ou quaisquer questoes determinantes
da nulidade ou inexistencia do acto impugnado (artigo 85.o, n.os 2 a 4). Do exercicio de tais
poderes serao as partes imediatamente notificadas (n.o 5, in fine).
Como faz notar Mario Aroso de Almeida, este artigo introduz significativas limitacoes aos
poderes de intervencao do Ministerio Publico, em comparacao com aquilo que, para o
recurso contencioso, decorria do artigo 27.o da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, modificando a propria natureza dessa intervencao.
189
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Com efeito, áEm primeiro lugar, e ao contrario do que sucedia com o artigo 27.o, alinea c), da LPTA, o
artigo 85.o, n.o 2, nao fala genericamente da emissao de um gparecer sobre a decisao final a proferirh pelo
tribunal. O Ministerio Publico nao pode, assim, aconselhar a emissao de uma decisao de mera forma, que
nao se pronuncie sobre o merito da causa. Alias, o Ministerio Publico deixa de poder intervir em defesa da
chamada legalidade processual, para o efeito de suscitar a regularizacao da peticao, excepcoes, nulidades e
quaisquer questoes que obstem ao prosseguimento do recurso e de se pronunciar sobre questoes dessa
natureza que nao tenha suscitado (possibilidade anteriormente prevista no artigo 27.o, alinea a), da
LPTA) (...).
Por outro lado, a gpronuncia sobre o merito da causah a que se reporta o artigo 85.o, n.o 2, so pode ser
emitida (...) gem defesa dos direitos fundamentais dos cidadaos, de interesses publicos especialmente
relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.o 2 do artigo 9.oh. Ao contrario do que
anteriormente sucedia, no ambito das vistas inicial e final (previstas nos artigos 42.o e 53.o da LPTA),
que eram momentos obrigatorios da tramitacao do recurso contencioso, a intervencao do Ministerio Publico
nao tem, pois, lugar em todos os processos. Pelo contrario, o Ministerio Publico so esta habilitado a
pronunciar-se sobre o merito da causa, aconselhando o tribunal a decidi-la em determinado sentido, quando
se preencham os pressupostos do artigo 85.o, n.o 2 (...)â.
E dai a conclusao: áNeste ponto radica a mudanca de natureza da intervencao do Ministerio Publico,
que so passa a ter lugar quando ele se sinta mobilizado para o efeito pela natureza das questoes envolvidas
(...). Ha-de tratar-se, por isso, de uma intervencao que nao ocorre por dever de oficio, mas que apenas tem
lugar nos processos que, pela natureza das questoes que se colocam, de acordo com o disposto no artigo 85.o,
n.o 2, justifiquem que o Ministerio Publico lhes dedique a sua atencao.â4.
Seja como for, o Ministerio Publico conserva o poder de assumir a posicao de autor,
requerendo o prosseguimento de processo que tenha terminado por desistencia ou outra
circunstancia propria do autor, conforme se dispoe no artigo 62.o do codigo.
3. A fase do saneamento do processo
3.1. O despacho saneador
Uma vez concluida a fase dos articulados . e sem que se preveja a realizacao da audiencia
preliminar do artigo 508.o-A do Codigo de Processo Civil . , entra-se imediatamente no
saneamento do processo.
4 O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.a ed., Coimbra, 2005, pp. 251-252 (existe
uma reimpressao de 2007).
190
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Assim, uma vez concluso o processo ao juiz ou relator, este profere despacho saneador em
tres situacoes (artigo 87.o, n.o 1, do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos): (i)
quando lhe cumpra conhecer de questoes que obstem ao conhecimento do objecto do
processo; (ii) quando conheca do merito da causa ou de alguma excepcao peremptoria; e
(iii) quando determine a abertura de um periodo de producao de prova.
Vejamo-las separadamente.
As questoes que obstam ao prosseguimento do processo devem ser decididas no despacho
saneador, dessa forma se obviando aos transtornos que, no passado, o respectivo relegar
para momento ulterior (maxime, para a decisao final) causava. A enumeracao, meramente
exemplificativa, dos fundamentos do nao prosseguimento do processo consta do artigo
89.o, n.o 1, do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos, equivalente ao artigo
494.o do Codigo de Processo Civil. As questoes que nao forem apreciadas no despacho
saneador ja nao podem ser ulteriormente suscitadas nem decididas; e as ali decididas nao
podem ser reapreciadas (salvo, naturalmente, por via de recurso), conforme se dispoe no
n.o 2 do artigo 87.o do CPTA.
O conhecimento (total ou parcial) do merito da causa, se o estado do processo o permitir,
tem lugar no despacho saneador sempre que o autor tenha requerido, sem oposicao dos
demandados, a dispensa de alegacoes finais; bem assim, o conhecimento de eventuais
excepcoes peremptorias tem lugar apos audicao do autor, pelo prazo de 10 dias.
Finalmente, quando o processo haja de prosseguir e subsista materia de facto
controvertida, cabe ao juiz ou relator determinar, no despacho saneador, a abertura de um
periodo de producao de prova (v. artigo 90.o).
3.2. O suprimento de excepcoes dilatorias e o despacho de aperfeicoamento dos
articulados
Os principios da tutela jurisdicional efectiva e da promocao do acesso a justica inspiram um
conjunto de solucoes do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos em materia de
suprimento de excepcoes dilatorias e de correccao, oficiosa ou provocada, dos articulados.
Assim, no exercicio do poder de direccao do processo acolhido no artigo 265.o do Codigo
de Processo Civil, o juiz, nos termos do disposto no artigo 88.o, n.o 1, do Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos, deve procurar corrigir oficiosamente deficiencias ou
irregularidades de caracter formal que detecte nas pecas processuais . e, desde logo, na
peticao inicial. Se, todavia, a correccao oficiosa nao for viavel, proferira despacho de
191
Temas e Problemas de Processo Administrativo
aperfeicoamento, com vista ao suprimento de excepcoes (quando, naturalmente, estas forem
susceptiveis de sanacao 5) e a correccao, pela parte, das imperfeicoes do seu articulado, no
prazo de 10 dias (n.o 2). Na falta de suprimento ou correccao, segue-se a absolvicao da
instancia, sem ulterior possibilidade de substituicao daquele (n.o 4).
Ja a absolvicao da instancia sem previo despacho de aperfeicoamento . porque o juiz
considerou a deficiencia ou irregularidade irremediaveis . confere ao autor a possibilidade
de, no prazo de 15 dias contados da notificacao dessa decisao, apresentar nova peticao
inicial, ácom observancia das prescricoes em faltaâ, atendendo-se para efeitos de tempestividade da
accao a data de apresentacao da primeira (n.o 2 do artigo 89.o do codigo). Caso, todavia,
subsista na peticao corrigida o fundamento determinante da decisao de nao
prosseguimento do processo, nao e admissivel segunda substituicao (n.o 4 do mesmo
artigo).
Finalmente, no caso particular da accao contra um acto de indeferimento, havera lugar a
convite para substituicao da peticao se o autor apenas tiver deduzido um pedido anulatorio
(artigo 51.o, n.o 4, do CPTA). Tal convite destina-se a permitir-lhe a formulacao do pedido
adequado, que e o de condenacao a pratica do acto devido (cfr. artigo 67.o, n.o 1); e se o
mesmo for correspondido, proceder-se-a a nova citacao da entidade demandada e dos
contra-interessados para contestarem.
3.3. A fase da instrucao
3.1. Dos meios de prova
Como se viu, cabe as partes indicar nos seus articulados os actos cuja prova se propoem
fazer [cfr. artigos 78.o, n.o 1, alinea l), e 83.o, n.o 1, do Codigo de Processo nos Tribunais
Administrativos]; o Ministerio Publico pode requerer a realizacao de diligencias instrutorias
(artigo 85.o, n.o 2); se o processo houver de prosseguir e a materia de facto alegada ainda se
mostrar controvertida, o juiz determinara a abertura da instrucao, fixando no despacho
saneador um periodo de producao de prova [artigo 87.o, n.o 1, alinea c)]; e, em homenagem
ao principio do inquisitorio, pode, bem assim, ordenar as diligencias que considere
necessarias para o apuramento da verdade (artigo 90.o, n.o 1; cfr. artigo 265.o, n.o 3, do
Codigo de Processo Civil).
5 Tal nao sera, naturalmente, o caso das excepcoes das alineas c) . com a ressalva de ter havido o
erro a que alude o n.o 4 . , h) e i) do n.o 1 do artigo 89.o do CPTA, bem como da incompetencia do tribunal
por a questao nao caber no ambito da jurisdicao administrativa.
192
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Em materia de producao de prova aplica-se o regime da lei processual civil (cfr. artigos
513.o a 645.o do CPC) . o que constituiu um importante progresso no sentido do reforco
da tutela jurisdicional efectiva. No entanto, quando tal for claramente desnecessario, o juiz
ou relator pode indeferir requerimentos dirigidos a producao de prova ou recusar a
utilizacao de certos meios desta, mediante decisao fundamentada (artigo 90.o, n.o 2).
E bem se compreende que assim seja: na verdade, em processos em que predomina a prova
documental, o requerimento de outro tipo de prova . especialmente, testemunhal . pode
constituir um mero expediente dilatorio, motivo pelo qual a solucao do legislador se mostra
áplenamente justificavel, em ordem aos elementares principios da economia e celeridade processuaisâ6 .
3.2. Dos casos de instrucao diferida
A instrucao realiza-se, em regra, num unico momento processual, independentemente,
portanto, dos pedidos formulados pelo autor.
Todavia, no caso particular da cumulacao do pedido de condenacao da Administracao a
pratica de actos ou a realizacao de prestacoes com o pedido principal de reconhecimento
da ilegalidade de accao ou omissao (cfr. artigos 46.o, n.o 2, 47.o e 4.o do CPTA), a instrucao
pode ter lugar faseadamente, iniciando-se com a destinada a esclarecer as questoes
respeitantes ao pedido principal e so posteriormente se realizando a respeitante ao pedido
cumulado (artigo 90.o, n.o 3) . e podendo, ate, nao chegar a realizar-se se, entretanto, o
tribunal concluir pela improcedencia do pedido principal (n.o 4).
Esta-se em presenca de uma solucao que bem se compagina com o principio da adequacao
formal, inscrito no artigo 265.o-A do Codigo de Processo Civil.
4. A fase da discussao
4.1. A audiencia publica
Como sublinha Mario Aroso de Almeida, áE de realcar o importante passo de introduzir a
oralidade no contencioso administrativo portugues, dominio do qual esse elemento era tradicionalmente
arredadoâ7.
6 Fernandes Cadilha, Reflexoes sobre a marcha do processo, in Reforma do Contencioso Administrativo .
Trabalhos Preparatorios . O Debate Universitario, Vol. I, Lisboa, 2000, p. 254, reproduzido nos Cadernos de Justica
Administrativa, n.o 22, Julho/Agosto 2000, pp. 60-70.
7 Op. cit., p. 260.
193
Temas e Problemas de Processo Administrativo
No artigo 91.o do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos preve-se a realizacao
de uma audiencia publica, a qual pode ter lugar oficiosamente ou precedendo requerimento
das partes.
Assim, uma vez concluida a producao de prova, pode o juiz ou relator, sempre que a
complexidade da materia o justifique, determinar a respectiva realizacao . sendo que, neste
caso, a audiencia se destinara exclusivamente a discussao oral da materia de facto (artigo
91.o, n.o 1).
Mas a audiencia publica pode tambem ter lugar a pedido de qualquer das partes,
destinando-se entao, para alem da discussao da materia de facto, a deducao oral de
alegacoes de direito (n.os 2 e 3 do mesmo artigo). O tribunal pode, no entanto, recusar a
sua realizacao, mediante despacho fundamentado, se entender que a diligencia nao se
justifica, em virtude de a materia de facto provada documentalmente nao ser controvertida.
4.2. As alegacoes escritas
Nao havendo lugar a realizacao de audiencia publica por iniciativa das partes, e nao tendo
estas prescindido da apresentacao de alegacoes escritas, sao notificadas para as
apresentarem: trata-se, no entanto, de alegacoes facultativas. O prazo para o efeito e de 20
dias, que corre primeiro para o autor e, depois, simultaneamente, para a entidade
demandada e os contra-interessados, se existirem (artigo 91.o, n.o 4, do Codigo de Processo
nos Tribunais Administrativos).
De acordo com os n.os 5 e 6 do artigo 91.o, nas alegacoes o autor pode alargar a causa de
pedir, invocando fundamentos novos, de conhecimento superveniente, e, bem assim, pode
restringi-la expressamente; e pode tambem ampliar o pedido, nos mesmos termos em que e
admitida a modificacao objectiva da instancia (cfr. artigo 63.o). Nas alegacoes devem
formular-se conclusoes.
5. A fase do julgamento
5.1. O julgamento, em geral
Terminada a discussao sobre a materia de facto e de direito, o processo e concluso ao juiz
ou relator, tendo, neste ultimo caso, lugar a vista simultanea aos juizes-adjuntos . salvo
194
Temas e Problemas de Processo Administrativo
dispensa do relator, quando a simplicidade da causa for evidente (n.o 1 do artigo 92.o). Para
tanto, e fornecida copia das pertinentes pecas processuais a cada juiz-adjunto (n.o 2).
5.2. As formacoes ordinarias de julgamento nos diversos tribunais administrativos
No Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo, o julgamento
em seccao compete ao relator e a dois juizes; e o julgamento no pleno, ao relator e aos
demais juizes em exercicio na seccao (artigos 17.o, n.os 1 e 2, 34.o e 35.o, n.os 1 e 2, do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo as decisoes, em ambos os casos,
tomadas em conferencia (artigos 17.o, n.o 5, e 35.o, n.o 2).
Ja os tribunais administrativos de circulo julgam, de facto e de direito, atraves de juiz
singular (n.o 1 do artigo 40.o do referido estatuto) . salvo, para aquilo que ora releva, nas
accoes administrativas especiais de valor superior a alcada dos tribunais administrativos de
circulo (que corresponde a dos tribunais judiciais de primeira instancia, conforme se dispoe
no artigo 6.o, n.o 3, do mesmo diploma), em que o julgamento da materia de facto e de
direito cabe a uma formacao de tres juizes (n.o 3 do artigo 40.o). Este sistema fica a dever-se
ao facto de terem sido transferidas para os tribunais de circulo competencias que, no
passado, se encontravam atribuidas, em primeira instancia, a tribunais superiores.
5.3. Julgamento em formacao alargada e reenvio prejudicial para o Supremo
Tribunal Administrativo
Nos tribunais administrativos de circulo intervirao, porem, no julgamento todos os juizes
se o presidente do tribunal, por razoes atinentes ao thema decidendum, assim o determinar, ou
se a situacao processual o impuser.
Com efeito, em determinadas situacoes . questao de direito nova, que suscite dificuldades
serias e se possa vir a colocar noutros litigios . , a lei confere ao presidente o poder de
determinar que o julgamento se faca em formacao alargada, sendo o quorum de dois tercos
dos juizes do tribunal (artigos 41.o, n.o 1, do estatuto de que se vem falando e 93.o, n.o 1, do
Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos). Estando-se perante processos em
massa (cfr. artigo 48.o do CPTA), o julgamento em formacao alargada tera
obrigatoriamente lugar (n.o 2 do artigo 41.o do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais).
195
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Em alternativa ao julgamento em formacao alargada, quando facultativo, o presidente do
tribunal de circulo pode proceder ao reenvio prejudicial para o Supremo Tribunal
Administrativo, a fim de que este, atraves do pleno da Seccao de Contencioso
Administrativo (cfr. artigo 25.o, n.o 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais),
emita pronuncia vinculativa sobre a questao no prazo de tres meses (artigo 93.o, n.o 1, do
codigo, segunda parte). Trata-se, como se sabe, de um procedimento inspirado nos avis do
Conselho de Estado frances, ampliado, em 2001, a Cour de Cassation 8, cuja relevancia no
sentido da uniformizacao da jurisprudencia administrativa nao e despicienda.
Como facilmente se compreende, o reenvio prejudicial . que, por natureza, nao e
admissivel nos processos urgentes . pode ser liminarmente recusado, a titulo definitivo,
pelo Supremo Tribunal Administrativo, em formacao constituida por tres juizes de entre os
mais antigos da seccao de contencioso administrativo, se nao se encontrarem preenchidos
os respectivos pressupostos ou a escassa relevancia da questao nao justificar a emissao de
pronuncia (n.o 3 do artigo 93.o).
A pronuncia emitida pelo Supremo Tribunal Administrativo nao o vincula para o futuro,
quer em sede de reenvio, quer em sede de recurso (n.o 4).
5.4. O conteudo da sentenca
Do conteudo da sentenca ou acordao se ocupa, em geral, o artigo 94.o, n.os 1 e 2, do
Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos, decalcado, no essencial, sobre o artigo
659.o, n.os 1 e 2, do Codigo de Processo Civil. Quando a questao de direito a resolver for
simples ou a pretensao do autor manifestamente infundada, admite-se uma fundamentacao
sumaria da decisao (n.o 3 do mencionado artigo 94.o).
Mais importante, a todos os titulos, e o regime consagrado no preceito seguinte, sob a
epigrafe Objecto e limites da decisao.
Depois de estabelecer, como regra geral, que o tribunal deve decidir todas as questoes que
as partes tenham submetido a sua apreciacao . principio da plenitude do julgamento . ,
nao podendo ocupar-se, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento
oficioso de outras, senao daquelas que hajam sido suscitadas, o codigo insere um conjunto
de disposicoes relativas a certos processos de accao administrativa especial.
8 Maria da Gloria Garcia, As medidas cautelares entre a correcta prossecucao do interesse publico e a efectividade
dos direitos dos particulares, in Reforma do Contencioso Administrativo . Trabalhos Preparatorios - O Debate Universitario,
Vol. I, Lisboa, 2000, p. 352.
196
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Assim, e desde logo, nos processos impugnatorios, o julgamento deve incidir sobre todas as
causas de invalidade invocadas contra o acto impugnado (salvo se o tribunal nao puder
dispor dos elementos indispensaveis para o efeito); e estabelece-se o dever de identificacao,
pelo tribunal, da existencia de outras, diversas das que tenham sido alegadas . neste caso,
ouvidas as partes para alegacoes complementares, pelo prazo comum de 10 dias, se o
respeito pelo principio do contraditorio assim o exigir (artigo 95.o, n.o 2, do CPTA).
Por outro lado, tendo havido cumulacao dos pedido de anulacao ou de declaracao de nulidade ou
inexistencia de acto administrativo e de condenacao da Administracao ao restabelecimento da situacao que
existiria se o acto impugnado nao tivesse sido praticado [cfr. artigos 4.o, n.o 2, alinea a), e 47.o, n.o 2,
alinea b), do Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos], estabelece-se que, se a
adopcao da conduta devida envolver a formulacao de valoracoes proprias da funcao
administrativa e a apreciacao do caso concreto nao permitir identificar apenas uma
actuacao como legalmente possivel, o tribunal fica impedido de determinar o conteudo da
conduta a adoptar, cabendo-lhe, no entanto, explicitar as vinculacoes a observar pela
Administracao (n.o 3 do artigo 95.o).
Ja se o quadro normativo permitir especificar o conteudo dos actos e operacoes destinados
a remover a situacao directamente criada pelo acto impugnado, mas nao resultarem do
processo elementos de facto suficientes para realizar essa especificacao, o tribunal
notificara a Administracao para apresentar proposta fundamentada sobre a materia, no
prazo de 20 dias, ouvindo-se, seguidamente, os demais intervenientes no processo
(incluindo o Ministerio Publico). Por seu turno, o tribunal pode ainda ordenar as diligencias
complementares que considere adequadas para a decisao final (n.o 5).
Finalmente, estabelece-se no n.o 6 do mesmo artigo 95.o que, tendo sido apresentado
pedido de indemnizacao por danos e nao resultando do processo os elementos necessarios
a liquidacao da indemnizacao, tera lugar uma fase complementar de audicao das partes, por
10 dias cada, seguida da eventual realizacao de diligencias destinadas a tornar possivel essa
liquidacao.
CONSIDERACOES FINAIS
Assim brevemente sumariados os gpassosh da accao administrativa especial, e altura de
fazer um breve balanco do regime vigente.
197
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Por ocasiao da discussao publica do anteprojecto de reforma do contencioso
administrativo, o Conselheiro Fernandes Cadilha apontava como quatro importantes
factores de congestionamento do processo de recurso contencioso os seguintes:
áa) prazos processuais longos (correspondentes, designadamente no que se refere ao prazo de contestacao,
aos do processo declaratorio civil);
b) deducao de defesa sucessiva da autoridade recorrida e dos recorridos particulares, na fase de contestacao;
c) multiplicidade das fases de saneamento do processo;
d) obrigatoriedade de alegacoes finais, mesmo quando nao tenha havido lugar a producao de provaâ9.
Como cumpre reconhecer, na sua formulacao, a tramitacao estabelecida pelo Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos veio, na maior parte dos casos, dar resposta
adequada a essas disfuncionalidades que eram apontadas ao anterior contencioso
administrativo.
Mas para a racionalidade e agilizacao do processo poderiam ainda concorrer, por exemplo,
a admissao de replica . de tal modo que, quando fosse concluso ao juiz ou relator, o
processo ja estivesse instruido com a pronuncia do autor acerca da materia de excepcao,
dessa forma se poupando tempo e trabalho . , a faculdade de realizacao de audiencia
preliminar . pelos beneficios que a mesma pode trazer ao desenvolvimento da accao . e a
consagracao, com regra geral, da dispensa de alegacoes . salvo se o tribunal determinasse a
sua apresentacao ou alguma das partes a requeresse expressamente ate ao termo da
producao de prova.
Todavia, se se mantiverem as conhecidas deficiencias em materia de organizacao e
funcionamento dos tribunais administrativos, tambem isso de pouco valera.
Agosto de 2010
Bibliografia
- Almeida, Mario Aroso de, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra,
4.a ed., 2005 (reimp. 2007)
- Almeida, Mario Aroso de, e Cadilha, Carlos Alberto Fernandes, Comentario ao Codigo de
Processo nos Tribunais Administrativos, 3.a ed. revista, 2010
- Andrade, Jose Carlos Vieira de, A Justica Administrativa (Licoes), 10.a ed., Coimbra, 2009
- Brito, Wladimir, Licoes de Direito Processual Administrativo, Coimbra, 2005
9 Op. cit., pp. 247-248.
198
Temas e Problemas de Processo Administrativo
- Marques, Pedro Marchao, A accao administrativa comum e a accao administrativa especial: algumas
reflexoes, in Cadernos de Justica Administrativa, n.o 76, Julho/Agosto de 2009
- Oliveira, Mario Esteves de, e Oliveira, Rodrigo Esteves de, Codigo de Processo nos Tribunais
Administrativos, Vol. I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais . Anotados, Coimbra,
2004
- Raposo, Joao, A tramitacao da accao administrativa especial, in Cadernos de Justica Administrativa,
n.o 39, Maio/Junho de 2003
- Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Diva da Psicanalise - Ensaio Sobre as
Accoes no Novo Processo Administrativo, Coimbra, 2005
199
Temas e Problemas de Processo Administrativo 200
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Reflexoes breves sobre a accao publica e a accao popular
na defesa do ambiente
Carla Amado Gomes1
0. Questoes previas; 1. O juiz administrativo, juiz natural de accoes promovidas por
entidades investidas em legitimidade alargada para defesa do ambiente?; 2. O universo de
entidades detentoras de legitimidade alargada; 3. As especialidades processuais das accoes
promovidas por entidades investidas em legitimidade alargada para defesa do ambiente; 4.
Algumas questoes avulsas
0. Accao publica e accao popular sao realidades proximas. Uma apontada a defesa do
interesse publico, outra mais voltada para a defesa de interesses da colectividade, incidem
ambas sobre grandezas maiores do que a capacidade de apropriacao do sujeito individual. A
proteccao do ambiente traduz-se num interesse de preservacao de um bem de fruicao
colectiva que se presta a ser defendido atraves de instrumentos de alargamento da
legitimidade processual activa2 „Ÿ pois e disso, e nao de vias processuais especificas, que se
trata. Apesar da indefinicao do bem juridico ambiente que resulta da amalgama de objectivos
reunidos nas varias alineas do no 2 do artigo 66o da CRP „Ÿ que retrata um nitido caso de
obesidade normativa ja por nos recenseado noutro local3 „Ÿ, e possivel, atraves da articulacao
com a Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril = LBA) discernir nos bens
ambientais naturais a nocao operativa de ambiente baralhada pela miopia do legislador
constitucional.
Nao cabe aqui explanar a nossa concepcao restrita de ambiente, que corporiza uma
compreensao relativamente singular na doutrina portuguesa „Ÿ remetemos para estudos
anteriores onde justificamos esta nossa opcao, que insufla de sentido o artigo 66o e que
sublinha a sua relacao existencial com o artigo 52o/3/a) (ambos da CRP), emergente da
1 Doutora em Direito. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Professora
Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
2 Em geral sobre o problema da legitimidade popular no ambito do Direito do Ambiente, podem
ver-se Miguel TEIXEIRA DE SOUSA, Legitimidade processual e accao popular no Direito do
Ambiente, in Direito do Ambiente, INA, 1994, pp. 409 segs; Jose LEBRE DE FREITAS, A accao popular ao
servico do ambiente, in Ab Uno Ad Omnes, 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp.797 segs; Antonio
ALMEIDA, A accao popular e a lesao dos bens ambientais, in Lusiada, 2002/1-2, pp. 367 segs. Em
especial sobre o problema dos efeitos das sentencas, Jose Eduardo FIGUEIREDO DIAS, Os efeitos da
sentenca na Lei de Accao Popular, in CEDOUA, 1999/1, pp. 47 segs.
3 Veja-se o nosso Constituicao e ambiente: errancia e simbolismo, in Textos dispersos de Direito do
Ambiente (e materia relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 21 segs.
201
Temas e Problemas de Processo Administrativo
terceira revisao constitucional4. Mas e forcoso que se estabeleca como pressupostos do
pensamento que iremos desenvolver, por um lado, e numa perspectiva positiva, a natureza
simultaneamente publica e colectiva do bem ambiente „Ÿ que resulta dos artigos 9o/e), 52o/3 e 66o/2
da CRP „Ÿ e, por outro lado, e numa perspectiva negativa, a nao individualidade dos interesses
defendidos ou, por outras palavras, a insusceptibilidade de defender directamente o interesse
ambiental atraves da legitimidade singular tradicional.
