sábado, 6 de março de 2010

APRECIAÇÃO DO PROJECTO DE DIPLOMA DE

APRECIAÇÃO DO PROJECTO DE DIPLOMA DE
REFORMA DA REFORMA DA ACÇÃO EXECUTIVA
Pelo Prof. Doutor José Lebre de Freitas


1. Da necessidade de aferir a reforma de 2003

Cinco anos após a publicação e quatro após a entrada em vigor da reforma da acção executiva, o balanço de resultados que se impõe fazer colocar-se-ia com maior legitimidade no plano dos instrumentos legislativos se tivessem sido proporcionados, desde início, a montagem e o bom funcionamento das infra-estruturas de apoio que se sabia serem necessários. Não foi, como é sabido, o que aconteceu e assistimos, em vez disso, à falta de cobertura do território por tribunais de execução, fonte, além do mais, de muita incompreensão entre juízes e solicitadores de execução, à insuficiência destes, em grande parte por falta de incentivo económico, à impreparação informática dos funcionários judiciais, às faltas e deficiências das redes de comunicação electrónica entre os intervenientes no processo e organismos como os bancos e as conservatórias, à inexistência de depósitos públicos para guarda e venda dos móveis penhorados, etc., etc.

A situação, que já foi totalmente caótica, melhorou com alguns remendos introduzidos, mas, enquanto não for radicalmente alterada, não haverá alteração legislativa que valha à nova acção executiva.

Não se quer com isto condenar o projecto de decreto-lei que acompanhou o pedido de autorização legislativa que deu lugar à Lei 18/2008, de 21 de Abril, cuja preocupação central de aprofundamento da reforma da acção executiva é, ao invés, de louvar. Alguns cuidados postos pelo DL 38/2003, de 8 de Março, na observação dos limites constitucionais foram excessivos(1). O pendor burocrático da justiça portuguesa levou a entender a introdução da figura do agente de execução como mais um interlocutor a complicar uma teia de comunicações que, na era da informática, deviam ser imediatas(2). Havia que dar um novo fôlego ao uso da electrónica. Era possível levar mais longe a simplificação de algumas diligências e actos processuais. Perante a escassez de solicitadores de execução, havia que abrir o desempenho da função a outras categorias profissionais.

Mas, em compensação, havia que ter consciência de que há mesmo limites constitucionais a respeitar, garantias, ainda quando não constitucionais, de que não é sensato abdicar e direitos e interesses protegidos pelo direito material que a lei processual não deve preterir. Por outro lado, sobretudo depois dos muitos ventos legislativos que têm soprado nos últimos anos, havia que se ser comedido nas alterações da lei, evitando reformulações normativas sem utilidade ou de pequeno significado (o que é sempre inconveniente para a estabilidade do direito e da sua interpretação) e cuidando que não perigasse a harmonia sistemática das soluções.

Nem sempre estes desideratos se vêem atingidos na proposta de diploma em apreciação.

2. Juiz, secretaria e agente de execução

No centro das modificações preconizadas está a reformulação dos papéis desempenhados pelo juiz, pela secretaria e pelo agente de execução, mediante a concessão a este último de mais amplos poderes e meios de actuação na execução.

Com o DL 38/2003, o juiz deixou de ter a direcção do processo de execução e o dever de promover as diligências executivas, o que passou a caber ao agente de execução; mas manteve as suas funções de tutela, intervindo em caso de litígio surgido na pendência da execução, e, em certa medida, de controlo desta (despacho liminar do requerimento executivo, resolução de dúvidas, protecção de direitos fundamentais em matéria sigilosa, garantia da realização, em geral, dos fins de execução). O art. 809-1 é expresso em que o juiz tem o “poder geral de controlo do processo”, que o art. 808-1 ressalva ao estabelecer a competência geral do agente de execução para as diligências do processo executivo. Não se confundindo direcção e controlo dos actos processuais, o poder geral conferido ao juiz podia, em certa interpretação, levar à excepcional avocação oficiosa de processos para verificação da sua regularidade e à solicitação oficiosa de qualquer informação ou esclarecimento sobre procedimento adoptado ou omitido(3), bem como à possibilidade de o juiz oficiosamente ordenar as actuações ou orientações que julgasse adequadas(4).

Com a supressão deste poder geral de controlo do processo, a proposta de lei em apreciação opta por circunscrever o controlo judicial às actuações específicas referidas na lei de processo. Fora delas, pertencerão agora ao agente de execução todas as competências que ao juiz não estejam especificamente reservadas(5). Esta circunscrição do controlo judicial no campo da excepção é passível de crítica, por prematura: numa altura em que se alarga o campo de recrutamento dos agentes de execução e em que a reforma da acção executiva está ainda no início, não seria desejável a obtenção de maior experiência antes de retirar ao juiz(6) o poder geral de controlar as execuções?

Em consonância com a supressão deste poder geral de controlo, deixa o juiz de ter o poder de destituir, com justa causa, o agente de execução, oficiosamente ou a requerimento do exequente (actual art. 808-4), passando a destituição com justa causa a caber ao órgão com competência disciplinar sobre os agentes de execução e sendo atribuído ao exequente o poder de destituição livre (novo art. 808-6). Esta solução é fortemente criticável: ao mesmo tempo que se atribui mais poderes ao agente de execução, acentuando a sua qualidade de autoridade, acentua-se paradoxalmente a natureza de prestação de serviços do contrato que o liga ao exequente. Ter-se-á pensado, nomeadamente, que, no exercício dos seus poderes de autoridade (7), o agente de execução se pode constituir em responsabilidade civil e que, nos termos gerais, o Estado é com ele civilmente responsável perante quem sofra o dano? Radicando no exequente — e não no juiz — o poder de destituição, não se estará comprometendo a isenção do agente de execução e a possibilidade dum controlo efectivo da sua actuação? O agente de execução passa a saber que, se desagradar ao exequente, é destituído e que, estando o juiz impedido de oficiosamente o afastar, se for violando interesses legítimos do executado só terá que temer a reclamação deste para uma anulação casuística dos actos praticados (art. 809-1-c), enquanto não tem lugar uma destituição que, dependendo de procedimento disciplinar, seguramente será demorada (cf., nomeadamente, o art. 131-A-2-h do Estatuto da Câmara dos Solicitadores)! Quando muito, será de conceder ao exequente um poder de destituição limitado aos casos em que o agente de execução exceda sem justificação prazos que a lei venha a estabelecer (ver infra, n.° 7, art. 808, n.os 12 e 13).

