sábado, 6 de março de 2010

Lições de Ciência Política

Lições de Ciência Política
Ano Lectivo de 2008-2009 – 1.º Semestre
Miguel Nogueira de Brito





1.ª Lição, 2 de Outubro

1. As grandes linhas de força do pensamento político na passagem do século dezanove para o século vinte; 2. Atractivos do utilitarismo enquanto teoria política da moral: secularismo, consequencialismo e construtivismo; 3. Definições de utilidade; 4. Utilitarismo de regras e de actos; 5. Utilitarismo e separação das pessoas; 6. Utilitarismo enquanto teoria da igualdade e utilitarismo teleológico.

1. O tema de que me vou ocupar nestas lições consiste no pensamento político da actualidade, quer dizer, o pensamento político do século XX. A compreensão desse pensamento pressupõe, como ponto de partida, uma referência às grandes linhas de força que vêm de trás. Por uma razão de simplificação expositiva vou considerar três dessas linhas de força: o utilitarismo, o marxismo e o contratualismo. Todas estas correntes de pensamento estão presentes na actualidade, mas enquanto o utilitarismo e o marxismo adquirem a sua máxima expressão no século dezanove (ou, em qualquer caso, na transição do século dezoito para o século dezanove), o contratualismo, que podemos identificar como a expressão da modernidade em termos de pensamento político, é praticamente esquecido nesse mesmo século e, em bom rigor, apenas é ressuscitado já bem dentro do século vinte, através de John Rawls. Pelo contrário, o utilitarismo e o marxismo constituem o horizonte em que se movem todas as elaborações teóricas posteriores sobre a política, as grandes correntes de pensamento a que todas essas elaborações têm de prestar contas.

2. Comecemos, pois, pelo utilitarismo. O utilitarismo, na sua formulação mais simples, é uma teoria moral que sustenta que os actos, ou políticas, moralmente devidos são aqueles que produzem a maior felicidade para os membros de uma sociedade. Como se vê por esta formulação, o utilitarismo pode ser entendido como uma teoria moral abrangente (no sentido de Rawls, isto é, uma teoria que aplica o princípio da utilidade, seja como for formulado, a todos os tipos de objectos, desde a conduta dos indivíduos e as relações pessoais à organização da sociedade como um todo, bem como às relações internacionais) , embora o nosso interesse consista essencialmente na sua consideração como uma teoria política da moral.
São três as características do utilitarismo que fizeram dele uma teoria política da moral atractiva. (i) Antes de mais, o objectivo, isto é, a felicidade, que os utilitaristas procuram promover não depende da existência de Deus, da alma, ou de qualquer outra entidade metafísica. Quer sejamos, ou não, criaturas de Deus, quer tenhamos, ou não, uma alma e sejamos dotados de livre arbítrio, todos podemos, sem dúvida, sofrer e ser felizes. (ii) uma segunda característica atractiva do utilitarismo consiste no consequencialismo, que exige que qualquer acto ou política a adoptar tenham algum bem identificável. Não podemos considerar que um determinado acto ou prática (a homossexualidade, o jogo, a prostituição) é moralmente condenável se não formos capazes de identificar as consequências negativas que dele resultam. O consequencialismo permite assim resolver as questões morais sem recorrer a subterfúgios e de forma directa. (iii) A terceira característica, relacionada com as anteriores e de algum modo subjacente a elas, que faz do utillitarismo uma teoria atraente, consiste no seu construtivismo, isto é, a tese de que através de um procedimento construtivo, montando por agentes humanos, é possível erigir princípios morais, negando-se assim as teses dos realistas morais, segundo os quais existem factos ou propriedades morais que podem ser descobertos ou intuídos e constituem as fundações da moral.
O problema que se coloca, naturalmente, é o de saber se estes atractivos do utilitarismo são exclusivos dele. Se não o forem, termos de averiguar se o utilitarismo as articula melhor que outras teorias.
Não podemos, pois, ajuízar do utilitarismo com base apenas nestes atractivos. Temos de analisar a teoria. Para isso, é conveniente dividi-la em duas partes: o utilitarismo enquanto descrição do bem-estar humano, ou utilidade; o utilitarismo enquanto mandado de maximização da utilidade, seja como for definida, dando o mesmo peso à utilidade de cada pessoa .

3. É possível identificar pelo menos quatro propostas para definir o que seja utilidade, ou o bem-estar das pessoas.
De acordo com a primeira dessas propostas, e talvez a mais influente, o bem-estar consiste na experiência ou sensação de prazer. Segundo Bentham, um dos fundadores da teoria, «pushpin is as good as poetry» se der a mesma intensidade e duração de prazer.
Esta afirmação é motivo de perplexidade enquanto explicação dos motivos pelos quais preferimos algumas actividades em relação a outras. Por um lado, todos sabemos que a escrita da poesia é uma experiência dolorosa e frustrante para os poetas, que não deixam de a considerar, por isso, uma experiência valiosa. Mesmo para os leitores, é mais difícil ler um livro de poesia do que jogar à bisca, mas nem por isso menos valioso. A isto poder-se-ia responder que o poeta é um masoquista. Nem sempre uma vida feliz, definida em termos hedonistas de sensações de prazer, é uma vida plena...
Foi, no entanto, Robert Nozick, um filósofo a que vamos dedicar a nossa atenção mais adiante, quem desferiu a grande crítica a este modo de definir a utilidade. Imaginemos que os neuropsicólogos inventam uma máquina capaz de nos injectar drogas que criam os estados de consciências mais aprazíveis que é possível imaginar. Se o prazer, definido em termos puramente hedonistas, fosse o nosso maior bem todos aceitariamos de bom grado ligar-nos a esta máquina. Mas todos sabemos que uma vida assim, longe de ser a melhor vida possível, não seria sequer uma vida .
Uma segunda forma de definir utilidade recusa a orientação hedonista e, em vez disso, aceita que uma experiência recompensadora pode não ser necessariamente fonte de prazer. É claro que isto não afasta a objecção decorrente da invenção de Nozick, a que podemos chamar a máquina das experiências, isto é, uma máquina capaz de de nos dar qualquer experiência imaginável que possa ser valiosa.
Uma terceira opção consiste na definição da utilidade em termos de satisfação de preferências. Nesta perspectiva aumentar a utilidade das pessoas significa satisfazer as suas preferências, sejam elas quais forem. As pessoas podem querer a experiência de escrever poesia, mas podem também querer escrever poesia, e assim não recorrer à máquina de Nozick. Mas a utilidade, definida como a satisfação de preferências sejam elas quais forem, deixa de ter qualquer ligação à ideia de bem. Por essa razão, o utilitarismo na versão da satisfação de preferências diz-nos apenas que algo é valioso pelo simples facto de muitas pessoas o desejarem. É claro que isto significa pôr as coisas ao contrário: ter uma preferência não a torna valiosa, pelo contrário é porque algo é valioso que existe uma razão para a preferir.
Assim chegamos à quarta forma de conceber a utilidade: trata-se daquela que procura resolver o problema das preferências enganadas através da definição do bem-estar como a satisfação das preferências racionais ou informadas. É claro que não pode estar aqui em causa uma racionalidade crítica que torne dispensável a própria consideração das diversas preferências, mas apenas um nível de informação que permite afastar os casos de erro ou engano e assim não torne dispensável a própria agregação do bem-estar.

4. Assumindo que definimos o que seja utilidade, devemos aceitar o compromisso dos utilitaristas no sentido de maximizar a utilidade? Tendo em vista a maximização da utilidade é necessário começar por fazer uma distinção da maior importância. Há, com efeito, duas abordagens distintas do que significa actuar de acordo com princípios utilitaristas. De acordo com uma delas um agente deve actuar directamente, em cada caso, de acordo com o cálculo utilitarista, procurando averiguar em que medida diferentes cursos de acção poderão afectar a satisfação de preferências informadas (utilitarismo directo ou utilitarismo de actos). De acordo com a outra abordagem, a maximização da utilidade aplica-se apenas indirectamente ao processo de decisão de um indivíduo. As acções moralmente devidas continuam a ser aquelas que maximizam a utilidade, mas entende-se que os agentes mais facilmente maximizarão a utilidade seguindo regras ou hábitos (utilitarismo indirecto ou de regras).
Segundo alguns críticos, o utilitarismo de regras pode apenas ser configurado como um utilitarismo restrito, ao configurar as regras morais como algo mais do que simples orientações práticas (rules of thumb) . Mas, mais importante ainda, a própria ideia de maximização do utilitarismo, seja em qual das versões for, é passível de crítica.

5. Existem duas objecções fundamentais à ideia de que devemos basear as nossas acções em cálculos utilitários. De acordo com uma dessas objecções, afirma-se que o cálculo utilitário não toma em consideração as relações especiais das pessoas. Imaginemos um empréstimo. Se alguém me empresta uma quantia de dinheiro, essa pessoa tem um direito a receber a quantia emprestada, mesmo se uma outra pessoa pudesse fazer um melhor uso do dinheiro. Ora, o raciocínio utilitarista desconsidera estas relações especiais estabelecidas entre as pessoas. É claro que se poderia responder que pagar os empréstimos é uma acção mais apta a maximizar a utilidade do que se poderia à partida pensar. Ainda que isto seja verdade, não nos resolve o problema. É que, mesmo admitindo isso, admitindo que a celebração de um contrato cria uma relação moral especial entre duas pessoas, esse será apenas um facto a considerar no cálculo da utilidade.
Um segundo problema do utilitarismo, enquanto procedimento de decisão, diz respeito à ideia de que a cada fonte de utilidade, isto é, a cada preferência, seja dado um peso igual. Imagine-se a discriminação racial numa sociedade maioritariamente branca. Ou a discriminação de pessoas de orientação sexual diferente. É legítimo que essas pessoas sejam discriminadas em resultado do cálculo da utilidade. O problema existe, como é bom de ver, porque o utilitarista não aceita que exista um padrão que nos permita definir o que é justo previamente ao cálculo da utilidade. Ora, esta ideia viola uma importante componente da nossa moral quotidiana, se quiserem assim chamar-lhe. [acrescentar utilitarismo de regras].

6. Vamos agora considerar os dois argumentos principais para considerar a maximização de utilidade como o padrão da justeza moral. De acordo com um desses argumentos, o utilitarismo é o modelo ideal para agregar interesses e desejos individuais, na medida em que confere o mesmo peso, considera do mesmo modo, aos interesses de cada um. Em termos esquemáticos, o argumento agora em análise sustenta o seguinte: (i) as pessoas são importantes e são-no igualmente; (ii) consequentemente, aos interesses de cada pessoa deve ser dado o mesmo peso; (iii) logo, os actos moralmente devidos maximizam a utilidade.
Mas há uma outra interpretação do utilitarismo, de acordo com a qual a maximização do bem é primária, e não derivada, e consideramos os indivíduos igualmente apenas porque esse é o modo mais expedito de maximizar o valor. Nesta perspectiva, o utilitarismo preocupa-se, não com pessoas, mas com estados de facto. De acordo com este modo de ver, o crescimento, mesmo o crescimento demográfico é moralmente devido ainda que implique a redução do bem-estar de cada pessoa individualmente considerada, o que não sucede se entendermos o utilitarismo como uma teoria preocupada em tratar as pessoas como iguais. Como se depreende, o problema é o seguinte: na perspectiva da ideia de maximização objectiva do bem-estar, o utilitarismo conflitua com as nossas intuições morais básicas; pelo contrário, na perspectiva da teoria igualitária, conduz a resultados que contrariam com aquele que parece ser o entendimento mais correcto de como tratar as pessoas como iguais. É isto que vamos ver de seguida.


2.ª lição, 3 de Outubro

7. Utilitarismo e igualdade; 8. Utilitarismo e radicalismo: ontem e hoje; 9. Marx e o cânone ocidental; 10. A teoria materialista da história; 11. A teoria da mais valia.