Dito isto, convem esclarecer tambem, em termos preliminares, que, salvo quando a
particularidade da solucao processual o justificar, trataremos legitimidade publica e popular
como se de um unico instituto se tratasse. Com efeito, quer o artigo 26oA do CPC, quer o
artigo 9o/2 do CPTA aliam Ministerio Publico e actores populares na lista de entidades
com legitimidade para sindicar a defesa judicial de determinados interesses, embora
remetam para a lei a fixacao do regime concreto desta modalidade de intervencao
processual. A excepcao reside, precisamente, na Lei 83/95, de 31 de Agosto (=LAP), cujo
artigo 2o/1 omite, enigmaticamente, a referencia ao Ministerio Publico „Ÿ apenas o artigo
16o o menciona, agindo em substituicao do autor desistente, em homenagem a relevancia
social dos interesses em jogo5. Ausencia tao mais singular quanto o caso seminal da
jurisprudencia ambiental portuguesa decidido pelo Tribunal Judicial de Coruche em 1990 „Ÿ
o Caso das cegonhas brancas (proc. 278/89, de 23 de Fevereiro) „Ÿ resultou de uma iniciativa
processual do Ministerio Publicoc
Quica a ausencia se deva ao facto de a LAP ser tambem aplicavel ao procedimento
administrativo (e tambem uma lei sobre participacao procedimental) e, neste contexto, a
figura da iniciativa publica ser ignorada „Ÿ cfr. o artigo 53o/2 do CPA, que pre-existiu a
LAP. No entanto, e sem pormos em causa o principio da prioridade das iniciativas
particular e popular no procedimento administrativo „Ÿ um pouco pela natureza das coisas,
outro tanto como forma de promover a democracia participativa „Ÿ, sempre observaremos
que a solucao prevista no artigo 68o/1/c) do CPTA e passivel de fundar a intervencao do
Ministerio Publico no plano procedimental, ainda que a titulo subsidiario, quanto a actos
vinculados cuja ilegal omissao pela Administracao constitua ofensa de direitos
fundamentais dos particulares, bem assim como de interesses publicos especialmente
4 Vejam-se os nossos O ambiente como objecto e os objectos do Direito do Ambiente;
Ambiente (Direito do); e O direito ao ambiente no Brasil: um olhar portugues, todos em Textos
dispersos de Direito do Ambiente, I, reimp., Lisboa, 2008, pp. 7 segs, 73 segs, e 271 segs, respectivamente.
5 Identica estranheza revela Antonio ALMEIDA, A accao popularc, cit., p. 375.
202
Temas e Problemas de Processo Administrativo
relevantes e demais interesses reconduziveis ao lote inscrito nos artigos 52o/3/a) da CRP,
1o/2 da LAP, e 9o/2 do CPTA6.
Cumpre tambem assinalar que, devido ao contexto situacional desta intervencao „Ÿ num
seminario sobre A nova intervencao da justica administrativa „Ÿ, privilegiar-se-a a referencia a
utilizacao da legitimidade alargada em accoes propostas nos tribunais administrativos. A lei,
como se sabe, admite o recurso ao instituto em ambas as jurisdicoes, como a mencao que
fizemos supra aos dispositivos que consagram a figura no CPC e no CPTA demonstra, e o
artigo 12o da LAP confirma. Nao e esta, no entanto, a nossa preferencia, uma vez que
entendemos que, enquanto bem simultaneamente publico e colectivo, o ambiente qua tale
deve ser defendido junto da jurisdicao com competencia especializada para questoes de
direito publico. Sobre este ponto, vale a pena deixar algumas linhas de maior
desenvolvimento em 1..
Depois de abordarmos o problema da jurisdicao, convem debrucarmo-nos sobre a
natureza dos sujeitos investidos em legitimidade popular „Ÿ uma vez que sao de varia
ordem (2.). A heterogeneidade reclama algumas consideracoes, bem assim como a aparente
reserva do direito a cidadaos no pleno gozo de direitos civis e politicos, ou a duvidosa
exigencia de um nexo de proximidade territorial entre o autor popular e o bem lesado.
As questoes mais relevantes serao tratadas no ponto 3. „Ÿ nomeadamente as
especialidades que a via da legitimidade popular traz, a luz da LAP. A (con)fusao que a
LAP operou entre interesses difusos e interesses individuais homogeneos perturba a
inteligibilidade das solucoes.
Finalmente, equacionaremos de forma avulsa algumas duvidas que o instituto da
legitimidade popular particularmente nos suscita (4.).
1. Nao pode afirmar-se que a nova legislacao do contencioso administrativo tenha
introduzido alteracoes substanciais na materia da legitimidade popular, na medida em que o
artigo 9o/2 do CPTA remete para a LAP a definicao dos tracos gerais do regime que
especializa, em questoes pontuais, o quadro tracado no CPTA (e no CPC, no que a accao
administrativa comum concerne „Ÿ cfr. o artigo 42o/1 do CPTA). Salvo, porventura, e no
que tange ao ambiente, a correccao de um equivoco de ha muito detectado por doutrina e
jurisprudencia atraves do artigo 6o da Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro: a revogacao
6 Com efeito, a legitimidade processual reconhecida na disposicao citada conduz necessariamente a
admitir a legitimidade procedimental com vista a formacao dos pressupostos de utilizacao da accao para a
condenacao a pratica de acto devido, plasmados no artigo 67o/1 do CPTA.
203
Temas e Problemas de Processo Administrativo
substitutiva do artigo 45o da LBA, no sentido de o conformar ao parametro constitucional
do artigo 212o/3 da CRP7. Com efeito, na versao original (de 1987), o artigo 45o da LBA
reservava ao contencioso civel o julgamento das accoes emergentes de litigios
jusambientais, partindo de um pressuposto claramente personalista e privatista desta
disciplina. Na versao actual, e a natureza da relacao juridica subjacente ao litigio que
decidira a questao da atribuicao da jurisdicao8.
Na sequencia desta modificacao, o artigo 4o/1/l) do ETAF da um segundo passo na
clarificacao do que deve entender-se por relacao juridica administrativa no dominio da
gestao de bens de fruicao colectiva „Ÿ mais vulgarmente designados por interesses difusos.
A disposicao aponta claramente um criterio „Ÿ o da natureza do sujeito „Ÿ e indicia, numa
leitura sistematica, outro „Ÿ o da natureza dos poderes desenvolvidos pelo sujeito. Ou seja, numa
primeira analise, cabe aos tribunais administrativos o julgamento de questoes emergentes
de comportamentos que consubstanciem lesao ou ameaca de lesao de bens ambientais
levadas a cabo por entidades organicamente publicas, bem como de entidades que, muito
embora revistam forma privada, desempenham funcoes materialmente administrativas.
Aqui chegados, pode questionar se no termo gviolacoesh se compreendem apenas
actuacoes de natureza activa, juridicas e materiais, ou tambem comportamentos omissivos.
Parece cristalino que esta segunda dimensao deve ser considerada; mas apenas para
omissoes directas dos poderes publicos (e equivalentes) ou tambem para omissoes de
fiscalizacao das actividades de entidades privadas? Repare-se que, se assim for, e por forca
da possibilidade de demanda conjunta de entidades publicas e privadas (cfr. o artigo 10o/7,
mas tambem, com determinados pressupostos, o artigo 37o/3, ambos do CPTA), um
privado que, por accao ou omissao viole normas de proteccao de bens ambientais naturais,
pode ser demandado nos tribunais administrativos, uma vez que estara consubstanciada
uma relacao juridica administrativa na omissao indevida da entidade com competencia
fiscalizadora9.
7 Cfr. Miguel TEIXEIRA DE SOUSA, A competencia material para a accao popular
administrativa, Anotacao ao Acordao do Tribunal de Conflitos de 11 de Janeiro de 2000, in CJA, no 23,
2000, pp. 28 segs.
Ver tambem os Acordaos do mesmo Tribunal de 6 de Abril de 2000 (proc. no 347) e de 28 de Novembro de
2000 (proc. n.o 345).
8 Regressamos aqui a um ponto ja objecto de reflexao anterior „Ÿ cfr. Carla AMADO GOMES, A
ecologizacao da justica administrativa: brevissima nota sobre a alinea l) do no 1 do artigo 4o do
ETAF, in Textosc, I, cit., pp. 249 segs.
9 Cfr., todavia, o Acordao do Tribunal dos Conflitos de 9 de Dezembro de 2008 (proc. n.o 17/08),
no qual se afirmou que:
gPese a peculiar natureza da accao popular, a que subjaz a defesa de interesses publicos, ainda que exercida por
um particular, nao pode considerar-se que esteja em causa uma relacao de natureza administrativa, nem quanto aos sujeitos,
204
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Esta afirmacao ganha sentido quando contextualizamos a relacao juridica ambiental a
partir de uma logica de proibicao sob reserva de autorizacao. A maxima de prevencao que norteia
o Direito do Ambiente „Ÿ e que o legislador constituinte nao deixou de ressaltar na alinea a)
do no 2 do artigo 66o da Lei Fundamental „Ÿ determina a necessidade de autorizacao da
esmagadora maioria das intervencoes susceptiveis de causar impactos relevantes no meio
natural. Dai advem a natureza de juiz natural do julgador administrativo ambiental (passe o
pleonasmo): a relacao juridica tera normalmente por base um acto autorizativo „Ÿ ou uma
norma de um plano especial com suficiente densidade para dela resultarem vinculacoes
especificas para os sujeitos „Ÿ, cuja presenca e susceptivel de arrastar o litigio para os
tribunais administrativos10.
Repare-se que, mesmo nao sendo sindicada „Ÿ num tribunal civel „Ÿ a validade do acto
mas apenas e so a ilicitude da conduta do titular da autorizacao, grande probabilidade existira
em que este se defenda alegando estar a agir a sombra de um acto conformador da sua
actividade, chamando a Administracao a demanda, facto que podera gerar da parte do
tribunal um convite a suspensao dos autos11 e a propositura de uma accao administrativa
especial com vista a declaracao de nulidade do acto, cumulada com um pedido
indemnizatorio deduzido contra a Administracao (cfr. o artigo 97o/1 do CPC)12. Perante a
nem quanto ao objecto, mau grado a conexao que existe com o interesse publico e a defesa de interesses difusos que a accao
postula.
(c)
O facto de a pretensao do autor ser exercida contra um particular, visando a defesa do que considere um bem do
dominio publico autarquico, nao permite que se qualifique a relacao juridica como administrativa, o que exclui, desde logo, a
competencia da jurisdicao administrativah.
10 Contra: Acordao do STA de 11 de Dezembro de 1995 (proc. n.o 96A483), relativo a um pedido de
suspensao de actividade de venda de combustiveis licenciada, remetido para o tribunal comum; Acordao do
STJ de 23 de Outubro de 1997 (proc. n.o 98A200), caracterizando os tribunais comuns como competentes
para avaliar a legalidade da decisao de localizacao de um centro de tratamento de residuos (note-se que ambos
os arestos foram prolatados em tempo de vigencia da versao inicial do artigo 45o da LBA; num caso identico
ao segundo, o STJ, em Acordao de 26 de Janeiro de 2006 - proc. n.o 05B3661 . entendeu ser a administrativa
a jurisdicao competente para apreciar a validade da decisao de localizacao, estabelecendo um dialogo com o
Acordao de 1997 que espelha bem a confusao que grassa no entendimento desta questaoc).
A favor da solucao indicada no texto, vejam-se os Acordaos do Tribunal dos Conflitos de 11 de
Dezembro de 2001 (proc. n.o 372), do STJ de 24 de Janeiro de 2002 (proc. n.o 01A3241) e do TCASul de 14
de Abril de 2005 (proc. n.o 632/05).
11 Note-se que o principio de que o juiz competente para a causa principal tem tambem competencia
para resolver, com efeitos restritos ao processo sub judice, questoes prejudiciais „Ÿ traduzido no artigo 97o do
CPC „Ÿ, permite ao juiz civel como que avocar (ou ignorar) a dimensao administrativa da questao. No
entanto, perante a maxima do artigo 212o/3 da CRP, temos as mais serias duvidas de que, fora dos casos de
nulidade do acto (que pode ser sindicada e declarada por qualquer tribunal), o juiz civel tenha competencia
para, mesmo restrito ao processo, pressupor a anulabilidade de um acto (descontado ja o problema do prazo
de impugnacao, muito provavelmente ja esgotado) e para decretar a efectivacao de responsabilidade civil
extracontratual da Administracao solidaria por acto de gestao publicac
12 Ou uma accao administrativa comum de efectivacao da responsabilidade da Administracao
abdicando de sindicar (por esgotamento do prazo de impugnacao de actos anulaveis) a validade do acto „Ÿ
artigo 38o/1 do CPTA.
205
Temas e Problemas de Processo Administrativo
inercia do autor, o tribunal civel apreciara o litigio na sua coloracao puramente privatista13 e
podera ate chegar a conclusao de que o reu age sem culpa por a ilicitude residir no padrao
de actuacao (no acto). O que obrigara o autor a propor nova accao, agora junto dos
tribunais administrativos, contra a Administracaoc Ora, talvez mais valesse ter comecado
por ai.
Problematico (ou mais problematico) e saber se a publicizacao do litigio ocorre apenas
em situacoes de pre-existencia de acto autorizativo „Ÿ ou norma regulamentar atributiva do
concreto dever de fiscalizacao „Ÿ, ou se a densificacao da omissao ocorre por mera violacao
do comando constitucional que impoe as entidades publicas a tarefa de proteccao do valor
ambiente. A ser assim, mesmo em situacoes de actuacao clandestina (sem acto
corporizador da relacao autorizativa, necessario ou nao14), o requerente teria a opcao de
apresentacao da accao, principal e/ou cautelar, na jurisdicao administrativa. Sublinhe-se
que, nestas situacoes, a legitimidade passiva forma-se em litisconsorcio passivo necessario
entre a(s) autoridade(s) administrativa(s) a quem se imputa a omissao e o particular
prevaricador, contra quem se deduzem pedidos de facere.
Cumpre assinalar que, posicionando-nos em sede de accao administrativa comum
(nomeadamente, em situacoes reconduziveis ao tipo de pedidos descritos no artigo
37o/2/c) do CPTA), o pressuposto do no 3 do artigo 37o do CPTA deve ser adaptado, sob
pena de inviabilizar qualquer accao deste tipo promovida por autores populares contra
privados (nao ha, na verdade, uma gofensa directah a direitos ou interesses daqueles, tendo
em consideracao a grandeza que nos ocupa). Admitindo um compromisso entre os fins da
norma „Ÿ que traduz um principio de preferencia pela pronuncia administrativa previa, a
semelhanca do que sucede na accao administrativa especial de condenacao a pratica de acto
devido (e que, ao cabo e ao resto, so espelha a subsidiariedade da intervencao do tribunal
na conformacao da relacao administrativa) „Ÿ e os objectivos de proteccao de interesses
difusos, admitimos que os autores populares devam provar ao tribunal administrativo que a
13 Note-se que o artigo 97o do CPC nao permite ao juiz julgar, como pedido principal, a pretensao
condenatoria deduzida contra a Administracao, na medida em que nao se trata ai de um mero incidente,
referindo-se antes a licitude de uma actividade que traduz o exercicio da funcao administrativa.
14 Repare-se que o regime de responsabilidade por dano ecologico, aprovado pelo DL 147/2008, de
29 de Julho, preve a responsabilizacao de qualquer agente, publico ou privado, que provoque danos ao
ambiente, mesmo fora do elenco de actividades indicadas como envolvendo um risco potencial (anexo III) „Ÿ
ou seja, mesmo em casos de desenvolvimento de comportamentos que nao exijam autorizacao previa. A esta
responsabilizacao precede um dever de prevencao que impende em primeira linha sobre o agente mas
subsidiariamente sobre a Administracao.
Resta saber se num Estado Social que luta com falta de meios, tecnicos e humanos, sera razoavel exigir o
cumprimento de tao herculea tarefa „Ÿ embora essa questao ja resvale para o merito da accao e nao impeca o
reconhecimento, a partida, de jurisdicao ao tribunal administrativo (uma vez definida a natureza do bem
como criterio atributivo de jurisdicao).
206
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ele recorrem em virtude da inercia da Administracao, e que essa prova seja essencial a
abertura das portas da jurisdicao administrativa15.
Ate aqui parece, assim, configurar-se um quadro de duplicidade:
- por um lado, estando em causa violacoes de normas jusambientais perpetradas por
entidades publicas (ou equivalentes), o contencioso natural das accoes movidas por autores
populares ou pelo MP sera o administrativo. Esta hipotese, suportada pelo artigo 4o/1/l)
do ETAF, abarca quer actuacoes directas, quer indirectas „Ÿ violacoes levadas a cabo por
privados cuja actividade se encontra titulada por acto autorizativo no qual radicam deveres
de fiscalizacao da actividade do titular da autorizacao;
- por outro lado, estando em causa violacoes de normas jusambientais perpetradas por
entidades privadas (nao exercendo funcoes materialmente administrativas) sem base em acto
autorizativo, ha uma situacao de alternativa, devendo os autores populares provar a
denuncia previa da situacao as autoridades competentes e a sua inercia para poderem
recorrer aos tribunais administrativos. Sem esta operacao previa, o litigio tera uma
coloracao puramente privada „Ÿ apesar da natureza publica do bem lesado ou ameacado de
lesao16 „Ÿ, que permitira o conhecimento pelos tribunais comuns (sem a presenca da
Administracao em juizo, naturalmente).
15 Isto dando de barato que os autores populares „Ÿ e o MP „Ÿ detem legitimidade na accao comum,
situacao que a ausencia de referencia no artigo 37o do CPTA, ao contrario da expressa mencao no artigo
40o/no 1/b) e no 2/c) e d) do CPTA, poderia fazer duvidar. Pronunciando-se no sentido afirmativo, salvo
para o MP, J. C. VIEIRA DE ANDRADE, A justica administrativa (Licoes), 8a ed., 2006, p. 211, nota
404 „Ÿ embora o argumento utilizado, da inexistencia de alusao ao MP, em bom rigor, valha tambem para os
autores populares; nao sera de invocar antes o paralelo com o artigo 26oA do CPC para justificar tambem a
possibilidade de accao publica, matriz primordialmente adoptada em sede de accao comum?
Duvidosa pode revelar-se a "adaptacao" do no 3 do artigo 37o a intervencao do MP, uma vez que se
estara ai perante a defesa de interesses que, na sua optica funcional, sao publicos. Tenderiamos, ainda com
reservas, a excluir a possibilidade de intervencao do contencioso administrativo contra privados como reus
principais, nao so em razao da letra do no 3 do artigo 37o, como da estrutura dos interesses em jogo e da
aptidao funcional do MP.
16 Sublinhe-se que o criterio da natureza publica do bem nao determinaria a jurisdicao exclusiva dos
tribunais administrativos em todos os litigios jusambientais. Pense-se, de iure condendo e assente na premissa da
consagracao do criterio da natureza do bem enquanto atributivo de jurisdicao aos tribunais administrativos ,
no seguinte caso: um proprietario de uma mata constituida por especies protegidas reclama de um incendiario
uma indemnizacao pela destruicao causada pelo fogo. Trata-se de um dano ecologico que e, na configuracao
do objecto do processo pelo seu autor, um dano patrimonial. As medidas de reconstituicao natural, primaria e
complementar, exigidas pelo proprietario, serao, em regra, suficientes para cumprir os objectivos da lei. Esta
accao sera proposta nos tribunais comuns, dado o ofensor ser privado e o objecto da accao ser de natureza
privada „Ÿ embora com refraccao publica (a afectacao do equilibrio do ecossistema).
Caso uma associacao de defesa do ambiente reclamasse, nos tribunais administrativos „Ÿ porque, aos olhos desta
entidade, a natureza do dano e diversa „Ÿ a efectivacao da responsabilidade pelo lesante, esta accao teria
forcosamente que ser suspensa ate decisao da primeira, uma vez que os pedidos sao parcialmente
sobrepostos. E a inversa e identicamente verdadeira, em virtude da (justa) proibicao de dupla reparacao a que
alude o artigo 10o do DL 147/2008: no caso de o proprietario intentar a accao em segundo lugar, ficariam os
autos suspensos ate decisao da accao apresentada pela associacao, cabendo ao proprietario, a final, reclamar o
ressarcimento de alguma parcela remanescente do dano (patrimonial) „Ÿ e sendo admitida a sua intervencao
espontanea na accao proposta pelos autores populares.
207
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Ha, todavia, mais um aspecto a considerar nesta problematica, que se prende com a
parte final da alinea l) do no 1 do artigo 4o do ETAF. Ai se exclui da jurisdicao
administrativa os contenciosos das contra-ordenacoes17 e dos crimes ecologicos,
respectivamente sediados na Lei 50/2006, de 29 de Agosto, e nos artigos 274o, 278o, 279o
e 281o do Codigo Penal (e outros previstos em leis avulsas). Estranho local para incluir uma
zona de exclusao na economia do artigo 4o: na verdade, os nos 2 e 3 parecem zonas mais
adequados a insercao desta interdicao. A incomodidade adensa-se quando, pelo menos no
que tange aos procedimentos contra-ordenacionais, verificamos que, se e certo que a
iniciativa pode ser promovida por autores populares ou por delegados do MP junto das
entidades administrativas competentes para aplicacao da coima, a contestacao judicial e do
interesse do lesante. Ora, estando a norma construida a pensar em entidades que
promovem a defesa do ambiente (entre outros), a referencia aos procedimentos contraordenacionais,
ai, nao faz, salvo melhor opiniao e reflexao, grande sentido.
Ja quanto aos ilicitos criminais a perspectiva e outra, dado tratar-se de crimes publicos
cuja acusacao pode ser deduzida pelo MP, atraves da accao publica18. Neste caso a mencao
ganha significado, afastando os tribunais administrativos do julgamento destas accoes. Mas
o gdeslocamentoh e notorio, podendo dar ate a impressao de que o legislador do ETAF
quis afinal reservar para a justica administrativa os litigios criminais e contra-ordenacionais
alheios aos dominios dos interesses difusos.
Deve insistir-se, para finalizar, na natureza de interesse publico do objecto da accao.
Quando ha autores populares ou agentes do MP a promover a accao de defesa do ambiente
o que se almeja, em primeira linha, e a defesa de interesses supraindividuais. Nao se trata de
direitos subjectivos, mas antes de interesses de facto na fruicao das qualidades de um bem
ameacado ou lesado pela actuacao de um particular ou de um ente publico. Esta
observacao e particularmente importante nas accoes em que se nao pede apenas a cessacao
do comportamento lesivo (ou potencialmente lesivo) ou a actuacao positiva no sentido da
evitacao do dano, mas ja o ressarcimento de um dano ecologico (puro). Note-se que, quer
nos termos da LBA (artigo 48o), quer do CC (artigo 566o/1), quer da Lei 67/2007, de 31 de
Dezembro (artigo 3o/2), a reconstituicao in natura e o modo preferencial de efectivar a
17 Reserva de jurisdicao essa decorrente de razoes historicas e praticas e concretizada nos artigos 61o
e 73o do DL 433/82, de 27 de Outubro (com alteracoes posteriores).
18 Cfr., alias, o artigo 25o da LAP, reconhecendo direito de denuncia ao MP aos titulares de
legitimidade popular com vista a deducao, por este, de queixa-crime, com a possibilidade de aqueles se
constituirem assistentes no processo. PAULO OTERO chama-lhe uma quase-accao popular penal . A
accao popular. Configuracao e valor no actual Direito portugues, in ROA, 1999, III, pp. 871 segs, 881.
208
Temas e Problemas de Processo Administrativo
responsabilidade do agente de um dano ecologico. Ora, nos casos em que as medidas de
reparacao primaria e complementar nao sejam suficientes para repor o status quo ante do
bem lesado e se lance mao de medidas de fim da linha (compensatorias) que se traduzam
no pagamento de quantias pecuniarias, e imperioso caracterizar a natureza publica destes
montantes e a afectacao ao Fundo de Intervencao Ambiental (criado pela Lei 50/2006, de
29 de Agosto, e implementado pelo DL 150/2008, de 30 de Julho).
2. O leque de sujeitos investido em legitimidade popular, nos termos dos artigos 2o e 3o da
LAP, e constituido por:
i) Cidadaos no gozo dos seus direitos civis e politicos, isoladamente ou em grupo;
ii) Associacoes e fundacoes que tenham por funcao estatutaria a promocao do ambiente;
iii) Autarquias locais gem relacao aos interesses de que sejam titulares residentes na area
da respectiva circunscricaoh.
i) Relativamente a este primeiro grupo, convem sublinhar, por um lado, que o exercicio
do direito de acesso a justica investido em legitimidade popular nao e um direito exclusivo
dos portugueses mas tambem de todos os estrangeiros que em Portugal (ou no estrangeiro,
em virtude de fenomenos de poluicao transfronteirica com origem em Portugal) detectem
ameacas a bens ambientais naturais19. Nao vamos alargar-nos neste ponto, ja por nos
escalpelizado em momento anterior20. Deixamos apenas a conclusao no sentido de que a
glegitimidade popularh a que a Constituicao se reporta no artigo 52o/3 nao e apenas a
gaccao popular correctivah prevista no Codigo Administrativo de 1936/40, ainda em vigor
em 1976, mas um conceito mais vasto „Ÿ e por isso mais equivoco na adopcao de uma
formula ja gcarregada de sentidoh „Ÿ, extensivel a tutela de interesses difusos. Nessa
perspectiva, condicao de exercicio do direito de accao nao e ser eleitor (interessado na
legalidade dos actos praticados pelos orgaos cujos titulares elege) mas ser pessoa
(interessado na qualidade de fruicao de bens colectivos)21.
19 Contrariamente ao que sucede no Brasil, onde a Lei 4.717, de 29 de Junho de 1965 (Lei da accao
popular, com alteracoes posteriores), exige a prova da cidadania como condicao de capacidade judiciaria do
autor popular (artigo 1o, ˜3o).
20 No nosso D. Quixote, cidadao do mundo: da apoliticidade da legitimidade popular para defesa de
interesses transindividuais, Anotacao ao Acordao do STA, I, de 13 de Janeiro de 2005, in Textos dispersos
de Direitos do Ambiente (e materias relacionadas), II, Lisboa, 2008, pp. 7 segs. Veja-se tambem Antonio Almeida, A
accao popularc, cit., p. 375.
21 Propugnando a necessaria condicao de eleitor para o investimento do sujeito em actor popular,
vejam-se os Acordaos: do STA de 25 de Marco de 2004 (proc. n.o 1581/03), e do TCASul de 13 de Janeiro de
2005 (proc. n.o 85/04) e de 17 de Maio de 2007 (proc. n.o 2467/07).