Criticável é também a supressão do direito ao recurso das decisões judiciais proferidas sobre reclamações de actos praticados ou de “decisões” tomadas pelo agente de execução (art. 809-1-c). Passando a ser mais vasto o campo de actuação do agente de execução, só a errada — e inconstitucional — consideração de que a decisão judicial é uma decisão proferida já em 2.° grau de jurisdição poderia explicar essa supressão(8). Será, por exemplo, defensável que a decisão judicial proferida sobre a “decisão” do agente de execução que autoriza o executado a promover o fraccionamento do prédio penhorado (art. 842-A-1), a que é proferida sobre a “decisão” de sustar a execução (art. 871) ou a que negue a venda antecipada de bens “decidida” pelo agente de execução (art. 886-C-1) não seja susceptível de recurso?

Igualmente criticável é a extensão à situação da alínea a) do art. 809-1 da possibilidade de aplicação de multa ao requerente (no caso, a quem haja suscitado a questão da necessidade do despacho liminar, designadamente quando se trate de saber o que são as “outras entidades ou profissionais com competência para tal”, se a interpelação do devedor se pode ter por feita ou se ocorre alguma das situações do art. 812-A-3). Talvez se assegure assim o sossego do juiz de execução, mas certamente não se está contribuindo para o esclarecimento das dúvidas que, especialmente ao agente de execução, se possam levantar(9).

Posto isto, algumas normas pelas quais especificamente se atribui ao agente de execução poderes que eram do juiz são criticáveis:

— O art. 824, no seu n.° 6, confere ao agente de execução o poder de propor ao juiz a redução da parte penhorável dos rendimentos, a requerimento do executado e ouvido o exequente, e, no seu n.° 7, confere-lhe o poder de propor ao juiz o afastamento da impenhorabilidade do dinheiro ou do saldo da conta bancária ou a redução do limite de impenhorabilidade de um salário mínimo nacional, a requerimento do exequente e ouvido o executado. Será que, em matéria tão sensível, a decisão de não propor, indeferindo em primeira mão o requerimento, lhe deverá caber? Sendo, aliás, previsível que em quase todos os casos (só não assim se o executado for revel) haverá seguidamente reclamação (“recurso”, diz o n.° 8) para o juiz, porque não ser o requerimento logo dirigido a este? Haverá ganho ou perda de tempo?

— O art. 842-A confere ao agente de execução o poder de, a requerimento do executado e ouvidos os interessados, autorizar o fraccionamento do prédio penhorado, quando ele é divisível e o seu valor exceda manifestamente o da dívida exequenda e dos créditos reclamados, bem como para ordenar o levantamento da penhora sobre algum dos imóveis resultantes da divisão. Quer a divisibilidade do prédio, quer o seu fraccionamento, quer o apuramento do seu valor, podem levantar questões que aconselham a que seja o juiz a decidir, maxime quando não haja acordo entre exequente e executado. Há, é certo, possibilidade de reclamar (“recorrer”?) para o juiz; mas, sobretudo quando haja controvérsia, pode também atrasar-se a execução com a concessão deste poder ao agente de execução.

— O art. 847 confere ao agente de execução o poder de decretar o levantamento da penhora, por negligência do exequente ou dele próprio em realizar as diligências necessárias para o pagamento coercivo (n.° 1). Em primeiro lugar, saber se ocorre ou não negligência envolve o exercício do poder jurisdicional. Em segundo lugar, não deixa de ser curiosa esta concessão ao agente de execução do poder de julgar se se verifica negligência própria. Em terceiro lugar, é de estranhar que, verificada a negligência do agente, o exequente pague as custas a que haja lugar (n.° 3) ou, noutra interpretação (restritiva), que o exequente pague custas quando a negligência é sua, mas que o agente de execução não sofra qualquer sanção de natureza semelhante (à parte a sua responsabilidade disciplinar) quando é ele o responsável.

— O art. 862-A-3 confere ao agente de execução o poder de designar administrador para o estabelecimento comercial penhorado, quando o exequente fundadamente se oponha a que o executado prossiga na sua gestão. Atribui-se-lhe, pois, a competência para julgar se é fundada a oposição do exequente, o que dependerá da prova que for produzida. Esta apreciação é de natureza jurisdicional.

— O art. 886-C-1 concede ao agente de execução o poder de realizar ou autorizar a venda antecipada de bens, não só quando não possam ou não devam conservar-se, por estarem sujeitos a deterioração ou depreciação, mas também quando haja manifesta vantagem na autorização da venda. O exercício deste poder não põe especiais problemas quando a razão de ser da antecipação seja a deterioração dos bens; mas já os poderá pôr no caso de depreciação (pense-se numa carteira de acções, por exemplo). É, porém, sobretudo criticável a sua atribuição ao agente de execução quando a este caiba apreciar se há ou não manifesta vantagem na antecipação: tratando-se dum conceito indeterminado, deve caber ao juiz o seu preenchimento. Repare-se que a audição da contraparte (art. 886-C-2) pode não ser suficiente para evitar o dano eventualmente decorrente duma má apreciação: assim, designadamente, quando o executado for revel. Repare-se ainda que a própria decisão sobre a dispensa da audição das partes (n.° 2) caberá, se a norma ficar tal como está, ao agente de execução — o que, implicando afastamento do princípio do contraditório, põe a questão da sua inconstitucionalidade.

— O mesmo se diga do juízo sobre a urgência da venda, a emitir pelo agente de execução, segundo a redacção proposta para o art. 904-C.

— Os arts. 936-1 e 937-1 conferem ao agente de execução o poder de apurar o crédito do exequente no caso de prestação de facto por outrem, o que envolve, não apenas o apuramento do custo da prestação, mas também a liquidação da indemnização moratória que tenha sido pedida (arts. 933-1 e 936-1). Sabido que também aqui o contraditório pode não ser efectivo (basta que o executado seja revel), coloca-se nas mãos do agente de execução decisões de natureza jurisdicional que podem tornar-se definitivas, com grave prejuízo do executado. Tal não parece ser constitucionalmente admissível. Por outro lado, quando o exequente faça, ou mande fazer sob sua direcção e vigilância, a obra ou trabalho necessário para a prestação do facto, encontramo-nos perante um dos casos em que o poder de decisão do agente de execução briga gritantemente com o direito de livre destituição deste que a proposta de lei quer atribuir ao exequente.

Em compensação, noutros casos de fronteira, a atribuição do poder de decisão ao agente de execução não reveste a mesma gravidade, sendo, em princípio, aceitável a solução preconizada. Veja-se os arts. 827-2 (levantamento da penhora sobre bem do herdeiro quando o exequente não se oponha), 856-3 (prestação ao agente de execução das declarações do terceiro devedor), 856-6 (autorização para a prática dos actos necessários à conservação do direito de crédito penhorado), 871-2 (sustação da execução em que é feita segunda penhora sobre os mesmos bens), 876-7 (suspensão da execução sobre o crédito penhorado até ao vencimento, quando seja próxima a data deste) e 882-1 (admissão do pagamento da dívida exequenda em prestações, quando haja acordo entre exequente e executado).