7. Como resulta do ponto anterior, o tratamento do utilitarismo como uma teoria política moral plausível implica que o interpretemos como uma teoria de igual consideração das pessoas. Ora, a este propósito ocorre desde logo dizer que ainda que o utilitarismo seja movido pela preocupação de tratar as pessoas como iguais, isso não significa que o princípio da maximização da utilidade não possa ter efeitos desiguais sobre as pessoas. A grande questão que se nos coloca é, pois, a seguinte: devemos preferir uma teoria que trata as pessoas como iguais ainda que conduza a resultados não igualitários, ou, pelo contrário, devemos privilegiar uma teoria que conduza a esses resultados?
Como se viu, o utilitarismo sustenta que todas as preferências devem ter o mesmo peso. É possível, no entanto, sustentar que uma adequada teoria do tratamento igualitário deve distinguir vários tipos de preferências e excluir alguns deles.
O primeiro tipo de preferências que devemos excluir resulta da distinção entre preferências pessoais e preferências externas. As primeiras dizem respeito aos bens, recursos oportunidades, etc., que pretendemos para nós próprios. As segundas dizem respeito aos bens, recursos e oportunidade que pretendemos estejam disponíveis para os outros. A questão é, pois, a seguinte: devem as preferências externas ser consideradas no cálculo da utilidade? Aqui surge o problema. Se as preferências externas forem consideradas, isso significa que aquilo que me é devido depende do que os outros pensam de mim. Isso significa, é claro, que se os outros pensarem que sou digno de menor consideração, a minha posição no cálculo utilitário será afectada. Basta pensar, uma vez mais, no exemplo das minorias. Ora, isto, por sua vez, contradiz a justificação do utilitarismo enquanto teoria que trata todos como iguais. Mas se as preferências externas não forem consideradas isso significa que algo se impõe ao princípio utilitarista que não é especificado por este último, nem resulta do seu funcionamento. E significa, é claro, uma redução drástica da capacidade de funcionamento do princípio da utilidade.
Um segundo tipo de preferência ilegítima envolve o desejo por mais do que a parte justa de recursos que me cabe. Chamemos-lhe preferência egoísta, na medida em que ignora o facto de outras pessoas preciarem dos recursos em causa, e terem até legítimas pretensões sobre eles. Tal como as preferências externas desigualitárias (dos racistas, por exemplo), as preferências egoístas são muitas vezes irracionais e não informadas. Mas satisfazer essas preferências pode gerar utilidade social (por exemplo, expropriar um terreno para o atribuir a alguém que extrai dele mais rendimento: onde existia uma casa de habitação passa a existir um hotel). Podem estas preferências, se racionais, ser incluídas no cálculo utilitário? A necessidade de excluir ambos os tipos de preferências pode ser ilustrada com um exemplo. Imaginemos um condomínio onde cada condómino tem uma habitação e um espaço de jardim, distribuídos em termos supostamente equitativos. Suponhamos agora que todos os condóminos acham que o espaço de jardim de um deles, em virtude da respectiva localização, deve ser reduzido para permitir o acesso exterior, ou ainda para o reservar como espaço para crianças. As preferências dos outros nesse sentido podem muito bem sobrepujar, em termos de cálculo de utilidade, a preferência do afectado no sentido de preservar o seu jardim. E assim surge, uma vez mais, a questão: a igualdade é melhor servida quando se assegura que cada um pode preservar a sua parte justa na distribuição dos recursos ou quando se assegura a todos um peso igual na determinação do destino da parte de recursos de cada um? Vemos assim que a exclusão de preferências egoístas, tal como a exclusão de preferências externas, implica a consideração autónoma da igualdade, como um padrão que se impõe ao procedimento decisório relativo à distribuição de recursos.

8. Quando surgiu o utilitarismo, na passagem do século dezoito para o século dezanove, os seus defensores eram chamados «Radicais filosóficos». E, na verdade, o utilitarismo serviu para atacar aqueles que tinham privilégios injustificados à custa da maioria da população. Mas, à medida que esses privilégios feudais foram sendo eliminados, o carácter radical do utilitarismo regrediu, por assim dizer. Como contraponto, aumentaram as críticas relativas ao modo como uma teoria política utilitarista deixa certas monirias desprotegidas.
Curiosamente, o radicalismo do utilitarismo ressurge quando se trata de de alargar o círculo dos sujeitos de preferências relevantes a considerar. Basta pensar no pensamento de Peter Singer e a sua defesa dos direitos dos animais baseada no argumento de que devemos combater a ideia de que apenas os membros da nossa espécie podem ser titulares de direitos, isto é, na ideia de que é errado considerar no cálculo da utilidade apenas os humanos, com exclusão dos demais seres sencientes.

9. No livro de Steven Lukes que vos indiquei há uma alusão à sociedade comunista que Marx, num ímpeto com laivos de messianismo, acreditava suceder à ditadura do proletariado. Trata-se da única passagem do livro em que se descreve um sonho do principal personagem da obra, em que este dialoga com os habitantes de uma misteriosa sociedade em que de manhã se caça, à tarde pesca-se e à noite as pessoas se dedicam à actividade crítica. É uma alusão directa a uma das imagens mais famosas de Marx. E seu sentido é claro: não é fácil explicar como se alcança a sociedade comunista perfeita, justamente apresentada como um sonho, a partir da dura realidade da fase intermédia da ditadura do proletariado.
Mas do ponto de vista do pensamento de Marx (que devemos considerar uma realidade diversa do marxismo, tal como elaborado posteriormente por autores como Lénine, Trotsky e outros) nem é isto o mais importante. O mais importante é, sem dúvida, a crítica devastadora que fez do capitalismo como sistema económico, crítica essa que em muitos aspectos mantém ainda hoje a sua actualidade, ainda que as suas propostas para superar o capitalismo não possam ser aceites. Importante, ainda, é o talento literário de Marx, a força que ainda hoje sentimos pulsar na sua prosa, ainda que essa força tenha tido resultados muitas vezes fatídicos.
Nesta aula vamos considerar as principais ideias de Marx, que se reconduzem a uma teoria da história e a uma teoria da economia. No primeiro caso, temos a teoria do materialismo histórico; no segundo a teoria da mais-valia. No primeiro caso, Marx é um hegeliano, ainda que tenha invertido a teoria da história de Hegel; no segundo caso, Marx é um aristotélico, ainda que tenha atribuído ao trabalho um valor que Aristóteles não admitia. Em ambos os casos Marx falhou. Mas é isso precisamente o mais importante: o reconhecimento do falhanço de um filósofo político (no caso de Marx dificultado pela pretensão científica da sua análise e, paradoxalmente, pelo seu messianismo) constitui condição da sua admissão ao cânone ocidental de pensamento.

10. A teoria da história desenvolvida por Marx parte da consideração de que o poder produtivo humano tende a desenvolver-se ao longo da história e de que as formas da sociedade ascendem e declinam consoante favoreçam ou frustrem esse desenvolvimento. O motor desse desenvolvimento é a luta de classes (definidas em função da posição que ocupam no processo produtivo) que opõe, no seio do capitalismo, burguesia e proletariado. A teoria de Marx aponta para a substituição do capitalismo, que a certa altura constituirá um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas, pelo comunismo. Mas quais as razões para esta substituição: a baixa tendencial da taxa de lucro? O aprofundar das crises económicas? Marx não nos fornece bases sólidas para crer que o capitalismo seja substituído pelo comunismo.
A razão de ser deste falhanço explicativo e de previsão consiste no excessivo enfâse que Marx coloca no trabalho como única força produtiva e como fonte de todo o valor económico, o que é, desde logo, contrariado pela enorme importância que adquirem a ciência e a técnica com forças produtivas. Este enfâse no trabalho surge logo na noção de capitalismo no pensamento de Marx, limitada a formas específicas do emprego de capital relacionadas com a utilização do trabalho alheio em virtude de um contrato celebrado com o trabalhador formalmente «livre», excluindo assim a compreensão do conceito nos termos de um conteúdo puramente económico, presente onde quer que objectos de propriedade de alguém sejam também objectos de troca, e assim utilizados por privados com o propósito único de obter um ganho no âmbito da própria circulação da troca.

11. É também este excessivo enfâse que explica o falhanço, em última análise, da teoria económica de Marx, a teoria do valor do trabalho e, no seu âmbito, a teoria da mais valia que mostra que o lucro do capitalista depende da exploração do trabalhador. A compreensão da teoria do valor do trabalho e mais valia é facilitada pelas seguintes fórmulas: M-D-M e D-M-D’, em que M significa mercadoria e D dinheiro. A primeira significa muito simplesmente que o trabalhador fabrica uma mercadoria, vende-a por dinheiro e com este compra outras mercadorias de que precisa. As mercadorias têm aqui essencialmente um valor de uso e o dinheiro tem um mero um valor de troca. De acordo com a segunda fórmula, o capitalista investe, ou adianta dinheiro, com isso compra, transforma e vende mercadorias, venda essa de que resulta a quantidade acrescida de dinheiro recebida quando os bens produzidos são vendidos. O dinheiro adiantado para receber lucro chama-se capital, daí o capitalismo. O trabalho não constitui já o início e o fim do processo, mas apenas um meio para a obtenção do lucro do capitalista. A relação entre valor de uso e valor de troca inverte-se: as mercadorias têm sobretudo valor de troca e o dinheiro como que assume valor de uso. Com a instituição e aperfeiçoamento de um sistema bancário, a fórmula passa a ser a seguinte: D-D’. Isto é, o dinheiro é adiantado com o único objectivo de obter uma soma arescida, sem qualquer produção de mercadorias. Com excepção desta última, as fórmulas mencionadas remontam já, na sua essência, ao pensamento de Aristóteles . Marx vai mais longe ao pretender que o trabalho é a fonte de todo o valor e de todo o lucro. A verdade, porém, é que do ponto de vista económico o trabalho não tem nada de especial e acrescenta certamente menos valor que a tecnologia.
Mas é certo, no entanto, que atrás do trabalho estão as pessoas e as suas vidas. Foi Marx quem pela primeira chamou a atenção para a dependência do capitalismo, tendo em vista assegurar a sua própria existência, de uma classe de pessoas, os trabalhadores, que não tem nada para vender senão a sua força de trabalho.
É precisamente por não ter nada para vender senão a sua força de trabalho que o trabalhador é desapossado do produto do seu trabalho. O trabalho alienado reveste quatro formas: a alienação do objecto do próprio trabalho; a alienação em relação à actividade do trabalho por parte daquele que o desempenha; a alienação do homem em relação ao seu corpo e à sua essência, que consiste em dominar a natureza, e, consequentemente, dos homens uns em relação aos outros . Subjacente às duas primeiras formas de alienação está a crítica, a que se junta um elemento moral, do trabalho assalariado, com base na sua transformação do trabalho concreto em trabalho abstracto, isto é, do trabalho com valor de uso, que satisfaz necessidades visíveis e compreensíveis para quem o desempenha, em trabalho com mero valor de troca, entendido como quantidade de tempo de produção, sem tomar em consideração o seu conteúdo e consequências. Já a terceira forma de alienação assenta na ideia de que é a vida produtiva que faz a essência do homem. Por outras palavras, não apenas o trabalho é a fonte de todo o valor económico, como é também do trabalho e da vida produtiva que depende a emancipação do homem. Ora, pergunta-se: como pode do reino da necessidade surgir directamente a libertação ? Ninguém põe em causa que precisamos de trabalhar para viver; apenas se questiona que viver para trabalhar possa ser libertador. Nesta perspectiva, de ver na vida produtiva e na subjugação da natureza o ideal da vida humana, existem maiores pontos de contacto entre o capitalismo e o pensamento de Marx do que à partida seria de esperar.


3.ª lição, 9 de Outubro

12. As novas vestes do contratualismo; 13. A justiça e o contrato hipotético; 14. Três partes no argumento de Rawls; 15. As condições da posição original; 16. Os princípios da justiça escolhidos pelas partes na posição original.

12. Na primeira aula afirmei que enquanto o utilitarismo e o pensamento de Marx constituem o horizonte em que concebemos a política no século vinte, a velha tradição do contratualismo só é recuperada com o pensamento de John Rawls. E para dar uma ideia da importância que assume o pensamento de Rawls basta dizer que esse pensamento constitui o horizonte em que se move toda a filosofia política posterior.
Rawls reconhece a importância do utilitarismo e o seu domínio sobre a tradição da filosofia política, pelo menos anglo-saxónica. Em boa verdade, é contra esse domínio que Rawls recupera a tradição do contratualismo, procurando desse modo resolver alguns dos resultados contra-intuitivos a que chegam as teorias utilitaristas, designadamente quanto ao desrespeito das pessoas como fins em si mesmos, segundo a fórmula kantiana. Mas se o projecto de Rawls se ergue contra a influência dominante do utilitarismo e procura substituir-se-lhe, procurando arrimo em Kant e no contratualismo, não é menos verdade que a característica do construtivismo é largamente partilhada com esta tradição de pensamento .
Por outro lado, ao mesmo tempo que se situa em face do utilitarismo, o pensamento de Rawls é também tributário de Marx. Essa dívida revela-se no seguinte: enquanto o contratualismo clássico de autores como Hobbes, Locke e Rousseau pretendia através do contrato resolver o problema da legitimidade do poder, Rawls procura decididamente o contrato para resolver o problema da justiça social . Na verdade, para Rawls a legitimidade do poder não constituia já um problema, com a difusão do princípio democrático; o problema reside, sim, na teoria da justiça social, isto é, na igual distribuição de recursos entre os membros de uma comunidade política.

13. O problema de Rawls consiste, pois, na definição de uma sociedade justa. Como resolvê-lo? Antes de procurarmos uma resposta para esta questão segundo o pensamento de Rawls, convém esclarecer o contexto em que pode surgir uma questão de justiça. Suponhamos que no decurso de um jogo de cartas como o poker, depois da distribuição do jogo um dos jogadores (a quem calhou um mau jogo) nota que falta uma carta no baralho e pretende redistribuir o jogo (o que, por mero caso, até o favorece). Pelo contrário, um dos outros jogadores, a quem calhou uma boa distribuição, sustenta que se deve jogar a mão até ao fim. Como decidir o desacordo? A força decide sem dúvida o diferendo, mas a lei do mais forte não é uma lei justa, como todos sabemos. Uma outra possibilidade consiste em apelar às regras do jogo, que todos aceitámos quando o decidimos jogar. Pode acontecer, no entanto, que as regras do jogo não prevejam o caso. Uma terceira possibilidade consiste em recorrer a um espectador imparcial ou a um árbitro. Também este, no entanto, pode não existir ou podem os jogadores não estarem dispostos a que seja um terceiro a decidir por eles. Chegamos assim a uma outra possibilidade: o apelo a um acordo ou contrato hipotético. Poderíamos pensar que regra teríamos pensado para o caso se o tivessemos previsto de antemão, conseguindo assim abstrair dos nossos interesses especiais actuais.
É este o mecanismo a que Rawls recorre para solucionar o problema da justiça, formulando através dele os seus dois princípios da justiça. Como se percebe, recorrer a um contrato hipotético como método para resolver os problemas da justiça pressupõe que esse contrato hipotético seja celebrado em condições especiais. Caso contrário, estariamos na vida real e é precisamente a impossibilidade de solucionar os problemas da justiça na vida real, em função da posição interessada que ocupamos, que nos leva a recorrer ao método de um contrato hipotético.