209
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Por outro lado, a condicao de residencia para que aponta o artigo 15o/3 da LAP nao e
aplicavel a legitimidade popular em sede de interesses difusos mas apenas quanto a
interesses individuais homogeneos. Sobre este ponto, tambem ja nos pronunciamos noutro
local, para onde remetemos os desenvolvimentos necessarios22. Resta sublinhar que a
natureza imaterial e plurilocalizada das utilidades dos bens naturais faz com que qualquer
cidadao possa agir em sua defesa, independentemente do contacto efectivo com o suporte
corporeo e que se encerra (v.g., descargas poluentes num rio do Norte do pais sindicadas
por um residente em Faro). A natureza das coisas fara com que as accoes sejam
promovidas por quem esta mais proximo do bem, em razao da maior probabilidade de
percepcao da sua degradacao, mas em teoria a legitimidade e extensivel a qualquer cidadao
nacional ou estrangeiro.
ii) No que toca as accoes promovidas por entidades associativas e fundacionais, cumpre
assinalar o pressuposto da especialidade das atribuicoes estatutarias, frisado pelo legislador
no artigo 3o. Perante a nocao amplissima de ambiente para que somos arrastados pelo
artigo 66o da CRP, dir-se-ia que esta conformidade nao constitui problema, uma vez que
tudo e ambiente „Ÿ saude, urbanismo, ordenamento do territorio, arquitectura urbanac No
entanto, e ainda que assim se entenda, sempre se exigira um segundo controlo, se no caso
couber, tendo em consideracao o
ambito geografico de actuacao da associacao ou fundacao (cfr. o artigo 7o/3 da Lei 35/98,
de 18 de Julho, sobre as ONGAs)23. Podera dizer-se que ha aqui uma contradicao no nosso
pensamento, por nos termos manifestado de forma tao generosa para com os cidadaos e
tao rigorosos para as ONGAs. Mas nao e assim: a personalidade colectiva e uma
personalidade criada em atencao a objectivos (estatutarios) determinados. Se a accao
extravasar este ambito, a associacao nao pode actuar „Ÿ porque ela propria se auto-limitou
na sua capacidade de actuacao24. O que nao impede os seus dirigentes e associados de agir
investidos em legitimidade popular, despidos do colete institucional25.
22 Carla AMADO GOMES, O Provedor de Justica e a tutela de interesses difusos, in Textos
dispersosc, II, cit., pp. 235 segs, 248 segs.
23 V.g., a Associacao de defesa dos sobreiros do Ribatejo nao podera agir em defesa de um conjunto de
sobreiros sito no Algarve.
Neste sentido, Antonio Almeida, A accao popularc, cit., p. 375. Ver tambem o Acordao do STA de 17 de
Maio de 2007 (proc. n.o 107/07).
24 Sobre o direito de accao judicial das ONGAs, numa perspectiva de reparticao de poderes de
definicao legislativa do estatuto de ONGAs regionais (por decreto legislativo regional) em face da LAP, v. o
recentissimo Acordao do Tribunal Constitucional 119/2010, tirado em fiscalizacao preventiva da
constitucionalidade, ponto 11.
25 Mas atente-se em que o artigo 11o/2 da Lei 35/98, de 17 de Julho, isenta as ONGAs de preparos,
custas e imposto de selo em todos os processos em que intervenham „Ÿ regime ainda mais favoravel,
210
Temas e Problemas de Processo Administrativo
iii) O terceiro caso, respeitante as autarquias „Ÿ leia-se: municipios e freguesias „Ÿ e o que
nos suscita mais duvidas, na medida em que estas entidades estao constitucional e
legalmente comprometidas na tarefa de proteccao do ambiente, facto que lhes confere
competencia propria de actuacao nesta sede, independentemente do recurso aos tribunais
(cfr. os artigos 13o/l) e 14o/h) da Lei 159/99, de 14 de Setembro). Ou seja, o exercicio da
tutela declarativa, dentro da sua competencia, precede e prefere (quer por argumentos de
economia processual quer por razoes ligadas a separacao de poderes) a via judicial. Nao
enjeitamos, no entanto, a existencia de hipoteses de defesa de bens ambientais naturais
pelas autarquias contra entidades publicas (problemas de delimitacao de competencias, por
exemplo) ou contra entidades privadas mas numa perspectiva puramente patrimonialistica
(v.g., accoes de reivindicacao de propriedade em zona de reserva natural). O que nao e ja e
accao popular para defesa de interesses difusosc
A lei parece querer reportar-se ao fenomeno da representacao sem mandato analogo ao
que esta subjacente ao mecanismo de tutela de interesses individuais homogeneos no artigo
15o da LAP. Simplesmente, se ai se prescinde da gvinculacao territorialh, no caso das
autarquias esta e intrinseca a sua natureza de entes territoriais (um principio da
especialidade por natureza e nao por acto voluntario) e tera, portanto, de verificar-se para
poder suportar esta representacao26.
Nao pode fechar-se este ponto sem aludir, uma vez mais, ao Ministerio Publico. Como
se avancou logo de inicio, as razoes da exclusao do leque de entidades enunciadas no artigo
2o/1 podem estar relacionadas com o facto de a LAP ser tambem um regime de
alargamento da legitimidade procedimental, realidade da qual o MP estara, em regra,
arredado. No entanto, nos locais especificamente contenciosos, o MP esta presente
enquanto detentor de poder de accao publica. Sublinhe-se que a sua actuacao, no que tange
a interesses difusos, se traduz numa intervencao duplamente qualificada: age em defesa da
legalidade objectiva e da qualidade material de fruicao do bem natural ameacado ou lesado.
Alem da iniciativa processual „Ÿ quer em accoes administrativas comuns, quer em accoes
administrativas especiais, a titulo principal e cautelar, e na intimacao para consulta de
portanto, do que o da gaccao popularh (veja-se o artigo 20o da LAP).
26 Cfr. a sentenca do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra 16 de Marco de 2007 (proc. n.o
1354/06), a proposito da legitimidade da autarquia para apresentar, alegadamente investida em legitimidade
popular, uma providencia cautelar de suspensao de eficacia do acto de licenciamento de linhas de alta tensao
pelo Ministerio da Economia, alegando violacao quer de direitos individuais dos fregueses, quer de interesses
difusos. O Tribunal entendeu haver ilegitimidade quanto a parte do pedido relativa a direitos individuais,
nomeadamente de propriedade.
211
Temas e Problemas de Processo Administrativo
documentos27 „Ÿ, o MP tem ainda legitimidade substitutiva (de actores populares) em caso
de desistencia (nos enigmaticos termos do artigo 16o/3 da LAP28). As duvidas quanto a
possibilidade de utilizacao da accao comum pelo MP ja foram aduzidas supra „Ÿ escusamonos
a regressar ao problema.
Cumpre tambem assinalar as especiais prerrogativas que ao Ministerio Publico sao
concedidas no plano do contencioso de normas. Olhando para os artigos 73o/3 e 130o/3
do CPTA, rapidamente nos apercebemos da posicao privilegiada do MP nesta sede: so ele
pode pedir declaracao de nulidade com efeitos erga omnes sem esperar pela desaplicacao em
tres casos concretos (tendo o dever de requerer tal declaracao uma vez registados estes), e
so ele pode requerer a suspensao jurisdicional de eficacia de normas (imediatamente
exequiveis) com efeitos erga omnes independentemente da alegacao da recusa de aplicacao da
norma em tres casos anteriores29.
3. A legitimidade popular e uma extensao da legitimidade processual „Ÿ logo, um
pressuposto processual, que neste caso dispensa a prova do interesse directo e pessoal. Nao
se trata de um meio processual, mas antes se traduz num conjunto de especialidades processuais
que se enxertam nos meios processuais concretamente utilizados pelos autores populares,
na jurisdicao administrativa ou na civel30. Esta afirmacao decorre claramente do artigo 12o
da LAP. Ja o leque de especialidades que a legitimidade popular acarreta nao se pode
considerar tao nitido. Vejamos porque.
27 Cfr. o artigo 104o/2 do CPTA.
28 O que querera o legislador dizer com a segunda parte do no 3 do artigo 16o da LAP? Querera
afirmar que o Ministerio Publico pode obrigar o autor a desfazer a transaccao ou áapea-loâ do processo em
caso de ácomportamentos desviantesâ? Julgamos que se a transaccao nao servir o interesse colectivo e publico
objecto da accao, cabera ao juiz recusar a sua homologacao [a admitir que haja disponibilidade deste interesse,
pois se nao existir, a lei veda a transaccao (cfr. o artigo 1249o do CC). Manifestando-se contrarios a
possibilidade de transaccao, Antonio Almeida, A accao popularc, cit., p. 376, e Sylvia CAPPELLI, Acesso
a justica, a informacao e participacao popular em temas ambientais no Brasil, in Aspectos processuais do
Direito Ambiental, coord. J. Rubens Morato Leite e Marcelo Buzaglio Dantas, Rio de Janeiro/S. Paulo, 2003,
pp. 276 segs, 306]. Ja no caso de o autor popular adoptar comportamentos lesivos dos interesses difusos que
pretende defender, o juiz devera condenar por litigancia de ma fe, apelando ao conceito inscrito no artigo
456o do CPC, e absolver o reu do pedido.
29 Noutro local nos manifestamos criticamente sobre estas normas. Veja-se o nosso Duvidas nao
metodicas sobre o novo processo de impugnacao de normas do CPTA, in Textos dispersos de Direito do
Contencioso Administrativo, Lisboa, 2009, pp. 503 segs, max. 512 segs. Veja-se tambem Mario LEMOS PINTO,
Impugnacao de normas e ilegalidade por omissao no contencioso administrativo portugues,
Coimbra, 2008, pp. 307-309
30 Tal como tivemos oportunidade de explicar desenvolvidamente no nosso Accao popular e efeito
suspensivo do recurso: processo especial ou especialidade processual?, in Textos dispersosc, I, cit., pp.
105 segs. Ver tambem Farsa em dois actos: enganos e desenganos sobre o artigo 18o da Lei 83/95, de
31 de Agosto, no mesmo loc. cit., pp. 177 segs.
Neste sentido, vejam-se os Acordaos do STA de 31 de Janeiro de 2002 (proc. n.o 47338), de 7 de
Marco de 2006 (proc. no 380/05) e do Pleno do STA, de 29 de Junho de 2004 (proc. n.o 1334/03).
212
Temas e Problemas de Processo Administrativo
A LAP nao regula apenas a legitimidade popular, mas tambem o instituto da accao de
grupo „Ÿ filiada na class action americana „Ÿ ou, noutra expressao que preferimos, a figura dos
interesses individuais homogeneos. Esta biparticao torna-se cristalina quando atentamos
mais detidamente em normas como os artigos 14o, 15o, 19o e 22o/2, 3 e 4. Nestas
disposicoes, o legislador teve por objectivo resolver o problema de representacao atipica
em casos de interesses individualizados pertencentes a pessoas afectadas por um risco de
origem identica, tais como ingestao de agua contaminada proveniente de um mesmo furo
artesiano, ou intoxicacao por emissoes poluentes produzidas por uma mesma unidade
industrial. Os interesses nao sao relativos a bens individualmente inapropriaveis, mas antes
se reportam a bens pessoais (integridade fisica; patrimonio). Directamente, bem entendido,
uma vez que a sua tutela podera reverter indirectamente a favor de toda a comunidade e do
proprio ambiente enquanto ecossistema.
Note-se que o artigo 48o do CPTA constitui uma forma de agilizacao
processual . pelo menos para o(s) processo(s) seleccionado(s)31 .
especialmente util no ambito da tutela de interesses individuais homogeneos.
Isto porque, na ausencia de uma iniciativa processual baseada numa
representacao sem mandato, a multiplicacao de accoes cuja resolucao implica a
aplicacao das mesmas normas ou a elucidacao da mesma questao de direito, e
susceptivel de uma reductio ad unum atraves do mecanismo de seleccao do artigo
48.o. Tal como o artigo 17.o da LAP veicula a auto-exclusao de sujeitos que
desejem prosseguir uma diferente estrategia processual e, em consequencia, ficar
imunes aos efeitos do caso julgado, tambem o CPTA oferece aos varios autores,
quer a possibilidade de requerer a extensao de efeitos da decisao ao seu caso
[artigo 48.o/5/b)], quer a prossecucao autonoma da accao [artigo 48.o/5/c)].
Ja no ambito da tutela dos interesses difusos, o artigo 48.o nao representa
qualquer maior valia, na medida em que o caso julgado em accoes promovidas
por autores populares para tutela daqueles interesses produz, forcosamente,
efeitos erga omnes . em virtude da natureza dos bens que sustentam os interesses
(de facto) de fruicao colectiva.
31 Sobre as perplexidades suscitadas por este mecanismo, v. MARIO e RODRIGO ESTEVES DE
OLIVEIRA, Codigo do Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais
Administrativos, Anotado, I, Coimbra, 2004, pp. 317 segs.
213
Temas e Problemas de Processo Administrativo
E a pessoalidade (embora gcolectivizadah na sua semelhanca) que define este tipo de
interesses. Assim se explica que um autor esteja em juizo por todos aqueles que se nao
sintam indevidamente representados no objectivo das suas pretensoes e, por isso, se autoexcluam
(artigos 14o e 15o), bem como assim se compreende o modo de citacao
circunstancial ou geograficamente orientada (artigo 15o/2 e 3)32. Do mesmo passo se
ilumina a norma constante no artigo 19o, sobre eficacia erga omnes do caso julgado
(ressalvados os sujeitos que se auto-excluiram)33, e se confere inteligibilidade aos nos 2, 3 e 4
do artigo 22o, respeitantes a indemnizacao.
Este ultimo ponto e particularmente sensivel, uma vez que as indemnizacoes pecuniarias
reclamadas por autores individuais sao legitimamente devidas em virtude de lesoes
particulares, ao passo que as indemnizacoes pecuniarias por dano ecologico reclamadas por
autores populares, pessoais ou institucionais, pertencem a comunidade. A criacao do FIA
veio resolver o equivoco aberto pelo artigo 22o/2 „Ÿ ou pela LAP no seu todo, ao nao
distinguir claramente entre interesses difusos e interesses individuais homogeneos34 „Ÿ,
determinando o destino de quantias que se nao reconduzam a medidas de reparacao
primaria e complementar do bem lesado por forma a nao promover o enriquecimento do
autor popular a custa alheia (da colectividade). O Anexo V do DL 147/2008, ao proibir a
atribuicao de quantias pecuniarias a sujeitos individuais „Ÿ que ha-de ser a ultima ratio, na
medida em que se prefere a reconstituicao natural „Ÿ, acentua a natureza publica do dano,
nao inviabilizando, todavia, a configuracao de um gdano moral colectivoh da comunidade
que veja afectada a qualidade ambiental que a envolve34. Este dano tem natureza mista (qual
ciclope com cabeca de homem e corpo de cavalo): a sua origem e o sentimento de perda de
pessoas individuais por afectacao do nivel de fruicao de um recurso de que habitualmente
32 A falta de clareza da LAP tem dado origem a equivocos jurisprudenciais graves, na medida em que
os tribunais chegam a considerar que a ausencia de citacao prevista no artigo 15o constitui causa de nulidade
de todo o processado . cfr. os Acordaos do TCASul de 13 de Maio de 1997 (proc. n.o 2736/99) e de 25 de
Janeiro de 2007 (proc. n.o 1895/06). Curiosamente, o mesmo TCASul, em Acordao de 17 de Maio de 2007
(proc. n.o 2462/07) vem afirmar que o artigo 15o da LAP nao preve, afinal, a gcitacao do Reuh, nao devendo
portanto considerar-se aplicavel a cominacao do artigo 194o/a) do CPC (ex vi o artigo 1o CPTA), descartando,
assim, qualquer nulidadec
33 Encontramos norma identica na lei brasileira 4.717, no artigo 18o, em caso de provimento.
Revelando-se a accao improcedente, qualquer cidadao (ou o Ministerio Publico) podera recorrer novamente a
juizo para defesa do mesmo interesse.
34 Tecendo igualmente criticas muito acesas ao regime do artigo 22o, Antonio ALMEIDA, A accao
popularc, cit., pp. 379-380.
34 Sobre esta nocao, vejam-se Jose Rubens MORATO LEITE, Dano ambiental: do individual ao
colectivo extrapatrimonial, 2a ed., S. Paulo, 2003, esp. pp. 265 segs; e Joao Carlos de CARVALHO
ROCHA, Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, in Politica Nacional do Meio Ambiente, 25 anos
da Lei no 6.938/1981, coord. Joao Carlos de Carvalho Rocha, Tarcisio H. P. Henriques Filho e Ubiratan
Cazetta, Belo Horizonte, 2007, pp. 217 segs, 236 segs.
214
Temas e Problemas de Processo Administrativo
usufruiam, mas a sua traducao pecuniaria deve ser canalizada para fins de promocao da
qualidade do ambiente comunitario.
Verdadeiras especialidades das accoes promovidas por autores populares (bem como
das interpostas por portadores de interesses individuais homogeneos) constam dos artigos
13o, 17o, 18o e 20o da LAP:
i) O artigo 13o visa responsabilizar os autores populares, desincentivando-os da
propositura de accoes com fins puramente dilatorios „Ÿ sobretudo porque o acesso a justica
e facilitado pelo regime especial de preparos e custas previsto no artigo 20o. Note-se que a
figura do indeferimento liminar e familiar ao CPC (cfr. os artigos 234oA e 812oE), bem
como ao CPTA „Ÿ mas aqui apenas no dominio das providencias cautelares (artigo 116o).
Logo, o juiz ve acrescidos os seus poderes de saneamento liminar em accoes promovidas
por autores populares „Ÿ mas nao, pensamos, quando a accao e apresentada pelo MP35 (aqui
as razoes que levam a consagracao desta hipotese de filtragem claudicam);
ii) O artigo 17o constitui um sinal inequivoco da natureza publica deste tipo de
processos. O juiz nao fica circunscrito a um papel passivo, proprio de quem esta adstrito ao
principio da imparcialidade, mas antes ve reconhecida a faculdade de promover diligencias
que permitam iluminar as circunstancias do caso e obter a melhor fundamentacao possivel
da decisao36. O juiz esta vinculado ao pedido mas nao aos elementos de prova carreados,
que podem ser acrescidos na sequencia de iniciativa sua;
iii) O artigo 18o visa salvaguardar o efeito util de uma decisao de provimento do pedido
do autor popular, atendendo a natureza fragil do objecto subjacente ao litigio e a
possibilidade de provocacao de danos irreparaveis ou de dificil reparacao. O juiz imprimira,
oficiosamente, caso entenda necessario a salvaguarda dos bens em jogo, efeito suspensivo
ao recurso, ainda que a lei processual aplicavel o nao preveja „Ÿ o que se verifica no CPC
(cfr. o artigo 692o/1, que estabelece a regra do efeito devolutivo do recurso de apelacao37),
mas nao no CPTA (cfr. o artigo 143o/1, consagrando a regra do efeito suspensivo38)39.
35 Que nessas situacoes nao sera ouvido, como previsto no artigo 13o da LAP.
36 Embora o CPC nao deixe de prever exemplos, precisamente em sede de prova, de cedencia ao
principio do inquisitorio: cfr. os artigos 578o/2, in fine (alargamento do objecto da pericia fixado pelas partes),
579o (pericia oficiosa), 612o (inspeccao de coisas ou pessoas), 645o (inquiricao de testemunha nao arrolada).
37 Note-se que a disposicao elenca, no no 3, os casos excepcionados ao no 1, de efeito suspensivo e
preve, no no 4, a possibilidade de a parte requerer a atribuicao de efeito suspensivo sempre que a execucao
seja susceptivel de lhe causar prejuizo consideravel e mediante caucao.
38 Atente-se em que, nos processos de intimacao para proteccao de direitos, liberdades e garantias
em sede de providencias cautelares, o efeito do recurso e, em regra, devolutivo (no 2). O no 3 admite o
requerimento, pela parte vencedora, de efeito devolutivo ao recurso, baseado na alegacao de emergencia de
prejuizos de dificil reparacao, podendo o tribunal impor a prestacao de garantias (no 4).
39 Ressalte-se que estas causas sao sempre recorriveis para o tribunal de alcada superior
independentemente do valor atribuido a accao, dado que se trata de bens imateriais (cfr. o artigo 34o/1 do
215
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Questao diversa seria certamente a de saber se ao juiz, atendendo a natureza dos bens
em jogo e a magnitude que a sua salvaguarda reveste para a comunidade em geral, e para o
ecossistema em particular, nao deveria ser reconhecido o direito de decretar medidas
inibitorias da actuacao lesiva „Ÿ e presumivelmente ilicita „Ÿ ainda que tal pedido nao fosse
formulado (na peticao inicial) pelos autores populares, a semelhanca do exemplo
brasileiro40. Note-se que estariamos aqui perante uma verdadeira excepcao ao principio do
pedido, uma vez que nao se trataria de conceder um diferente efeito a um impulso processual,
mas substituir-se ao impulso processual (cautelar). A natureza do bem pode ate justifica-lo,
mas o legislador teria que o afirmar expressamente e sempre se deveriam implementar
mecanismos de recurso urgente a favor do reu, para assegurar um minimo de contraditorio,
essencial a salvaguarda do principio do processo equitativo;
iv) O artigo 20o pretende constituir um incentivo a promocao de accoes por autores
populares, dispensando-os do pagamento de preparos e isentando-os do pagamento de
custas em caso de procedencia da accao, ainda que parcial, da accao. Em face de
decaimento total, o montante a liquidar e ainda assim simbolico (gentre um decimo e
metade das custas que normalmente seriam devidash, ponderando-se a situacao dos
requerentes e a razao formal ou substancial da improcedencia do pedido).
4. Depois desta brevissima vista panoramica dos principais aspectos ligados a accao publica
e popular, gostariamos de deixar algumas pistas de reflexao sobre o tema, admitindo que as
questoes e eventuais conclusoes sejam extrapolaveis para dominios diversos do ambiental
(mas dentro dos interesses difusos).
i) Faria sentido inserir uma norma sobre litispendencia na LAP . na vertente aplicavel
aos interesses difusos? Lembramos que a propositura de varias accoes com o mesmo
pedido e causa de pedir (relativas, portanto, a ofensa do mesmo bem pela mesma causa,
material e/ou juridica), embora promovida por autores populares diferentes, pode gerar um
fenomeno de litispendencia material. Na verdade, nao estao preenchidos os requisitos
previstos no artigo 498.o do CPC, uma vez que as partes sao diversas „Ÿ o reu sera o mesmo
mas nao o(s) autor(es) „Ÿ e os pedidos podem tambem variar (e conformar diferentes
CPTA).
40 Cfr. Ada PELLEGRINI GRINOVER, A accao popular portuguesa: uma analise
comparativa, in RPDConsumo, no 5, 1996, pp. 7 segs, 16, e Vera JUKOVSKY, O papel do juiz na defesa do
meio ambiente, in Lusiada, 1999/1-2, pp. 491 segs, 499-500. A ultima autora refere tambem a possibilidade
de o julgador determinar, ex officio, sancoes pecuniarias compulsorias a aplicar aos reus que recusem/atrasem o
cumprimento da decisao condenatoria (solucao acolhida pelo artigo 44o do CPTA, em sede contenciosaadministrativa).
216
Temas e Problemas de Processo Administrativo
estrategias processuais). Porem, o interesse material prosseguido pelos autores nas
diferentes accoes e identico: prevenir, fazer cessar, a ofensa e/ou promover a
reconstituicao do estado de qualidade do bem ambiental lesado41.
Qual sera a melhor forma de resolver a questao: atraves da insercao de uma norma que
permitisse ao juiz42 conhecer apenas do merito da accao intentada em primeiro lugar,
absolvendo da instancia os reus das accoes litispendentes43? Ou antes fazendo apelo a
apensacao de processos, com assento no artigo 28o do CPTA, decidindo o juiz todos os
processos como se de um so se tratasse, aproveitando todos os pedidos e causas de pedir
para emitir a sua decisao? Esta ultima opcao parece-nos preferivel, dada a possibilidade de
haver pedidos diferentes e de poderem ficar sacrificados na primeira solucao44.
ii) A questao acima enunciada pode ser antecipada atraves da coligacao de autores45.
Nesse caso, havera apenas uma accao com varios autores, ainda que populares. O interesse
juridico desta coligacao „Ÿ neste litisconsorcio activo voluntario „Ÿ parece diminuto, mas
pode relevar em termos de multiplicacao de argumentos trazidos para suportar a causa
ambiental, bem assim como por contar com novos intervenientes que fortalecam a
divulgacao da causa a luz da opiniao publica. Frise-se que a coligacao superveniente e
admissivel nos termos dos artigos 320o/b), 321o, 322o/1, 2a parte, e 323o do CPC, ex vi o
artigo 1o do CPTA46.
iii) E podera um sujeito que defende um interesse individual arvorar-se simultaneamente
em autor popular? Teoricamente, nada o impede, desde que os pedidos sejam diferentes „Ÿ
maxime, em accoes de efectivacao de responsabilidade nas quais possa haver, para alem da
satisfacao do interesse patrimonial, interesse na reposicao do status quo ante estritamente
ecologico. No fundo, a situacao e assimilavel a uma coligacao consigo proprio, deduzindo
pedidos diferentes contra o mesmo autor com base na mesma causa de pedir (cfr. o artigo
41 Cfr. o Acordao do TCASul de 13 de Marco de 2008 (proc. n.o 3271/07), no qual se chegou a
conclusao identica.
42 Recorde-se que a litispendencia e uma excepcao dilatoria de conhecimento oficioso (artigos
494o/i) e 495o do CPC).
43 A lei brasileira 4.717 dispoe neste sentido, estabelecendo que: "A propositura da acao prevenira a
jurisdicao do juizo para todas as acoes que forem posteriormente intentadas contra as mesmas partes e sob os
mesmos fundamentos" (artigo 5o, ˜3o).
44 Reconsideramos, assim, a solucao proposta no nosso O Provedor de Justicac, cit., p. 263.
45 Expressamente admitida pela lei brasileira 4.717, no artigo 6o, ˜5o.
46 Sendo certo que, nos termos destas disposicoes conjugadas, a intervencao principal espontanea
que venha a produzir-se ate ao despacho saneador e passivel de ser sustentada por articulado proprio,
enquanto que, se for posterior (mas sempre anterior a audiencia de julgamento), o interveniente devera cingirse
a adesao aos fundamentos do autor.
217
Temas e Problemas de Processo Administrativo
12o/1/a) do CPTA). Na pratica, esta hipotese pode ser dificultada em razao da norma do
artigo 20o da LAP, que isenta de preparos os autores populares „Ÿ bem assim como
problemas de alcada (e consequente direito ao recurso). Destarte, e apesar da economia
processual que esta solucao promoveria, parece ser de afastar tal possibilidade.
iv) Inexistindo uma providencia cautelar especifica da tutela contenciosa ambiental „Ÿ em
razao da imprestabilidade do artigo 42o da LBA47 „Ÿ, os autores populares movem-se entre
as providencias cautelares do contencioso administrativo (artigos 112o e segs do CPTA) e
do contencioso civel (artigos 381o e segs do CPC). Deve ressaltar-se, por um lado, a
possibilidade de decretamento provisorio da providencia previsto no artigo 131o do CPTA,
em casos de gespecial urgenciah (no 1), associado a pedidos de providencias cautelares
especificadas e nao especificadas. Por outro lado, assinale-se a potencial valia da alinea a)
do no 1 do artigo 120o do CPTA, que apela ao criterio da evidencia: perante uma violacao
manifesta de normas de proteccao jusambientais „Ÿ v.g., inexistencia de avaliacao de
impacto ambiental num projecto do Anexo I do DL 69/2000, de 3 de Maio (na redaccao
do DL 197/2005, de 8 de Novembro) „Ÿ, o juiz concederia a suspensao do acto
autorizativo (cuja eficacia, por forca do artigo 128o/1 do CPTA, se encontraria ja
provisoriamente suspensa) sem proceder a ponderacao exigida no no 2 do mesmo artigo
120o.