Quanto à alteração do art. 834-3-a (requerimento do executado ao agente de execução para substituição do bem penhorado), só é aceitável na medida em que se entenda (o que a norma ganharia em deixar claro) que o poder decisório do agente de execução termina quando haja oposição do exequente, pois só ao juiz cabe determinar se esta oposição é ou não fundada.

Não passível de crítica é a maioria das soluções consistentes em passar para o agente de execução tarefas que são actualmente da secretaria.

Estão neste caso as normas propostas para os arts. 804-3 (o agente de execução “promove” a apreciação judicial da prova complementar do título executivo), 805-2 (o agente de execução liquida, no final, os juros da obrigação exequenda), 805-3 (o agente de execução liquida, mensalmente e no final, as quantias devidas a título de sanção pecuniária compulsória — legal, nos termos do art. 829-A-4 CC, ou fixada pelo juiz), 806-3 e 807-3 (o agente de execução introduz os dados necessários ao registo informático das execuções), 808-2 (o agente de execução liquida as custas e os créditos dos credores), 811-1 (recusa do requerimento executivo pelo agente de execução), 812-1 e 812-A-3 (remessa do processo ao juiz para despacho liminar), 860-1 (apresentação ao agente de execução, pelo terceiro devedor, do documento de depósito da quantia devida ao executado), 890-1 (publicitação da venda executiva, pelo agente de execução, na página informática de acesso público) e 916-2 (pagamento voluntário da dívida ao agente de execução).

Nos casos, porém, dos arts. 812-1 e 812-A-3, não se vê razão para que a secretaria deixe de, em concorrência com o agente de execução, poder alertar o juiz para a necessidade ou conveniência do despacho liminar, reforçando a garantia de impedimento de execuções injustas. Do mesmo modo, no caso do art. 860-1, a apresentação ao agente de execução do documento do depósito efectuado pelo terceiro devedor não deveria dispensar a apresentação do mesmo documento no processo (como actualmente se exige), tanto mais quanto o pagamento pode não ter lugar à data do vencimento e há que torná-lo o mais transparente possível (sendo, aliás, deficiente a redacção da norma, quando não distingue o caso em que não há agente de execução: é óbvio que a prova do depósito tem então de ser feita na secretaria e só nesta).

3. Outras soluções discutíveis

Fora do campo considerado no n.° 2, são criticáveis as seguintes soluções:

— Retomando uma solução preconizada nos primeiros anteprojectos da reforma da acção executiva, mas afastada após devida ponderação, o art. 803-4 devolve ao credor o direito de escolha da prestação, na obrigação alternativa em que as partes confiaram a escolha a terceiro, quando este não escolha, o mesmo fazendo quando, havendo vários devedores, não seja possível formar maioria para a escolha que lhes caiba fazer. Qualquer das soluções constituiria revogação da norma do art. 400-2 CC, que atribui ao tribunal o poder de determinação da prestação, quando a escolha não tiver sido ou não puder ser feita no tempo devido: quer quando o terceiro não escolhe, quer quando os devedores, cada um dos quais com direito de voto, não conseguem formar a maioria(10), o poder de escolha passa para o tribunal, que, sendo caso disso, escolhe nos termos do processo especial do art. 1429 CPC. Ora há todas as razões para apoiar a solução do direito civil, em detrimento da que ora se propõe: se as partes entenderam atribuir a um terceiro (imparcial) o poder de escolha, constituiria rotura injustificada do equilíbrio contratual atribuí-lo ao credor quando o terceiro, que não é o devedor, não escolha; se a faculdade de escolher pertence ao conjunto dos devedores e cada um deles é livre de votar na reunião que tenha para o efeito, não lhes é imputável a impossibilidade de formar maioria, pelo que não se verifica o pressuposto de que o art. 546 CC faz depender a devolução dessa faculdade ao credor. Querer evitar à outrance a intervenção do juiz não é razão suficiente para romper o equilíbrio contratual.

— Os arts. 810-7 e 811-1-b contentam-se com a cópia do título executivo, em vez deste, para acompanhamento do requerimento executivo. É uma solução arriscada. Constituindo o título executivo a prova mínima que o sistema jurídico considera exigível para que seja possível desencadear as diligências executivas e sendo ele que determina a dispensa da citação prévia do executado, não é prescindível a apresentação do documento original, se se quiser — e tem de se querer — que o desencadeamento de algumas execuções não fique exclusivamente nas mãos de exequentes menos honestos.

— O art. 814-2 faz equivaler o requerimento de injunção com fórmula executória à sentença judicial, o que, tidas em conta as menores garantias da citação (aliás, notificação) do devedor no processo de injunção (arts. 12 e 12-A do regime aprovado pelo DL 269/98(11)), constitui violação grave do direito de acesso à justiça: o processo de injunção não é um processo jurisdicional, o que explica as menores garantias que nele encontra o devedor; por isso, a oposição à execução tem de continuar a ter lugar com qualquer dos fundamentos do art. 816(12).

— O art. 900-2 tira sentido à parte final do art. 888 (cancelamento oficioso de direitos reais que caduquem com a venda executiva), com a consequência prática de o adquirente passar a ter de requerer e pagar o registo de cancelamento, que actualmente o conservador faz oficiosamente quando a venda tem lugar mediante propostas em carta fechada. É um passo atrás que não merece aprovação: compreende-se que o comprador pague o registo da aquisição, mas não o registo do cancelamento de direitos de terceiros, inclusivamente dos que reclamaram os seus créditos e foram pagos na acção executiva.

— O art. 922-B restringe o direito ao recurso. Ora causa a maior perplexidade a supressão do direito ao recurso da decisão sobre a liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, bem como da proferida no apenso de oposição que não seja de mérito. Em primeiro lugar, não se entende que, poucos meses depois da revisão dos recursos, se esteja deste modo a pôr em causa soluções então tomadas, que não foram experimentadas e que estão em conformidade com as opções gerais feitas em função da equiparação do agravo à apelação, bem como em conformidade com o regime de recurso das decisões proferidas em incidente de oposição à penhora. Em segundo lugar, sendo de crer que o legislador terá agora pensado em cortar cerce a continuação da discussão, em recurso, das questões levantadas pelos maus devedores no processo de execução, certo parece ser também que não equacionou a hipótese, igualmente provável, de haver decisões proferidas nos apensos e incidentes declarativos contra o exequente, ao qual é igualmente recusado o direito de recorrer. Pode haver incidentes de liquidação mal julgados, tal como pode haver mau julgamento de oposições à execução com fundamento processual. A supressão do recurso, que sempre teria efeito meramente devolutivo, não encoraja os credores com título executivo extrajudicial a recorrer directamente à acção executiva, quando têm mais garantias na acção declarativa. Note-se, finalmente, que na alínea c) falta o “à” inicial (“à oposição”).