14. Assim vistas as coisas, parece claro que podemos dividir o projecto de Rawls em três partes: (i) primeiro, é preciso definir as condições sob as quais tem lugar a celebração do contrato hipotético; (ii) em segundo lugar, é preciso saber qual o acordo entre as partes no contrato hipotético, isto é, quais os princípios de justiça que as partes escolheriam no âmbito de tal contrato; (iii) finalmente, é preciso mostrar que os princípios em causa são correctos.

15. Comecemos, pois, pelo primeiro aspecto, as condições do contrato hipotético, que Rawls designa como posição original. Saber quais as condições sob as quais deve ser pensado a celebração de um contrato hipotético destinado a resolver o problema da justiça social significa determinar qual o grau de conhecimento das condições da vida real, ou a respectiva ignorância, que devemos atribuir aos contraentes como condição da possibilidade de um acordo entre eles sobre a justiça social. Os problemas com que aqui nos deparamos são-nos já familiares, através do exemplo do jogo. Na vida real, os ricos querem pagar menos impostos, o que significa cortar os custos com os benefícios sociais atribuídos aos pobres. Estes últimos, como é natural, pretendem precisamente o contrário.
A resposta de Rawls para este problema compreende-se com a ajuda de um exemplo. Imaginemos que num jogo de futebol não é possível encontrar um árbitro que não seja ele próprio da mesma terra de uma das equipas em confronto. Mais do que isso, não é possível encontrar um árbitro que não seja, ele próprio, adepto de uma das equipas. Mais do que isso, ainda, não é possível encontrar um árbitro que não se encontre em difícil situação económica ou mesmo psicológica e seja, por isso imune às pressões dos dois clubes. Imaginemos, agora, que é possível dar uma droga ao árbitro que, sem efeitos secundários, tem o efeito precípuo de o fazer esquecer, mal entre em campo, as suas preferências clubísticas e a sua situação económica e social. Pois bem, tal como o árbitro drogado as partes na posição original encontram-se sob um «véu de ignorância», desconhecendo a sua posição na sociedade, o seu sexo, a sua raça. Mais importante do que isso, as partes na posição original ignoram quais os seus talentos naturais.
Mas podem as partes num contrato, assim concebidas como despidas dos seus atributos naturais, sociais e até culturais chegar a algum acordo sobre uma matéria tão complexa como os princípios da justiça? Desde logo, é necessário esclarecer que segundo Rawls as partes na posição original estariam dotadas de uma «teoria ténue do bem». No âmbito de tal teoria, as partes assumem uma preferência clara e consciente pela posse do que Rawls chama os bens primários, isto é, liberdade, oportunidades, riqueza e rendimento. Repare-se que estes bnes são desejados pelas partes independentemente do uso que lhes darão. As partes na posição original não conhecem aquilo que dará sentido às suas vidas (a paixão pela vida activa, pelo desporto, pela reflexão, etc.), mas sabem que precisarão de liberdades, oportunidades e dinheiro para dar sentido às suas vidas, seja ele qual for. Para além disso, as partes são capazes de uma concepção do bem e têm um sentido de justiça
Em segundo lugar, as partes são racionais, no sentido de uma racionaldiade estratégica, isto é, são capazes de adoptar os meios mais eficazes para atingir os seus fins.
Depois, as partes não são invejosas e são mutuamente desinteressadas.
Rawls apressa-se a esclarecer, no entanto, que as condições da posição original, isto é, as características das partes que acabam de ser descritas, não visam descrever pessoas ou um ideal de pessoa; antes deve entender-se a posição original como um mero mecanismo de representação.
É necessário, por último, ter presente que embora as partes não conheçam a sua posição económica e política e o nível de civilização e cultura da sociedade, bem como a geração a que pertencem, sabem, no entanto, que os princípios de justiça que são chamados a escolher são destinados a regular uma sociedade situada entre a escassez e a abundância. Aliás, se assim não fosse, seriam irrelevantes as considerações de justiça no âmbito da sociedade em causa.

16. Uma vez concebida a posição original, quais os princípios de justiça que seriam «construídos» em virtude do seu funcionamento? Segundo Rawls, são dois os princípios que as partes na posição original escolheriam: 1. Cada pessoa tem um direito igual ao mais extenso de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico apra as outras (Princípio da Liberdade) ; 2. As desigualdades económicas e sociais devem ser estruturadas de forma a que, simultaneamente: a) Redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados (Princípio da Diferença); b) Sejam a consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades (Princípio da Justa Igualdade de Oportunidade) .
Segundo Rawls estes princípios, embora indissociáveis, estão sujeitos a uma «prioridade lexical» , o que significa que o Princípio da Liberdade tem prioridade sobre os outros dois e o Princípio da Justa Igualdade de Oportunidade tem prioridade sobre o Princípio da Diferença. Para compreender esta ordenação de prioridades é necessário ter presentes quais as liberdades e direitos especificados por cada um dos princípios, por um lado, e, por outro, o modo como essas liberdades se relacionam com a igualdade.
Quanto ao Princípio da Liberdade, as liberdades e direitos por ele especificadas correspondem grosso modo aos direitos e liberdades e garantias previstos nos artigos 24.º a 38.º, 41.º a 46.º, e 48.º a 51.º da nossa Constituição. O Princípio da Justa Oportunidade parece referir-se, por exemplo, ao artigo 47.º da Constituição. O Princípio da Diferença especifica direitos económicos e sociais ou, por outras palavras, possibilidades efectivas de emprego ou prestações sociais. Rawls considera, aliás, que o primeiro princípio cobre os «fundamentos constitucionais» («constitutional essentials»), essencialmente correspondentes aos princípios constitucionais que podem considerar-se como limites materiais não expressos de revisão constitucional. Do mesmo modo, também o princípio da oportunidade, na formulação que recebe no citado artigo 47.º da nossa Constituição, e um rendimento minímo social que satisfaça as necessidades básicas de todos os cidadãos podem ser considerados como «fundamentos constitucionais». Simplesmente, enquanto todo o conteúdo do primeiro princípio, ou Princípio da Liberdade, se integra nos «fundamentos constitucionais», uma justa igualdade de oportunidades, em sentido material, e as exigências distributivas que excedem um mínimo social não são consideradas como tal .
A prioridade estabelecida entre os princípios resulta da sua maior ou menos resistência à introdução de discriminações ou desigualdades no seu seio. Assim, o Princípio da Liberdade tem uma tolerância zero à desigualdade; o Princípio da Justa Oportunidade pode admitir discriminações positivas a favor dos mais desfavorecidos; o Princípio da Diferença admite diferenças de rendimento se assim se incentivar os mais produtivos a trabalhar mais, sendo assim o seu trabalho capaz de beneficiar todos os outros, quer directamente, através de criação de novos empregos e da criação de novas oportunidades de consumo, quer indirectamente, através do aumento dos impostos
Aqui interessa-nos especialmente o Princípio da Diferença. A sua ideia básica é a seguinte: se uma desigualdade for necessária para tornar melhor a situação de todos e, em particular, se essa desigualdade melhorar a situação dos mais desfavorecidos, comparando-a com a situação em que estes se encontrariam caso a desigualdade não ocorresse, então esta deve ser permitida. Dito de outro modo, isto é, de um modo em que o Princípio da Diferença surge ainda mais claramente como uma reformulação do critério de Pareto, uma distribuição considera-se justificada se é vantajosa para todos, especialmente os mais desfavorecidos, mesmo se for uma distribuição desigual. O Princípio da Diferença é, pois, um princípio redistributivo prudente, segundo alguns excessivamente prudente, que encara a distribuição de recursos económicos não apenas como algo que se justifica em função de considerações próprias da justiça, mas também em função da eficiência económica e da estabilidade social .
Mas porque razão as partes na posição original escolheriam estes princípios e não outros? Desde logo, admitindo um nível moderado de prosperidade, é razoável supor que as partes escolheriam o Princípio da Liberdade e o Princípio da Justa Oportunidade e aprovariam ainda a sua prioridade sobre o Princípio da Diferença. Apenas em condições de grande escassez de recursos as pessoas estariam disponíveis a trocar a medida da sua liberdade por uma quantidade determinada de recursos materiais. Mas porque razão escolher o Princípio da Diferença? A resposta a esta questão impõe que a reconheçamos como uma questão de escolha racional em condições de incerteza. E isso impõe que averiguemos quais os princípios de escolha racional disponíveis numa situação de incerteza como a da posição original.
Podemos pensar em três princípios de escolha racional em condições de incerteza: a maximização da utilidade esperada; a maximização do mínimo, ou princípio «maximin», que nos leva a procurar assegurar que o pior resultado possível de uma escolha seja o melhor em comparação com os piores resultados das outras escolhas ; a maximização do máximo, ou princípio «maximax», de acordo com o qual devemos escolher sempre o melhor resultado possível, ainda que a sua verificação seja improvável. Para ilustrar este princípio imaginemos um jogo, semelhante a alguns concursos televisivos, em que ao concorrente são dadas três hipóteses. De acordo com a primeira hipótese, o participante pode receber imediatamente 50 e abandonar o jogo. Nos termos da segunda hipótese, o participante pode continuar no jogo e responder a três perguntas: se falhar à primeira é excluído sem ganhar nada, ganhando 60 se acertar; se acertar à segunda, ganha mais 60, sendo excluído se falhar, caso em que mantém os 60 que ganhou anteriormente; se acertar à terceira ganha mais 60, perfazendo um total de 180, enquanto que se falhar mantém os anteriores 100 que já havia ganho e é excluído. Finalmente, na terceira hipótese, é feita uma só pergunta ao participante, de maior complexidade do que as anteriores, recebendo 200 se ganhar e ficando sem nada se perder. Não temos dúvidas em afirmar que, pelo menos em condições médias de sabedoria sobre os temas objecto das perguntas, será racional para o participante excluir a terceira hipótese. Escolher a terceira hipótese significa adoptar o princípio «maximax», um princípio de escolha para optimistas incorrigíveis. Mas como escolher entre as duas outras hipóteses? Parece claro que a primeira hipótese, em obediência ao princípio «maximin», se afigura como excessivamente pessimista e deve ser arredada por todo o que decide participar no jogo. A escolha da segunda hipótese, em obediência ao princípio da maximização da utilidade esperada, surge assim como a opção mais racional para quem decide entrar no jogo e supostamente participar nele no maior período de tempo possível, maximizando assim as utilidades esperadas.
Transpunhamos agora estas opções, estes princípios de escolha racional, para o plano da posição original. A que escolhas conduzem cada um deles? Se orientarmos a nossa escolha pela regra maximax tenderemos a privilegiar situações em que possamos obter um ganho elevado embora improvável, ou seja tenderemos a adoptar um sistema capitalista puro. As mesmas razões que nos levaram a excluir este princípio de escolha no caso do concurso televisivo, levam-nos também, até por maioria de razão, a exclui-lo agora. A verdadeira opção faz-se entre os outros dois princípios. No caso do concurso televisivo, a opção pela escolha em obediência ao princípio da maximização das utilidades esperadas assentava no sentido que fazia optar por permanecer no concurso pelo maior período de tempo possível. Numa série de decisões a longo prazo, mais ou menos independentes umas das outras, faz mais sentido actuar com o objectivo de maximizar as expectativas do que optar por qualquer outro curso de acção. Mas na posição original existe uma única decisão que, uma vez tomada, não admite um voltar atrás. Neste contexto e nestas circunstâncias, os princípios da escolha racional alternativos à regra «maximin» envolvem demasiados riscos. Rawls admite que quer o princípio «maximin», quer o princípio da maximização das utilidades esperadas, poderiam conduzir à adopção de um esquema institucional envolvendo a fixação de um mínimo social, mas só no âmbito do primeiro essa fixação seria efectuada sem arbitrariedade. Assim, a adopção de um princípio «maximin» como critério de escolha racional nas condições de incerteza da posição original favorece a escolha, nesse âmbito, do Princípio da Diferença.
Segundo Rawls, os dois princípios da justiça, sem porem em causa a eficiência própria de uma economia de mercado, seriam mais adequadamente realizados pelas instituições próprias daquele que designamos como o Estado Social ou, como Rawls prefere, as instituições de uma democracia de proprietários. As instituições que permitiriam alcançar e manter um tal regime seriam, segundo Rawls, a tributação das heranças e doações numa base progressiva, um imposto sobre o consumo a uma taxa marginal constante, a atribuição de um mínimo social, cobrindo pelo menos as necessidades sociais básicas, e um sistema de educação igualitário .