Impoe-se, todavia, caracterizar a gmanifesta ilegalidadeh, a qual e assimilada48 a violacao
de preceitos materiais que a lei comine com a nulidade. Os vicios formais (ou a grande
maioria) tendem a escapar a esta delimitacao, uma vez que podem ser supridos
posteriormente a pratica do acto, tornando inutil e mesmo contraproducente a intervencao
do Tribunal, em homenagem a uma logica de aproveitamento do acto (ou sanacao
retroactiva do mesmo). Posicao, como se depreende, que denota uma extrema cautela na
utilizacao da disposicao e que neutraliza uma boa parte do efeito util que dela poderia advir
para a tutela ambiental.
v) Claro que a forma de contornar este problema seria conceder efeito inibitorio
automatico a uma providencia cautelar requerida em defesa do ambiente, em homenagem a
natureza publica do bem e a fragilidade que o caracteriza49. Porem, tal valoracao seria
47 Cfr. Carla AMADO GOMES, Direito Administrativo do Ambiente, in Tratado de Direito
Administrativo Especial, I, coord. de Paulo Otero e Pedro Goncalves, Coimbra, 2009, pp. 159 segs, 264-265.
48 Em Acordao do STA de 20 de Janeiro de 2005, proc. 1314/04.6BEPRT.
49 A lei brasileira 4.717 consagra a suspensao liminar do acto lesivo quando se va a juizo defender o
patrimonio publico (artigo 5o, ˜4o, por referencia ao artigo 1o, ˜1o „Ÿ para a nocao de patrimonio publico).
218
Temas e Problemas de Processo Administrativo
provavelmente inconstitucional se admitida de forma cega, uma vez que atentaria contra o
criterio de ponderacao casuistica para que aponta o artigo 18o/2 da CRP. A solucao do
efeito suspensivo automatico e adoptada pelo legislador no contexto da lei dos estrangeiros
(cfr. o artigo 132o/3 da Lei 23/2007, de 4 de Julho, relativamente a recusa de concessao do
estatuto de residente de longa duracao e de revogacao do mesmo) „Ÿ tratando-se ai, todavia,
de proteger interesses pessoais da maior delicadeza. Um exemplo mais proximo e o da
suspensao imediata da eficacia de actos de licenciamento urbanistico violadores de planos,
quando sindicados pelo MP (cfr. o artigo 69o/2 do DL 555/99, de 16 de Dezembro, na
redaccao dada pela Lei 60/2007, de 4 de Setembro) „Ÿ mas ainda assim a suspensao pode
ser levantada na sequencia de contraditorio.
Por mais intra e intergeracionalmente relevante que o interesse ambiental seja, nao nos
parece que o legislador deva avancar para uma solucao de suspensao automatica e
irreversivel (ou de ordem de cessacao imediata de actividades) de actos presumivelmente
lesivos do ambiente. O decretamento provisorio da providencia acolhido no artigo 131o do
CPTA cumpre suficientemente a funcao de providenciar tutela urgentissima sem promover
sobrevaloracoes automaticas do interesse ambiental, que pode ate estar a competir com
outros de igual natureza.
vi) A existencia do mecanismo do decretamento provisorio da providencia constitui, em
nossa opiniao, um argumento pratico para reforcar a exclusao dos interesses difusos do
ambito de aplicacao do artigo 109o do CPTA. Como ja explicamos noutro local, esta accao
sumaria pressupoe a existencia de uma posicao jusfundamental devidamente
individualizada50 „Ÿ sem ser forcosamente um direito de natureza pessoal para os efeitos da
catalogacao constitucional51 „Ÿ, cujo resultado se traduza directa e imediatamente numa
melhoria, material e/ou juridica, sentida na esfera do autor. Ora, nao e isto que sucede no
plano dos interesses difusos, onde lidamos com realidades metaindividuais. E nao se venha
invocar o gdireito ao ambienteh, que mais nao e que um testa de ferro de direitos, pessoais ou
patrimoniais devidamente identificados no capitulo dos direitos de personalidade ou de
propriedade.
50 Carla AMADO GOMES, Contra uma interpretacao demasiado conforme a Constituicao do
artigo 109o do CPTA, in Textos dispersos de Direito do Contenciosoc, cit., pp. 473 segs.
51 Sobre a problematica da natureza da posicao jusfundamental exigida no artigo 109o do CPTA, por
todos e por ultimo, Jorge REIS NOVAIS, gDireito, liberdade ou garantiah: uma nocao constitucional
imprestavel na justica administrativa?, Anotacao ao Acordao do TCA Sul de 6 de Junho de 2007, in
CJA, no 73, 2009, pp. 48 segs.
219
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Assim, nem do ponto de vista teorico nem pratico se justifica o recurso a intimacao para
tutela do ambiente. E nao se pode esquecer que, mesmo comecando de forma dual
(providencia cautelar + accao principal), o processo pode sempre acabar por ser
sumarizado pela via do artigo 121o do CPTA, caso o julgador entenda estarem reunidos os
pressupostos para conhecer e decidir do fundo „Ÿ alcancando-se assim um resultado pratico
similar.
Lisboa, Abril de 2010
220
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Contencioso da funcao publica
Ana Fernanda Neves1
0. Introducao
1. Os litigios laborais incluidos no ambito da jurisdicao administrativa
1.1. A delimitacao da esfera de jurisdicao segundo o regime juridico-laboral
1.2. A jurisdicao administrativa e a modificacao da relacao juridica de emprego publico
1.3. A utilizacao da arbitragem e de meios extrajurisdicionais de resolucao de controversias
2. Os pressupostos processuais
2.1. Dos pressupostos processuais em geral
2.2. A aceitacao do acto pelo trabalhador
3. Os meios processuais
3.1. Os meios processuais principais
3.1.1. As formas de accao e a relevancia das accoes de prestacao
3.1.2. Os poderes do tribunal
3.1.2.1. Os poderes instrutorios
3.1.2.1.1. A instrucao, em especial, o direito a prova nas accoes administrativas especiais
3.1.2.1.2. Os poderes de pronuncia
3.2. Os meios processuais urgentes
3.2.1. As providencias cautelares
3.2.2. As intimacoes judiciais
4. Os recursos
5. A extensao subjectiva dos efeitos de sentenca anulatoria ou de reconhecimento
6. A execucao da sentenca
6.1. Da execucao judicial em geral
6.2. A execucao de sentenca anulatoria
6.2.1. Os beneficiarios de actos consequentes: a modelacao temporal e subjectiva dos
efeitos da sentenca
6.2.2. A greintegracao ou recolocacaoh do trabalhador
Conclusoes
1. Doutora em Direito. Professora da Faculdade de Direito de Lisboa.
221
Temas e Problemas de Processo Administrativo
0. Introducao
Os litigios relativos ao emprego publico2 convocam a aplicacao dos institutos e regimes
substantivos, procedimentais e processuais gerais do Direito Administrativo. Neste
dominio, como noutros, verificou-se, entre nos, a partir dos anos noventa do seculo
passado, uma maior utilizacao e influencia do Direito laboral privado, seja pela aplicacao de
instrumentos deste, seja pela aproximacao ao respectivo regime, seja pela valoracao da
autonomia colectiva, seja ainda pela maior percepcao relacional ou obrigacional do
emprego publico. Estas mutacoes traduziram-se no ambito da jurisdicao administrativa na
exclusao, num primeiro momento, dos litigios emergentes de contrato de trabalho
celebrado por empregador publico; no esbatimento da relevancia das pretensoes relativas a
actos administrativos; e enfatizaram a tutela jurisdicional efectiva pretendida como uma
tutela primaria de posicoes juridicas subjectivas accionaveis no quadro de relacoes juridicas
duradouras como sao as relacoes de emprego3. Ha uma mitigacao do poder administrativo
associado a uma concepcao estatutaria do emprego publico, pela contratualizacao dos
vinculos laborais e introducao nestes de segmentos negociais ou consensuais4, e assumiu
protagonismo o contencioso de pretensoes cumulaveis, que tem em vista a restitutio ad
integrum.
O leque das pretensoes e potenciado pelo Direito da Uniao Europeia, em especial, com o
reconhecimento de direitos associados ao principio da livre circulacao de trabalhadores e
pela necessaria disponibilidade nacional de meios processuais para a sua tutela efectiva. Eo,
igualmente, pela jurisprudencia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que
reforca a posicao juridica do trabalhador na relacao juridica de emprego publico enquanto
sujeito de direitos.
No contencioso da funcao publica merece atencao destacada o contencioso da execucao: i)
por um lado, porque a dimensao das accoes declarativas tem-se traduzido, traduz-se e
traduzir-se-a numa litigancia permanente em sede de execucao; ii) por outro lado, porque o
2. Utiliza-se a expressao emprego publico como sinonimo de funcao publica, entendida esta em
sentido amplo, por traduzir melhor a consideracao da totalidade das relacoes juridicas de emprego na
Administracao Publica.
3. Em ternos gerais, ver Sergio De Felice, gLe tecniche di tutela del giudice ammistrativo nei confronti
dei comportamenti illeciti della P.A.h, in Diritto Processuale Amministrativo, n. 4, a. XXIII, Facicolo IV,
Dicembre 2005, pp. 878, 935 e 936.
4. Cfr., v.g., artigo 81.o, n.o 2, da Lei n.o 12-A/2008, de 27.12 (lei dos vinculos, carreiras e remuneracoes
na Administracao Publica), e artigos 2.o, 291.o e 340.o e segs. do Regime do Contrato de Trabalho em
Funcoes Publicas, aprovado pela Lei n.o 59/2008, de 11.09.
222
Temas e Problemas de Processo Administrativo
direito declarado e tardiamente efectivado, o que sobrecarrega a pretensao de execucao.
Dai, tambem, a pertinencia da tutela executiva ser enxertada na fase declarativa5.
O presente texto trata de aspectos da justica administrativa que se destacam na sua
aplicacao as relacoes de emprego publico. Delimita-se a esfera de competencia dos
tribunais administrativos para conhecer dos litigios relativos ao emprego publico; analisamse
alguns dos problemas que se colocam em relacao aos pressupostos processuais quando
aplicados a estas contendas; indaga-se sobre a articulacao entre as pretensoes varias dos
trabalhadores e as formas e instrumentos processuais; verifica-se do significado e alcance
do mecanismo da extensao dos efeitos da sentenca anulatoria ou que reconhece direitos no
dominio do emprego publico; e, em sede da execucao das sentencas, em particular,
apreciam-se as solucoes legais para as situacoes de colisao de interesses que colocam as
sentencas anulatorias.
1. Os litigios laborais incluidos no ambito da jurisdicao administrativa
A opcao legislativa por uma construcao legislativa jus-administrativista ou jus-laboralista
privada da relacao juridica de emprego publico (para alem de um minimo denominador
comum de regime jus-publicista e de uma reserva de direito administrativo para o exercicio
de funcoes de caracter nao predominantemente tecnico) tende a reflectir-se no campo
processual, com o cometimento dos litigios, respectivamente, aos tribunais administrativos
e aos tribunais judiciais6: os litigios emergentes de contrato individual de trabalho estao
excluidos da jurisdicao administrativa; os litigios relativos aos demais vinculos laborais
inscrevem-se no seu ambito7.
Os tribunais administrativos tem competencia para dirimir litigios relativos aos actos
instrumentais ou conexos com instrumentos de regulamentacao colectiva, quer aqueles que
envolvem sujeitos privados, quer entidades empregadoras publicas. Diversamente, quando
se trata de julgar da validade ou interpretacao das suas disposicoes8. Assim, por exemplo, e
possivel intentar uma accao administrativa especial relativa a recusa do deposito de uma
convencao colectiva e ao indeferimento de pedido de emissao de regulamento de extensao,
intentar uma accao administrativa comum de efectivacao de responsabilidade civil
extracontratual fundada em acto de requisicao civil ilegal e requerer ao tribunal
5. Mario Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2.a edicao,
revista e actualizada, 2003, pp. 331 e segs., maxime, pp. 357.
6. Michele Corradino, Il Diritto Amministrativo alle luce della recente giurisprudenza, Cedam, 2007,
pp. 1026 e 1027.
7. Cfr. artigo 4.o, n.o 3, alinea d), do ETAF, na versao anterior e posterior a redaccao que lhe foi dada
pelo artigo 10.o da Lei n.o 59/2008, de 11.09.
8. Cfr. Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 17-05-88, processo n.o 025338, e Acordao do
Pleno da Seccao do CA do STA de 27-11-96, processo n.o 025339.
223
Temas e Problemas de Processo Administrativo
administrativo a intimacao para a prestacao de informacoes, passagem de certidoes ou
consulta de processos relativamente a procedimento de elaboracao de regulamento de
extensao9.
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e o Codigo de Processo nos Tribunais
Administrativos referem-se ao agente administrativo, em sede de delimitacao do ambito da
jurisdicao administrativa; aos funcionarios e agentes a proposito das accoes de efectivacao
de responsabilidade civil, incluindo as accoes de regresso, e da aceitacao do acto para se
aferir da admissibilidade da sua impugnacao; ao funcionalismo publico, para excluir as
respectivas questoes do recurso per saltum para o Supremo Tribunal Administrativo e para
identificar um dominio privilegiado de aplicacao da extensao dos efeitos da sentenca; e ao
funcionario em sede de execucao de sentenca anulatoria que importe a sua greintegracao ou
recolocacaoh; e as relacoes juridicas de emprego publico como materia em que e possivel
dirimir por arbitragem os respectivos conflitos10. Os conceitos de agente administrativo,
funcionario e agente foram abandonados pelo legislador ordinario no direito substantivo e
o de funcionalismo publico nao tem expressao actual ou anterior recente no mesmo. O
trabalhador que e parte na relacao juridica de emprego publico, para alem dos tipos de
vinculo, nao tem uma qualificacao normativa especifica; com a supressao legislativa dos
qualificativos e das distincoes, e apenas o de trabalhador que e referido. E este que, em
geral, tem de ser visto naquelas alusoes especificas, seja pela falta de apoio substantivo para
tais categorias, seja por nao ser util a delimitacao da esfera geral de jurisdicao
administrativa.
1.1. A delimitacao da esfera de jurisdicao segundo o regime juridico-laboral
Os litigios relativos a relacao juridica de emprego publico estabelecida por pessoa colectiva
publica estao em geral submetidos a jurisdicao administrativa, independentemente do tipo
de vinculo laboral (contratual ou estatutario) e da sua exacta natureza juridica
(administrativa, privada ou mista). O criterio determinante adoptado pelo legislador e o do
regime juridico aplicavel. Os conflitos emergentes de relacao juridica de emprego publico
titulada por contrato de trabalho regido pelo Codigo do Trabalho e respectiva
regulamentacao estao excluidos do ambito da jurisdicao administrativa. Apenas algumas
poucas pessoas colectivas publicas ou integradas na Administracao Publica podem celebrar
9. Sobre estas situacoes, cfr. Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 14-12-2005, processo n.o
0940/04, Acordao do 1.o Juizo Liquidatario do TCA Sul de 19-01-2006, processo n.o 07147/03, Acordao da
1.a Subseccao do CA do STA de 17-01-2008 e Acordao da 1.a Subseccao do CA do STA de 26-06-2008,
processo n.o 078/06.
10. Cfr. artigo 4.o, n.o 3, alinea d), do ETAF, artigo 37.o, n.o 2, alinea f), artigo 50.o, n.o 3, 151.o, n.o 2,
161.o, n.o 2, artigo 173.o, n.o 4, e artigo 187.o, n.o 1, alinea c), do CPTA.
224
Temas e Problemas de Processo Administrativo
contratos nestes termos. Em 2004, este numero era significativo e a tendencia era para que
aumentasse de par com a utilizacao crescente do contrato de trabalho como vinculo da
relacao juridica de emprego publico11.
Os vinculos laborais estabelecidos com pessoa colectiva publica sao, hoje, em regra,
titulados por contrato de trabalho mas o regime so em parte, e nesta parcialmente, e similar
ao regime decorrente do Codigo do Trabalho e respectiva regulamentacao, por, na sua
aplicacao a Administracao Publica, este ser objecto de adaptacoes, com aditamentos,
modificacoes e supressao de varias das suas disposicoes. Em aspectos nucleares, como o do
regime das carreiras, o regime de prova na admissao, o das regras do recrutamento e
metodos de seleccao, o regime de remuneratorio,... mantem-se a aplicacao de uma
disciplina diferente, a qual, apesar das alteracoes mais ou menos significativas, filia-se, numa
linha de continuidade, com o classico regime juridico da funcao publica. A
administrativizacao do Direito laboral comum aplicado aos contratos de trabalho enquanto
titulo de uma relacao juridica de emprego publico deslocou para a alcada dos tribunais
administrativos os respectivos litigios12.
No ambito destes insere-se a efectivacao de responsabilidade civil extracontratual dos
gfuncionarios, agentes e demais servidores publicosh do Estado, de outras pessoas
colectivas de direito publico e dos sujeitos privados aos quais seja aplicavel o regime
especifico de responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito publico13.
Quanto a responsabilidade civil dos trabalhadores de pessoas colectivas de direito privado
sujeita aquele regime, trata-se da responsabilidade por gaccoes ou omissoes que adoptem
no exercicio de prerrogativas de poder publico ou que sejam reguladas por disposicoes ou
principios de direito administrativoh14. A formulacao legal nao submete todos os litigios
11. Em 2008, atraves da Lei 12-A/2008, de 27.02, o legislador deu áum passo atrasâ na áprivatizacaoâ
iniciada, avulsamente, em meados dos anos 90 e afirmada com caracter geral em 2004, com a Lei 23/2004, de
22.06, e deu um passo atras na medida em que, se por um lado, utiliza o contrato de trabalho como vinculo
laboral regra das relacoes juridicas de emprego publico, tambem e verdade que mesmo aplicando este novo
vinculo as relacoes juridicas preexistentes . e foi possivel mudar de um vinculo com uma natureza juridicoadministrativa
estrita e com uma natureza supostamente unilateral para passar em massa para um vinculo
contratual nao era so para as relacoes a estabelecer no futuro, mas tambem para as relacoes estabelecidas .
tambem e verdade, diziamos que aplica um regime juridico que, sendo a partida resultante do codigo de
trabalho e respectiva regulamentacao, modifica muito esse regime, nao so pelos acrescentos e supressoes que
lhe introduziu, como tambem acabou por utilizar conceitos e instrumentos do classico Direito da funcao
publica e enxerta-los no novo regime.
12. Cfr. art. 83.o, n.o 1 da Lei 12-A/2008, de 27/02 gOs tribunais da jurisdicao administrativa e fiscal sao
os competentes para apreciar os litigios emergentes das relacoes juridicas de emprego publico.h Desta
disposicao resultou a necessaria alteracao do artigo 4.o, n.o 3, alinea d) do ETAF, como veio a ser expresso
pelo legislador com artigo 10.o na Lei n.o 59/2008, de 11.09, que aprova o regime do contrato de trabalho em
funcoes publicas.
13. Cfr. artigo 4.o, n.o 1, alineas h) a j), do ETAF.
14. Cfr. artigo 1.o, nos 3, 4 e 5 do regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades publicas
aprovado pela Lei 67/2007, de 31.12.
225
Temas e Problemas de Processo Administrativo
relativos a responsabilidade dos trabalhadores das pessoas colectivas privadas aquele regime
e jurisdicao. Sera de excluir a responsabilidade de trabalhadores cujas accoes ou omissao
nao envolvem nem o exercicio de poderes de autoridade publica nem sao reguladas pelo
Direito Administrativo. Em geral, dir-se-a que os trabalhadores das pessoas colectivas
privadas estarao nesta situacao. Nao sera, no entanto, o caso dos trabalhadores parte numa
relacao juridica de emprego de direito privado estabelecida com uma pessoa colectiva
privada de raiz publica, materialmente inserida na Administracao Publica, sobre os quais
recaiam deveres de servico publico (trabalhadores de um hospital sociedade anonima de
capitais publicos). Quando se tratam de pessoas colectivas privadas que a exercem
instrumental, acessoria e contratualmente a funcao administrativa, a responsabilidade
propria do seu exercicio recai sobre aquelas e nao os seus trabalhadores, pelo que estes, em
geral, pelas suas accoes e omissoes responderao, em regra, nos termos civilisticos gerais,
consonantes com a liberdade de empresa e na autonomia privada laboral (artigos 62.o, n.o 1,
e 80.o, alinea c), e 26.o, n.o 1, da CRP), sendo os respectivos litigios dirimidos nos tribunais
judiciais. So sera aceitavel a aplicacao do regime de responsabilidade administrativa quando
e na medida em que realizem tarefas imediatizadas por tais parametros, o que nao sera
comum.
Os litigios laborais excluidos da jurisdicao administrativa sao os litigios relativos a contratos
de trabalho regulados pelo direito laboral comum15 celebrados por pessoas colectivas
integradas na Administracao Publica16. Entre estas, figuram, fundamentalmente, os
institutos publicos de regime especial e/ou entidades administrativas regulatorias17, as
entidades publicas empresariais e, em certos casos, empresas publicas constituidas nos
termos da lei comercial18. Os litigios em causa reportam-se a contratos celebrados, a
15. Sem prejuizo da vinculacao a um minimo denominador comum de regime jus-publicista.
16. Cfr. artigo 4.o, n.o 3, alinea d), do CPTA.
17. A Lei-quadro dos institutos publicos (Lei n.o 3/2004, de 15.01, na versao que considera as suas
alteracoes) integra as entidades administrativas independentes entre os institutos de regime especial. O regime
laboral do seu pessoal e o regime do contrato individual de trabalho, aplica-se-lhe o Codigo de Trabalho e
respectiva regulamentacao, e algumas disposicoes do regime geral dos trabalhadores da Administracao
Publica (Lei n.o 12-A/2008, de 27.02) que relevam para o controlo da despesa relativa aos trabalhadores,
incluindo o controlo do seu numero. A Lei do Orcamento de Estado para 2009 (Lei 64-A/2008) preve a
adaptacao dos estatutos das entidades administrativas reguladoras ate finais de 2009 ao disposto naquele
diploma, fundamentalmente, no que respeita ao regime remuneratorio.
18. Considere-se, por exemplo, o caso dos hospitais integrados no Servico Nacional de Saude e a
mutabilidade recente das suas formas organizativas (v.g., estabelecimentos publicos, entidades publicas
empresariais e sociedades anonimas de capitais publicos). A esta mutabilidade sobrevivem, justificada pelas
obrigacoes de servico publico que envolvem os seus trabalhadores, vinculacoes juridico-publicas atinentes ao
direito de acesso aos respectivos empregos publicos e aos principios gerais da actividade administrativa que se
projectam sobre os respectivos deveres funcionais. Sobre as formas organizativas publicas e privadas do
sector publico e a relacao com o respectivo regime de pessoal ver Nicolas Maurandi Guillen, gLas
personificaciones juridicas del sector publico espanol, Tipologia y Regimen de Personalh, in El Ambito
Privado del Sector Publico, XXIV Jornadas de Estudio, Abogacia General del Estado, Direccion del Servicio
Juridico del Estado, Ministerio de Justicia, D.L. 2003, Imprensa Nacional del Boletin Oficial del Estado.
226
Temas e Problemas de Processo Administrativo
relacoes juridicas ja constituidas. Os referentes ao processo formativo, ao procedimento
administrativo de recrutamento dos respectivos trabalhadores, estes devem ser dirimidos na
jurisdicao administrativa19. De igual modo, se estiver em causa a validade do contrato por
vicios relativos ao procedimento formativo20. Sao, ainda, de considerar as questoes juridicas
suscitadas em conflito relativo a contrato de trabalho que convocam a aplicacao de aspecto
de regime sem paralelo no Codigo de Trabalho e respectiva regulamentacao, atenta a
submissao geral a jurisdicao administrativa dos litigios relativos a contratos a respeito dos
quais existem normas de direito publico que regulam aspectos do respectivo regime
substantivo21. No que se refere a intimacao para prestar informacoes, permitir a consulta de
documentos ou passar certidoes relativa as relacoes laborais privadas, observa-se que depoe
no sentido da sua disciplina pelo regime geral do acesso a informacao administrativa e
submissao a jurisdicao administrativa22 o seguinte: i) nem sempre e possivel separar o
reflexo de vinculacoes juridico-publicas sobre as relacoes laborais privadas daquilo que e o
regime comum destas; ii) igualmente nao o e separar a garantia de acesso a documentos de
uma pessoa colectiva privada justificada pelo facto de prestar servico publico23 ou de
satisfazer necessidades colectivas publicas24 do acesso a documentos que so relevam para
estes de forma instrumental; iii) depois, porque a informacao relativa as relacoes laborais
privadas de pessoas colectivas privadas nao esta, em geral, abrangida pelo direito a reserva
da intimidade da vida privada e do direito a proteccao dos cidadaos contra a recolha e
tratamento abusivo de dados informatizados de natureza pessoal (respectivamente, artigo
26.o, n.o 1, da CRP e artigo 35.o, n.o 4, da CRP)25; iv) e, ainda, porque o exercicio das
Acresce referir que o Direito da Uniao Europeia impoe as empresas publicas que estao no mercado
numa posicao nao concorrencial ou insuficientemente concorrencial a sujeicao, em materia de contratacao,
aos principios da concorrencia, igualdade e transparencia. Por identidade de razao, se o acesso aos empregos
publicos nao funciona segundo o ámercado abertoâ, importa que o Direito induza ou assegure a concorrencia
necessaria, de modo que todas as pessoas interessadas possam disputar o correspondente bem ou vantagem
publicos.
19. Cfr. art. 4.o, n.o 1, alinea e) do ETAF, artigo 2.o, n.o 5, do CPA e, por exemplo, artigo 26.o, n.o 2, do
Decreto-Lei n.o 127/2009, de 27.05 (lei organica da Entidade Reguladora da Saude).
20. Nao e de excluir uma accao administrativa comum, pretensao . fundada na violacao de principios
gerais da actividade administrativa . dirigida a impedir a celebracao do contrato com fundamento em conduta
administrativa violadora de tais principios conjugada com a providencia cautelar de intimacao para a
abstencao de uma conduta (artigo 37.o, n.o 1, alinea c), e artigo 112.o, n.o 2, alinea f), do CPTA). Neste
sentido, Miguel Assis Raimundo, As Empresas Publicas nos Tribunais Administrativos, Contributo para a
delimitacao do ambito da jurisdicao administrativa face as entidades empresariais instrumentais da
Administracao Publica, 2007, p. 269.