— A maior dúvida oferece a admissão do recurso à arbitragem institucionalizada em sede de execução (arts. 8 a 11 do diploma). A este ponto voltaremos adiante.

Concorda-se, em compensação, com a norma que permite o acesso livre do agente de execução ao registo informático de execuções (art. 807-4-b), com as que restringem a necessidade de autorização judicial para ele aceder às bases de dados que permitam a descoberta de bens penhoráveis (art. 833) e com a que igualmente dispensa despacho judicial a autorizar a penhora do saldo do depósito bancário (art. 861-A-1), embora seja previsível que, perante elas, venham a ser suscitadas algumas questões de constitucionalidade.

4. Insuficiências formais

Seguem-se críticas à redacção, menos clara ou mesmo equívoca ou contraditória, de certos preceitos:

— Os arts. 46-b, 51 e 812-A-1-c utilizam a expressão “documento exarado ou autenticado, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal”, quando trata (sem o dizer) dos documentos autênticos. Além da deselegância jurídica da expressão (também utilizada no art. 50), note-se que o documento particular é também um documento exarado (ainda que não autenticado) por entidade (particular) com competência (ou legitimidade) para tal.

— O art. 812-1, em vez de estabelecer, como actualmente, a regra do despacho liminar, passa a referir-se aos casos em que há despacho liminar; mas, como o art. 812-A apenas nos diz quando não há lugar a despacho liminar, ficamos sem norma que diga quando há, o que é expressão de má técnica legislativa. Veja-se, inclusivamente, que o art. 466--1 manda aplicar subsidiariamente ao processo de execução as normas reguladoras do processo declarativo e neste não há, em regra, despacho liminar (art. 234). Temos, portanto, que o art. 812-1 remete para uma norma (positiva) inexistente e, se se mantiver, forçará o intérprete a raciocinar a contrario sensu a partir do art. 812-A, o que é facilmente evitável se se mantiver a norma actual, alterada com a referência à remessa do processo ao juiz pelo agente de execução (“Sem prejuízo do disposto no n.° 1 do art. 812.°-A, o agente de execução remete o processo ao juiz para despacho liminar”).

— Segundo o art. 848-1, o agente de execução é o depositário do bem imóvel, não sujeito a registo, penhorado. Mas, distraidamente, o art. 854-1 vem-nos dizer que, “quando solicitado pelo agente de execução, o depositário é obrigado a apresentar os bens”. Em vez deste surpreendente desdobramento de personalidade, não será melhor continuar a manter o dever de o agente de execução depositário apresentar os bens ao tribunal, quando este lho solicite (o que obviamente só excepcionalmente, e com boas razões, acontecerá)?

— O art. 851, nos seus n.os 2 e 3, remete para um decreto-lei, que amanhã facilmente será outro. Não é habitual um código remeter para um diploma avulso, ainda que se trate do diploma de aprovação do Código da Estrada. De resto, a remissão está incorrecta, pois remete para artigos do código aprovado e não do decreto-lei que o aprovou. É melhor técnica remeter, como actualmente, para o regime especial de apreensão de veículo automóvel.

— O art. 890-2 (nova redacção) utiliza a expressão “valor base da venda” com maior propriedade do que o actual art. 890-4, onde ela significa o valor base dos bens (são mencionados “o valor base da venda e o valor apurado nos termos do n.° 2 do artigo anterior”). O valor base da venda é, efectivamente, o correspondente a 70% do valor base dos bens (art. 889-2). No entanto, para evitar qualquer confusão entre as duas expressões, será de acrescentar “apurado nos termos do n.° 2 do artigo anterior” (“e o valor base da venda, apurado nos termos do n.° 2 do artigo anterior”), voltando-se, quase ipsis verbis, à (melhor) redacção do preceito oriunda da revisão de 1995-1996.

— No art. 941, além de (inutilmente) se propor a substituição de “tribunal” por “juiz” e de “no processo executivo” por “na execução”, suprime-se a palavra “porventura” (“obra que porventura tenha sido feita”), que faz falta: o facto negativo nem sempre consiste na abstenção de fazer uma obra e a ordem de demolição só faz sentido quando porventura assim tenha sido. É preferível manter a redacção actual. Aliás, a redacção proposta falha, gramaticalmente: a não se querer que o verbo ordenar abranja a demolição, a indemnização e a sanção pecuniária compulsória (o que não faz mal de maior), terá de se dizer algo como “o juiz ordene a demolição da obra que porventura tenha sido feita, fixe a indemnização do exequente pelo prejuízo sofrido e condene no pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória”. Note-se também que, na redacção apresentada, há uma vírgula mal colocada, em vez do “e” que, a manter-se essa redacção, lá deveria estar.

— Actos ou diligências de execução ou de natureza executiva e actos ou diligências do processo de execução não são expressões sinónimas, referindo-se a primeira, dentro do universo (mais vasto) da segunda, às actuações processuais que, no processo executivo, implicam o exercício de poderes de autoridade perante o executado (art. 808-9: “acto de penhora, venda, pagamento ou outro de natureza executiva”). É, por isso, errado o uso da expressão “diligências de execução” num sentido que abranja qualquer diligência do processo de execução. É assim que o actual art. 818-1, em contraposição ao art. 808-9, inclui as citações, notificações e publicações nas diligências do processo de execução, ao determinar que, salvo disposição especial de lei, a realização de todas essas diligências cabem ao agente de execução. A proposta de lei baralha estas expressões, descurando o rigor terminológico do texto actual. Assim é que, no citado art. 808-1, se propõe substituir “diligências do processo de execução” por “diligências de execução”, como se fossem expressões sinónimas, e seguidamente, em vários preceitos, usa referir, na mesma acepção lata, os “casos em que as diligências de execução são realizadas — ou “efectuadas” — por oficial de justiça” (onde actualmente se fala, mais simplesmente, das “execuções distribuídas a oficial de justiça” ou de depósitos “à ordem do solicitador de execução ou, na sua falta, da secretaria”: esta última fórmula aparece, aliás, no art. 808-7 da proposta e não se vê porque foi suprimida). É o que se vê nos arts. 839, n.os 1 e 3, 848-4, 857-3, 860-1, 861-2, 897, n.os 1 e 2, 905-4, 906-4 e 916-3. Não se trata apenas, como se vê, de alterações inúteis (por ao actual legislador ser mais agradável outra forma de expressão verbal): deturpa-se também o sentido exacto das expressões.