4.ª lição, 10 de Outubro

17. Crítica dos dois princípios da justiça; 18. A transformação pluralista de Rawls.

17. Como devemos avaliar o argumento de Rawls? Não é certamente por resultarem de um contrato hipotético que os dois princípios da justiça são correctos. Pode dizer-se que o resultado da deliberação das partes na posição original é justo porque todos os aspectos da posição original são, também eles, justos. Mas é precisamente aqui que começam os problemas. Rawls alcança a imparcialidade das partes na posição original fazendo-as ignorantes. Na verdade, as pessoas são caracterizadas na posição original de forma a permitir que alcancem entre elas um certo acordo. Se isto é assim, de nada serve dizer que a caracterização das partes não corresponde a uma concepção de pessoa que se pretenda defender. A caraterização das partes na posição original revela, com efeito, um certo entendimento sobre aquilo que se considera relevante, o privilegiar de um certo tipo de pessoas, e das sociedades próprias desse tipo, em detrimento de outros tipos de sociedades e pessoas. Como se viu, Rawls, para permitir que as partes na posição original façam escolhas, tem de atribuir-lhes um concepção do bem, ainda que uma teoria débil do bem, daquilo que é valioso. Rawls assume que as partes na posição original querem bens primários: liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as «bases sociais do auto-respeito». Ora, estes bens são particularmente adequados para a vida nas modernas economias capitalistas, baseadas no lucro. Podemos assim dizer que a posição original está de antemão pensada a favor de uma organização da sociedade individualista e baseada no comércio, em detrimento de outras formas de organização da sociedade e ignorando a importância que os bens comunitários e não comerciais poderiam ter na vida das pessoas.
Um segundo aspecto prende-se com a circunstâncias de as partes na posição original ignorarem as suas características naturais e sociais. Segundo Rawls, ninguém merece a sua força, inteligência, boa aparência ou nascer de pais ricos e cultivados. Assim, os talentos naturais e sociais das pessoas são entendidos como bens comuns. Mas isto não faz sentido: dificilmente se poderá aceitar a ideia de que não merecemos beneficiar do uso que damos aos nossos talentos. E, no entanto, parece ser isso que Rawls, na prática, é levado a sustentar: mesmo a capacidade para fazer um esforço, ou de lutar por um objectivo, são de tal modo influenciadas por factores sociais e naturais que escapam ao nosso controlo que nunca poderemos merecer os resultados desses esforços ou lutas.
Para além do que acaba de ser dito, há também quem sustente que os dois princípios da justiça são inconsistentes. Por um lado, podemos entender que o Princípio da Liberdade, que nos manda igualizar a liberdade, deveria também conduzir a uma distribuição rigorosamente igualitária dos recursos materiais, uma vez que os ricos podem fazer mais que os pobres e, logo, dispõem de mais liberdade.
Em segundo lugar, e em sentido exactamente oposto, podemos afirmar que respeitar a liberdade significa que não podemos impor quaisquer restrições à propriedade individual. Limitar a aquisição de propriedade ou o respectivo uso significa sempre reduzir a liberdade individual. De acordo com este entendimento, é ilegítima toda a criação de impostos que não vise a manutenção do Estado nas suas funções básicas de segurança, mas efectuar transferências dos mais ricos para os mais pobres. A primeira acusação de inconsistência vem, por assim dizer, da esquerda. A segunda acusação promana da direita, ou pelo menos da direita libertária, e foi elaborada de modo mais desenvolvido por Robert Nozick, cujo pensamento abordaremos mais adiante. Podemos sem dúvida afirmar que a posição política de Rawls se desenvolve ao centro, mas, mais importante do que isso, devemos dizer que as acusações de inconsistência são incorrectas. A primeira joga com a velha distinção entre direitos e liberdades em sentido formal e em sentido material ou efectivo. Mas a essa distinção deve preferir-se uma outra, que distingue entre graus de praticabilidade em matéria de assegurar liberdades iguais. Nessa medida, é difícil pôr em causa a prioridade estabelecida por Rawls. A crítica libertária será adiante abordada, mas desde já se pode adiantar que um dos seus principais problemas consiste na respectiva dependência de um sistema genealógico de justificação da propriedade que esbarra na dificuldade de articular um princípio de justiça na aquisição inicial de um bem externo.

18. Até este momento, a análise do pensamento de Rawls centrou-se essencialmente na sua célebre obra Uma Teoria da Justiça, de 1971. As ideia de Rawls não se resumem a este livro. Num conjunto de artigos posteriores, culminando no livro Liberalismo Político, de 1993, Rawls procura afastar aquilo que considera serem as pretensões excessivamente universalistas da teoria exposta naquela primeira obra.
Nesta segunda fase do seu pensamento, Rawls assume como ponto de partida o pluralismo das democracias constitucionais modernas, pluralismo nos planos social, cultural, filosófico e religioso. Pensemos numa grande capital europeia: todos nós temos a experiência de aí encontrarmos pessoas pertencentes a distintas raças, confissões e formas de vida. A questão que Rawls explora é a das consequências deste pluralismo na concepção da justiça.
Convém começar por notar que a teoria da justiça defendida por Rawls mantém-se, no essencial, inalterada. Tal teoria permanece, como efeitos, estruturada em torno dos dois princípios da justiça. O que muda é a justificação da teoria ou o estatuto dos respectivos princípios.
Na primeira fase, Rawls acredita que uma teoria da justiça deve: (i) ter uma plausibilidade filosófica independente, no sentido de se sustentar em princípios e argumentos racionais; (ii) fornecer respostas práticas aos problemas e aos conflitos cuja existência é a própria razão de ser de tais teorias. Mas, uma vez levantadas, as teorias em causa aplicam-se a todos os tipos de objectos, desde a conduta dos indivíduos, a organização da sociedade, às relações internacionais. Nesta medida, as doutrinas em causa são doutrinas abrangentes. Ora, Rawls acredita agora, isto é, na segunda fase do seu pensamento, que os escritos anteriores não levavam suficientemente em linha de conta aquilo que a chama agora o «facto do pluralismo razoável», isto é, o facto de que nas condições de liberade de consciência e de expressão que encontramos numa democracia liberal se garante ou propicia que aí encontremos uma pluralidade de concepções razoáveis do bem humano. Qual o significado destas alterações? Primeiramente, Rawls entendia que em condições propícias ao juízo moral (ausência de factores como parcialidade, falta de informação, emoções, etc.) as divergências morais tenderiam a desaparecer. Depois, passa a sustentar que essas divergências não deixam de existir mesmo em condições propícias ao juízo moral. Tais divergências são agora entendidas como um resultado normal do exercício da razão humana em condições de liberdade de consciência e de expressão.
Neste contexto, a plausibilidade de uma ideia da justiça não vai já buscar-se apenas à argumentação com base em princípios ou juízos morais justificados, mas também à cultura política das democracias ocidentais, aos seus textos constitucionais e à respectiva interpretação. A justiça deixa de ter uma pretensão universalista e passa a pretender aplicar-se apenas às sociedades cujo modo de organização corresponde já, no essencial, aos princípios da democracia liberal.
Por outro lado, o critério da capacidade da ideia de justiça em responder aos conflitos sociais adquire uma autonomia própria, no sentido em que é possível discordar de uma teoria que seja plausível de um ponto de vista filosófico. Para fazer convergir os dois critérios de justificação (capacidade de resposta e plausbilidade teórica), Rawls desenvolve a ideia de «consenso de sobreposição» entre as diferentes concepções do bem em torno de uma concepção única. A ideia de Rawls é agora a de que é possível conceber os dois princípios da justiça como um denominador comum de diferentes concepções razoáveis do bem. Deste modo, os dois princípios da justiça são agora concebidos como uma concepção política da justiça, adoptada no âmbito de uma razão pública que seria neutra em relação a diferentes concepções razoáveis do bem.
A concepção política de justiça é definida por Rawls segundo três critérios: (i) deve ser formulada para um objecto específico: a estrutura de base da sociedade; (ii) é apresentada independentemente de todas as doutrinas abrangentes, como o utilitarismo, os dois princípios da justiça segundo a doutrina exposta em Uma Teoria da Justiça, a teoria moral de Kant, ou o conjunto de doutrinas defendidas por uma religião; (iii) é elaborada em termos de ideias políticas fundamentais consideradas como implícitas na cultura pública de uma sociedade democrática .
Várias críticas têm sido apontadas a esta transformação do pensamento de Rawls. Diversos autores consideram, antes de mais, que Rawls fez da sua própria teoria uma forma de justificação pragmática que põe em em causa a índole da especulação filosófica no âmbito da política. Por outro lado, invoca-se que é vão o projecto de encontrar numa cultura política de qualquer democracia os critérios morais de uma teoria da democracia. Podemos dizer, pelo menos, que Rawls não consegue certamente acertar na cultura política do seu país. Mais facilmente poderíamos afirmar que acerta na cultura política expressa por uma Constituição como a do nosso País. Finalmente, diz-se que o consenso de sobreposição é circular na medida em que define o que é razoável em termos de uma teoria dos dois princípios da justiça.


5.ª lição, 16 de Outubro

19. Igualdade e responsabilidade individual; 20. O liberalismo igualitário de Ronald Dworkin.

19. Como atrás se sugeriu, o princípio da diferença não estabelece qualquer distinção entre desigualdades escolhidas (o rendimento de duas pessoas diferentes, inicialmente aproximado, diferencia-se progressivamente em razão dos gostos simples de uma e extravagantes de outra) e impostas (os talentos naturais e a posição social e económica de cada um). E isto apesar de Rawls salientar a importância da nossa «capacidade de assumir responsabilidade pelos nossos objectivos» . Poderia, assim, parecer necessário dar uma expressão mais adequada, na teoria da justiça, a esta diferença entre a posição de desigualdade em que nos encontramos resultante de factores a que somos alheios e a posição de desigualdade em que caímos por motivos ligados à nossa vontade. É este o ponto de partida da análise de Ronald Dworkin.
Diz Dworkin,
«Rawls define o grupo mais desfavorecido apenas em termos dos recursos que os seus membros têm, sem discriminar entre aqueles que se encontram em má situação porque cairam doentes ou tiveram má sorte e aqueles que se encontram em má situação porque escolheram não trabalhar tão arduamente como outros ou simplesmente escolheram não trabalhar. Assim a sua proposta não faz depender de forma alguma o destino de um membro desta classe de mais desfavorecidos das suas escolhas pessoais ou responsabilidade; se uma pessoa se encontra nesta classe receberá os benefícios redistributivos que forem necessários para fazer os membros dessa classe tão ricos quanto possam ser, sejam quais forem as escolhas que façam sobre o trabalho. Poderia melhorar a posição de conjunto da classe mais desfavorecida a circunstância de o Estado pagar benefícios não apenas àqueles que não podem trabalhar, mas também àqueles que o podem fazer e, em vez disso, preferem rebentar ondas na praia. Assim, também o esquema de Rawls corta a conexão entre escolha pessoal e destino pessoal que é exigido pelo princípio da responsabilidade pessoal.»
Partindo desta observação, podemos encarar o pensamento político de Dworkin como uma forma de fazer avançar o projecto filosófico, antes esboçado por Rawls, do liberalismo igualitário.