21. Cfr. artigo 4.o, n.o 1, alinea f) e alinea a), do ETAF.
22. Cfr. artigo 2.o, n.o 1, alinea l), do CPTA e artigo 4.o, n.o 1, alinea a), do ETAF.
23. Acordao da 1.a Subseccao do CA do STA de 06-01-2010, processo n.o 0965/09.
24. Parecer da CADA n.o 246/2006, de 6.12.2006, processo n.o 254/2006.
25. A publicidade de aspectos como a gidentidade civilh, gA categoria profissional, a profissao, a
situacao profissional, as habilitacoes, o numero de Seguranca Social, as datas de nascimento, de admissao na
empresa, da ultima promocao, as remuneracoes pagas, designadamente a remuneracao base, as diuturnidades,
as prestacoes regulares e irregulares e as horas extraordinarias dos trabalhadoresh foi considerada pelo
Tribunal Constitucional no Acordao n.o 557/2007, de 13.11, como constitucionalmente nao colidente com o
227
Temas e Problemas de Processo Administrativo
garantias fundamentais de acesso a informacao relevante para os administrados nao ha-de
ficar dependente da variacao nas formas organizativas e regimes aplicaveis26.
1.2. A jurisdicao administrativa e a modificacao da relacao juridica de emprego
publico
A modificacao da relacao juridica de emprego publico coloca, por vezes, duvidas quanto ao
tribunal competente para dirimir os litigios. A modificacao pode ser definitiva27 ou
temporaria e, neste caso, por periodo determinado ou indeterminado28. Pode traduzir-se
numa alteracao da natureza do vinculo laboral, que, no caso de ser indeterminada, traduz-se
na sua novacao29; e pode importar a constituicao de uma outra relacao juridica de emprego,
por tempo determinado ou indeterminado, sem extincao da existente de natureza
administrativa ou de natureza jus-privatista30. Pode, ainda, a modificacao verificar-se no
regime mantendo-se o vinculo juridico: no essencial, o trabalhador mantem o vinculo
juridico-administrativo e, quanto aos aspectos estruturais deste, como a extincao, o regime
correspondente, passando o mesmo a ser regulado em geral pelo Direito laboral comum31.
Neste entrecruzamento de tipos de vinculo e regimes juridicos, para a determinacao do
tribunal competente para apreciar os respectivos litigios relevam os seguintes parametros:
a) Quando a modificacao ocorre na natureza do vinculo, os litigios dirimem-se nos
tribunais administrativos ou nos tribunais de trabalho, em funcao do momento em que
ocorreu e do direito convocado para a sua resolucao: por exemplo, cabe aos tribunais
administrativos aferir da validade da sancao disciplinar aplicada ao trabalhador, segundo
o estatuto disciplinar correspondente, por infraccao cometida em momento anterior a
alteracao do vinculo;
b) Na situacao em que a constituicao de uma outra relacao juridica nao prejudica a
subsistencia da anterior, dando lugar a acumulacao de empregos publicos ou de
direito a reserva da intimidade da vida privada e o direito a proteccao dos cidadaos contra a recolha e
tratamento abusivo de dados informatizados de natureza pessoal (respectivamente, artigo 26.o, n.o 1, da CRP
e artigo 35.o, n.o 4, da CRP). Na argumentacao do Tribunal destaca-se a referencia, por um lado, ao facto de
estarem em causa gaspectos relevantes da e para a relacao laboralh e dados de identidade pessoal do
conhecimento publico e nao aspectos relativos a vida privada (como seria, sim, por exemplo, a informacao
sobre as conviccoes politicas e religiosas do trabalhador) e, por outro lado, o facto de estar em causa ga
prossecucao de um interesse constitucionalmente relevante que e o de garantir aos trabalhadores a nao
discriminacao no seio da empresah . Acordao da 3.a Seccao do TC n.o 555/2007, de 13.11, processo n.o
395/07.
26. Cfr. artigo 268.o, n.os 1 e 2, da CRP e artigo 4.o, n.o 1, alinea a), do ETAF.
27. Por exemplo, no caso da transferencia de actividade para empresa ou estabelecimento privado.
28. Por exemplo, a modificacao resultante de cedencia de interesse publico.
29. Sobre o conceito de novacao, Luis Manuel Teles de Menezes Cordeiro, Direito das Obrigacoes,
Volume II, Transmissao e Extincao das Obrigacoes. Nao cumprimento e garantias do credito, 7.a edicao,
2010, pp. 215 a 217.
30. A cedencia de interesse publico para pessoa colectiva publica implica, em regra, a utilizacao da
modalidade adequada da relacao juridica de emprego publico.
31. Sobre estas situacoes, ver Acordao do Tribunal de Conflitos de 04-11-2008, processo n.o 023/07.
228
Temas e Problemas de Processo Administrativo
emprego privado com emprego publico (acumulacao que, nalguns casos, e, em grande
medida, apenas formal, por importar, no essencial, a suspensao dos efeitos juridicos do
vinculo anterior32) a competencia jurisdicional para resolver os respectivos litigios
determina-se segundo a relacao juridica a que respeitam. O mesmo se passa quando a
nova relacao juridica nao tem autonomia em face da anterior, no sentido em que foi
com base naquela que foi possivel a sua constituicao, pois, aqui, a consideracao daquela
e do seu regime e sobretudo relevante para a resolucao dos problemas inerentes a
articulacao de ambos os regimes33;
c) Nas demais situacoes e em geral, a competencia e determinada pelos termos em que o
autor configura a accao, pelo pedido e pelo direito que convoca34: o tribunal
competente e o tribunal de trabalho se, por exemplo, o trabalhador pede a condenacao
do empregador ao pagamento de gremuneracoes acessorias, diferencas salariais e
subsidios de ferias nao pagosh, nos termos do regime laboral privado que regula, nessa
parte, o vinculo laboral administrativo, e nao em funcao da natureza deste35.
1.3. A utilizacao da arbitragem e de meios extrajurisdicionais de resolucao de
controversias
E possivel a composicao por arbitragem de litigios relativos a relacoes juridicas de emprego
publico: pode ser constituido tribunal arbitral para julgamento de glitigios emergentes de
relacoes juridicas de emprego publico, quando nao estejam em causa direitos
indisponiveis36 e quando nao resultem de acidente de trabalho ou doenca profissionalh e
pode o Estado autorizar a constituicao de centros de arbitragem permanente que resolvam
32. Sao, hoje, as situacoes de cedencia, sobretudo, de cedencia de interesse publico (artigo 58.o do
Decreto-Lei n.o 12-A/2008, de 27.02) que titulam a mobilidade de trabalhador para pessoa colectiva publica
ou privada nao abrangida pelo ambito de aplicacao da lei, dando lugar a uma nova relacao juridica de
emprego sem que a anterior cesse.
33. Ver o Acordao do Tribunal de Conflitos de 05-12-2006, processo n.o 08/06 (Instituto da
Solidariedade e Seguranca Social . pessoal dirigente . funcionario publico . contrato individual de trabalho .
cessacao de comissao de servico).
34. Neste sentido, ver os Acordaos do Tribunal de Conflitos de 19-01-2006, processo n.o 013/03, de 08-
11-2005, processo n.o 011/05, e de 26-04-2006, processo n.o 06/05, Acordao da 4.a Seccao do STJ de 30-01-
2002, revista n.o 1440/01, e Acordao do Tribunal de Conflitos de 10-07-2007, processo n.o 014/05.
35. O Tribunal de Conflitos considerou, diversamente, no Acordao de 04-11-2008, processo n.o 023/07,
que, emergindo a pretensao enunciada de guma relacao juridica de emprego publico e nao de uma relacao
laboral de direito privadoh, a respectiva apreciacao cabia os tribunais administrativos. No mesmo sentido, cfr.
Acordao do Tribunal de Conflitos de 05-12-2006, processo n.o 08/06.
36. Por exemplo, o direito a ferias e irrenunciavel e, em regra, nao pode ser substituido por
compensacao economica ou outra (artigo 171.o, n.o 2, do RCTFP). Anna Simonati refere entre a categoria dos
direitos indisponiveis o gdireito ao recursoh, por, para alem dos interesses do recorrente, estar em causa a
legalidade objectiva (Nuovi Poteri del Giudice Amministrativo e Remedi Alternativi al Processo. LfEsperienza
Francesa, Quaderni del Dipartimento 45, Universita degli Studi di Trento, Dipartimento di Scienze
Giuridiche, 2004, p. 110).
229
Temas e Problemas de Processo Administrativo
questoes atinentes37. O espaco da arbitragem e delimitado pela autonomia individual e
colectiva da conformacao da relacao juridica, a qual compreende, em principio, a
possibilidade de acordo sobre a propria resolucao dos respectivos litigios38. A arbitragem,
nalguns casos, e obrigatoria (por exemplo, em certos termos, a definicao por um colegio
arbitral dos servicos minimos e dos meios necessarios para os assegurar e no caso de
caducidade de acordo colectivo de trabalho sem que tenha sido celebrado no prazo de um
ano um outro e uma vez esgotados os meios de resolucao de conflitos colectivos39). A
possibilidade de recurso a arbitragem em sede de emprego publico, mesmo se inexistisse
previsao legal especifica, decorreria da reconducao de varios dos seus conflitos as situacoes
gerais em que e possivel o recurso a arbitragem, pois estes envolvem, tambem, questoes
relativas a contratos, incluindo a actos administrativos relativos a respectiva execucao, a
responsabilidade civil extracontratual e a actos que possam ser revogados sem fundamento
em ilegalidade (como, por exemplo, a designacao precaria de um trabalhador para um cargo
publico)40.
A arbitragem permite resolver . por um gprocesso semelhante ao judicialh, segundo gas
garantias processuais basicas do Estado de Direitoh, como a independencia e
imparcialidade do orgao arbitral e o principio do contraditorio41 ., litigios que reclamam
solucoes celeres e árecuperativasâ ou árestaurativasâ da relacao juridica. A relacao do
empregador publico e do trabalhador e, como uma qualquer relacao de emprego, uma
relacao assimetrica, de interesses contrapostos, sem prejuizo da sua dimensao colaborativa
acentuada pelo respectivo caracter continuo. Neste quadro, tambem as formas áamigaveisâ
de resolucao dos conflitos laborais, como a mediacao e a conciliacao42, propiciam a
recuperacao do relacionamento juridico ordinario ou árestaurarâ a sua necessaria feicao
colaborativa43. Constituem uma alternativa util aos meios de impugnacao administrativa,
por, ao inves destes, nao tenderem para a mera revisao, por atenderem a equidade como
37. O artigo 180.o, n.o 1, alinea d), e artigo 187.o, n.o 1, alinea c), do CPTA.
38. A possibilidade de acordar gpara resolver processualmente relacoes juridicas e fixar condicoes de
proteccao juridicah . Wolfganf Heyde, gLa jurisdiccionh, in Manual de Derecho Constitucional, de Benda,
Maihofer, Vogel, Hesse e Heyde, traducao espanhol de 1996 de Handbuch des Verfassungsrechts der
Bundesrepublik Deustschland, 1994, p. 783, e artigo 348.o, alinea d), do Regime do Contrato de Trabalho em
Funcoes Publicas (aprovado pela Lei n.o 59/2008, de 11.09).
39. Cfr. artigos 400.o, n.o 3, e 364.o, n.o 5, do RCTFP.
40. Sobre o galargamento do ambito da arbitragemh na Reforma de 2002, ver Jose Carlos Vieira de
Andrade, A Justica Administrativa (Licoes), 10.a edicao, 2009, pp. 144 a 146.
41. Wolfganf Heyde, gLa jurisdiccionh, cit., p. 784.
42. Para esta distincao, ver Alfonso Masucci, gEl procedimiento de mediacion como medio alternativo
de resolucion de litigios en el Derecho Administrativo. Esbozo de las experiencias francesa, alemana e
inglesah; Revista de Administracion Publica, num. 178, Madrid, enero-abril, pp. 15 e 16.
43. Relativamente a contratacao publica, Anna Simonati destaca o interesse do co-contratante, do
adjudicatario e dos concorrentes manterem boas relacoes com a entidade adjudicante ou com o contraente
publico . Nuovi Poteri del ..., cit., p. 98.
230
Temas e Problemas de Processo Administrativo
parametro de decisao e por nao reproduzirem o respectivo desnivel de poder44. Procura-se
gum acordo alcancado pelas partes mediante um processo de aproximacao conduzido e
facilitado por um áterceiroâ (c) que nao impoe nenhuma solucaoh45.
2. Dos pressupostos processuais
2.1. Dos pressupostos processuais em geral
A definicao e a aplicacao dos pressupostos processuais colocam-se no plano do direito de
gacesso das pessoas a jurisdicaoh ou a um processo legal em que possam obter a resolucao,
por um orgao jurisdicional, de uma controversia46 e, portanto, no plano do direito a uma
tutela judicial efectiva47. O direito e de quem, tendo um direito ou interesse legitimo que em
concreto careca de tutela, do processo possa retirar utilidade ou vantagem juridica48. Os
pressupostos processuais que condicionam o seu exercicio devem estear-se em bens ou
interesses constitucionalmente fundados e razoaveis49.
No contencioso do emprego publico, e pacifico o reconhecimento da legitimidade das
associacoes sindicais para intentar ou ser parte em accao judicial para a defesa dos direitos e
interesses colectivos e para a defesa colectiva dos direitos e interesses individuais50. Nesta
segunda situacao, nao ha que perder de vista o caracter representativo da intervencao e,
portanto, a necessidade de aferir os pressupostos da competencia do tribunal
territorialmente competente e do interesse em agir em funcao do representado51. A
legitimidade das associacoes sindicais para a defesa processual dos interesses individuais
deve depender sempre da aceitacao da representacao pelo trabalhador ou da juncao ao
44. Os meios de resolucao extrajudicial sao instrumentos de diversificacao das formas de resolucao das
controversias. Permitem as partes obter a composicao dos seus interesses em conflito de forma menos
dispendiosa, mais rapida e gcom maior amplitude do espaco valorativoh. Nao excluindo o recurso a via
judicial, sempre lhes permite aferir das possibilidades de procedencia das suas pretensoes. Podem contribuir
para assegurar a geficiencia da accao administrativah, dado permitirem uma ájusticaâ mais pronta e, portanto,
prevenir que a Administracao seja prejudicada pela demora na certeza dessa correccao. Cfr. Anna Simonati,
Nuovi Poteri ..., cit., pp. 94 a 96, 98, 107 e 156.
45. Alfonso Masucci, gEl procedimiento de mediacion como medio alternativo de resolucion de litigios
en el Derecho Administrativo. Esbozo de las experiencias francesa, alemana e inglesah; Revista de
Administracion Publica, num. 178, Madrid, enero-abril, p. 14.
46. Francisco Chamorro Bernal, La Tutela Judicial Efectiva. Derechos y garantias procesales derivados
del articulo 24.1 de la Constitucion, Bosch, Casa Editorial, S.A., primera edicion, abril, 1994 pp. 18, 22, 24 a
27 e 42 a 49.
47. Francisco Chamorro Bernal, pp. 11 a 13 e 19.
48. Francisco Chamorro Bernal, La Tutela Judicial Efectiva, cit., p. 52.
49. Francisco Chamorro Bernal, La Tutela Judicial Efectiva, cit., p. 28.
50. Cfr. art. 310.o, n.o 2, do RCTFP e artigos 9.o, n.o 2, 40.o, n.o 1, alinea b), 51.o, n.o 1, alinea c), e 108.o,
n.o 1, alinea b), do CPTA.
51. Sobre o assunto, Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 22-10-2003, processo n.o 0655/03,
Acordao da 1.a Subseccao do CA do STA de 04-03-2004, processo n.o 01945/03, Acordao do 2.o Juizo do
CA do TCA Sul de 01-06-2006, processo n.o 01565/06, e Acordao do TCA Sul de 18-01-2007 (legitimidade
de associacao sindical . titular da relacao material controvertida . excepcao do caso julgado) e Acordaos do
STA de 15-03-2007, processo n.o 02196/06 e 29-03-2007, processo n.o 089/07.
231
Temas e Problemas de Processo Administrativo
processo de comprovativo da sua situacao de socio vigente52, para garantia da gliberdade
individual do trabalhadorh53. Os enunciados da lei fazem ou permitem a distincao face a
legitimidade para a defesa de direitos e interesses colectivos, que a nao ser feita cerceia a
liberdade individual dos trabalhadores54. As associacoes sindicais e atribuido o beneficio da
isencao do pagamento de custas55. A diferenca entre a intervencao judicial motivada pela
defesa de interesses colectivos (ainda que reportada a decisoes individuais56) e a defesa de
interesses individuais, tambem, aflora na previsao legal de isencao de pagamento de custas
pelos trabalhadores, em materia de direito do trabalho, quando representados pelos
servicos juridicos do sindicato, se forem gratuitos para o trabalhador, este nao aufira
rendimento para alem de certo valor e tenha, em regra, grecorrido previamente a uma
estrutura de resolucao de litigiosh57.
A legitimidade individual afere-se pela titularidade de um direito ou interesse legalmente
protegido ou pela titularidade de um interesse directo e pessoal58. Nesta sede, discute-se,
relativamente aos concursos de recrutamento, se os candidatos nele aprovados podem
impugnar a decisao que lhes permite obter os correspondentes empregos59 e se o pode
fazer um candidato que foi excluido ou ordenado em lugar que nao lhe confere o direito ao
provimento. Os concorrentes enquanto destinatarios do acto sao configuraveis como
partes legitimas em accao judicial dirigida a sua impugnacao e/ou a condenacao a pratica de
acto devido. Ha que verificar, nao obstante, se, na situacao concreta, tem necessidade
52. O entendimento prevalecente e, porem, o de que nao e exigido que o trabalhador esteja filiado na
associacao sindical e a jurisprudencia dispensa mesmo um mandato especifico. Cfr. Acordao da 1.a Subseccao
do CA do STA de 06-02-2003, processo n.o 01785/02.
53. Sobre a jurisprudencia neste sentido do Conselho Constitucional frances, ver Jean-Francois
Lachaume e Helene Pauliat, Droit administratif (Les grandes decisions de la jurisprudence), 14e edition, 2007,
p. 689.
54. Em sentido diferente, Acordao n.o 10/2007, do pleno da Seccao do Contencioso Administrativo do
STA de 29-03-2007, processo n.o 89/2007 . 1.a Seccao, in DR., 1.a serie, n.o 132, de 11-07-2007, pp. 4404 a
4406, que se apoia, em sintese, na dimensao nao substantiva da legitimidade processual, nos enunciados
normativos (que, na verdade, fazem a distincao entre a defesa colectiva de interesses colectivos e a defesa
colectiva de interesses individuais dos trabalhadores) e na aceitacao de uma ideia de gaccao colectiva egoistah.
Nao se pode retirar da norma legal que reconhece legitimidade as associacoes sindicais legitimidade para agir
em juizo na defesa de interesses individuais a regulacao das condicoes para o seu exercicio, designadamente, a
leitura segundo a qual fica dispensada a manifestacao de vontade do trabalhador nessa representacao.
55. Cfr. artigo 4.o, n.o 1, alinea f), do Regulamento das Custas Processuais, na redaccao resultante do
Decreto-Lei n.o 34/2008, de 26/02.
56. Jean-Francois Lachaume e Helene Pauliat, Droit administratif c, cit., p. 690.
57. Cfr. artigo 4.o, n.o 1, alinea h), do Regulamento das Custas Processuais e artigo 187.o, n.o 3, do
CPTA.
58. Cfr. artigos 9.o, n.o 1, 40.o, 55.o e 68.o do CPTA
59. Pedro Goncalves, gQuem vence um concurso para escolha de funcionarios a nomear: o primeiro
classificado ou, em conjunto, todos os que ficam em condicoes de ser nomeados?h, CJA n.o 6,
Novembro/Dezembro 1997, pp. 13 a 22, Acordao do STA de 16-05-2001, processo n.o 033271, e Acordao
da 3.a Subseccao do CA do STA de 16-01-2001, processo n.o 033271.
232
Temas e Problemas de Processo Administrativo
efectiva de tutela judiciaria, se gtem a ganhar ou a perder qualquer coisa com o processoh60
61. Quanto ao candidato excluido nao podera impugnar a decisao final se tiver sido
notificado, oportunamente, da exclusao e tiver tido efectiva oportunidade de reagir,
atempadamente, a mesma62.
Tem legitimidade passiva a entidade administrativa demandada/requerida, por um lado, e,
por outro lado, as gpessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do
autorh63, em funcao dos quais se mobilizam para agir em juizo, e cuja intervencao e ditada,
tambem, pela necessidade de justeza do processo e da respectiva decisao, assim como pela
sua utilidade/eficacia64. Para tanto, ha que ajuizar do alcance subjectivo dos efeitos da
sentenca, isto e, saber quem sera afectado com a sua procedencia. No caso das accoes
impugnatorias, tal depende do tipo de acto, do pedido e da causa de pedir, embora, quanto
a esta, a configuracao da lide pelo autor possa nao ser suficiente, atento o dever do juiz
gidentificar a existencia de causas de invalidade diversas das que tenham sido alegadash65.
Num concurso, surgem como contra-interessados o(s) beneficiario(s) do acto impugnado e,
em regra, aqueles que, nao o sendo, estao ordenados numa posicao relativa superior66, da
qual possam retirar vantagem e que possam vir a ser preteridos em detrimento do autor na
sequencia da sentenca67.
Nas accoes impugnatorias, releva, tambem, a impugnabilidade do acto, determinada pela
susceptibilidade de se projectar na esfera juridica de outros sujeitos. Nao tem de ser um
acto horizontal, materialmente e, em regra, verticalmente definitivo; como noutros
dominios, em diversas areas do emprego publico, as impugnacoes administrativas deixaram
de ser obrigatorias68. Em geral, a verdade e que a conexao entre o procedimento e o
60. William F. Fox, Understanding Administrative Law, fifth edition, LexisNexis, 2003, p. 265.
61. A falta de comparencia por parte de candidato a prova de conhecimento, sem invocar e justificar justo
impedimento, determinante da sua exclusao preclude a verificacao de interesse em agir . Acordao do 1.o
Juizo Liquidatario de 11-10-2007, processo n.o 07463/03.
62. Cfr. artigo 51.o, n.o 3, do CPTA.
63. Cfr. artigo 10.o do CPTA.
64. A intervencao processual dos contra-interessados tem, essencialmente, uma funcao e um
fundamento subjectivos; e, tambem, ditada pelos principios do contraditorio e da igualdade. Ver Paulo Otero,
gOs contra-interessados em contencioso administrativoh, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Rogerio Soares, Coimbra, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2001, Studia Iuridica; 61: Ad Honorem;
1, pp. 1080 a 1091. O autor destaca, igualmente, uma funcao objectivista para essa intervencao, a da garantia
do gefeito util da decisao judicial anulatoria do recurso contencioso, a unidade do sistema juridico e um
exercicio mais racional e eficiente da funcao jurisdicional pelos tribunaish (p. 1091). A utilidade da decisao, na
nossa perspectiva, releva, sobretudo e de forma visivel para o autor/requerente. As demais virtudes tem
relevancia secundaria dado constituirem efeitos mediatos e nem sempre verificaveis.
65. Cfr. artigo 95.o, n.o 2, do CPTA.
66. Acordao da 1.a Subseccao do CA de 23-06-2005, processo n.o 01348/04.
67. Sobre a determinacao dos contra-interessados em processo impugnatorio relativo a procedimento
concursal, ver Paulo Otero, gOs contra-interessados ch, cit., pp. 1091 a 1102.
68. Por exemplo, no regime dos concursos, no regime da avaliacao de desempenho e no regime
disciplinar.
233
Temas e Problemas de Processo Administrativo
processo e possivel atraves de multiplos actos que nao apenas atraves do acto conclusivo
decisor daquele69. Entre os actos passiveis de impugnacao figura, por exemplo, o aviso de
abertura do concurso que enuncie requisitos sem base legal ou que concretize em termos
infundados (injustificados a luz do emprego a prover) requisitos delimitados pela lei, que
impecam a candidatura de interessado e o aviso que contenha mencoes que
ápredeterminamâ ordenacao ilegal70. De referir, ainda, e a dificuldade que suscita a
impugnacao de certos actos, por ser incerto o seu caracter nao normativo e nem sempre ter
a correspondente expressao formal (como, por exemplo, a resolucao do Conselho de
Ministros que permite a requisicao civil71-72).
2.2. A aceitacao do acto pelo trabalhador
A aceitacao expressa ou tacita de um acto administrativo implica que o interessado nao o
possa impugnar73. Funciona como um pressuposto processual negativo, uma condicao
adicional de que depende o conhecimento do fundo da causa74. Quanto o destinatario do
acto e um trabalhador parte numa relacao juridica de emprego publico nao prejudica a
impugnacao o seu acatamento ou execucao a nao ser que possa escolher a oportunidade da
execucao75. Acatar ou executar o acto e, em geral, para o trabalhador um dever legal ou
contratual: traduz-se na realizacao de tarefa inserida na sua prestacao de trabalho e/ou
reconduz-se ao cumprimento do dever de diligencia e/ou do dever de obediencia. Nao se
podem assacar efeitos desfavoraveis ao cumprimento de um dever, uma vez nao tendo o
trabalhador liberdade de actuacao. Considere-se as situacoes de fixacao pelo empregador de
69. Servulo Correia, gActo administrativo e ambito da jurisdicao administrativah, in Estudos em
Homenagem ao Professor Rogerio Soares, cit., pp. 1185 e 1186.
70. Cfr. artigo 51.o, n.o 3, do CPTA.
71. O STA considerou, no Acordao da sua 1.a Subseccao do CA de 25-06-98, processo n.o 043023, que
a resolucao do Conselho de Ministros gque reconhece a necessidade de se proceder a requisicao civil dos
trabalhadores da TAP, associados no Sindicato da Aviacao Civil, e autoriza a promover a sua requisicao civil e
um acto materialmente administrativo, nele nao concorrendo as notas de generalidade e abstraccao que
caracterizam os actos normativosh.
72. E a decisao administrativa invocada estar contida no n.o 4 do artigo 88.o da Lei n.o 12-A/2008, de
27.2, decisao produtora de efeitos gimediatamente vinculativo[s] para agentes perfeitamente individualizaveish
. Acordao da 2.a Subseccao do CA de 12-05-2010, processo n.o 0375/09 (a expressao destacada e de
Rosendo Jose em voto de vencido). Cfr., tambem, Acordao da 1.a Subseccao do CA de 23-10-2008, processo
n.o 0593/08 (gacto administrativo . diploma legislativoh).
73. Cfr. art. 56.o, n.o 1 e 2, do CPTA: g1. Nao pode impugnar um acto administrativo quem o tenha
aceitado, expressa ou tacitamente, depois de praticado. 2. A aceitacao tacita deriva da pratica, espontanea e
sem reserva, de facto incompativel com a vontade de impugnar.h Esta era tambem a redaccao, com ligeiras
alteracoes, do artigo 47.o, parte inicial e ˜ 1.o do Regulamento do STA, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 41 234,
de 20.08.1957.