— No art. 864-A-1, o DL 38/2003 teve o cuidado de utilizar para realidades procedimentais de natureza distinta (a verificação e graduação de créditos; o pagamento) termos distintos: “apenso de verificação e graduação de créditos”; “fase do pagamento”. O preceito desse número aparece apenas alterado para se substituir a palavra “apenso” por “fase” (“na fase de verificação e graduação de créditos e na fase do pagamento”). Também aqui não estamos apenas perante uma alteração totalmente inútil: continuando a verificação e graduação de créditos a fazer-se em processo apenso (art. 865-8), não constitui ela uma fase do processo de execução, como a do pagamento, mas sim uma acção declarativa que corre na dependência do processo executivo (13).

— No art. 810-3-d, lê-se hoje que o exequente deve, sempre que possível, indicar, no requerimento executivo, o empregador do executado, os bens do executado e os ónus que sobre estes incidam. Entendeu-se por bem substituir “possível” por “conveniente” (novo art. 810-1-i). Ora não se vê que para o exequente possa não ser sempre conveniente indicar bens do executado, tanto mais que, no regime do projecto de lei, a indicação do exequente deve ser respeitada pelo agente de execução (art. 833-1). O que pode é não lhe ser possível, por os desconhecer. O termo adequado é o da lei actual.

É, em compensação, de registar a melhoria de redacção representada por vários preceitos da proposta em que aparecem divididas em alíneas normas cuja redacção actual se mostra demasiado longa. É o caso dos arts. 812-A-1-c, 828-4, 832-1 (cuja redacção actual é algo confusa) e 919-1.

Mas é já de criticar que se revoguem números de vários artigos, intercalados entre outros que continuam em vigor, ou que são agora introduzidos, em vez de se fazer uma remuneração que se circunscreva às normas a vigorar no futuro. Exemplo extremo, pelo seu absurdo, é o do art. 810: os actuais n.os 1 e 3 são fundidos no novo n.° 1: os actuais n.os 2, 3, 4 e 6 são revogados e, se a proposta se mantiver, não serão substituídos; mas depois vê-se que a matéria tratada no n.° 2 passa a ser tratada, diversamente, no novo n.° 10 e a do actual n.° 4 reaparece, alterada, no novo n.° 7; vamos, pois, passar a ter um artigo com os n.os 1, 5, 7, 8, 9 e 10, sem que se compreenda porquê. Algo de semelhante se pode ver nos arts. 806 (o n.° 2 terá alíneas b) e c), mas não alínea a)), 847 (onde havia três números seguidos, haverá agora n.os 1, 3, 4 e 5), 890 (tinha cinco números; passa a ter os n.os 1, 2 e 5) e 922-B (o n.° 1 terá as alíneas b), c) e d), mas não alínea a), que aliás, como dizemos atrás, não é de revogar). Este critério é tanto mais de estranhar quanto é facto que não foi seguido na maioria das alterações que se pretende introduzir.

5. Alterações inúteis

Muitos são os preceitos cuja redacção se pretende alterar por razões de clarificação, quando nada havia a clarificar, ou de mero perfeccionismo formal, em muitos casos de gosto duvidoso. Nada acrescentando ou modificando substancialmente, estas alterações deviam, em nome da estabilidade legislativa, ser suprimidas, evitando assim perplexidades ao intérprete.

Vão exemplos:

— Arts. 803, n.os 1 e 3, e 805-4. Onde se fala de “notificação”, fala-se agora de “notificação pelo agente de execução”. Como o art. 808-1 determina que, salvo norma contrária, as notificações cabem ao agente de execução, a alteração é repetitiva.

— Art. 808-1. Substitui-se “diversamente” por “o contrário” (“quando a lei determine o contrário”). Para clarificar o quê?

— Art. 810, n.os 1 e 7 (actual n.° 4). Em vez de se remeter, como na lei vigente, para as alíneas b), c), e) e f) do art. 467, para o art. 467-3 e para o art. 806-1-c, prefere-se repetir o respectivo conteúdo (omitindo a indicação da forma do processo, que se podia justificar por, além da forma do processo comum, de que directamente trata o art. 810, a execução poder revestir forma de processo especial). Não se vê justificação: o CPC não é um guia para iletrados. A manutenção da orientação actual, conjugada com a conservação do (mais adequado) adjectivo “possível” na alínea i), manteria inteiramente a redacção do n.° 1 (o mesmo acontecendo com o n.° 7, se não se prescindir, tal como no art. 811-1-b, do original do título executivo).

— Art. 811-3. É melhor redacção a proposta (“considerando--se o novo requerimento apresentado na data da primeira apresentação”, em vez de “considerando-se o novo requerimento apresentado na data em que o primeiro tenha sido apresentado em juízo”). Mas a redacção actual é também correcta, pelo que não há razão suficientemente forte para a modificar.

— Art. 828, n.os 2 e 5. Acrescentou-se, em cada um dos números, “junto do agente de execução”. Em causa está o pressuposto da execução contra o devedor subsidiário. O aditamento é inútil no n.° 2 (“promovendo a penhora dos bens deste, junto do agente de execução”), uma vez que a este cabe, em geral, realizar a penhora (art. 834-1), e, além de inútil, perigoso no n.° 5 (“fazer prosseguir a execução contra o devedor subsidiário, junto do agente de execução”), por dar literalmente a ideia (falsa) de que não há que dar conhecimento do requerimento ao tribunal ou, pior ainda, que está nas mãos do solicitador de execução dar seguimento ao eventual pedido de dispensa da citação prévia do devedor subsidiário (o que o art. 812-B-3 mostra que não acontece).

— Art. 833-10 (actual n.° 7). Substitui-se “devedor” por “executado”. Não é só inútil: o preceito só tem aplicação ao executado devedor, não ao terceiro proprietário do bem dado em garantia ou adquirente obrigado à restituição pela sentença proferida na acção pauliana. O termo actual é mais rigoroso, embora o novo termo não vá seguramente suscitar dúvidas interpretativas.

— Art. 843-3. O preceito actual permite ao solicitador de execução socorrer-se, na administração dos bens, de colaboradores, que — acrescenta — “actuam” sob sua responsabilidade. Prefere-se dizer agora que o agente de execução se pode socorrer, na administração dos bens, “de colaboradores que actuem sob sua responsabilidade”. Sendo o mesmo o sentido, porquê alterar, quando, aliás, a vírgula que antecedia o presente do indicativo mostrava melhor que se tratava de duas normas (a da oração principal e a da oração relativa)?

— Art. 859-1. Acrescenta-se que é “por escrito” que o executado deve confirmar a declaração do terceiro devedor sobre a existência de sinalagma. Então como havia de ser? Vamos, com o acrescento, permitir interpretação a contrario sensu, segundo a qual o executado pode exprimir-se, em outros actos do processo, por forma meramente verbal? Não é o processo, por definição, uma sucessão de actos escritos, sem que a lei tenha de o dizer em cada preceito?