20. Com o propósito de melhor compreender o pensamento de Dworkin iremos abordar nele os seguintes aspectos, mesmo correndo o risco de alguma simplificação : (i) os princípios do individualismo ético e a igualdade; (ii) o teste da inveja; (iii) um esquema imaginário de seguros sociais; (iv) um modelo real de economia igualitária; (v) a conexão entre liberdade e igualdade.
(i) O ponto de partida da análise de Dworkin consiste em apurar como conceber a igualdade, entendida como uma exigência directa daquele que Dworkin considera ser o primeiro princípio do individualismo ético, isto é, o princípio segundo o qual cada vida humana tem um valor objectivo especial e, consequentemente, não é possível atribuir mais valor a uma do que a outra. Ao mesmo tempo, o modo de estruturar a igualdade não pode deixar de lado o segundo princípio do individualismo ético, o princípio da responsabilidade pessoal de cada um pela realização da sua própria vida. Estes princípios são individualistas no sentido formal de que atribuem valor e impõem responsabilidade às pessoas individuais consideradas uma a uma .
Os governos que aceitam o primeiro princípio do invidualismo ético – que Dworkin designa como o princípio do valor intrínseco – devem tratar com igual preocupação todas as pessoas, o que significa não apenas uma atitude, mas a articulação de instituições concretas que visem também a realização de igualdade económica. Ora, como entender esta última? Devem as sociedades e os governos ter o objectivo de fazer as pessoas iguais no seu bem-estar, isto é, iguais no seu prazer, felicidade ou outras formas de definição do seu bem-estar? Ou devem, pelo contrário, torná-las iguais nos recursos que controlam?
A tese de Dworkin é a de que a igualdade de bem-estar deve ser preterida a favor de uma igualdade de recursos. A principal razão para o efeito é simples de entender, se tivermos presentes os princípios do individualismo ético: uma comunidade que pretenda fazer as pessoas iguais no seu bem-estar precisa de uma identificação colectiva do que é o bem-estar e qualquer identificação colectiva do bem-estar viola os dois princípios do individualismo ético. Viola o princípio do valor intrínseco, isto é, o princípio segundo o qual cada vida tem uma valor especial, pois este significa que cada pessoa tem diferentes ambições e ideais para a sua vida, essencialmente incompatíveis com uma definição colectiva do bem-estar. Viola também o princípio da responsabilidade pessoal, de acordo com o qual a decisão sobre o bem-estar de cada um cabe a cada qual.
(ii) O problema não é, pois, saber o que é o bem-estar, mas saber como definir a justa parte de cada um nos recursos existentes numa sociedade. Uma resposta possível para esta questão consiste em dizer que todas as pessoas deveriam ter um nível idêntico de recursos, independentemente daquilo que venham a decidir fazer com tais recursos. No entanto, segundo Dworkin, «aqueles que escolhem ser ociosos, ou escrever filosofia em vez de produzir aquilo que os outros valorizam mais e pelo qual estão dispostos a pagar mais, deveriam ter menos rendimento por essa razão» . A verdadeira igualdade exige assim que o nível de recursos de cada um seja sensível às escolhas feitas pela pessoa em causa.
Dworkin defende assim que uma distribuição igualitária de recursos não atribui a cada um um montante igual de recursos, mas antes um montante de recursos distribuído de tal forma que cada um não inveje os recursos que os outros têm. Uma pessoa inveja os recursos de outra quando prefere os recursos desta última, bem como o padrão de trabalho e consumo que os produz, aos seus próprios recursos e escolhas.
Uma distribuição igualitária de recursos não se limita, pois, a distribuir um montante igual de recursos por todos. Ao mesmo tempo, essa distribuição, de acordo com o teste da inveja, pode ser alcançada em casos em que o bem-estar das pessoas é diferente. Se os projectos e ambições de uma pessoa são mais fáceis de satisfazer do que os de outra, então a primeira alcança um maior nível de bem-estar do que a segunda com a mesma quantidade de recursos.
(iii) Esta concepção de igualdade de recursos pode ser ilustrada através de uma situação imaginária. Imagine-se que um grupo de náufragos chega a uma ilha deserta com recursos abundantes de muitas espécies. Como proceder a uma distribuição igualitária dos mesmos? Admitindo a verificação dos pressupostos que já discutiremos, o teste da inveja seria satisfeito e uma distribuição igualitária assegurada se todos os recursos fossem leiloados e todos os habitantes da ilha possuissem um montante igual de moeda específica, como as conchas aí existentes, para licitar. Se o leilão fosse repetido até existirem lotes que alguém estivesse disposto a licitar, o teste da inveja seria satisfeito. Em tal caso, ninguém preferiria os recursos que uma outra pessoa tivesse assegurado no leilão, pois se assim fosse essa pessoa teria licitado esses bens em vez dos próprios. Uma vez terminado o leilão, as pessoas seriam livres de produzir, trocar, investir e consumir segundo a sua vontade com base no montante de recursos atribuído segundo este procedimento à prova de inveja.
A história imaginária acabada de contar apenas conduziria, no entanto, a tal resultado verificados os pressupostos a que há pouco se deixaram em suspenso. Trata-se da igualdade, já não dos recursos distribuídos, mas dos recursos das próprias pessoas a quem eles seriam distribuídos. Tais recursos pessoais (por oposição aos recursos impessoais objecto do leilão) consistem nas capacidades físicas e mentais das pessoas, desde a saúde aos talentos. Ora, se no decurso do leilão os recursos pessoais forem desiguais o teste da inveja não será satisfeito. Mais do que os recursos impessoais licitados por outra pessoa, eu invejarei, com toda a probabilidade, os seus recursos pessoais. Na verdade, uma distribuição igualitária inicial de recursos impessoais será rapidamente superada numa situação de desigualdade de recursos pessoais. Para além disso, essa mesma distribuição igualitária inicial será também dramaticamente afectada pela má sorte de cada um, isto é a má sorte em relação a riscos que não podiam ter sido antecipados, não em relação a riscos que se tenha decidido correr.
A história imaginada teria, pois, de ser revista, de forma a incluir entre os recursos disponíveis no leilão apólices de seguro contra um conjunto de riscos, desde acidentes, doença, a baixo rendimento, em troca de prémios cujos montantes seriam definidos no âmbito do leilão, sendo que tal definição estaria apenas sujeita à exigência de que o prémio a pagar por uma qualquer cobertura seria baseado no risco actuarial médio e não individual.
(iv) A tentativa de modelar uma economia igualitária no mundo real sobre a história imaginária contada teria, pois, de considerar a introdução de esquemas compensatórios capazes de reparar, na medida do possível, desigualdades nas capacidades pessoais e na sorte bruta.
Em situações do mundo real, Dworkin propõe um sistema de tributação e redistribuição, quer em fundos, quer em oportunidades de emprego, quer ainda em recursos como assistência médica. Neste contexto, podemos perguntar que tipo de seguros as pessoas (com recursos iguais e com os conhecimentos e atitudes semelhantes àqueles que tem a maioria das pessoas de comunidades como a nossa) estariam dispostas a adquirir. Embora não possamos responder a uma tal questão de forma precisa, podemos pelo menos indicar respostas aproximadas que serviriam de base a um sistema de impostos progressivo: os impostos lançados seriam equivalentes aos prémios que, segundo é plausível presumir, seriam pagos. Assim a redistribuição aos doentes, desempregados e pobres seria igual ao total da cobertura de seguros que tais prémios pagariam. Uma tributação redistributiva poderia assim reduzir a desigualdade de recursos, ainda que não lograsse estabelecer o nível de igualdade alcançado na ilha imaginária.
O esquema dos seguros imaginários serve a Dworkin para modelar as políticas redistributivas da vida real. Assim, pergunta-se que seguros de saúde faria sentido as pessoas comprarem no início das suas vidas profissionais. Parece claro (segundo Dworkin) que os seguros em causa não incluiriam a previsão de cuidados intensos nos últimos meses das suas vidas. Seria mais racional gastar as elevadas somas exigidas por tal seguro em educação ou recreação. Do mesmo modo, quanto a saber se é correcto fazer depender a atribuição de um subsídio de desemprego da aceitação do trabalho disponível e de programas de formação, Dworkin equaciona uma questão semelhante. Suponhamos que no início das suas vidas profissionais são propostas às pessoas duas apólices de seguro de desemprego: uma contendo o requisito de sujeição ao trabalho disponível, a outra sem o mesmo requisito. Segundo Dworkin, mesmo que houvesse uma apólice com a segunda cobertura, o seu custo seria tão elevado que ninguém estaria disposto a pagá-lo .


6.ª lição, 17 de Outubro

20. Oliberalismo igualitário de Dworkin: continuação; 21. Críticas do liberalismo igualitário; 22. Robert Nozick e o libertarismo: a crítica da justiça distributiva.

(v) Até agora falamos essencialmente de igualdade, mas se esta parece ser tida em vista pelo primeiro princípio do individualismo ético, já o respectivo segundo princípio parece apelar à liberdade. A liberdade é especificada pelo princípio da responsabilidade pessoal porque não pode haver responsabilidade se não houver liberdade de escolha.
Quando é que a minha liberdade é posta em causa? Quando a lei me proíbe de fazer aquilo que quero? Ou quando a lei me priva das oportunidades, ou possibilidades de escolha, para fazer aquilo que quero? Por outras palavras, a liberdade é um valor que protege a possibilidade de escolha ou, antes disso, a oportunidade de fazer escolhas? Dito ainda de outro modo: a liberdade é violada quando a lei restringe os usos da propriedade que um indivíduo possui, ou quando a lei altera os esquema de propriedade actualmente existentes que permitem esses mesmos usos?
A primeira opção dá-nos um conceito meramente formal de liberdade, no sentido em que de acordo com este conceito o respeito da liberdade faz-se à custa da igualdade. De acordo com este conceito, posso ser livre para fazer muitas coisas, mas não tenho quaisquer recursos exigidos para as fazer. A segunda opção tem o defeito oposto, na medida em que realiza a igualdade à custa da liberdade. Mas existe ainda uma terceira opção de acordo com a qual a interpretação da liberdade depende da prévia interpretação da igualdade: as proibições do uso da propriedade ou alterações do esquema de propriedade apenas violam a liberdade se limitarem a parte justa dos recursos de cada um. Não se trata de fazer depender a liberdade duma concepção prévia de justa distribuição prevalecente numa determinada comunidade, mas de a fazer depender da melhor teoria da justa distribuição. Ao mesmo tempo, deve afastar-se a crítica segundo a qual é circular trazer a justiça distributiva e, por isso, a igualdade para a própria formulação do que seja a liberdade, uma vez que isso surge inevitavelmente no processo de interpretar a liberdade . Neste sentido, a liberdade pode ser definida como o direito de fazermos o que quisermos com os recursos que são nossos de acordo com um critério de justa repartição . São, assim, aceitáveis, em princípio, as restrições ou limitações da liberdade com base em justificações distributivas.
O mesmo se passa com as justificações que apelam ao valor intrínseco de de um objecto impessoal ou estado de coisas, isto é justificações valorativas impessoais (como as restrições aos madeireiros em função da protecção da floresta). Já não serão aceitáveis as restrições da liberdade com base em justificações valorativas pessoais, isto é, as justificações que apelam ou pressupõem uma teoria sobre quais os tipos de vida que são intrinsecamente bons ou maus para as pessoas que levam essas vidas. Assim, assenta numa justificação valorativa pessoal a proibição da sodomia com base na suposta imoralidade ou bestialidade da prática sexual em causa .

21. Deixamos, por agora, suspensa a crítica ao argumento de Dworkin de fazer depender a liberdade da igualdade, ou de fazer prevalecer esta última sobre a primeira. O que agora se afigura relevante é que as críticas dirigidas ao pensamento de Rawls valem, também, para o pensamento de Dworkin ou, em geral, para o liberalismo igualitário. As teorias de ambos os autores parecem prometer mais do que aquilo que chegam efectivamente a dar. Aos ideais igualitários, por vezes radicais, na respectiva formulação correspondem propostas reais realmente modestas e vagas. Não é, assim, de admirar que as teorias do liberalismo igualitário sejam objecto de críticas simultaneamente provinda da direita e da esquerda. No primeiro caso, porque dão demasiada expressão à ideia de distribuição igualitária de recursos; no segundo, porque não retiram dessa ideia todas as consequeências que seria desejável.
Mas uma outra crítica se afigura possível. Não se trata já de sustentar que igualdade foi longe de mais, ou ficou aquém do que seria desejável e possível, mas a ideia de que é possível ao liberal igualitário, segundo as concepções defendidas por Ralws e Dworkin, ser ao mesmo tempo igualitário e rico, e não ter qualquer preocupação com o estatuto moral da sua riqueza.
Por outras palavras, se a questão da distribuição da riqueza é tratada ex ante, isto é, aquando da instituição de uma sociedade justa, ou o mais próximo possível desse ideal, não são depois levantados quaisquer constrangimentos à actuação egoísta dos agentes económicos. Uma vez terminada a deliberação das partes na posição original ou chegado o leilão ao seu termo, as pessoas são livres de produzir, trocar, investir e consumir segundo a sua vontade com base no montante de recursos que lhes caiba. Por outro lado, a prioridade da igualdade sobre a liberdade no pensamento de Dworkin esconde, na realidade, um pendor economicista do autor. Já anteriormente se indicou uma frase que indicia bem este pendor: «aqueles que escolhem ser ociosos, ou escrever filosofia em vez de produzir aquilo que os outros valorizam mais e pelo qual estão dispostos a pagar mais, deveriam ter menos rendimento por essa razão». Esta frase revela bem que as teses sobre a justiça de Dworkin não só não desafiam a «civilização da produtividade» , como até a pressupõem.
O mesmo, como se viu, passa-se também em alguma medida com o modo como Rawls caracteriza as partes na posição original. Mas tal como Dworkin pretende ir mais longe do que Rawls na atribuição de relevo à responsabilidade individual no seio da teoria da justiça é também verdade que vai mais longe do que este no alinhamento com a «civilização da produtividade». A compreensão do que acaba de ser dito deve partir da seguinte questão: porque razão não se limita Dworkin a admitir que o papel da igualdade na distribuição de recursos acaba, na sua ilha imaginária, com a atribuição do mesmo número de conchas a todos os náufragos? A resposta é fácil de compreender: essa atribuição seria vã. Hegel explicou isto mesmo em termos claros: «A igualdade que se poderia querer introduzir em relação à distribuição dos bens seria, em qualquer caso, destruída novamente num curto espaço de tempo, uma vez que todos os recursos dependem da diligência. Aquilo que não é praticável não deve também ser posto em prática. Pois se os homens são certamente iguais, eles são-no apenas enquanto pessoas, quer dizer em relação à fonte das suas posses. Deste modo, todos deveriam ter propriedade. Se se quiser falar de igualdade, é esta igualdade que deve ser tida em vista. Mas esta igualdade é distinta da determinação da particularidade, da questão de quanto eu possuo. Aqui é falsa a afirmação segundo a qual a justiça exige que seja igual a propriedade de cada um, pois ela apenas exige que cada um deve ter propriedade. A particularidade é onde encontra lugar a desigualdade e aí seria injusta a igualdade. É perfeitamente correcto afirmar que os homens frequentemente obtêm o gozo dos bens dos outros; mas é precisamente isto que é contrário ao direito, uma vez que este é o que permanece indiferente à particularidade» . Só uma distribuição que “internalize” a diligência poderá persistir. É ao privilegiar assim a diligência, isto é, a eficiência económica, que Dworkin mostra a sua parcialidade por uma «civilização da produtividade».
De resto, esta parcialidade revela-se não apenas quando esteja em causa a definição dos limites da liberdade na esfera económica, mas também a sua definição desses mesmos limites no plano da cultura moral. Também aqui devem ser abandonadas quaisquer projectos de definições colecticas em prol do «processo orgânico da decisão individual». Ou seja, das «decisões discretas das pessoas individuais sobre o que produzir e o que comprar e a que preço, sobre o que ler e dizer, o que vestir, que música ouvir e a que deus, se é que a algum, orar» . O mercado reina, ou, pelo menos, reina um processo de decisão que tem no mercado a única expressão reconhecível.
A conclusão impõe-se: Dowrkin não leva mais longe o projecto de Rawls, ante leva longe de mais o projecto da justiça igualitária que em Rawls surge ainda limitado pelo papel central quue aí desempenha a liberdade.