74. Vieira de Andrade, A Justica Administrativa, cit., pp. 307 e 308.
75. gA execucao ou acatamento por funcionario ou agente nao se considera aceitacao tacita do acto
executado ou acatado, salvo quando dependa da vontade daqueles a escolha da oportunidade da execucaoh
(artigo 56.o, n.o 3, do CPTA). Para redaccao identica, salvo quanto ao aditamento do termo gagenteh, ver
artigo 47.o, parte inicial e ˜ 1.o, do Regulamento do STA, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 41 234, de
20.08.1957.
234
Temas e Problemas de Processo Administrativo
horario de trabalho, a determinacao para que cesse o exercicio de emprego privado que
acumulava com emprego publico e o indeferimento do pedido de acumulacao de empregos
publicos. Noutros casos, nao existe um dever juridico e ainda assim o assentimento do
trabalhador nao pode ter efeito preclusivo. Pense-se na aceitacao do vinculo da nomeacao,
que e uma condicao de eficacia desta. Aqui, nao se trata de o trabalhador acatar ou executar
o acto, mas da expressao da sua vontade livre e esclarecida. O alcance da aceitacao do
trabalhador afere-se, entao, nos termos gerais, isto e, avalia-se da admissibilidade da
impugnacao em face da conduta anteriormente adoptada76. No que respeita a aceitacao da
nomeacao, pode dizer-se que manifesta a vontade do trabalhador de constituicao ou
modificacao de relacao juridica de emprego, mas nao necessariamente a adesao ou
concordancia com o seu conteudo, nao traduzindo, assim, em geral, um comportamento
incompativel com a vontade de impugnar77. De igual modo, nao se pode ter como
expressao incompativel com a vontade de impugnar o acto homologatorio de lista de
classificacao final de um concurso a constituicao posterior de uma outra relacao juridica de
emprego: o trabalhador nao perde, por isso, o interesse na relacao juridica de emprego
outra a que aquele tende78. De rejeitar e o entendimento de que o particular nao tem
legitimidade para impugnar a decisao final do concurso com fundamento na ilegalidade de
mencoes do aviso de abertura quando a este nao reagiu, por suposta aceitacao dos seus
termos79. A apresentacao a concurso e a subsequente participacao no mesmo diz do
interesse do particular no emprego em causa e, portanto, do seu interesse em discutir as
ilegalidades que dele o afastam, desde logo, as contidas no aviso de abertura. Considere-se,
ainda, uma outra situacao: a do individuo que contesta a decisao final de um procedimento
concursal para provimento de emprego e a quem e proposto pela entidade publica a
celebracao do contrato de tarefa ou a sua designacao em comissao de servico como
dirigente. Mais uma vez a actuacao do trabalhador tem de ser vista em termos gerais, nao
sendo analisavel como acatamento ou execucao de acto; do que se trata e de avaliar se o
estabelecimento de um outro vinculo com a mesma entidade publica e contraditorio com a
vontade de discutir judicialmente o concurso80.
A referencia a oportunidade da execucao do acto como nao obstando a preclusao do
exercicio do direito de impugnar induz a ideia de que esta na disponibilidade do
trabalhador quanto, designadamente, ao se e ao momento em que tem lugar. Se, por
76. Aplicam-se os n.os 1 e 2 do artigo 56.o do CPTA e nao o n.o 3 do mesmo artigo.
77. Acordao do TCA de 23-04-1998, processo n.o 426/97.
78. Acordao do STA de 04-11-1998, processo n.o 40618.
79. Acordao da 3.a Subseccao do CA do STA de 16-05-2001, processo n.o 033271.
80. A situacao nao e analisavel em termos de acatamento ou execucao de acto nos termos do no n.o 3,
tem que ser discutida no ambito do n.o 1 e do n.o 2.
235
Temas e Problemas de Processo Administrativo
exemplo, o trabalhador solicita ao empregador mudanca de local de trabalho ou da o seu
acordo a mudanca pretendida por aquele, mudanca a que se associa variacao funcional,
pode admitir-se que nao e coerente com a vontade manifestada a contestacao judicial
subsequente dessa variacao funcional.
3. Os meios processuais
3.1. Os meios processuais principais
3.1.1. As formas de accao e a relevancia das accoes de prestacao
O vinculo comum da relacao juridica de emprego publico e o contrato de trabalho81. Como
tal, a expressao tipica da manifestacao de vontade das partes e a declaracao negocial. A
dimensao estatutaria e organizativa de parte do seu regime permite ao empregador dispor
unilateralmente (ou relevar a sua omissao) quanto a alguns aspectos da relacao juridica,
como sejam a avaliacao do desempenho do trabalhador e extrair consequencias
disciplinares do nao cumprimento de deveres e obrigacoes pelo trabalhador. Nao quadro,
nao se devem sobrevalorizar as pretensoes relativas a actos administrativos: em muitas
delas, trata-se, na verdade, de efectivar direitos e obrigacoes das partes na relacao juridica
de emprego e, portanto, de fazer valer gpretensoes de conteudo opositivo ou pretensivoh82.
Nao se podem estabelecer nexos necessarios entre o tipo de vinculo laboral e as pretensoes
formuladas: um contrato de trabalho nao exclui pretensoes relativas a acto administrativo e
o vinculo de nomeacao nao exclui accoes de prestacao83; e, se, em certas areas da relacao
juridica de emprego publico, as pretensoes formulaveis apontam para a utilizacao,
fundamentalmente, da accao administrativa especial, como e o caso das pretensoes em
materia disciplinar, nao e de excluir a utilizacao da accao administrativa comum, por
exemplo, para obter o cumprimento de acordos endoprocedimentais que tenham sido
celebrados nos limites da margem de apreciacao e/ou decisao. Coexistem no emprego
publico gmomentos de autoridade e momentos paritariosh84, sendo em funcao destes e,
81. Contrato de trabalho em funcoes e contrato individual de trabalho sujeito ao Direito laboral comum.
82. Rui Chancerelle de Machete nota, em geral, aquilo que tambem e pertinente para o emprego publico,
a saber: g...e indubitavel que, quando por efeito da subjectivacao das normas de direito publico, fenomeno
alias cada vez mais frequente, a Administracao se encontre perante situacoes subjectivas de direitos ou de
interesses legitimos dos particulares, e as ofenda, dai nascam pretensoes de conteudo opositivo ou pretensivo
e os correspondentes deveres ou obrigacoesh . gExecucao de Sentencas Administrativash, Estudos de
Direito Publico, 2004, p. 273.
83. Sobre a percepcao desta realidade em Italia, num quadro geral da áprivatizacaoâ do emprego publico
afirmado desde, pelo menos, 1992, ver Michele Corradino, Il Diritto Amministrativo alla luce della recente
giurisprudenza, 2007, pp. 1025 e segs.
84. Sergio De Felice, gLe tecniche di tutela del giudice ammistrativo nei confronti dei comportamenti
illeciti della P.A.h, in Diritto Processuale Amministrativo, n. 4, a. XXIII, Facicolo IV, Dicembre 2005, p. 878.
236
Temas e Problemas de Processo Administrativo
fundamentalmente, das pretensoes em causa85, que tem de ser aferida, na medida do
possivel no respeito da escolha do autor, a idoneidade dos meios processuais a respectiva
tutela. Em qualquer dos casos (incluindo na situacao de omissao de pronuncia), e a relacao
material controvertida que e convocada e o acertamento, declarativo e executivo, dos
direitos e interesses das partes na relacao laboral no caso concreto86.
A influencia do Direito da Uniao Europeia alarga o leque das pretensoes dos sujeitos em
face dos empregadores publicos. Projecta-se sobre o acesso aos empregos publicos dos
Estados-membros e sobre os direitos do trabalhador na relacao juridica de emprego por
via, sobretudo, da aplicacao do principio da livre circulacao de trabalhadores e por via do
estabelecimento de parametros habilitacionais europeus que a permitam ou favorecam87. E
postula a idoneidade e a suficiencia dos meios e regras processuais nacionais para as
acolher88. Deve ser, tambem, prestada atencao ao papel do juiz administrativo na aplicacao
da Convencao Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais e da sua jurisprudencia, que depoem no sentido do reforco dos direitos dos
trabalhadores da Administracao Publica (designadamente, dos direitos de liberdade e das
garantias procedimentais e processuais)89.
85. A idoneidade da forma do processo tem, assim, que ser vista numa perspectiva concreta, de
compatibilidade entre o pedido formulado e o gmeio adjectivo usadoh (cfr. Acordao da 1.a Subseccao do CA
do STA de 06-04-2006, processo n.o 035/06).
86. Sergio De Felice, gLe tecniche di tutela ...h, cit., p. 930: g...toda a actividade jurisdicional, de
apreciacao, constitutiva, de condenacao, de execucao, compreende cum minimo de acertamento, ja que a
actividade do juiz consiste sempre e antes de mais numa actividade acertativah (italicos no original).
87. Cfr. Acordao do TJUE de 09-09-2003, processo C-285/01, Isabel Burbaud e Ministere de lfEmploi
et de la Solidarite (gReconhecimento de diplomas - Directores hospitalares da funcao publica - Directiva
89/48/CEE - Conceito de ediplomaf - Concurso de acesso - Artigo 48.‹ do Tratado CE (que passou, apos
alteracao, a artigo 39.‹ CE)h), Comunicacao da Comissao Europeia COM(2002) 694 final, Livre circulacao de
trabalhadores . realizacao integral de beneficios e potencial, pp. 19 e segs. (http://eurlex.
europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2002:0694:FIN:pt:PDF), o dossier gLe droit de la
fonction publique au risque du droit communautaireh, in LfActualite Juridique . Droit Administratif 27
octobre 2003, n.o 36/2003, pp. 1906 e segs., Jean-Luc Sauron, gLfexecution de la chose jugeeh, in Le juge
administratif et lfEurope: le dialogue des juges, Actes du Colloque du 50e anniversaire des Tribunaux
administratifs, sous la direction de Boleslaw Lukaszewicz et Henri Oberdorff, Colloque organise les 12 et 13
mars 2004 par la section Rhone-Alpes de lfInstitut francais des Sciences administratives a Grenoble, 2004, e
Charlotte Denizeau, LfIdee de Puissance Publique a LfEpreuve de LfUnion Europeenne, Bibliotheque de
Droit Public, Tome 239, L.G.D.J., 2004, pp. 35 e segs.
88. Sobre a questao em geral, ver Eberhard Schmidt-AƒÀmann, gCuestiones fundamentales sobre la
reforma de la Teoria General del Derecho Administrativo. Necesidad de la innovacion y presupuestos
metodologicosh, in Innovacion y Reforma en el Derecho Administrativo, Javier Barnes (Editor), Sevilha,
2006, pp. 112 e 113, e Fausto de Quadros, gA europeizacao do contencioso administrativoh, Separata de
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no Centenario do seu Nascimento, edicao
da Faculdade de Direito de Lisboa, 2006, Coimbra Editora, pp. 385 a 404.
89. Annie Fitte-Duval, gLa fonction publique et le juge europeen des droits de lfhommeh, LfActualite
juridique . Droit Administratif 20 octobre 1997, pp. 731 a 745. Ver, por exemplo, os Acordaos do TEDH de
12.11.2008, Demir et Baykara c. Turquia, processo n.o 34503/97, de 26.9.1995, Vogt c. Alemanha, processo
n.o 17851/91, e de 8.12.1999, Pellegrin c. Franca, processo n.o 28541/95.
237
Temas e Problemas de Processo Administrativo
Neste quadro, as formas processuais nao devem dificultar mas potenciar a tutela das varias
pretensoes, em funcao das escolhas do autor90.
Nas relacoes juridicas de emprego publico sao frequentes as situacoes de silencio do
empregador perante as interpelacoes do trabalhador, o que prejudica o exercicio atempado
dos seus direitos. A omissao de pronuncia e, relativamente ao indeferimento,
acentuadamente gravosa: nao so nao e praticado o acto devido, impedindo o empregador a
gsatisfacao do interesse ao bem da vida que constitui o escopoh da posicao subjectiva feita
valer no procedimento pelo trabalhador91 . recondutivel aos direitos e obrigacoes das
partes na relacao laboral ., como a sua tutela pode revelar-se mais dificultosa, dado a
exigencia temporal para a verificacao de omissao ilegal e porque, nao existindo colaboracao
da Administracao, e mais dificil fazer presente ao juiz elementos que permitam aferir da
procedencia da pretensao92. Percepcionar, nalguns casos, uma qualquer manifestacao de
vontade positiva do empregador publico nao resolve o problema do trabalhador, que mais
do que actos juridicos reclama, muitas vezes, actuacoes materiais. Nao preclude, depois,
pretensoes ressarcitorias associadas ao seu tardio cumprimento (por exemplo, o pagamento
de juros ou da perda de chances93). Pode, ademais, contender com pretensoes concorrentes
ou colidentes de varios trabalhadores (por exemplo, a atribuicao de premio de
desempenho, a partir de verba orcamental fixa, a alguns dos trabalhadores que reunem os
requisitos necessarios).
Relativamente as intervencoes normativas, ao abrigo de disposicoes de Direito
Administrativo, tem o trabalhador lesado a possibilidade de pedir a sua desaplicacao (por
exemplo, da norma regulamentar que estabelece requisito sem base legal de admissao a
concurso) ou, na falta de regulamento que disposicao legal gtornasse obrigatorio e
exigivelh94, pedir a declaracao de ilegalidade por omissao (por exemplo, por falta de
90. De forma impressiva, William F. Fox explica, relativamente ao sistema de controlo judicial da
administracao, que os tribunais federais desvalorizam o conceito de forma de accao, que uma parte pode
invocar qualquer meio processual para contestar a actuacao de uma agencia e que os rotulos, como
gmandamus, injunction, declaratory judgment e outros, sao menos importantes do que as pretensoes deduzidash
(Understanding Administrative Law, fifth edition, LexisNexis, 2003, p. 256). Ver, tambem, Rui Chancerelle de
Machete, gExecucao de Sentencas Administrativash, Estudos de Direito Publico, 2004, pp. 263 e 264, e
artigo2.o, n.o 1 e n.o 2 do CPTA.
91. Franco Gaetano Scoca, gIl silenzio della pubblica amministrazione alla luce del suo nuovo
trattamento processualeh, Diritto processuale amministrativo, Rivista Trimestrale, 2/2002, Anno XX,
Fascicolo II, Giugno 2002, pp. 248 a 250.
92. Ver Guido Greco, gLfarticolo 2 ...h, cit., p. 7. Caso o tribunal considere que a pretensao e infundada,
o acertamento do dever de decidir passa a ter uma relevancia marginal, sendo de censurar a Administracao ter
dado causa a iniciativa processual do particular, em sede de fixacao de custas . Guido Greco, gLfarticolo 2
della legge 21 Luglio 2000, N. 205h, Diritto processuale amministrativo, Rivista Trimestrale, 1/2002, Ano
XX, Fascicolo 1 . Marzo 2002, p. 13.
93. Por exemplo, o trabalhador que nao foi atempadamente avaliado pode perder a oportunidade de
obter, em sede de concurso, um outro emprego publico.
94. Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 20-02-2008, processo n.o 0476/07.
238
Temas e Problemas de Processo Administrativo
diploma regulamentar que permita a avaliacao do desempenho de certa categoria de
trabalhadores), utilizando a correspondente accao administrativa especial95- 96.
As pretensoes indemnizatorias, em sede de emprego publico, podem ser varias: nao se
reconduzem ao exercicio do direito de regresso no caso de accao ou omissao ilicita e dolosa
ou com culpa grave do trabalhador que deu causa a responsabilidade civil extracontratual
do Estado; pode tratar-se de efectivar a responsabilidade contratual do empregador publico
por violar direitos do trabalhador causando-lhe prejuizo; pode, tambem, tratar-se de
responsabilizar o trabalhador pelos prejuizos causados aos bens ou interesses do
empregador; pode, igualmente, tratar-se de responsabilidade pre-contratual por violacao
dos deveres de cuidado, informacao e lealdade no procedimento de constituicao da relacao
laboral97.
Em materia de emprego publico, tem tambem espaco as accoes de reconhecimento de
situacoes subjectivas, de qualidades e do preenchimento de condicoes, para afastar a
incerteza objectiva concreta e actual quanto a sua existencia ou sobre a sua disponibilidade
ou certeza futura98. Esta accao pode ser utilizada, por exemplo, para acertar o
reconhecimento do direito a acumulacao de emprego privado com emprego publico por
deferimento tacito de pedido formulado, oportunamente, por trabalhador99.
Nas accoes gmandamentaish, relevam as pretensoes relativas a adopcao (accoes
impositivas) ou a abstencao de comportamentos, designadamente a pretensao de nao
emissao de um acto administrativo, quando seja provavel a emissao de um acto lesivo
(accoes inibitorias)100. Do ponto de vista positivo, no emprego publico, podem estar em
causa, por exemplo, pedidos de correccao de mencao ilegal constante de aviso de abertura
de um concurso101, o pedido dirigido a adopcao pelo empregador publico de medidas
95. Cfr. artigos 46.o, n.o 1 e n.o 2, alineas c) e d) e 72.o a 77.o do CPTA.
96. Esta accao foi utilizada em face da previsao legal da emissao de decreto regulamentar que aplicasse
as carreiras/categorias com designacoes especificas e as carreiras de regime especial o diploma legal que
revalorizou as carreiras do regime geral. Contra a procedencia da mesma dispos, porem, a falta de fixacao nas
normas legais em causa de um prazo para o efeito e, precedentemente, o facto de conferir ao Governo larga
margem de apreciacao no ajuizamento da necessidade de tal adaptacao. Cfr. Acordao da 2.a Subseccao do CA
do STA de 20-02-2008, processo n.o 0476/07, e Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 30-01-2007,
processo n.o 0310706.
97. Cfr. artigo 4.o, n.o 1, alineas a), e), h) e j), do ETAF.
98. Bruno Tonoletti nota que, nao obstante este tipo de accao tenha obtido um reconhecimento de
caracter geral, o seu reconhecimento jurisprudencial tem-se verificado quase sempre em materia de emprego
publico . gMero accertamento e processo amministrativo: analisi di caso concretoh, Diritto processuale
amministrativo, Rivista Trimestrale, 3/2002, Anno XX, Fascicolo III, Settembre 2002, pp. 617 e 618.
99. Sobre a utilizacao das accoes de reconhecimento no caso do deferimento tacito, ver Bruno
Tonoletti, gMero accertamento ...h, cit., pp. 618 e segs.
100. Cfr. artigo 37.o, n.o 2, alinea c), do CPTA.
101. Mario Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, notando que estao em causa, gmeras
actuacoes administrativash e gcertos actos juridicos caracterizados pela ausencia de áconteudo reguladorâ, de
áconteudo de regra juridicaâ, como sucede com os actos meramente declarativos (...), com a abertura de
concursos, com o processamento de vencimentosh (Codigo de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol.
239
Temas e Problemas de Processo Administrativo
relativas a seguranca, saude e higiene do local de trabalho e o pedido relativo a ocupacao
efectiva do trabalhador ou a colocacao no exercicio de funcoes condizentes com a sua
qualificacao profissional. Na vertente negativa, as accoes em causa tem um caracter
inibitorio preventivo: dirigem-se a impedir comportamento administrativo futuro que
frustre direito ou interesse; a sua instauracao nao tem, por si, esse efeito, pelo que nao
obstaculiza a continuidade da actividade administrativa102, gnao paralisa a execucao nem
afecta a execucao da actuacao, porque esta nem sequer tera lugar (a questao litigiosa
revolve-se antes)h103. Tem, tambem, a virtualidade de tornar desnecessaria guma via
administrativa previah104, de permite atalhar a um certo desequilibrio, em termos
comparativos, do regime da nulidade e da anulabilidade105 e de favorecer, nao obstante o
seu caracter impositivo, a pacificacao das relacoes entre particular e a Administracao106.
Pode estar em causa, por exemplo, o pedido feito por um candidato num concurso no
sentido da Administracao se abster de praticar o acto homologatorio da lista de
classificacao de um concurso atentas as ilegalidades manifestas que aponta ao
procedimento concursal; o pedido feito ao tribunal para que a Administracao, anulada ou
declarada nula a decisao disciplinar punitiva, se abstenha de reexercer o poder disciplinar
(que a lei estritamente limita); ou para que, no contexto de processo de inquerito ou de
averiguacoes, nao instaure procedimento disciplinar, para que apontam as conclusoes
daqueles, por ser patente que nao existe infraccao disciplinar.
3.1.2. Os poderes do tribunal
I, e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, 2004, pp. 264 e 265). Cre-se, sem prejuizo,
que quanto ao processamento de vencimentos reconduz-se, em regra, ou a gcondenacao da Administracao a
adopcao de condutas necessarias ao restabelecimento de direitos ou interesses violadosh ou a gcondenacao da
Administracao ao cumprimento de deveres de prestar ...h (respectivamente, alineas d) e e), do n.o 2 do artigo
37.o do CPTA).
102. Mario Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Codigo de Processo ..., cit., pp. 266 e 267.
103. Santiago Gonzalez-Varas Ibanez, gHacia un modelo contencioso-administrativo preventivo. El
Ejemplo de la áejecucionâ de las sentencias anulatorias de un plan urbanisticoh, in Revista de Administracion
Publica, n.o 163, Enero/Abril, 2004, pp. 44 a p. 52.
104. Santiago Gonzalez-Varas Ibanez, gHacia un modelo contencioso-administrativo preventivo. ch,
cit., pp. 50 e 51.
105. A classica gteoria das nulidadesh, como observa Santiago Gonzalez-Varas Ibanez, foi-se
desvirtuando, por forca, em grande parte, do caracter cassatorio e nao celere da justica administrativa. E tal
parece-nos mais visivel no caso da nulidade propriamente dita ou absoluta do que no caso da anulabilidade,
porque as limitacoes temporais de intervencao em face dos actos anulaveis ou suscitam reaccoes tempestivas
ou geram a sua estabilidade. No primeiro caso, o decurso do tempo constitui-se como forca de atrito a
execucao ou possibilidade de execucao integral da decisao judicial. A justica preventiva, na perspectiva de se
evitar que a grealidade factica condicione a sentenca ou a sua execucaoh, pode ter guma virtualidade materialh
importante no áaproveitamentoâ ou áutilidadeâ daquela teoria . gHacia un modelo ch, cit., pp. 48 e 49.
Sobre as diferencas de regime da nulidade e da anulabilidade e dificuldades suscitadas pelo respectivo regime,
ver, tambem, Sergio De Felice, gLe tecniche di tutela ...h, cit., pp. 917 a 925.
106. Alix Perrin, Lfinjonction en droit public francais, Universite Pantheon-Assas (Paris III), LGDJ
diffuseur, 2009, p. 839.
240
Temas e Problemas de Processo Administrativo
O direito a tutela jurisdicional efectiva compreende o direito a gapreciacao real e de acordo
com os parametros juridicos do objecto do litigioh e a uma decisao judicial vinculativa107.
Ao juiz cabe gestatuir sobre os argumentos e as provas conhecidas de todas as partes no
processo e que foram admitidas a apresentar e discutir, numa base de igualdadeh108. Dispoe
de amplos poderes de pronuncia e de certos poderes instrutorios. Os poderes do juiz
desenham-se entre um imperativo de áreservaâ, isto e, de nao controlo da conveniencia e
da oportunidade da actuacao administrativa109, de respeito da disponibilidade do processo
pelas partes, de equidistancia relativamente as suas pretensoes e interesses110 e de respeito
pelos onus da prova. Quanto a estes, dependem do objecto do processo e das pretensoes
em discussao: designadamente, se o particular pretender uma dada actuacao positiva da
Administracao tem de demonstrar a verificacao dos respectivos elementos constitutivos; se
estiver em causa a negacao do direito ou actuacao daquela (por exemplo, o despedimento
do trabalhador), cabe-lhe essa demonstracao e ao particular trazer a lide factos impeditivos,
modificativos ou extintivos dos mesmos (por exemplo, a prescricao do direito de instaurar
procedimento disciplinar)111. Por outro lado, o juiz tem de considerar o imperativo da tutela
jurisdicional efectiva, da necessidade pratica de conhecimento e decisao da causa e,
portanto, de informacao sobre gos factos da causa e os argumentos de direitoh112.
3.1.2.1. Os poderes instrutorios
O juiz, na analise das questoes que possam obstar ao conhecimento do objecto do
processo, deve promover a correccao de deficiencias e irregularidades de caracter formal, e
nao de conteudo, das pecas processuais113. Deve ser cauteloso no juizo sobre o erro quanto
a forma do processo, evitando imiscuir-se nas opcoes do autor/requerente114, e nao deve
substituir-se ao autor, operando, na falta da formulacao de pedido oportuno, uma
modificacao no objecto do processo na situacao em que, na pendencia da accao, e
praticado um novo acto, ou uma alteracao do acto sob apreciacao judicial (por exemplo,
107. Wolfgang Heyde, gLa jurisdiccionh, cit., p. 790.
108. Alain Plantey e Francois-Charles Bernard, La Preuve devant le Juge Administratif, Economica, 2003,
p. 25.
109. Cfr. artigos 3.o, n.o 1, 71.o, n.o 2, 95.o, n.o 3, 168.o, n.o 2, e 179.o, n.o 1, do CPTA.
110. Acordao do 2.o Juizo do CA do TCA Sul de 12-01-2006, processo n.o 01293/05.
111. Mario Aroso de Almeida, gNovas perspectivas para o contencioso administrativoh, in JURIS ET
DE IURIS, Nos 20 anos da Faculdade de Direito da UCP . Porto, Porto, 1998, pp. 554 a 556.
112. Alain Plantey e Francois-Charles Bernard, La Preuve c, cit., p. 25.
113. Cfr. artigo 88.o do CPTA e Acordao do 2.o Juizo do CA do TCA Sul de 12-01-2006, processo n.o
01293/05.
114. Sobre o efeito de um despacho de convolacao de procedimento cautelar de suspensao de eficacia do
despacho que determinou os servicos minimos a assegurar no caso de greve numa intimacao para a proteccao
de direitos, liberdades e garantias, ver Acordao da 1.a Subseccao do CA do STA de 06-04-2006, processo n.o
035/06.