— Art. 864-8 (actual n.° 7). Suprime-se a expressão no mesmo processo (“se cumule, depois, no mesmo processo, a execução de outro título”). A expressão vinha do diploma intercalar de 1985 (art. 811-2) e foi mantida na revisão de 1995-1996 e na reforma do processo executivo. Sendo indubitável que nada de substancial se quis alterar, porque não mantê-la? Algumas alterações acrescentam inutilidades, outras preocupam-se em suprimir o que agora se considera inutilidade...

— Art. 864-A-2. É um preceito perfeitamente inútil e repetitivo: repete a norma do art. 825-5, para a qual expressamente remete o art. 864-3-a (para o qual, por sua vez, remete o art. 864-A-1). É má técnica legislativa repetir preceitos.

— Art. 871-3: Substitui “requerimento” por “pedido”.

— Art. 872-1. Retira “judicial” a “consignação” (“consignação judicial” ??“consignação”), não dando relevo a que a consignação tem lugar no processo judicial de execução e denotando uma concepção muito redutora do termo “judicial” (= do juiz), que esquece outras utilizações consagradas do termo, como a que surge na denominação da hipoteca judicial (art. 710 CC).

— Art. 877-2. Única alteração em todo o artigo: substitui-se “observar-se-á” por “observa-se”. Para quê?

— Art. 879-4. Única alteração em todo o artigo: acrescenta-se o adjectivo “electrónica” a “comunicação”. Para quê, se, pela remissão para o art. 838, já se diz que a comunicação é feita electronicamente?

— Art. 888. Também aqui a única alteração consiste em vincar que o agente de execução requer (e já não “promove”) por via electrónica o cancelamento dos registos dos direitos reais que caducam. Não era já evidente que essa era a via consentida? e porquê a preocupação de evidenciar que o agente de execução requer à conservatória, quando, ao inverso, há a preocupação de o pôr a promover actos do juiz (ver, por exemplo, o art. 804-3)?

— Art. 901-A-2. Porquê a inutilidade de determinar a minudência de as propostas de compra em carta fechada serem abertas pelo agente de execução? e se este tiver partido um pulso? Não é preferível dizer apenas que elas são abertas na presença do juiz? E porque é que, tratando-se de venda de imóvel, o agente de execução apenas assiste à abertura e, tratando-se de venda de estabelecimento comercial, tem de ser ele a abrir as cartas?

— Art. 908-1. Única alteração: substitui-se “no processo de execução” — sempre assim se disse — por “na execução”. Porquê?

— Art. 921-1. Única alteração: suprime-se “no processo de execução”. Para quê? Para se vir a discutir, absurdamente, se o pedido de anulação da citação do executado pode ter lugar fora do processo de execução? Mais uma vez: ora se introduzem novos termos e expressões para salientar o evidente, ora se suprimem termos e expressões em nome, segundo julgamos, da sua desnecessidade...

— Art. 921-4. Substitui o futuro “ficará” pelo presente “fica”. Incorrectamente: o futuro do conjuntivo (“se tiver”) obriga ao uso do futuro do indicativo do verbo ficar.

Há também desdobramentos de números de artigos, que são tecnicamente defensáveis, mas substancialmente neutros (e nem sequer clarificados) e que, por isso, são de evitar, uma vez que o diploma não pretende, segundo reza o seu preâmbulo, realizar uma reforma (que está feita), mas tão-só aperfeiçoá-la, onde necessário. É o caso dos arts. 804 (desdobramento do n.° 2 nos n.os 2, 3 e 4; com subsequente alteração de numeração dos preceitos seguintes), 847 (desdobramento do n.° 3 nos n.os 4 e 5; com simultânea omissão de preenchimento do n.° 2, revogado!), 861-A (desdobramento do n.° 3 nos n.os 3 e 4; com consequente alteração da numeração dos preceitos seguintes), 871 (desdobra em três números o número único anterior), 917 (desdobramento do n.° 4 nos n.os 4 e 5; com subsequente alteração da numeração do preceito seguinte) e 921 (desdobramento do n.° 3 nos n.os 3 e 4).

Porque é que, além do mais, o legislador nunca pensa na desactualização de citações, na doutrina e na jurisprudência, que este tipo de modificações gratuitas provoca, nos transtornos que daí resultam e nos equívocos que daí podem resultar? Será inerente ao trabalho legislativo esse desprezo pelo intérprete e pela comodidade a que ele tem direito na divulgação do conhecimento?

Frisa-se, finalmente, que há preceitos cuja redacção permanece, mas que, por lapso manifesto, vêm reproduzidos no diploma. É o caso dos arts. 808-9 (= 808-6 actual) e 921-2 (igual a si próprio).

6. Alterações a apoiar

Porque nos move o intuito de conseguir o aperfeiçoamento da reforma da acção executiva, realçamos seguidamente as alterações que, no nosso entender, são francamente de apoiar (além daquelas com que atrás já dissemos concordar):

— Art. 801-2, 808-8, 810, n.os 8 e 9, 833, n.os 1 e 5, 837-2, 864-4 e 919-3. Utilização da electrónica, sempre que possível como meio exclusivo de processamento e comunicação.

— Arts. 806-2-a e 807-3. Eliminação do registo informático da execução após o pagamento integral.

— Arts. 808-3, 810-6 (revogado) e 818-A (revogado). Designação do agente de execução sempre pelo exequente e obrigatoriedade da sua aceitação pelo agente de execução. Este só pode recusar exercer as suas funções se para tanto tiver fundamento (art. 131-A-2-a do Estatuto da Câmara dos Solicitadores).

— Art. 810-1. Supressão (aproveitando a alteração da redacção do artigo, no pouco em que ela se justifica) da referência à necessidade (óbvia) de assinatura do requerimento executivo por advogado, quando o patrocínio é obrigatório. Só a incompreensão inicial da Ordem dos Advogados explica a referência actual.

— Art. 831-2. Determinação da imediata citação do terceiro detentor de bens penhorados.

— Art. 832-1. Estabelecimento do prazo de 5 dias para o início das diligências para a penhora.

— Art. 833-1. Algum condicionamento da determinação dos bens a penhorar pela indicação feita pelo exequente no requerimento executivo. Ter, porém, em conta as normas do art. 834, n.os 1 e 2.

— Art. 834-1. Preferência pela penhora do saldo de depósito bancário.

— Art. 838-1. Pagamento imediato dos emolumentos devidos à conservatória.

— Art. 838-2. Evita notificações inúteis por parte da conservatória. Resta, porém, esperar que a supressão da previsão, no n.° 1, da realização do registo da penhora por meio não electrónico (com reflexo em outras disposições que para aí remetem) venha a ser, finalmente, acompanhada por uma realidade que lhe corresponda.