22. Se o pensamento de Dworkin visa retomar e reforçar o projecto de Rawls sobre a justiça distributiva, Robert Nozick desenvolve as suas ideias em oposição assumida a Rawls. Segundo Nozick, o respeito pela liberdade, a que afinal se reconduz o primeiro dos dois princípios da justiça de Rawls, exclui não só o Princípio da Diferença como qualquer princípio distributivo.
Para compreender a construção de Nozick, é necessário começar por fazer algumas distinções. Assim, Nozick distingue entre teorias da justiça «históricas» e «finais». Estas últimas pressupõem que podemos afirmar que uma situação é justa olhando simplesmente para a respectiva estrutura. Assim, se considerarmos que uma distribuição é justa simplesmente com base na descrição da respectiva estrutura, adoptaremos uma teoria final. Um exemplo: se fosse possível termos consciência da distribuição da riqueza no nosso País a nossa conclusão sobre a sua justiça ou injustiça, com base na descrição efectuada, seria enquadrada numa teoria final. Pelo contrário, se pensarmos que é necessário obter mais informação sobre como as pessoas obtiveram os seus recursos, ou sobre os critérios com base nos quais os recursos foram atribuídos, então adoptaremos uma teoria histórica da justiça.
Entre estas últimas, podemos ainda distinguir entre teorias padronizadas e não padronizadas. As primeiras dizem-nos que a distribuição deve ser feita de acordo com um padrão: a cada um segundo a sua necessidade, segundo o seu mérito, etc. As teorias não padronizadas procedem de outro modo: a essência da distribuição justa deriva de as pessoas adquirirem os seus bens através de procedimentos legítimos. Segundo Nozick, a sua teoria é não-padronizada. Todas as outras são, ou teorias finais ou, mais comummente, teorias históricas padronizadas. Toda elas podem ser derrotadas através de um único exemplo.
Nozick pede-nos que imaginemos uma sociedade regulada pelo nosso padrão favorito de justiça, seja ele qual for. A título de exemplo, admitamos que os recursos são distribuídos nessa sociedade de acordo com o princípio «a cada um segundo as suas necessidades». Imaginemos agora que nessa mesma sociedade um certo jogador de basquetebol – Nozick chama-lhe Wilt Chamberlain, chegou a um acordo com a sua equipa, de acordo com o qual recebe 25 cêntimos por cada espectador que assista a um jogo realizado em casa. No nosso contexto, o exemplo seria certamente mais expressivo se o acordo fosse estabelecido entre um jogador de futebol e a sua equipa. Em tais exemplos, os espectadores não deixariam, naturalmente, de pagar os bilhetes para assistir aos jogos nos termos usuais. Imagine-se agora que no fim da temporada um milhão de pessoas largaram os seus 25 cêntimos para os bolsos do jogador. O jogador arrecadou € 250.000 e assim temos uma nova distribuição de propriedade.
Nozick extrai diversas conclusões deste exemplo. A primeira delas é a de que um padrão de justa distribuição de recursos pode ser afectado pela livre actuação das pessoas. A segunda conclusão prende-se com o seguinte: se a distribuição inicial de recursos era justa, a segunda, isto é, a que se verifica após o enriquecimento do jogador em mais € 250.000 do que tinha inicialmente, é também justa, uma vez que resultou de comportamentos voluntários. Contra isto pode dizer-se que a circunstância de cada pessoa pagar 25 cêntimos voluntariamente não significa que seja também voluntária a distribuição de recursos posterior aos pagamentos. Afinal, nenhumas das pessoas poderia saber que em resultado das suas acções o jogador enriqueceria € 250.000. Por outro lado, mesmo admitindo que a distribuição posterior é voluntária, isso não significa que seja justa, desde logo porque atribui mais poder ao jogador que poderá não o exercer de forma justa.
A terceira conclusão de Nozick é a que se afigura decisiva, tornando supérfluas estas objecções. Os padrões de distribuição justa só podem ser postos em prática com graves custos para a liberdades das pessoas. Se as pessoas, através das suas acções livres, contrariam os padrões de distribuição de riqueza, a manutenção desta padrões exige que seja adoptada uma de duas vias: ou se excluem certas transacções, abolindo-se ou restringindo-se o funcionamento do mercado, ou se intervém constantemente neste último, tendo em vista a redistribuição da propriedade. Uma dessas formas de intervenção, a tributação dos rendimentos do trabalho, é equiparada por Nozick aos trabalhos forçados , no sentido em que aqueles que os pagam para possibilitar a redistribuição da propriedade não o fazem certamente voluntariamente, nem ninguém lhes pergunta se é essa a sua vontade.


7.ª lição, 24 de Outubro

23. Continuação: a teoria da justiça como titularidade. 24. Continuação: o Estado mínimo e a utopia.

23. Em oposição às teorias da justiça que assentam num padrão, Nozick propõe aquela que designa como «entitlement theory of justice», o que significa uma teoria da justiça baseada nos títulos legítimos de propriedade. O ponto de partida de uma tal teoria é o de que a liberdade se mostra incompatível com os padrões («liberty upsets patterns») , como demonstrámos anteriormente. Para além disso, as teorias padronizadas da justiça tratam a produção de bens e a sua distribuição como duas questões separadas. Segundo Nozick, pelo contrário, não é possível encará-las como separadas: «Quem faz alguma coisa, tendo comprado ou contratado todos os outros recursos usados no processo (transferindo aguns dos seus pertences no contexto desta cooperação de factores), tem direito a ela». Assim, Nozick propõe uma máxima, destinada a competir com as máximas mais usualmente conhecidas das teorias padronizadas («A cada um de acordo com as suas necessidades»…, etc.). Tal máxima, ignorando a aquisição e a rectificação, rezaria assim: «De cada um de acordo com o que ele escolhe fazer, a cada um de acordo com o que faz para si mesmo (talvez com a ajuda contratada de outros) e com o que os outros escolhem fazer por ele e escolhem dar-lhe a partir do que lhes deram a eles previamente (segundo esta máxima) e ainda não gastaram ou transferiram». De modo mais sintético: «De cada um de acordo com o que escolhe, a cada um segundo é escolhido» .
Estas afirmações não deixam de invocar a grande referência da teoria da justiça como titularidade de Nozick: Locke e a sua teoria da propriedade. E o grande problema da teoria de Locke está também aqui presente: onde assenta, afinal, o meu título, na minha actividade, no meu trabalho, ou nos recursos materiais em que o aplico? Como vamos ver, a resolução destes problemas conduz Nozick a resultados ainda mais inverosímeis do que Locke.
São três os princípios da teoria da justiça como titularidade: um princípio de justiça na aquisição, que especifica como pode uma pessoa tornar-se proprietária de uma coisa sem dono; um princípio de justiça na transferência, que especifica como pode alguém tornar-se legítimo proprietário de uma coisa que já é propriedade de alguém; finalmente, um princípio de rectificação da injustiça. Este último princípio parece desempenhar, como o próprio nome indica, uma função subsidiária, ainda que, como se verá, o mesmo acabe por inibir a aplicação prática da teoria da justiça como titularidade. O princípio da justiça na transferência, por seu turno, parece claro nas suas implicações: uma pessoa torna-se proprietária legítima de algo que é já propriedade de alguém apenas se esta última alienar a coisa livremente. É por esta razão que Nozick condena, como vimos, as prestações do Estado Social como injustas, uma vez que configuram uma redistribuição forçada de recursos. Mas este princípio é ainda importante ao evidenciar a tese da “propriedade de si mesmo”, isto é, a tese segundo a qual só a própria pessoa tem o direito de decidir o que fazer com a sua vida, a sua liberdade e o seu corpo, porque estes apenas a ela pertencem. A ideia de “propriedade de si mesmo” exprime o princípio kantiano de que «os indivíduos são fins e não apenas meios, não podem ser sacrificados ou usados para a prossecução de outros fins sem o seu consentimento» . Tal ideia exclui certamente uma redistribuição forçada de partes do corpo . Mas como passar da interdição da redistribuição de partes do corpo para a interdição da redistribuição de recursos materiais? É neste ponto que temos de passar do princípio da justiça na transferência para o princípio da justiça na aquisição.
Na verdade, se percorrermos a cadeia das transferências legítimas de propriedade chegaremos à aquisição inicial. Simplesmente, Nozick não tem uma teoria da aquisição inicial e, em vez disso, baseia-se na teoria de Locke. Qual é, pois, segundo Nozick, o princípio de justiça na aquisição inicial de um bem externo, sobre que assenta a legitimidade de todos os títulos posteriores? Na verdade, o que aproveita de Locke não é verdadeiramente o argumento segundo o qual misturar o trabalho com os recursos exteriores conduz à propriedade, pelo menos em condições de abundância. Nozick formulou até a crítica decisiva a esse argumento: «porque é que juntar uma coisa de que sou dono, com uma de que não sou, não constitui uma forma de perder a primeira, em vez de uma forma de ganhar a segunda?» Não deveria o direito de propriedade exclusivo assim adquirido limitar-se ao valor acrescido produzido pelo trabalho, em vez de abranger todo o objecto? O que Nozick retira de Locke é a ideia segundo a qual a apropriação de um bem sem dono é legítima se não piorar a situação dos outros . A apropriação de um bem não previamente submetido à propriedade justifica-se na medida em que a situação dos outros, doravante sem liberdade de usar o bem em causa, não seja desfavorecida em relação ao que era antes da apropriação. Em última análise, são os benefícios dos mecanismos capitalistas de distribuição que compensam a perda de liberdade de acesso aos recursos objecto de apropriação privada . Mas é evidente que assim não se respeitam os ditames do imperativo kantiano sobre os quais supostamente assenta a teoria de Nozick: quem decide, afinal, se os alegados “benefícios” decorrentes da apropriação num sistema capitalista devem prevalecer sobre a prévia situação de res nullius. O índio que anteriormente caçava em campo aberto deve agora transformar-se em jornaleiro para sobreviver, mesmo se antes era respeitado como um chefe e agora é aceite como um subalterno. Por outro lado, o ponto de comparação com a situação de apropriação é sempre uma situação de não propriedade. Ora, essa não é certamente a única comparação possível.
Retomemos agora o princípio da rectificação: apesar do seu carácter subsidiário, dele já alguém questionou se, a levar a sério as especulações de Nozick sobre a matéria, não deveria a maioria dos Estados Unidos da América ser devolvida aos índios americanos . Seja como for, da sua consideração resulta certamente que em termos práticos o alcance reformista da teoria da justiça como titularidade se apresenta escasso. O próprio Nozick o admite, quando afirma que «não pode usar-se a análise e a teoria aqui apresentadas para condenar qualquer esquema em concreto de prestações sociais, a não ser que seja claro que nenhumas considerações de rectificação de injustiças poderiam aplicar-se para justificar tal condenação. Embora a introdução do socialismo como o castigo para os nossos pecados fosse ir longe de mais, as injustiças do passado poderiam ser tão grandes que tornariam necessário a curto prazo um maior Estado para as rectificar» .