241
Temas e Problemas de Processo Administrativo
fazendo prosseguir a accao contra uma deliberacao camararia que aplica sancao disciplinar
a um trabalhador, ratificando decisao do vereador dos recursos humanos que
anteriormente a aplicara115). Para poder resolver as questoes juridicas que convoca, o juiz
deve assegurar-se da suficiencia instrutoria da lide e fazer o acertamento da materia de facto
controvertida116. Neste plano, pode gordenar as diligencias de prova que considere
necessariash117; indeferir, mediante fundamentacao, grequerimentos dirigidos a producao de
prova sobre certos factosh ou dirigidos a gutilizacao de certos meios de provah (por
exemplo, a prova requerida nao e relevante a luz da argumentacao aduzida e/ou para a
solucao do litigio118)119; determinar, no caso da cumulacao de pedidos que pressuponham a
pronuncia sobre a gilegalidade da accao ou da omissaoh, o diferimento da sua instrucao120;
ordenar oficiosamente a realizacao de audiencia publica sobre a discussao da materia de
facto se ga complexidade da materiah o justificar121, ou indeferir, fundamentadamente,
pedido feito no sentido da sua realizacao122. Neste quadro, refira-se, a titulo de exemplo,
que o STA considerou que o gTCA nao podia julgar inutil o prosseguimento da lide sem
previamente averiguar se cexistiam [procedimentos sancionatorios instaurados a
professores que inobservaram despacho que definiu os servicos minimos], pois o efeito
suspensivo decorrente da eventual procedencia da causa imporia que a Administracao
tivesse de [o] desconsiderar ce que, por via disso, solucionasse aqueles procedimentos em
favor dos grevistash123. Outro limite a construcao da base instrutoria da decisao reside na
analise da admissibilidade da prova produzida para fundar a resolucao da controversia: por
exemplo, o juiz nao pode considerar uma promessa de emprego publico num litigio
relativo ao seu provimento124.
3.1.2.1.1. A instrucao, em especial, o direito a prova nas accoes administrativas
especiais
Para a decisao da causa os factos relevantes sao os factos delimitados pelo direito aplicavel:
as questoes de facto nao sao autonomas das questoes de direito, nao sendo possivel uma
115. Acordao da 1.a Seccao do CA do TCA Norte de 15-04-2010, processo n.o 02530/07.4BEPRT. Sem
prejuizo, tendo o autor reportado no processo a pratica do novo acto deve ser convidado a formular eventual
pedido, se assim o entender.
116. Cfr. artigo 87.o, n.o 1, alinea a), do CPTA.
117. Cfr. artigo 90.o, n.o 1, do CPTA.
118. Alain Plantey e Francois-Charles Bernard, La Preuve c, cit., pp. 71 e 72.
119. Cfr. artigo 90.o, n.o 2, do CPTA.
120. Cfr. artigo 90.o, n.o 3, do CPTA.
121. Cfr. artigo 91.o, n.o 1, do CPTA.
122. Cfr. artigo 91.o, n.o 2, do CPTA.
123. Acordao da 1.a Subseccao do CA do STA de 06-04-2006, processo n.o 035/06.
124. Alain Plantey e Francois-Charles Bernard, La Preuve c, cit., p. 73.
242
Temas e Problemas de Processo Administrativo
sua analise disjuntiva125. O juiz ocupa-se das questoes suscitadas pelas partes e daquelas
cujo conhecimento oficioso a lei lhe permite ou imponha, como, por exemplo, pronunciarse,
apos contraditorio, sobre motivos de invalidade diversos dos que tenham sido
alegados)126. A instrucao e, nesta, a producao de prova tem a amplitude do conhecimento
devido do Direito127. Na instrucao, tem um papel central o processo administrativo128. O
original do processo e gtodos os demais documentos respeitantes a materia do processo de
que seja detentorah devem ser remetidos ao tribunal, ficando apensos aos autos129. Regista a
actividade instrutoria, mais ou menos densamente regulada, realizada por orgaos e agentes
da Administracao Publica sujeitos a deveres de imparcialidade e diligencia e, nalguns casos,
mediante obrigacoes estritas de contraditorio130 e de prova . em especial, quando, em face
da presuncao da inocencia, deve o empregador demonstrar a realidade e a gravidade dos
factos que imputa ao trabalhador131. O processo informa a historia da decisao ou actuacao
administrativas; serve a argumentacao e o posicionamento juridicos das partes132 e nao
apenas da Administracao, que fica sujeita a penalidades pelo seu nao envio ou pelo seu
envio tardio133.
Os factos da causa sao fixados pelo juiz: nao se trata de fazer um juizo sobre os factos
delimitados pela Administracao mas de relevar os factos que resultam da instrucao e da
discussao judiciais. Nestas, o processo administrativo tem um caracter instrumental, no
sentido em que permite a indiciacao da existencia dos factos decisivos para a decisao da
causa, assumindo uma feicao probatoria. Mas como funciona, sem prejuizo dos poderes
assinalados ao juiz, o principio de auto-responsabilidade das partes134, no respeito dos onus
125. Gabriella De Giorgi Cezzi, gGiudizio prova verita. Appunti sul regime delle prove nel processo
amminitsrativoh, Diritto processuale amministrativo, Rivista Trimestrale, 4/2002, Anno XX, Fascicolo IV,
Diciembre 2002, p. 910.
126. Cfr. artigo 95.o, n.o 1 e n.o 2, do CPTA.
127. Gabriella De Giorgi Cezzi, gGiudizio prova verita ...h, cit., pp. 913 e 914.
128. Gabriella De Giorgi Cezzi, gGiudizio prova verita ...h, cit., p. 912.
129. Cfr. artigo 84.o, n.o 1, do CPTA.
130. No procedimento disciplinar, em particular, as diligencias probatorias estao sujeitas a um estrito
formalismo e, mais do que a audicao dos interessados, deve ser assegurado o contraditorio, em certos termos:
por exemplo, o instrutor deve realizar as diligencias de prova requeridas pelo trabalhador arguido, salvo
quando forem manifestamente improcedentes ou desnecessarias, devendo, neste caso, fundamentar a decisao
de indeferimento.
131. Em geral, a Administracao tem o onus de evidenciar a legalidade da sua actuacao. Nas decisoes
punitivas, em particular, o onus da prova recai, inafastavelmente, sobre o autor da decisao disciplinar, nao
sendo de admitir um gprincipio de presuncao de culpabilidadeh. Ver Ricardo Rivero Ortega, El Estado
vigilante. Consideraciones Juridicas sobre la Funcion Inspectora de la Administracion, Editorial Tecnos, S. A.,
2000, cit., pp. 209 e 210, e Alain Plantey e Francois-Charles Bernard, La Preuve c, cit., pp. 40, 44 e 45.
132. Nota Ricardo Rivero Ortega que, independentemente do valor concreto das informacoes nele
contidas, e a partir do processo administrativo que as partes retiraram boa parte dos gargumentos que
utilizarao para formular as suas alegacoes e o Tribunal a sua sentencah (El Estado vigilante c, cit., p. 215).
133. Cfr. artigo 84.o do CPTA.
134. Sobre o assunto, ver os hPoderes do Juiz na discussao e julgamento da materia de factoh no
processo laboral, de Adosinda Barbosa Pereira, intervencao no Painel de gProcesso laboral e o julgamento da
materia de factoh, do Coloquio Anual sobre Direito do Trabalho, Supremo Tribunal de Justica, 19 de
243
Temas e Problemas de Processo Administrativo
da prova135, tal significa que os factos do processo administrativo nao sao os factos do
processo judicial, que a base de facto do direito a proferir e neste construido, nele
consubstanciando aquele uma pre-prova; nao e uma res nullium, pelo que nao se trata de
realizar de novo, no ambito jurisdicional, a prova com que foi tecido o convencimento dos
factos pelo instrutor/decisor no procedimento administrativo136.
3.1.2.2. Os poderes de pronuncia
Ao juiz cabe dirimir os litigios considerando, de forma articulada, as normas juridicas
pertinentes, de fontes diversas e com texturas e valoracoes diferentes. A gactividade
decisoria dos tribunaish e uma actividade exegetica integrada, cujas gmargens de
interpretacao nao sao comparaveis a discricionariedade do legisladorh137 e que nao se deve
substituir aos criterios e valoracoes permitidos por este a Administracao, desde logo aos
empregadores publicos. Nao sai, no entanto, diminuido o controlo jurisdicional dos seus
limites, seja dos que resultam da lei que confere margem de apreciacao e/ou decisao, seja
dos principios que parametrizam o exercicio do poder, seja, igualmente, das regras de
correccao do agir tecnico ou do conhecimento tecnico-cientifico convocado. Os tribunais
devem, designadamente, verificar da existencia dos factos que fundamentam a actuacao
administrativa; de erro na utilizacao das normas tecnicas recebidas ou para que reenvia a lei;
da congruencia entre os factos acertados e as normas e valoracoes juridicas e tecnicas de
referencia138; da adopcao de criterios e modos de agir objectivos, garantes da observancia
de principios da actividade administrativa como o da igualdade e o do imparcialidade. Ha,
assim, por exemplo, a possibilidade de controlo jurisdicional de erro na aplicacao dos
parametros de correccao de provas de conhecimentos e outras provas de cariz
prevalecentemente tecnico (como o exame psicologico de seleccao) usadas no
recrutamento e seleccao de trabalhadores e de controlo da falta de tais parametros, que
prejudicam a garantia de igualdade e de imparcialidade139; e a possibilidade, em materia
disciplinar, de controlo da existencia de circunstancia agravante, de causa de exclusao da
Setembro de 2007, http://www.stj.pt/nsrepo/not/Proc%20Adozinda%20Pereira.pdf.
135. Como seja o da demonstracao pela Administracao da legalidade dos actos que pratica e a
demonstracao da inexistencia do dever de decidir ou dos pressupostos ou requisitos para o deferimento da
pretensao a que respeita.
136. Assim, mais do que anular decisoes com gbase nos resultados probatorios coligidos no ambito da
accao de impugnacao em detrimento dos elementos instrutorios do procedimento administrativoh, trata-se de
considerar o conjunto da prova trazida ao processo . Carlos Alberto Cadilha, gDireito disciplinar da funcao
publica. Alguns topicosh, texto policopiado, 9 de Maio de 2003, p. 14.
137. Wolfgang Heyde, gLa jurisdiccionh, cit., pp. 816 e 817.
138. Gabriella De Giorgi Cezzi, gGiudizio prova verita ...h, cit., p. 920, Giovanni Sala, Potere
amministrativo e principi dellfordinamento, Centro Nazionale di Prevenzione e Difesa Sociale, Collana di
diritto pubblico, 1993, Milano, Giuffre Editores, pp. 206 a 224.
139. Cfr. Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 22-10-2008, processo n.o 0307/08.
244
Temas e Problemas de Processo Administrativo
ilicitude e da falta do elemento subjectivo da culpa, dados por verificados em certa punicao
disciplinar e, bem assim, de controlo negativo da graduacao da sancao em face do principio
da proporcionalidade140.
Os poderes do tribunal compreendem, em sede de execucao, a emissao de sentenca
substitutiva de acto administrativo se a sua pratica e o seu conteudo forem estritamente
vinculados. Quer nesta sede quer no dispositivo da sentenca, o tribunal pode, ao fixar
prazo para o cumprimento de deveres ou adopcao de certa conduta, aplicar sancao
pecuniaria compulsoria, desde logo, para prevenir incumprimento que se configura como
possivel e nao necessariamente no pressuposto de anterior comportamento faltoso141.
3.2. Os meios processuais urgentes
A tutela judicial efectiva pressupoe a garantia de proteccao judicial contra decisoes judiciais
desprovidas de utilidade, por se ter criado uma situacao de facto consumado ou por se
terem produzido efeitos irreparaveis ou de muito dificil reparacao142. Na relacao juridica de
emprego publico, sao frequentes as situacoes em que a atribuicao de vantagem ou beneficio
ao trabalhador depende do seu posicionamento relativo em face de outro ou outros ou em
face de recursos limitados (por exemplo, uma promocao mediante concurso; a mudanca de
posicionamento remuneratorio; a obtencao de um premio de desempenho) ou depende da
disponibilidade de um bem ou vantagem (por exemplo, a vacatura de um posto de
trabalho), que pode ter sido prejudicada por actuacao ilegal (por exemplo, o emprego foi
provido ilegalmente). Em regra, a actuacao do empregador publico deve obedecer a
procedimento com tramitacao minuciosa e sequencia logica e temporalmente encadeada.
As decisoes juridicas tem, frequentemente, contra-interessados e varios contra-interessados.
Significa isto que a pronuncia judicial sobre as pretensoes deduzidas em materia de
emprego publico, muitas vezes, surge quando existem ja situacoes juridicas com as quais
colide ou que evoluiram em termos tais que, na verdade, prejudicam a sua adequada
satisfacao actual (nomeadamente, existe ja um articulado de relacoes juridicas construidas
em cadeia que torna dificil a execucao da sentenca judicial e que faz prolongar o diferendo
ainda mais no tempo).
Neste quadro, tem inteira pertinencia o recurso a providencias cautelares e a processos de
intimacao no ambito do emprego publico.
140. Nao se pode, pois, invocar, simplesmente, a gseparacao de poderes em materia disciplinarh para
excluir a competencia jurisdicional gem materia de graduacao concreta da pena disciplinar, seja no dominio da
ilicitude ou da culpa, por ...descaracterizacao de circunstancias ...agravantes, excludentes da ilicitude ou da
culpa ...h (cfr. Acordao do 2.o Juizo do TCA Sul de 02-10-2008, processo n.o 03645/08).
141. Acordao do Pleno da Seccao do CA do STA de 03-05-2007, processo n.o 030373A.
142. Cfr. artigo 20.o e 268.o, n.o 4, da CRP. e Wolfganf Heyde, gLa jurisdiccionh, cit., pp. 790 e 791.
245
Temas e Problemas de Processo Administrativo
3.2. As providencias cautelares
A necessidade de providencias cautelares coloca-se em situacoes varias, por exemplo,
concursais (v.g., de admissao provisoria ao procedimento), de realizacao de prestacoes
pecuniarias (como o pagamento provisorio de remuneracao143) e de aplicacao de sancoes
disciplinares (v.g., a suspensao da eficacia de decisao punitiva). De acordo com o gprincipio
da atipicidade e da elasticidade das formas da tutela cautelarh144, varias podem ser as
providencias requeridas e/ou, assegurado que seja o contraditorio, aplicadas ou modeladas
nos seus efeitos145, posto e que sejam adequadas a garantir a utilidade da sentenca e que
conciliem de forma proporcionada os interesses em presenca. Assim, por exemplo, atenta a
relevancia exterior da actividade do trabalhador, pode justificar-se a suspensao parcial da
eficacia de um acto146, que exclua o exercicio de funcoes147 ou que implique a nao realizacao
de certas tarefas148.
A afericao e ponderacao comparativa dos prejuizos, basilar para aquilatar do deferimento
da providencia, assentam em juizos de facto, que envolvem a sua alegacao e a especificacao
concretas149. Nesta medida, e generica e aprioristica, por exemplo, a enunciacao do
interesse publico, relativamente a colocacao de um trabalhador em mobilidade especial,
como sendo corporizado pela execucao do Programa de Reestruturacao da Administracao
Publica e dito necessariamente posto em perigo pelo decretamento da suspensao da
respectiva decisao.
O requisito do fumus boni iuris parece ter menor protagonismo: nas providencias
conservatorias, porque o seu preenchimento basta-se com a probabilidade ou
verosimilhanca da invocada ilegalidade; nas providencias antecipatorias, porque a sua
atendibilidade esta numa relacao de dificil equilibrio com o risco de uma antecipacao
definitiva da realidade; e, em ambas, porque quando o requisito opera atraves do juizo de
evidencia (densificado pelo caracter patente da ilegalidade, independentemente do seu
143. Roberto Garofoli, gLa tutela cautelare degli interessi negativi. Le tecniche del remand e
dellfordinanza a contenuti positivo alla luce del rinovato quadro normativoh, Diritto processuale
amministrativo, Rivista Trimestrale, Anno xx, Fascicolo IV, Diciembre 2002, n.o 4/2002, pp. 860 e 861.
144. Roberto Garofoli, gLa tutela cautelare ...h, cit., p. 860.
145. Jean-Francois Lachaume e Helene Pauliat, Droit administratif c, cit., pp. 500 e 506.
146. Sobre a previsao legal de suspensao de certos efeitos do acto, ver Alain Plantey e Francois-Charles
Bernard, La Preuve c, cit., p. 82.
147. Neste sentido, cfr. Acordao do Pleno da Seccao do CA do STA de 25-03-2010, processo n.o
0847/09, em particular, o voto de vencido de Jorge Manuel Lopes de Sousa.
148. Pense-se, por exemplo, numa situacao de mobilidade funcional que, segundo alegado pelo
trabalhador, importa a realizacao de tarefas que fazem perigar a saude do trabalhador.
149. Dai que, sendo varios os requerentes, a alegacao dos prejuizos tenha que ser diferenciada. Cfr.
Acordao da 2.a Subseccao do CA do STA de 22-06-2004, processo n.o 0493A/04, e Acordao da 1.a Subseccao
do CA do STA de 17-12-2008, processo n.o 0825/08. Ver, tambem, Alain Plantey e Francois-Charles
Bernard, La Preuve c, cit., pp. 84 e 85.
246
Temas e Problemas de Processo Administrativo
desvalor150, e pela existencia de julgamento anterior pela ilegalidade da norma que aplica ou
de acto identico) e configurada como motivo excepcional para o seu decretamento, dado
considerar-se proprio do juizo cautelar deixar em aberto a decisao de merito151. Em sede
cautelar, nao cabe, por exemplo, por principio, dizer se um candidato reune um requisito
para ser admitido a um concurso ou se tem as condicoes para mudanca de posicao
remuneratoria.
As providencias cautelares em materia de disciplina militar estao sujeitas a um regime
particular152, mais exigente, que favorece o seu nao decretamento: i) o pedido de suspensao
de eficacia nao obsta a execucao do acto ou a que prossiga; ii) o decretamento da
providencia depende da existencia de perigo de criacao de uma situacao de facto
consumado e de um fumus bonis iuris especialmente qualificado, de evidencia, em uma de
tres situacoes, da procedencia da pretensao153; iii) o decretamento provisorio das
providencias cautelares nao pode ter lugar sem a audicao da entidade requerida154.
3.2.2. O recurso a intimacoes judiciais
No emprego publico sao configuraveis situacoes em que e necessaria a obtencao de uma
tutela de merito urgente relativa a direitos fundamentais susceptiveis de lesao imediata,
justificando-se que seja dada preferencia a uma tutela definitiva relativamente a uma tutela
provisoria: quando se trate de controversias que envolvem interesses publicos e/ou
privados de especial relevo cuja gplena e efectiva satisfacao e nao raramente obstaculizada,
se nao gravemente comprometida, pela demora na definicao do merito da causah155, em que
urge, nao uma regulacao provisoria, mas uma disposicao definitiva. A colocacao da
proteccao pretendida nesta sede tem de ser concreta, nao bastando a mera e generica
convocacao de direito fundamental, assim como concreta deve ser a demonstracao de
urgencia de uma decisao de fundo do litigio. Nesta linha, por exemplo, se o particular se
limita ga alegar e invocar o seu direito a progressao na carreira na vertente de que lhe sejam
pagas as remuneracoes devidas e respectivos retroactivos decorrentes de transicao de
150. Em sentido diferente, Acordao da Acordao da 1.a Seccao do CA do TCA Norte, processo n.o
00477/04.5BECBR, e Acordao da 1.a Seccao do CA do TCA Norte de 20-01-2005, processo n.o
01314/04.6BEPRT (que conclui que g[e]m principio, so quanto aos vicios graves, aqueles que concretizam
uma lesao insuportavel dos valores protegidos pelo direito administrativo e que por isso implicam a nulidade
do acto, e possivel ajuizar sobre a evidencia da procedencia da pretensao principalh).
151. Acordao da 1.a Seccao do CA do TCA Norte, processo n.o 00477/04.5BECBR.
152. Lei n.o 34/2007, de 13.08.
153. Acto manifestamente ilegal, acto de aplicacao de norma ja anteriormente anulada e acto
materialmente identico a outro ja anteriormente anulado ou declarado nulo ou inexistente (artigo 3.o da Lei
n.o 34/2007, de 13.08).
154. Cfr. artigo 4.o, n.o 2, da Lei n.o 34/2007, de 13.08.
155. Roberto Garofoli, gLa tutela cautelare ...h, cit., pp. 865 e 866.
247
Temas e Problemas de Processo Administrativo
escalao por forma a que o seu direito a aposentacao, entretanto exercido e com decisao
para breve, nao seja afectado...o direito em questao nao cai na esfera do artigo 47.o, n.o 2,
da CRPh, sendo de indeferir o pedido de intimacao156. O pedido de intimacao para a
proteccao de direitos, liberdades e garantias pode ser, designadamente, equacionado nas
seguintes situacoes: no caso em que a habilitacao a concurso pressupoe uma avaliacao de
desempenho dada, cuja atribuicao o empregador recusa invocando punicao disciplinar,
mais do que o deferimento de providencia cautelar, o trabalhador pretende a intimacao
daquele para que se concretize a avaliacao sem a qual fica, irremediavelmente,
comprometida a sua admissao a concurso; em face da decisao de nao provimento de um
trabalhador em emprego publico de duracao indeterminada que importe a cessacao de
funcoes dada a caducidade de contrato a termo157 ou cuja possibilidade de admissao fique
prejudicada a partir de certa data; considere-se, tambem, o pedido de intimacao dirigido a
nao fixacao de servicos minimos por, alegadamente, nao estar em causa um servico que
satisfaz necessidades sociais impreteriveis, tendo-se presente que os tempos da greve nao se
compadecem com uma decisao provisoria158.
A intimacao para a prestacao de informacao e fornecimento de documentos serve a tutela
de direitos que tem uma importante dimensao instrumental para a defesa de posicoes
juridicas substantivas, em sede judicial ou fora dela (como, por exemplo, a emissao de
certificado de habilitacoes ou o fornecimento de fotocopias necessarias para instruir
processo de candidatura a concurso para provimento de emprego publico e o pedido de
acesso ao processo disciplinar, designadamente, tendo em vista a elaboracao eficaz de
defesa escrita). Muitos destes pedidos reportam-se ao acesso a informacao procedimental.
Noutros, esta em causa o conhecimento de documentos nao integrantes de um qualquer
procedimento . como, por exemplo, o conhecimento pretendido por um trabalhador de
oficios que reportam que exerce as funcoes de consultor em organizacoes sindicais159 . ou
que integram procedimento findo, como, por exemplo, o pedido de copia do processo de
avaliacao de outros trabalhadores com os quais ádisputaâ uma determinacao mencao, cuja
atribuicao esta sujeita a uma quota; e o pedido de informacao por parte de um municipe
sobre a remuneracao do director do departamento de urbanismo de camara municipal.
4. Os recursos
156. Acordao da 1.a Seccao do CA de 13-01-2005, processo n.o 00203/04.9BEMDL.
157. Isabelle Legrand et Laetitia Janicot, gFonction publique, le refere-liberte peut etre invoque a
lfencontre dfun refus de titularisation dfun fonctionnaire stagiaire, CE Sec. 28 fevrier 2001g, LfActualite
Juridique, Droit Administratif, vol. 57, n.o 11, 2001, pp. 971 a 977.
158. Jean-Francois Lachaume e Helene Pauliat, Droit administratif c, cit., p. 504.
159. Acordao do 2.o Juizo do CA do TCA Sul de 12-01-2006, processo n.o 01293/05.
248
Temas e Problemas de Processo Administrativo
No ambito dos recursos, destaca-se a exclusao, relativamente aos litigios em materia de
emprego publico, da possibilidade de recurso per saltum160. Este recurso e um recurso de
revista, circunscrito as questoes de direito e que pressupoe que a causa tenha um valor
muito elevado. Se pensarmos, por exemplo, nos processos de impugnacao de normas ou
nos processos em que se pede a emissao de normas regulamentares, que tem um valor
indeterminado161, e se tivermos presente que, no dominio do emprego publico se colocam,
muitas vezes, questoes relativas a emissao ou a omissao de normas, percebe-se que nao e
despiciendo o afastamento de tal recurso e que nao e necessariamente pela aplicacao das
regras relativas ao valor da causa que a possibilidade de recurso e afastada. Ja o elevado
numero de processos em materia de emprego publico e a complexidade das questoes
juridicas (ate pelo seu tratamento recorrente) depoem contra a intervencao do STA. Tanto
mais que, quando uma questao tenha uma gimportancia fundamentalh ou se justifique a
fixacao de um referente aplicativo, dada a sua relevancia juridica ou social, pode aquele
tribunal intervir em sede de recurso de revista162. A definicao deste referente pelo STA
pode, de resto, ter lugar em sede de reenvio prejudicial, que nao exclui as questoes relativas
ao emprego publico163.
5. A extensao dos efeitos de sentenca
Nas gdisposicoes geraish (Capitulo I) do Parte VIII, relativa ao gprocesso executivoh,
estabelece o CPTA a possibilidade de terceiras pessoas nao abrangidas pelo ambito
subjectivo de sentenca anulatoria ou de sentenca que reconheca situacao juridica favoravel,
exteriores a concreta relacao juridica discutida nos respectivos processos judiciais164,
requererem ao tribunal que a proferiu a extensao dos seus efeitos ge a sua execucao a seu
favorh (artigo 161.o, n.o 1 e n.o 4). Nesta extensao, ha um alargamento dos limites
subjectivos do caso julgado e o acertamento de situacoes juridicas outras em relacao as
160. Cfr. artigo 151.o do CPTA: g1 - Quando o valor da causa seja superior a tres milhoes de euros ou
seja indeterminavel e as partes, nas suas alegacoes, suscitem apenas questoes de direito, o recurso interposto
de decisao de merito proferida por um tribunal administrativo de circulo sobe directamente ao Supremo
Tribunal Administrativo, como revista a qual e aplicavel o disposto nos nos 2 a 4 do artigo anterior. 2 - O
disposto no numero anterior nao se aplica a processos respeitantes a questoes de funcionalismo publico ou
relacionadas com formas publicas ou privadas de proteccao social.h
161. Cfr. artigo 34.o, n.o 1, do CPTA.
162. No Acordao da 1.a Seccao do CA do STA de 06-04-2006, processo n.o 035/06, o tribunal analisou
se o TCA gpodia julgar inutil o prosseguimento da lide sem previamente averiguar se cexistiam
[procedimentos sancionatorios de professores que entraram em greve desrespeitando o despacho de fixacao
de servicos minimos, atento] co efeito suspensivo decorrente da eventual procedencia da causah, estando
em causa greve dos docentes do ensino nao superior com efeito sobre a realizacao de exames nacionais.
163. Cfr. Acordao do Pleno da Seccao do CA do STA de 04-01-2006, processo n.o 01257/05.
164. Carmen Uriol Egido, gLa ejecucion de sentencias en materia tributaria tras la Ley 29/1998,
reguladora de la jurisdiccion contencioso-administrativa. Especial referencia a la extension de efectos de la
sentenciah, in La modernizacion de la justicia en Espana, XXIII Jornadas de estudio 4,5 y 6 de septiembre de
2001, Ministerio da Justicia, Madrid, Imprenta Nacional del Boletin del Estado, D.L. 2002, p. 537.