— Art. 859-4. Exigência da contraprestação devida pelo executado no próprio processo executivo, dispensando o apenso actual. Certo também que o título executivo é a declaração de reconhecimento da dívida.

— Arts. 861-3 e 861-A-13. Entrega da quantia depositada pelo terceiro devedor e do saldo do depósito penhorado ao exequente, sem dependência de requerimento deste.

— Art. 862-4. Dispensa de despacho judicial a verificar a conveniência da venda conjunta de todas as quotas ou quinhões, quando a pretendem os terceiros contitulares.

— Arts. 890-1 e 907-A-2. Redução da publicidade da venda à página informática.

— Art. 901-A-1. Presença do juiz em todos os actos de abertura de propostas de compra em carta fechada de estabelecimento comercial e definição do valor aquém do qual esse meio de venda é dispensado.

— Art. 907-A-1. Admissão, mais realista do que o regime actual (meramente teórico), da venda de bens móveis em depósito equiparado a público. Há, porém, que ter em conta que a remoção estatuída pelo art. 848-1 não pode continuar letra morta.

— Art. 908-2. Obrigatória a resolução da questão da anulação da venda, nos termos do art. 908-1, no próprio processo executivo.

Como se vê, os preceitos, dos indicados pelo diploma, a alterar (estes e os que já atrás tinham sido referidos) não são muitos. Um legislador só preocupado em ser eficiente, e não em exibir o seu convencimento de que é o melhor de todos, reduzirá certamente, com muita utilidade, a dimensão desproporcionada do novo diploma.

7. Pontos omitidos a aperfeiçoar

Há algumas outras questões que o texto oriundo da reforma coloca e que continuam a não encontrar solução no novo texto.

O pouco tempo que foi concedido para a audição da Ordem dos Advogados não permite um elenco exaustivo dessas questões.

Vão, em todo o caso, algumas:

— Art. 239-1:

“… contacto pessoal do agente de execução …”.
O mesmo nos arts. 233-2-b, 240-1, 261-1 e vários outros, que falam hoje de “solicitador de execução”.

— Art. 805-4: Tem dado azo a dúvidas o caso da execução de sentença genérica arbitral(14). O preceito do art. 805-4 deveria esclarecer que só exclui a sentença judicial. Assim, propõe-se:

“Quando, não sendo o título executivo uma sentença judicial …”

— Art. 808-1: Em vez de os arts. 866-1 e 869-2 passaram a dizer que as notificações que determinam são efectuadas pela secretaria no apenso de verificação e graduação de créditos, é preferível estabelecer uma norma geral segundo a qual nesse e nos outros apensos declarativos ao processo executivo (nomeadamente, oposição à execução e embargos de terceiro) se seguem as normas gerais sobre notificação do processo declarativo.

Sugere-se assim a seguinte redacção:

“Cabe ao agente de execução, salvo quando a lei determine diversamente(15) e sem prejuízo da sujeição dos apensos declarativos ao regime geral, efectuar …”.

— Art. 808-12: Quer os funcionários, quer os juízes, têm prazos gerais estabelecidos para a prática dos actos processuais que praticam. Não se compreende que não haja prazos gerais estabelecidos também para o agente de execução.

Propõe-se, por isso o seguinte:

“É de 10 dias, na falta de disposição especial, o prazo para os actos a praticar pelo agente de execução, devendo, porém, as notificações ser feitas no prazo de 5 dias”.

— Art. 808-13: A manter-se, como sugerimos, o poder de destituição do juiz, deverá acrescentar-se:

“As diligências necessárias à realização do pagamento devem ser concluídas em prazo razoável, sem prejuízo do disposto no número anterior e de o exequente ou outro interessado poder reclamar para o juiz dos atrasos que se verifiquem.”

Em alternativa, se for aceite que o exequente apenas possa destituir o agente de execução por incumprimento de prazos (supra, ponto II), haveria que articular o n.° 6 do artigo com os n.os 12 e 13, concedendo-se esse poder de destituição apenas quando o agente excedesse o prazo geral do n.° 12 ou se verificasse demora excessiva na efectivação das diligências necessárias à realização do pagamento, mas neste caso só depois de o exequente ter feito notar ao agente de execução que o tempo por ele gasto não está a ser razoável.

— Art. 818-5: Na reforma de 2003, desapareceu uma norma que faz falta: o apenso de verificação e graduação de créditos não deve ficar parado quando a execução se suspende. Assim propomos:

“A suspensão da execução, decretada após citação dos credores, não abrange o apenso destinado à verificação e graduação de créditos.”

— Art. 862-5 (passando os actuais n.os 5 e 6 a 6 e 7):

O n.° 1 prevê o caso do bem não sujeito a registo. Está implícito que, verificando-se a sujeição a registo, deve observar-se o art. 838. Mas, para não haver dúvidas, isso poderá ficar expresso. Assim:

“Quando a penhora tenha por objecto direito a bem indiviso sujeito a registo, observa-se o disposto no artigo 838.°, com as devidas adaptações, e dá-se logo conhecimento ao administrador e aos contitulares da penhora efectuada”.

É que é importante vincar que, também neste caso, a data do registo determina a data da penhora.

— Art. 877-2: Para estimular a adjudicação de bens e com manifesta justiça para o exequente, ou para o credor que a haja requerido, é de conceder a este o direito de preferência.

Assim dir-se-á:

“Havendo proposta de maior preço, observa-se(16) o disposto nos artigos 893.° e 894.°, tendo o requerente direito de preferência sobre a proposta de maior preço que for alcançada”.

8. Redacções a aperfeiçoar.

Para além dos casos já referidos, vários preceitos podem ter redacção mais cuidada.

— Art. 807-2: “A menção de a execução” (a contracção da não é gramaticalmente correcta: a proposição de liga-se a ter e não a a execução, de que não é determinativa); “é eliminada” (não se trata duma possibilidade, mas duma consequência de pagamento + requerimento do credor).

— Art. 808-4: “... impossibilidade, são as diligências do processo de execução, quando o exequente o requeira, realizadas por oficial de justiça ...” (não se trata duma possibilidade, mas duma consequência de falta de agente de execução + requerimento do credor).

— Art. 814-2: Sem prejuízo de, como se disse, não se concordar com o preceito, pois é característica essencial do processo de injunção, em qualquer sistema jurídico onde existe, a notificação do requerido para deduzir, querendo, oposição, a parte final é redundante.

— Art. 824-9: “As propostas do agente de execução ao juiz, nos termos dos n.os 6 e 7, são fundamentadas” (a proposta não contém uma proposta).