24. Resta-nos ainda abordar um outro aspecto da teoria de Nozick, isto é, a sua defesa de um Estado mínimo, ou um Estado Guarda-Nocturno. Segundo Nozick, a existência do Estado pode apenas justificar-se na medida em que protege as pessoas contra a força, a fraude e o roubo, e ainda enquanto confere força aos contratos. O Estado existe apenas para proteger direitos de propriedade, para além dos direitos civis e políticos, e viola tais direitos na medida em que se envolve em programas mais extensos.
Nozick contesta assim as teses daqueles que pensam que o Estado deve promover o bem-estar social dos cidadãos, mas também a daqueles que acreditam ser o Estado a raíz de todo o mal. Já vimos em que termos desenvolve a primeira linha crítica. Interessa-nos agora explorar a segunda: porque razão não devem os privados organizar e assumir as funções que mesmo num Estado mínimo cabem exclusivamente aos poderes públicos, como a defesa, a segurança e o funcionamento da máquina judiciária, já para não falar da saúde e a educação e outras formas de intervenção do Estado Social?
O objectivo de Nozick é, pois, o de justificar o surgimento do Estado a partir de uma situação de estado de natureza. O seu objectivo consiste, por outras palavras, em pôr em causa as teorias dos anarco-capitalistas que acreditam, como Locke, não apenas nos direitos naturais, no sentido de direitos pré-políticos, mas também na existência de direitos de auto-defesa no estado de natureza, que permitem a cada um punir os que violam os seus direitos naturais. Só que, ao contrário de Locke, os anarco-capitalistas não aceitam que as inconveniências de um estado de natureza em que a todos assistem direitos de auto-defesa possa justificar, por si só, a instituição de um governo civil. Pelo contrário, acreditam que qualquer pessoa, especialmente as empresas especializadas, devem ser livres de vender no mercado a compradores individuais os serviços de protecção contra terceiros, tal como quaisquer outros bens disponíveis no mercado. Acreditam, por outras palavras, que um estado de natureza de tipo lockeano deve evoluir para um mercado capitalista na protecção dos direitos, em vez de ser substituído pelo Estado. O argumento de Nozick a favor de um Estado minimalista é também uma resposta a tais ideias .
Locke concebeu um estado de natureza individualista, muito embora aí incluísse a sociedade doméstica da família patriarcal, do qual emerge, sem solução de continuidade, o Estado. Nozick, pelo contrário, concebe a existência de sociedades intermédias no âmbito de um estado de natureza colectivo, antes de surgir o Estado. No âmbito do estado de natureza, as pessoas terão propensão a confiar a sua defesa contra as violações dos seus direitos pelos outros a «agências protectoras». A existência inevitável de conflitos entre clientes de diferentes agências protectoras levará a conflitos armados entre estas. Temos assim um estado de natureza colectivo que induz o estabelecimento, em cada área geográfica, de uma só «agência protectora dominante», seja por coordenação entre as diferentes agências rivais, com a instituição de um sistema judicial de tipo federal, seja em resultado de uma agência eliminar as suas rivais. Podemos designar esta «agência protectora dominante» como um Estado? A resposta de Nozick é negativa, pelo menos num primeiro momento, pois subsistem indivíduos independentes que escolhem não contratar os serviços de protecção da agência dominante. Simplesmente, também estes independentes tenderão a favorecer sua posição nos conflitos com os clientes da agência dominante, o que cria um sério risco de punição injusta para estes últimos. Assim, a agência invocará o direito, em nome dos seus clientes, de proibir a auto-defesa dos independentes contra estes. E uma vez que tem poder para tanto, acabará por deter o monopólio da força. Temos assim o surgimento do Estado, mas não de um Estado que possa sequer pretender ser justo. A razão é fácil de perceber: o Estado em causa não pretende sequer defender os direitos de todos, mas apenas daqueles que paguem os seus serviços de protecção. Aos restantes, o Estado limita-se a proibir o uso da força. Temos assim um Estado ultra-minimalista; a passagem ao Estado minimalista envolve não apenas a protecção de direitos com recurso à força, mas também o uso da força para proteger os direitos de todos.
Aqui surge um problema evidente para Nozick. Se o Estado que pretende ser justo, como os nossos Estados, são aqueles que protegem os direitos de todos – isto é, os direitos privados de cada um, mas também o direito à vida – com recurso à força, não envolve essa protecção um custo? E se houver quem não possa suportar os custos de tal protecção? Uma vez que a protecção é universal, não haverá também aqui uma transferência de recursos dos mais ricos para os mais pobres? Nozick alega que não se trata de redistribuição, mas de uma compensação justa pela privação forçada dos direitos naturais dos mais pobres e da possibilidade que a estes assistia de os fazer valer directamente . Pode, no entanto, dar-se o caso de os pobres em causa não quererem exercer tal possibilidade – na verdade, os ricos mais facilmente exigiriam a compensação em causa, uma vez que conseguiriam proteger-se mais eficazmente no estado de natureza – e, em tal caso, são necessariamente beneficiários de redistribuição. Na verdade, as agências protectoras, enquanto entidades com propósitos puramente comerciais não estariam dispostas a providenciar os serviços de protecção colectiva que associamos à ideia de bem público, por exemplo, o policiamento das ruas para desencorajar e detectar o crime, e que por isso se tornam difíceis de obter no mercado.
Nozick não consegue, pois, explicar como pode uma «agência protectora dominante», que cobra preços pelos seus serviços, evoluir em direcção a um Estado, que cobra impostos mas não faz depender dessa cobrança a protecção dos direitos à segurança e à protecção judicial de todos, mesmo daqueles que não poderiam pagar esses serviços num cenário de estado de natureza. Regressamos, pois, a Locke: as inconveniências de um estado de natureza, seja ele individual ou colectivo, formado por “agências protectoras”, são tão grandes que mais vale instituir o Estado, uma vez que só este assegura igual protecção de direitos a todos os seus membros. Em relação ao Estado pode dizer-se, talvez com mais propriedade do que em relação à propriedade, que as suas justificação e explicação assentam directamente na consciência de que o estado de coisas correspondente à sua ausência é absolutamente insatisfatório. Do que se trata é de pôr em evidência as vantagens que o facto da sua instituição, na medida em que promove a igual protecção dos direitos de todos, representa em relação à sua ausência .
Uma exposição do pensamento de Nozick, mesmo breve, não ficaria completa sem uma menção à sua visão da utopia, ou o melhor possível de todos os mundos. Para Nozick, esse mundo é-nos dado pelo Estado minimalista, uma vez que só ele possbilita ao maior número possível de pessoas viver do modo que querem viver. O Estado minimalista constitui o melhor enquadramento institucional para a utopia porque facilita a existência de numa sociedade de comunidades de diversa índole, muitas delas anti-libertárias, a que as pessoas podem aceder se forem admitidas e de que podem sair se o desejarem. O problema é claro, reside na circunstância de as pessoas nasceram numa determinada comunidade, ou num Estado, não sendo realista pensar nestes fenómenos em termos puramente individualistas.
O juízo final sobre a teoria de Nozick que tem vindo a ser exposto foi formulado pelo próprio, num livro de 1989, nos seguintes termos: «A posição libertária que em tempos defendi parece-me agora ser seriamente inadequada» . Este é, sem dúvida, um juízo que merece o nosso apoio. Conceber a liberdade apenas na base dos direitos de propriedade, com a justificação de que concebê-los a partir do direito a uma vida com sentido teria o inconveniente de isso nos levar a apropriar bens sobre os quais outros podem já ter constituído direitos de propriedade, implicaria a possibilidade de apresentar uma teoria da justiça na aquisição consistente. Nozick não consegue, manifestamente, apresentar uma tal teoria.


8.ª lição, 30 de Outubro

25. O liberalismo neutral; 26. O liberalismo perfeccionista; 27. A crítica comunitarista: o eu liberal.

25. Até agora tenho apresentado as várias versões do liberalismo no plano da justiça distributiva. Mas se neste plano existem divergências instransponíveis, o mesmo não se poderá dizer o mesmo não se poderá dizer quanto à neutralidade que todos os liberais reclamam do Estado em relação a diferentes formas de vida adoptadas pelos seus membros. Aqui existe uma substancial afinidade de perspectivas, com a consequência de que as normas que restringem o comportamento dos cidadãos não podem fundar-se numa determinada visão do que é a vida boa, mas apenas limitar-se àquilo que seja necessário para proteger a as iguais liberdades dos cidadãos.
Por outras palavras, o liberalismo rejeita uma ordem de valores ordenada hierarquicamente e metafisicamente alicerçada e afirma, em vez disso, a existência de uma pluralidade de concepções válidas do bem. De acordo com um modo liberal de ver as coisas não existe uma ordem fixa de valores que possa ser determinada objectivamente para todas as pessoas. Diferentes pessoas atribuem diferentes graus de importância a coisas tão diversas como uma vida plena no sentido de bem estar económico, a promoção da paz mundial, uma vida religiosa, a celebração da beleza estética, mas nenhuma destes ideais se impõe objectivamente aos outros e existe independentemente das pessoas para os quais assumem importância.
Assim esboçada a noção de neutralidade liberal, é necessário agora precisá-la. Para isso, começarei por enunciar os seus traços característicos. Depois, tratarei das manifestações do liberalismo neutral. Finalmente, procurarei dizer alguma coisa sobre as suas possíveis justificações.
O principal traço do liberalismo neutral consiste no individualismo. O individualismo não significa, em si mesmo ou directamente, que as pessoas devam viver as suas vidas divorciadas da história, da tradição, da comunidade me que se inserem. Significa, no entanto, o privilegiar e o promover do interesse das pessoas em viver vidas autónomas, como quer que essas vidas sejam concebidas: eventualmente, em estreita conexão com a história, a tradição e a comunidade em que se inserem. Simplesmente, essa conexão tem que assentar numa decisão individual.
Este traço individualista do liberalismo neutral tem duas consequências imediatas: o anti-paternalismo e o anti-perfeccionismo. O anti-paternalismo significa que o Estado liberal não interfere na actuação autónoma de uma pessoa com vista a atingir o que ela entende ser o bem (para ela), mesmo que uma tal interferência pudesse ser mais apta a promover o bem para essa pessoa. O anti-perfeccionismo significa a generalização da atitude anti-paternalista que acaba de ser mencionada, significando que o Estado liberal não promove o bem em geral para os seus cidadãos através de qualquer meio que possa violar o respeito pela sua vida autónoma.
Passemos agora às manifestações do liberalismo neutral. Vou aqui considerar três dessas manifestações: a tentativa de preservar uma distinção entre público e privado; a afirmação da tolerância; a aceitação, e até mesmo celebração, da diversidade étnica e cultural.
A distinção entre público e privado procura salvaguardar um direito à privacidade e procura sustentar que apenas as acções que são susceptíveis de ter um impacto nas relações sociais podem ser objecto de controlo político. Pelo contrário, as actividades sem incidência na interacção social, envolvendo apenas o empenhamento dos indivíduos na prossecução daquilo que consideram valioso permanecem fora do alcance do controlo público e situam-se no domínio privado.
O princípio da tolerância envolve a aceitação de modos de vida, sistemas de valores e modos de expressão individual com os quais discordamos e que até nos podem merecer um juízo negativo.
Finalmente, não é incompatível com a tolerância a aceitação, até mesmo a promoção, da diversidade cultural. Não se trata agora de condescender com um estilo de vida que nos repugna, mas de aceitar o pluralismo cultural, a coexistência de pessoas de diferentes raças, credos religiosos e até línguas.
É claro, no entanto, que estas diversas articulações da neutralidade liberal estão sujeitas a evidentes limitações. Na verdade pode até pensar-se que tais articulações são, na realidade, formas de manter a distinção entre formas de vida dominantes e marginais. Estamos dispostos a aceitar que o comportamento homossexual não possa ser criminalizado, desde que praticado por duas pessoas maiores e em privado, mas estamos dispostos a aceitar que os homossexuais possam exercer funções, sem esconderem a sua orientação sexual, nas forças armadas, por exemplo? Podemos tolerar que duas pessoas homossexuais vivam em conjunto, mas estamos dispostos a aceitar que essa vivência seja caracterizada como uma comunhão de vida seja ou mesmo um casamento? Achamos muito bonita e colorida a coexistência de pessoas de diferentes línguas e etnias no nosso País, mas o que pensar se uma dessas etnias e línguas puser em causa a nossa hegemonia cultural?
Finalmente, importa abordar as justificações do liberalismo neutral. A justificação mais simples é a menos aceitável, mas é também possívelmente a mais difundida. Trata-se do cepticismo moral. As concepções sobre o bem, sobre o que é uma vida valiosa, são pura e simplesmente insusceptíveis de ser verdadeiras ou falsas, mas apenas podem ser entendidas como expressões de emoções. Nesta versão radical, o septicismo põe em causa, como é bom de ver, os próprios valores de liberdade e igualdade em que assenta o liberalismo neutral.
Há, sem dúvida, versões menos radicais do cepticismo moral, mas estas não se autonomizam das restantes justificações do neutralismo. Assim, podemos sustentar que se uma concepção sobre o bem não é insusceptível de injustificação, a justificação que podemos avançar não é válida para todos os tempos e lugares e está essencialmente sujeita a revisão. Em vez do cepticismo estaremos assim perante um tipo de falibilismo dos valores que precisamente acentua a dependência de uma concepção do bem em relação a algum tipo de discussão pública.
O segundo tipo de razões que justifica a neutralidade diz respeito à prioridade da justiça sobre o bem, segundo uma expressão muito usada por John Rawls (embora este se referisse à prioridade do direito sobre o bem ). Com esta afirmação não se pretende necessariamente sustentar que as concepções do bem não possam ser válidas, mas apenas que é mais importante regular relações sociais justas do que promover concepções sobre o bem, mesmo que sejam válidas. Dito de outro modo, as concepções sobre o bem podem apenas florescer no horizonte de uma estrutura social justa. Posto ainda de outra maneira: para uma concepção liberal do Estado, existe uma pluralidade de concepções do bem, embora se torne difícil admitir uma pluralidade de concepções de justiça para regular a estrutura básica de uma sociedade. É claro que a ideia de prioridade da justiça não constitui uma princípio de justificação última. Tal ideia remete para uma outra, mais fundamental, segundo a qual todas as pessoas, entendidas como racionais e autónomas, se relacionam como iguais no que diz respeito à organização básica de uma sociedade.
Finalmente, o terceiro conjunto de razões que sustentam o liberalismo neutral consiste no respeito pela autonomia das pessoas que vivem numa determinada sociedade enquanto princípio de legitimidade das decisões colectivas adoptadas no seu seio. A autoridade do poder político do Estado sobre a sociedade apenas existe se as pessoas sujeitas a essa autoridade a puderem aceitar como legítima, através, designadamente, do consentimento popular, mas também através da justificação das decisões do poder político com base em princípios que não dizem respeito a concepções disputadas sobre o bem.