249
Temas e Problemas de Processo Administrativo
quais o tribunal aplica a juris-dictio anterior165-166. Constituem requisitos positivos de natureza
substantiva da extensao: i) ter sido proferida uma sentenca anulatoria de acto
administrativo favoravel ou uma sentenca que reconheca situacao juridica favoravel a uma
ou varias pessoas167; ii) existirem, no mesmo sentido, pelo menos mais quatro sentencas ou,
em processos de massas, terem sido decididos, no mesmo sentido, gem tres casos os
processos seleccionados segundo o disposto no artigo 48.oh168; iii) as sentencas estarem
transitadas em julgado169; iv) encontrar-se o interessado na extensao de efeitos e respectiva
execucao na gmesma situacao juridicah dos beneficiarios daquelas, partes nos respectivos
processos, ou ser gtitular de uma relacao juridica material identica a reconhecida na
sentencah170: a pretensao, os pressupostos e as questoes juridicas devem ser as mesmas. Do
ponto de vista procedimental, a procedencia do pedido judicial correspondente depende: i)
da interpelacao previa da entidade administrativa demandada (no processo em que foi
proferida a sentenca cuja extensao e pretendida), dentro de um ano contado da data da
ultima notificacao da sentenca171; ii) a mesma nao o satisfaca no prazo de tres meses; iii) ser
o mesmo apresentado judicialmente no prazo de 2 meses. Constituem requisitos negativos:
i) inexistir, no caso de o interessado na extensao ter recorrido a via judicial, sentenca
165. Nota Carmen Uriol Egido (gLa ejecucion ...h, cit., p. 537) que a extensao, no caso de sentenca
anulatoria, conduz a anulacao de actos distintos que incorrem no mesmo vicio.
166. Nao se trata de gestatuir por via de disposicao geral e regulamentarh (P. Lacoste e Ph. Bonnecarrere,
De La Chose Jugee en matiere civile, criminelle, disciplinaire et administrative, Librairie de la Societe du
Recueil Sirey, 1914, p. 515), mas de tirar consequencias de uma decisao judicial que anula ou declara a
nulidade de um acto ou que afirma um direito ou uma situacao favoravel na sua aplicacao a outros sujeitos
com situacoes paralelas.
167. A distincao entre sentenca que anula um acto e sentenca que reconhece uma situacao juridica nem
sempre e evidente, por, muitas vezes, o reconhecimento de uma situacao juridica se associar a tal anulacao
(Carmen Uriol Egido, gLa ejecucion ...h, cit., pp. 531 e 535).
168. Exige-se que tenham sido proferidas cinco sentencas transitadas em julgado num determinado
sentido ou que, existindo processos de massas, tenham sido decididos em tres casos os processos
seleccionados. Coloca-se a questao de saber se a norma se refere a tres sentencas proferidas em tres processos
de massa, seleccionados nos termos do artigo 48.o, ou a tres sentencas proferidas num unico processo de
massas. O n.o 1 do artigo 48.o preve a seleccao de um processo ou mais do que um processo, a suspensao dos
demais, em face dos quais, depois de proferida uma decisao definitiva no processo seleccionado, quando
transita em julgado, se coloca a hipotese da extensao aos processos que ficaram suspensos. Trata-se, pois, de
saber se os tres casos a que a lei se refere sao tres sentencas e se estas compreendem a sentenca proferida no
processo seleccionado mais as duas sentencas que venham a ser proferidas relativamente a dois processos que
ficaram suspensos, em relacao aos quais as partes envolvidas aceitaram aquela solucao. E duvidoso que estas
tres sentencas se reportem a um unico processo de massas, porque ha uma serie de processos suspensos e
uma serie de processos em relacao aos quais sao proferidas decisoes com um unico sentido. A extensao dos
efeitos da sentenca pressupoe uma ásolucao juridicaâ que ja foi testada em situacoes diferentes, processos
diferentes reportados a situacoes ou relacoes juridicas paralelas. Ora, este multiplo teste parece melhor
verificar-se quando existem tres sentencas proferidas num tres processos de massas.
169. Aquando da notificacao ultima da sentenca a quem tenha sido parte do processo, a sentenca, em
regra, nao tera transitado em julgado.
170. Luis Martin Contreras, La extension de efectos de las sentencias en la jurisdiciccion contenciosoadministrativa
en materia tributaria y de personal, Granada, Editorial Comares, 2000, p. 13.
171. A partir da qual pode formular aquela o correspondente pedido . Luis Martin Contreras, La
extension,ch, cit., p. 28.
250
Temas e Problemas de Processo Administrativo
transitada em julgado; ii) nao existirem contra-interessados gque nao tenham tomado parte
no processoh em que a sentenca a estender foi proferida.
A anulacao de acto administrativo no ambito de um processo judicial produz efeitos entre
as partes mas tambem por si e sem mais relativamente aos demais afectados pelo acto172.
Existindo pendente um outro processo no qual tenha sido formulada pretensao anulatoria
dirigida ao mesmo acto, ou acto gcontextualmente identicoh173, ha inutilidade superveniente
da lide do ponto de vista da eliminacao pretendida do mesmo174. Pense- -se, por
exemplo, num concurso de massas, no acto homologatorio da lista de classificacao final, se
e anulado ou declarado nulo num processo judicial por vicios de natureza objectiva, que
afectam transversalmente o concurso, perde utilidade a lide onde esteja tambem a ser
discutido. Nao e necessario, aqui, que a sentenca proferida no processo transite em julgado;
o autor pode, estando ainda o processo activo, pedir a extensao da sentenca a sua situacao
concreta175.
A extensao dos efeitos de sentenca relativiza o efeito de caso decidido (que nao deve ser
absolutizado176), pois projecta-se sobre os efeitos juridicos produzidos por acto
administrativo nao impugnado, afastando-os ou alterando-os177.
A area do emprego publico constitui um dominio privilegiado para a extensao dos efeitos
da sentenca178. Ha situacoes que se repetem, que sao muito proximas nos seus pressupostos
facticos179 e em que o direito convocado e o mesmo, que nao justificam a repeticao dos
processos judiciais nem a exclusao do beneficio decorrente da sentenca dos trabalhadores
que, por forca dessa identidade de situacoes, foram igualmente afectados pelo acto ilegal ou
privados do reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido. Nao se
invoque a sua inaccao processual como motivo para afastar a possibilidade de extensao. E
172. Carmen Uriol Egido, gLa ejecucion ch, cit., p. 535. Em 1997, Vieira de Andrade equacionava a
necessidade de um instrumento juridico que projectasse sobre casos identicos sentenca anulatoria de um acto
administrativo, aludindo ao grecurso extraordinario de revisao dos actos administrativos, num novo pedido
dirigido a Administracao, fundado agora no principio da igualdadeh. Cfr. gO controle jurisdicional do dever
de reapreciacao de actos administrativos negativos . Acs. do STA de 17.10.1995, de 23.5.1996, de 2.7.1996 e
de 14.1.1997, anotadosh; in CJA n.o 1, Janeiro/Fevereiro 1997, p. 68.
173. Acordao do 2.o Juizo do CA do TCA Sul de 04-05-2006, processo n.o 00609/05.
174. Mario Aroso de Almeida, O Novo Regime..., cit., p. 337.
175. Cfr. artigo 161.o, n.o 6, do CPTA.
176. Designadamente, nao se deve aceitar a reproducao da ilegalidade a partir da estabilizacao da ordem
juridica de um determinado acto administrativo. Em parte, sobre o assunto, ver Vieira de Andrade, gO
controle jurisdicional ch, cit., pp. 62 a 68.
177. Acordao da 2.a Seccao do Tribunal Constitucional n.o 370/2008, de 2-07, processo n.o 141/08, in
DR., 2.o serie, n.o 155, de 12-08-2008, pp. 35830 a 35836, maxime, pp. 35835 e 35836.
178. A razao que leva ao afastamento do recurso per saltum no art. 151.o e uma das razoes que leva a que
as relacoes juridicas de emprego publico sejam encaradas como dominio privilegiado para a aplicacao do
instituto da extensao dos efeitos no art. 161.o.
179. Pense-se, por exemplo, no caso dos concursos, em particular, nos concursos de massa, com milhares
de candidatos e na situacao de colocacao dos trabalhadores de um servico em mobilidade especial.
251
Temas e Problemas de Processo Administrativo
que, por um lado, essa inaccao nem em todas as situacoes e censuravel; e, por outro lado,
porque, numa perspectiva objectiva, a sentenca interpela o empregador a adoptar um
mesmo padrao juridico de decisao ou actuacao relativamente aos seus trabalhadores, que se
sobrepoe aquela180.
6. A execucao da sentenca
6.1. Da execucao judicial em geral
A execucao da sentenca proferida em processo judicial administrativo envolve, como e
proprio da respectiva forca vinculativa, o seu cumprimento voluntario ou forcado, nos
limites do julgado181. A Administracao deve executa-la no prazo legal ou invocar, neste,
perante o interessado, a existencia de causa superveniente que legitime a nao execucao182.
Se a execucao nao tiver lugar no prazo legal, cabe ao interessado requere-la judicialmente
no tribunal que tenha proferido a sentenca em primeiro grau de jurisdicao. O processo
executivo pode, tambem, ser utilizado para obter a execucao de acto administrativo
inimpugnavel que confira um direito a um particular, que serve, assim, de titulo executivo.
E o caso do acto homologatorio da lista de classificacao final de um concurso cuja
execucao importa a pratica de um acto administrativo ou da celebracao de um contrato.
Em funcao das pretensoes, a execucao pode dirigir-se ao pagamento de quantia certa, a
prestacao de coisa ou de facto (fungivel ou infungivel), incluindo a pratica de acto
judicialmente apurado como devido, a execucao de sentenca anulatoria e a imposicao de
uma conduta negativa183. Em qualquer dos casos, o objectivo e a obtencao da execucao
integral e especifica.
A sentenca anulatoria, dado o seu efeito constitutivo, e a sentenca que declara a nulidade,
por a tornar incontrovertida, nao carecem, em abstracto, de execucao. A verdade e que ha
uma realidade factica e juridica que, sendo ipso facto afectada pela sentenca, carece de
redefinicao, sem qual o autor nenhuma vantagem efectiva retira da sua accao em juizo,
redefinicao que e feita em funcao da sentenca e de outros dados juridicos e facticos
supervenientes. A Administracao tende a esperar pela interpelacao do particular para a
concretizar e conta, muitas vezes, com o tribunal para superar a dificuldade que envolve.
Acaba por ser necessaria uma intervencao subsequente do tribunal para dizer
complementarmente o direito e conformar a actuacao administrativa posterior a
180. Carmen Uriol Egido, gLa ejecucion ch, cit., pp. 527, 528, 531 e 538, e Acordao do Pleno da Seccao
do CA do STA de 13-11-2007, processo n.o 0164A/04.
181. Cfr. artigos 2.o, n.o 1, e 158.o do CPTA.
182. Cfr. artigos 162.o e 163.o, 170.o, n.o 1, e 171.o, n.o 2, e 175.o do CPTA
183. Cfr. artigos 162.o a 179.o do CPTA.
252
Temas e Problemas de Processo Administrativo
sentenca184, seja porque nao e obrigatoria a cumulacao, na accao anulatoria, de pedidos
dirigidos a conformacao posterior a sentenca da realidade, seja porque o respeito pelas
valoracoes proprias do exercicio da funcao administrativa obstam a fixacao, na propria
sentenca a executar, dos termos da execucao, seja pela evolucao da realidade no decurso do
processo judicial.
6.2. A execucao de sentenca anulatoria
As pretensoes varias esteadas na anulacao de um acto administrativo podem ser deduzidas
e decididas num unico processo, o processo em que foi impugnado . cuja pronuncia tem
por referencia a realidade de facto e de direito actualizada185 ., sem necessidade um
processo subsequente dirigido a apurar os termos da execucao186. O alcance da anulacao
tece-se num e noutro caso nos mesmos termos. A sentenca de anulacao tem gefeitos
demolitorios, repristinatorios e conformativosh187. Ha que reconstituir a situacao actual
hipotetica, o que envolve o cumprimento de deveres188 e a adopcao de actos e condutas que
temporalmente deixaram ser adoptadas e que eram devidas se o acto ilegal nao tivesse sido
praticado189. Tem, tambem, um efeito preclusivo, isto e, o efeito de conformar o reexercicio
do poder administrativo, no sentido da nao reincidencia nos vicios e da nao diminuicao do
efeito reconstitutivo190. O julgado, os respectivos fundamentos e o direito convocado pela
sentenca e respectiva execucao determinam os termos da resolucao administrativa do caso
concreto191.
184. Cfr. artigos 173.o e 179.o do CPTA.
185. Mario Aroso de Almeida, gNovas perspectivas para o contencioso administrativoh, in JURIS ET
DE IURIS, Nos 20 anos da Faculdade de Direito da UCP . Porto, Porto, 1998, pp. 564 a 571.
186. O Codigo, como destaca Rui Chancerelle de Machete (gExecucao de Sentencas Administrativash,
cit., pp. 270 e 271) adopta um conceito amplo de execucao, incluindo, aqui, as consequencias associados a
anulacao do acto pela sentenca constitutiva, gno ambito de um dever de execucao cujas fronteiras sao
tracadas pelo exercicio da funcao administrativah. Cfr., tambem, Servulo Correia, gActo administrativo ch,
cit., p. 1176.
187. Sergio De Felice, gLe tecniche di tutela ...h, cit., pp. 888 e 889.
188. Por exemplo, go pagamento de prestacoes pecuniarias integra-se no universo dos deveres da
Administracao em execucao da sentencah . Acordao do Pleno da Seccao do CA do STA de 02-06-2004,
processo n.o 041169.
189. Por exemplo, a alteracao da lista de classificacao final de um concurso, com efeitos a data inicial,
nomeacao, igualmente com efeitos a data em que verificaram as nomeacoes resultantes da lista anterior e o
pagamento das diferencas de vencimento entre a categoria anterior e a resultante do concurso, acrescidas dos
juros de mora fundados no seu nao pagamento atempado. Cfr., por exemplo, Acordao do Pleno da Seccao do
CA de 03-05-2007, processo n.o 03037A.
190. Considere-se, por exemplo, a sentenca que anulou a admissao e classificacao de dois candidatos em
concurso realizado por certa pessoa colectiva publica, por falta de habilitacoes academicas, nos termos de cuja
execucao foram retiradas da respectiva lista de classificacao. E considere-se a abertura posterior de um outro
concurso pela mesma pessoa colectiva para a mesma categoria e carreira limitado aqueles candidatos.
191. Jose Carlos Vieira de Andrade, A Justica Administrativa, cit., pp. 387 a 393.
253
Temas e Problemas de Processo Administrativo
6.2.1. Os beneficiarios de actos consequentes: a modelacao temporal e subjectiva
dos efeitos da sentenca
Os actos consequentes do acto anulado sao actos praticados contemporanea ou
subsequentemente ao mesmo cuja subsistencia e/ou conteudo sao afectados por essa
anulacao. A lei preve a indemnizacao dos respectivos beneficiarios e a manutencao da sua
situacao juridica, para o que estabelece requisitos. A indemnizacao dos danos que sofram
por forca da anulacao os beneficiarios de actos consequentes pressupoe: i) que estes actos
tenham sido praticados ha mais de um ano; ii) que a precariedade da situacao que lhes e
inerente lhes fosse desconhecida sem culpa192. Em regra, aquando da prolaccao da
sentenca, os actos consequentes foram praticados ha mais de um ano e, em regra, os seus
beneficiarios nao desconheciam (sem culpa ou com ela)193 a precariedade da situacao, uma
vez que, as mais das vezes, sao contra-interessados no processo judicial.
A situacao juridica dos beneficiarios de actos consequentes nao pode ser posta em causa se:
i) os danos que sofram por virtude da anulacao forem de dificil ou impossivel reparacao; ii)
for, tambem, gmanifesta a desproporcao existente entre o seu interesse na manutencao da
situacao e o interesse na execucao da sentenca anulatoriah. A dificuldade ou
impossibilidade de reparacao so existira em casos limites . associando-se, muitas vezes, a
construcao em cadeia de situacoes juridicas conexas permitida pelo decurso muito
significativo do tempo (por exemplo, a aquisicao de sucessivas categorias de acesso apos
ingresso, mediante concurso, cuja legalidade e objecto de discussao judicial, em categoria de
base de uma dada carreira)194; e, na verdade, a dificuldade so existira quando esteja em causa
a manutencao de duas situacoes incompativeis. Em segundo lugar, e principalmente, em
muitos casos, nao e possivel identificar situacao de desproporcao atendivel, porque o
interesse de quem quer executar a sentenca e tao ponderoso (ou mais, porque foi
prejudicado pela pratica de acto ilegal) quanto o interesse daquele (que foi beneficiario da
pratica de acto ilegal) que nao quer que a sentenca seja executada e quer manter a respectiva
situacao. As mais das vezes nao ha situacao de desproporcao.
192. Cfr. artigo 173.o. g3 - Os beneficiarios de actos consequentes praticados ha mais de um ano que
desconheciam sem culpa a precariedade da sua situacao tem direito a ser indemnizados pelos danos que sofram em
consequencia da anulacao, mas a sua situacao juridica nao pode ser posta em causa se esses danos forem de dificil ou
impossivel reparacao e for manifesta a desproporcao existente entre o seu interesse na manutencao da
situacao e o interesse na execucao da sentenca anulatoriah (italico nosso).
193. Vieira de Andrade defende que a exigencia devia ser, aqui, a da boa fe (A Justica Administrativa, cit.,
p. 395. Cre-se que o criterio seria ponto áselectivoâ, na medida em que, as mais das vezes, e de presumir que o
beneficiario do acto consequente se encontra de boa fe.
194. E dificil, e sobretudo demasiado oneroso para o trabalhador, reverter o acesso na carreira esteado
num ingresso ilegal. No entanto, importa nao esquecer que, segundo o disposto no artigo 134.o, n.o 3, do
CPA, a pessoa vai poder manter a generalidade dos efeitos juridicos associados aos actos consequentes, salvo
o efeito juridico principal.
254
Temas e Problemas de Processo Administrativo
O artigo 134.o, n.o3, do CPA nao dispoe em sentido diferente. E que, na verdade, dele
decorre apenas a possibilidade de atribuicao de gcertosh efeitos juridicos a situacoes de
facto decorrentes de actos nulos. A circunscricao a gcertosh efeitos exclui que do ponto de
vista do status quo, do efeito principal ou central da anulacao do acto, manter ou nao manter
o acto seja equivalente ou indiferente. E o artigo 133.o, n.o 2, alinea i), do CPA faz
depender a manutencao de acto consequente do interesse legitimo do respectivo
beneficiario. E o interesse legitimo e de aferir, sobretudo, em funcao dos criterios do artigo
173.o, n.o 3, do CPTA, ja que o criterio da boa fe sera, em regra, nao diferenciador das
situacoes, melhor se fazendo a ponderacao com o principio da seguranca juridica. Estes
preceitos apontam para uma modelacao temporal (conhecida do juiz comunitario e do juiz
constitucional195) e subjectiva dos efeitos da sentenca anulatoria, nos termos da qual a sua
eficacia retroactiva aproveita ao autor, sem, tendencialmente, atingir ate ao seu transito em
julgado os efeitos que produziu o acto anulado ou a realidade factica decorrente de actos
anulados/nulos em relacao aos seus beneficiarios.
A sentenca condenatoria a pratica de acto devido coloca problemas de articulacao com os
actos consequentes em termos identicos ou de forma mais acentuada (dado o imperativo
da pratica de um acto com certo conteudo) do que as sentencas anulatorias. Para aquelas,
porem, o legislador determina a aplicacao do regime para a prestacao de facto, sem regular
essa articulacao196.
6.2.2. A greintegracao ou recolocacaoh de trabalhador
A greintegracao ou recolocacaoh de trabalhador que obteve a anulacao de um acto
administrativo a que se oponha ga existencia de terceiros interessados na manutencao de
situacoes incompativeish e susceptivel de se reconduzir ao regime exposto. No entanto, o
legislador gizou um regime autonomo para a situacao de reintegracao ou recolocacao de
trabalhador e muito distinto no efeito que tem sobre a situacao daqueles197. Se existir
195. Como nota Florent Blanco, Pouvoirs du Juge et Contentieux Administratif de la Legalite.
Contribution a lfetude de lfevolution et du renouveau des techniques juridictionnelles dans le contentieux de
lfexces de pouvoir, Universite Paul Cezanne . Aix-Marseille III, Presses Universitaires Aix-Marseille, 2010,
pp. 224 a 236.
196. Observa Rui Chancerelle de Machete que g[a] possibilidade de cumular a pretensao da anulacao com
a pretensao da condenacao cconduz a possibilidade de dispensar a regulacao em tipo autonomo de
execucaoh . gExecucao ch, cit., p. 276.
197. Cfr. artigo 173.o, n.o 4, do CPTA: gQuando a reintegracao ou recolocacao de um funcionario que
tenha obtido a anulacao de um acto administrativo se oponha a existencia de terceiros interessados na
manutencao de situacoes incompativeis, constituidas em seu favor por acto administrativo praticado ha mais
de um ano, o funcionario que obteve a anulacao tem direito a ser provido em lugar de categoria igual ou
equivalente aquela em que deveria ser colocado, ou, nao sendo isso possivel, a primeira vaga que venha a
surgir na categoria correspondente, exercendo transitoriamente funcoes fora do quadro ate a integracao
neste.h
255
Temas e Problemas de Processo Administrativo
situacao incompativel com a reintegracao ou recolocacao ditada ou decorrente da sentenca
anulatoria e se a situacao tiver sido constituida ha mais de um ano mantem-se, o que
acontecera as mais das vezes.
Ha, pois, um regime regra muito estrito198 e que, dificilmente, permite a manutencao da
situacao dos beneficiarios de actos consequentes e, depois, ha um regime muito benefico
que se aplica a duas situacoes (reintegracao e recolocacao) e que reverte, sobretudo, em
favor dos beneficiarios de actos consequentes199.
Ao inves do que ocorre noutros normativos, o legislador dita a sua aplicacao aos
funcionarios; depois refere-se ao provimento gem lugarh existente e a vaga que venha a
surgir. Pode aventar-se que usa o termo funcionario em sentido estrito: noutros locais
quando se quis referir aos nao funcionarios, o legislador empregou os termos agente e
servidores publicos; o termo reintegracao associa-se, tradicionalmente, ao de funcionario e
ao de provimento de lugar. Hoje, os lugares foram substituidos pelos postos de trabalho,
que descrevem actividades funcionais; e, depois, ao inves do termo utilizado pelo legislador,
eles nao gsurgemh, eles sao actualizados (criados ou extintos) no mapa de pessoal.
A utilizacao do termo reintegracao e recolocacao pressupoe a distincao de significado deste.
A reintegracao e configuravel quando ha uma situacao de cessacao da relacao juridica de
emprego publico (despedimento ou demissao). De recolocacao pode falar-se, por exemplo,
quando esta em causa a mudanca do posto de trabalho ou uma variacao funcional.
Conclusoes
1. As opcoes legislativas quanto aos vinculos e regimes juridicos do emprego publico
reflectem-se no ambito da jurisdicao administrativa.
1.1. Os litigios emergentes de contrato de trabalho sujeito ao direito laboral comum estao
subtraidos a competencia dos tribunais administrativos.
1.2. Os litigios relativos ao procedimento formativo do contrato de trabalho estao
submetidos aos tribunais administrativos.
1.3. Os litigios relativos ao contrato de trabalho regulados por normas de Direito
Administrativo cabem aos tribunais administrativos.
1.4. Os conflitos relativos a actos ou operacoes da Administracao instrumentais face aos
instrumentos de regulamentacao colectiva sao da competencia dos tribunais
administrativos.
198. Cfr. artigo 173.o, n.o 3, do CPTA.
199. Cfr. artigo 173.o, n.o 4, do CPTA
256
Temas e Problemas de Processo Administrativo
1.4.1. Os conflitos referentes a interpretacao e validade dos instrumentos de
regulamentacao colectiva sao, tendencialmente, dirimidos pelos tribunais judiciais.
1.5. No caso de modificacao de relacao juridica de emprego, a competencia dos tribunais
administrativos e dos tribunais judiciais afere-se em funcao dos criterios conjugados do
pedido e da causa de pedir, referidos a relacao juridica que convoca.
2. De entre os pressupostos processuais em geral destaca-se o reconhecimento da
legitimidade das associacoes sindicais para a defesa dos interesses colectivos e dos
interesses individuais dos trabalhadores.
2.1. A legitimidade das associacoes sindicais para a defesa processual dos interesses
individuais tem caracter representativo: deve depender sempre da aceitacao da
representacao pelo trabalhador ou da juncao ao processo de comprovativo da sua situacao
de socio vigente.
3. Atento o regime geral do pressuposto processual negativo aceitacao e despicienda a
afirmacao da irrelevancia da execucao ou acatamento de acto pelo trabalhador para
aquilatar da possibilidade da sua impugnacao.
4. No dominio do contencioso do emprego publico nao se devem sobrevalorizar as
pretensoes relativas a actos administrativos: em muitos casos, trata-se, na verdade, de
efectivar direitos e obrigacoes das partes na relacao juridica de emprego.
4.1. Nao e possivel estabelecer nexos necessarios entre o tipo de vinculo laboral e as
pretensoes formuladas: o vinculo contratual nao exclui pretensoes relativas a actos
administrativos; o vinculo da nomeacao nao exclui accoes de conteudo prestativo.
4.2. Na relacao juridica de emprego publico coexistem gmomentos de autoridade e
momentos paritariosh (Sergio De Felice), sendo em funcao destes e, fundamentalmente,
das pretensoes deduzidas, que tem de ser aferida a idoneidade do meio processual utilizado.
5. A extensao subjectiva dos efeitos de sentenca anulatoria interpela o empregador a
adoptar um mesmo padrao juridico de decisao ou actuacao relativamente aos seus
trabalhadores.
6. O regime substantivo relativo a execucao da anulacao judicial de acto administrativo
dificilmente permite a indemnizacao dos trabalhadores beneficiarios de actos consequentes
e, bem assim, a manutencao destes actos.
6.1. O regime substantivo relativo a execucao da anulacao judicial de acto administrativo
que importe a greintegracao ou a recolocacaoh de trabalhador permite, em regra, a
manutencao de situacao incompativel dos beneficiarios dos actos consequentes.
257
Temas e Problemas de Processo Administrativo
6.2. A eficacia retroactiva da sentenca anulatoria ou o reconhecimento juridico de acto nulo
conciliado com o principio da seguranca juridica depoem no sentido da modelacao
temporal e subjectiva dos efeitos da sentenca.
6.2.1. Nos termos desta modelacao, a sentenca aproveita ao autor, sem tendencialmente
atingir, ate ao seu transito em julgado, os efeitos que produziu o acto anulado ou a
realidade factica decorrente de actos nulos em relacao aos seus beneficiarios.
Lisboa, 14-06-2010
258
Organizacao de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
Com o patrocinio da Fundacao Luso-Americana para o Desenvolvimento
Instituto de Ciencias Juridico-Politicas
www.icjp.pt