— Art. 831-2: “... retenção e, em caso afirmativo, procede-se logo à sua citação” (para não repetir terceiro).

— Art. 831-3: “Quando a citação do terceiro não possa ser feita imediatamente, anota-se o respectivo domicílio para efeito de posterior citação” (fórmula mais simples).

— Art. 832-1: “... úteis, contados:

a) Da apresentação ...
b) Do termo do prazo ...
c) Da notificação ... execução, depois de julgada ...”.

— Art. 833-1: “... de todas as informações sobre a identificação do executado constantes desses serviços e sobre a identificação e a localização dos seus bens”.

— Art. 834-1: Suprimir a vírgula.

— Art. 837-2: “As informações referidas no número anterior são fornecidas exclusivamente por meios electrónicos, no ... penhora, nos ...”.

— Art. 838-1: Colocaria a vírgula entre “execução” e “ou pelo exequente” e não depois de “exequente”.

— Art. 840-3: “Quando seja necessário o arrombamento das portas, o juiz, a requerimento fundamentado do agente de execução, determina que ele seja efectuado pela força pública, que lavra auto da ocorrência” (mais simples e evitando incorrecções gramaticais: “entender”/“requer” (requererá) ou “determina” (determinará).

— Art. 840: n.os 5 e 6 ? n.os 4 e 5

— Art. 842-A-2: “o” ? “ao”

— Art. 848-3: “... o disposto nos n.° 2 a 5 do art. 840.°”.

— Art. 851-3: “entender” ? “entenda” (concordância com “é”).

— Art. 859-4: “... a declaração de reconhecimento da dívida” (mais elegante sem “sua”).

— Art. 860-1: “... e a apresentar o documento do depósito ou entregar a coisa devida ao agente de execução ...”.

— Art. 861-A-14: A vírgula faz falta depois de mobiliários (os valores mobiliários podem ser escriturais ou titulados).

— Art. 864-4: “meios electrónicos, nos termos ...”.


Notas:

(1) Sirva de exemplo a imposição da necessidade de despacho judicial a ordenar a penhora do saldo do depósito bancário. Partindo duma exacerbada e ultraliberal extensão do conceito de reserva da vida privada ao direito de sigilo sobre o património próprio, teve como resultado que muito juízes entenderam só dever permitir a penhora do depósito bancário em último lugar, quando, bem pelo contrário, este devia ser, na grande maioria dos casos, o objecto privilegiado de apreensão.

(2) Aqui, a responsabilidade maior é do defeito de leitura da lei, não da própria lei. O DL 38/2003 cuidou de evitar soluções extremas e criar um sistema de equilíbrios que impedissem o solicitador de execução de actuar à rédea solta, tida designadamente em conta a novidade da experiência entre nós. Nomeadamente, a atribuição ao juiz dum poder geral de controlo era razoável, tal como era prudente, numa primeira fase, a atribuição à secretaria (e não ao agente de execução) de competência para, por exemplo, verificar a necessidade do despacho liminar ou suscitar questões que pudessem conduzir ao indeferimento liminar do requerimento executivo. A grande falha, neste campo, foi a falta de juízos de execução: o juiz de competência genérica facilmente julga mais importante a acção declarativa do que a acção executiva e não se apressa a dar despachos na execução; o funcionário da secretaria, tão-pouco especializado, acaba por não dar a ajuda que o legislador dele esperava. Enquanto se espera a entrada em vigor da reforma orgânica que cria tribunais de execução que cubrirão todas as circunscrições judiciárias do país, opta-se agora por radicalizar a privatização das execuções, acentuando os poderes do agente de execução.

(3) ABRANTES GERALDES, O juiz e a execução in A reforma da acção executiva/2, Themis, 9, n.° 3.4.d.

(4) ABRANTES GERALDES, idem, n.° 3.3.b, e LEBRE DE FREITAS, Agente de execução e poder jurisdicional in A reforma da acção executiva, Themis, 7, n.os 9 e 10.

(5) Já assim, no direito actual, segundo LOPES DO REGO, As funções e o estatuto processual do agente de execução in A reforma da acção executiva/2, Themis, 9, n.° 1.5.

(6) Estamos pensando, fundamentalmente, no juiz do juízo de execução. Temos a maior dificuldade em imaginar o novo modelo do processo executivo fora dos tribunais de competência específica que a LOFTJ prevê. Criar tribunais de execução em todo o país será, esse sim, o grande impulso para o funcionamento das execuções.

(7) Se não mesmo de poderes jurisdicionais: o art. 809-1-c passa, na nova redacção, a falar de “impugnação de decisões do agente de execução” (ver, por exemplo, os arts. 824-8, 827-2, 842-A, 847-1, 862-A-3, 866-C-1 e outros adiante referidos).

(8) Veja-se, designadamente, que a mesma supressão não é preconizada para o recurso da decisão judicial de questão suscitada pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes, nos termos do art. 809-1-d.

(9) Actualmente, só as partes estão sujeitas à aplicação de multa. Para o futuro, a ficar a norma como está, o agente de execução terá de ser muito cauteloso nas dúvidas que ponha ao juiz. Por outro lado, hoje também no caso da alínea c) é possível ao juiz aplicar multa: não se vê porque há-de deixar de ser assim quando a reclamação do acto do agente de execução for manifestamente infundada.

(10) Veja-se as normas dos arts. 985 CC, n.os 1 e 3, e 1407-2 CC, directamente aplicáveis aos comproprietários (as primeiras por remissão do art. 1407-1 CC, visto que regulam em primeiro lugar para a sociedade civil), mas analogicamente aplicáveis: cada comproprietário tem igual poder para administrar (art. 985-1 CC) e as deliberações devem ser tomadas por maioria (arts. 985-1 CC e 1407-1 CC). Não sendo possível a formação desta, o tribunal decide segundo juízos de equidade (art. 1407-2 CC).

(11) Compare-se, designadamente, com o regime de citação na acção declarativa especial regulada no mesmo diploma (arts. 1-2 e 1-A do mesmo regime).

(12) Compare-se com o regime vigente para o terceiro devedor, desde a reforma da acção executiva (art. 860-4).

(13) Ver, por exemplo, LEBRE DE FREITAS, A acção executiva, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, n.° 1.5.

(14) Ver LEBRE DE FREITAS, Competência do tribunal de execução para a liquidação da obrigação no caso de sentença genérica arbitral, ROA, 2006, I.

(15) Repare-se que a regra geral é a citação pessoal feita pelo agente de execução (art. 239-1 CPC). É um regime diverso, mas não contrário, ao estatuído para as execuções.

(16) Só com o aditamento ora proposto se deverá fazer o gosto ao legislador na mudança do tempo verbal, de outro modo plenamente injustificada, como se deixou dito.
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