26. O perfeccionismo consiste na concepção segundo a qual a vida humana pode ser avaliada em termos de certas excelências, sendo que é o progresso em direcção a estas que marca o valor comparativo de uma vida particular. Podemos falar de um perfeccionismo antigo e moderno. O primeiro aproxima-se do pensamento de Artistóteles na medida em que considera que certas características dos seres humanos, como a sua racionalidade ou saber prático, implicam padrões de florescimento, ou virtudes, que podem, em princípio, ser usados para avaliar uma determinada vida humana. Consequentemente, as instituições políticas e sociais deveriam ser configuradas tendo em vista a promoção das virtudes. E as virtudes encontram-se definidas como as disposições de carácter ou qualidades necessárias ao florescimento humano da pessoa. As virtudes morais consistem na coragem, temperança, sabedoria e justiça (a esta definição aristotélica das virtudes morais, S. Tomás acrescentou as virtudes teológicas: fé, esperança e caridade). O segundo baseia-se na visão mais modesta segundo a qual certas capacidades dos seres humanos são importantes para que estes possam levar vidas com sentido. As concepções modernas do perfeccionismo são liberais na medida em que incluem a autonomia como um dos elementos de uma concepção do bem. Em qualquer caso, o que se apresenta como característico do perfeccionismo é a ideia de que a determinação daquilo que é bom para os seres humanos é válida independentemente dos desejos e juízos humanos sobre aquilo que é bom. Assim, para Joseph Raz, «o princípio da autonomia é um princípio perfeccionista. A vida autónoma é valiosa apenas se for usada na prossecução de projectos e relações aceitáveis e valiosos. O princípio da autonomia permite e até exige que os governos criem oportunidades moralmente valiosas e eliminem aquelas que são repugnantes» .
Resulta, assim claro o contraste entre o liberalismo neutral e o liberalismo perfeccionista, apoiado numa visão moderna do perfeccionismo. Ambos valorizam a autonomia, mas os primeiros entendem-na no contexto de um modo de ver em que a justiça surge como o primeiro princípio das instituições sociais, enquanto os segundos encaram-na como um aspecto central da concepção do bem que essas mesmas instituições são chamadas a proteger e promover.
O perfeccionismo apresenta-se, pois, como uma filosofia política que visa criticar o liberalismo neutral. Para além disso, trata-se de uma filosofia política que pretende substituir-se ao libralismo neutral.
A crítica procede da ideia de que a autonomia, aspecto central do liberalismo neutral, pode ser superada por outro princípio num caso concreto. Assim, a protecção da vida das pessoas faz-se à custa da limitação da respectiva autonomia em casos tão significativos como a proibição de drogas perigosas ou a obrigação do uso de cinto de segurança. A isto pode responder-se que estas limitações ao princípio da autonomia não decorrem do reconhecimento de outros princípios, mas da necessidade de limitar custos em matéria de saúde. Por outro lado, pode ainda argumentar-se, contra a ideia de que a autonomia seria um simples valor a ter em conta na adopção de decisões colectivas, e como tal susceptível de ser afastado por outros princípios ou valores, que a mesma autonomia é um elemento constitutivo do compromisso de uma pessoa em relação a qualquer outro valor. Mas este entendimento não é imune à crítica perfeccionista, nos seguintes termos: o valor de uma opção não é função exclusiva da sua adopção autónoma por uma pessoa. Com efeito, escolher autonomamente como ambição de vida cortar a relva do meu quintal não torna essa escolha mais válida do que ser induzido, de forma não autónoma, a apreciar as grandes obras de arte do mundo.
Passando da crítica à superação do liberalismo neutral, dir-se-á que o perfeccionismo é composto por uma concepção sobre o que é o bem para os seres humanos e um argumento segundo o qual as políticas do Estado devem ser guiadas pelo objectivo de promover o bem entre os cidadãos. Desde logo, importa descartar uma dificuldade aparente, segundo a qual o perfeccionismo implica necessariamente que o Estado possa coagir os seus cidadãos a adoptar alguma visão do bem e da excelência humana. Como parece evidente, a promoção de um bem (pela educação, por exemplo) não se faz necessariamente através da sua imposição coactiva, que pode até ser afastada como contraproducente.
Os perfeccionistas podem sustentar que os valores imunes à escolha são relativos a uma determinada comunidade, situada no tempo e no espaço, ou ainda que esses mesmos valores são válidos para todas as culturas e comunidades. No primeiro caso, será necessário demonstrar que os valores de uma comunidade podem ser determinados sem as práticas sociais tolerantes, livres e abertas exigidas pela cultura do próprio liberalismo. Mas pode também sustentar-se que esses valores se identificam com tais práticas e cultura. Por outras palavras, as práticas e cultura do liberalismo são a base dos tais valores imunes à escolha. No segundo caso, torna-se imprescindível especificar uma lista de valores objectivos susceptível de fundamentar políticas sociais concretas. Simplesmente, essa tarefa mostra-se vã. Se é certo que seriamos tentados a incluir em tal lista a saúde física e a vida longa, seriamos confrontados com uma longa lista de pessoas que privilegiaram a criatividade artística ou a caridade sobre a saúde. Para além disso, neste último caso, somos ainda confrontados com a objecção decorrente da lei de Hume, isto é, com a objecção segundo a qual inferir a existência de valores a partir de uma descrição da estrutura orgânica humana equivale a introduzir juízos de valor nas premissas do argumento.
Seja como for, permanece um desafio colocado pelo perfeccionismo: se as concepções sobre o bem e o que é valioso para a vida das pessoas são aquilo que maior significado assume para elas, porque razão devem essas concepções ser arredadas da justificação pública das políticas adoptadas pelo Estado? O liberalismo igualitário procura responder a esta questão. Rawls, aliás, assumiu-a nos seguintes termos: «Como pode ser razoável ou racional, quando estão em causa questões básicas, os cidadãos apelarem apenas para uma concepção pública de justiça e não para toda a verdade, tal como eles a entendem?» Como se recordará, uma concepção política da justiça não se pretende aplicar a todos os objectos possíveis, mas apenas à estrutura básica da sociedade e, em parte como consequência disso, deve ser apresentada como implícita na cultura política de uma sociedade e independente das doutrinas morais abrangentes. Estas últimas, ao mesmo tempo que visam regular todos os objectos possíveis desde as relações entre os indivíduos às relações internacionais, tendem também a incluir concepções sobre aquilo que deve ser considerado como valioso na vida humana, bem como ideais de virtude pessoal e carácter. Pelo contrário, a concepção política da justiça faz apelo apenas à razão pública, isto é, ao modo de argumentação que usa os conceitos racionais de juízo, inferência e prova, mas também as virtudes da razoabilidade presentes na adesão a critérios e procedimentos de conhecimento do senso comum e aos métodos e conclusões da ciência que não sejam controvertidos. A razão pública é, pois, a razão de cidadãos iguais que enquanto corpo colectivo se impõem mutuamente regras apoiadas por sanções do poder do Estado. A razão assim encarada é pública porque procede através de métodos de raciocínio acessíveis a todos . Não é assim de espantar que o Tribunal Constitucional surja como a instância por excelência do exercício da razão pública . Os seus juízes não devem julgar enquanto membros de uma confissão religiosa ou adeptos de uma orientação filosófica abrangente, seguindo os respectivos ditames até às últimas consequências, mas antes devem procurar que as suas decisões assentem em razões que possam ser aceites por todos os cidadãos, independentemente do credo ou convicções destes últimos. É este o princípio liberal da legitimidade que se exprime no dever de civilidade que impende sobre todos aqueles que exercem cargos públicos, e mesmo sobre todos aqueles que exercem os deveres de cidadania, e segundo qual devemos ser capazes de reportar as nossas tomadas de posição em questões fundamentais a princípios e ideais aceitáveis pelos outros como razoáveis e racionais. Só assim se torna possível limitar o exercício do poder.
A resposta de Rawls àquele que designa como o paradoxo da razão pública, começando por assumir o facto do pluralismo razoável, já antes mencionado, passa pelo encontro das diversas doutrinas abrangentes na concepção política da justiça. Os cidadãos afirmam o ideal da razão pública não em resultado de um compromisso político, mas a partir das suas doutrinas abrangentes razoáveis . Onde vamos nós, no entanto, encontrar os recursos para esta limitação das pretensões das doutrinas abrangentes? No seu próprio interior, ou a partir de fora? No primeiro caso, parece que o próprio estatuto teórico da concepção política da justiça é meramente derivado, podendo ser obtido a partir do interior das próprias doutrinas abrangentes; no segundo caso, essa mesma ameaça incide sobre as doutrinas abrangentes, na medida em que são agora estas que têm um estatuto meramente derivado, existindo como puras concessões da concepção política da justiça.
Vemos assim como, apesar de tudo, a resposta de Rawls não consegue estabelecer uma relação de coordenação entre a concepção política da justiça e as doutrinas abrangentes: a primeira, ou uma das segundas, deve prevalecer na configuração da estrutura básica da sociedade. Por essa mesma razão torna-se impossível excluir por completo uma de duas alternativas. A primeira delas decorre daquele que poderíamos chamar o pluralismo radical: se os sistemas de valor, os compromissos religiosos, as concepções de vida adoptadas pelos cidadãos são tão diversos quanto parecem ser nas nossas democracias ocidentais, parece claro que nenhum conjunto de princípios pode ser justificado filosoficamente para esse mesmo conjunto de cidadãos. Estamos assim condenados a um convívio entre concepções abrangentes segundo um modelo de compromisso, como num modus vivendi, situação que Rawls pretende precisamente evitar. A segunda objecção consiste em não existir qualquer razão para se excluir por completo a possibilidade de que alguns valores são objectivamente válidos para todos os seres humanos e, como tal, apoiados pela razão, como advogam os perfeccionistas . Em tal caso, resta à concepção política da justiça tornar-se uma doutrina abrangente (na verdade, voltar a ser, retomando o estatuto teórico que era o seu na arquitectura de Uma Teoria da Justiça) ou sucumbir perante estas.

27. O compromisso do liberalismo com a ideia de neutralidade do Estado em relação a concepções do bem deu também azo à crítica comunitarista, que agrupa diversos autores. Não se pretende aqui desenvolver essa crítica em todas as suas dimensões, mas apenas apontar alguns dos seus aspectos mais importantes. Um desses aspectos diz respeito à acusação segundo a qual o liberalismo padeceria de um hiper-individualismo, ao basear-se na ideia de que o poder político é apenas legítimo quando possa ser aceite pelos cidadãos considerados como agentes autónomos racionais.
Qual é, pois, a ideia do eu, do agente moral, subjacente ao liberalismo? Rawls sumariza a concepção do eu liberal com esta afirmação: «o eu é anterior aos objectivos que defende» . Isto significa que podemos sempre colocarmo-nos do lado de fora de um projecto de vida determinado e questionar se verdadeiramente o desejamos. Esta é uma visão kantiana do eu, considerando que Kant foi um dos maiores defensores da ideia de que o eu é anterior aos papéis e relações sociais e é apenas livre se for capaz de os encarar com distância e avaliá-los segundo os ditames da razão.
Deste modo, o eu de Rawls é um sujeito que se situa sempre a uma certa distância dos interesses que tem. Segundo Michael Sandel, um dos autores que mais explorou a crítica comunitarista do liberalismo, «uma das consequências desta distância consiste em pôr o eu fora do alcance da experiência, fazê-lo invulnerável, arranjar a sua identidade de uma vez por todas. Nenhum compromisso poderá atingir-me tão profundamente que eu não possa compreender-me sem ele. Nenhuma alteração de objectivos e planos de vida pode ser tão perturbadora a ponto de romper os contornos da minha identidade. Nenhum projecto pode ser tão essencial que o afastar-me possa pôr em questão a pessoa que eu sou. Dada a minha independência em relação aos valores que tenho, posso sempre existir sem eles; a minha identidade pública enquanto pessoa moral “não é afectada pelas mudanças ao longo do tempo” na minha concepção do bem» .
O eu liberal é assim um «eu livre e desimpedido» (unencumbered self). Assim entendidos, «somos certamente livres de nos juntarmos a outros em associações voluntárias e como tal capazes de comunidade no sentido cooperativo. Aquilo que é negado ao eu desimpedido é a possbilidade de ser membro de uma comunidade unida por vínculos morais anteriores à escolha; não pode pertencer a qualquer comunidade em que o próprio eu pudesse estar em causa. Uma tal comunidade – chamemos-lhe constitutiva por oposição à comunidade meramente cooperativa – buliria com a identidade bem como com interesses dos participantes, e assim implicaria os seus membros numa cidadania mais completa do que aquela que o eu livre e desimpedido pode conhecer». Michael Sandel não contesta que este possa até ser um projecto excitante; nega apenas que seja viável ou que possa dar sentido à nossa vida política e moral efectiva .
A crítica de Sandel que expus pode ser entendida como uma pretensão metafísica, quando se considere que as pessoas devem ser compreendidas, em termos de estatuto ontológico, enquanto constituídas pelas suas relações com outros ou enquanto comprometidas com valores, sem os quais deixariam de ser o que são. Este entendimento ontológico seria tão controverso como aquele que se pretende criticar, pois não podemos excluir a possibilidade de existirem muito indivíduos que sofrem mudanças radicais nas suas vidas sem deixarem de ser as mesmas pessoas. Ao mesmo tempo que se deve excluir a compreensão da pessoa como alheia aos seus interesses, deve também negar-se a sua compreensão como totalmente constituída por eles.
Podemos, no entanto, considerar que a crítica pretende apenas chamar a atenção para a circunstância de que as pessoas, algumas, a maioria, ou mesmo todas, pelo menos às vezes, compreendem aspectos da sua personalidade como sendo de tal forma constitutivos da sua identidade que se tornam incapazes de os pôr em causa ou de os encararem a partir de fora.
Assim, nos termos da visão comunitarista da personalidade moral, podemos reflectir sobre valores, mas fazêmo-lo a título de auto-descoberta e não de auto-criação.


9.ª lição, 13 de Novembro

28. Continuação: vínculos comunitários; 29. Crítica da reacção liberal aos desafios comunitaristas.

28. O segundo aspecto da crítica comunitarista que aqui pretendo desenvolver não se prende com a suposta pobreza da concepção de pessoa própria do liberalismo neutral, mas antes critica este último por negligenciar as condições sociais necessárias para que a pessoa possa realizar-se. Segundo Charles Taylor, de acordo com uma visão liberal atomista, os indivíduos não necessitam de qualquer contexto comunitário para desenvolver e exercer o seu sentido de auto-determinação.
A primeira coisa que há a dizer em relação a esta crítica é que alguns autores que defendem o liberalismo neutral, como Rawls e Dworkin, não negam esta tese social e reconhecem, pelo contrário, que a autonomia individual não pode ser exercida fora de um ambiente social que confere sentido às escolhas de cada um e até sustenta e promove a sua capacidade de escolher entre várias alternativas. Existirá, assim, uma verdadeira incompatibilidade entre a tese de que os vínculos comunitários são necessários para a autonomia individual e o liberalismo neutral? A tese de Taylor e outros (incluindo Raz) a este propósito é a de que só uma política centrada no bem comum, e não uma política que se prende neutra entre as váricas concepções do bem, pode sustentar o ambiente social necessário à auto-determinação. Dito de outro modo, a auto-determinação só é promovida e só se desenvolve se existir um ambiente social propício, mas a preservação deste último exige que sejam postas em prática algumas limitações à auto-determinação.
Will Kymlicka analisa, e rejeita, três incidências possíveis desta perspectiva: em primeiro lugar, a ideia de que o Estado neutral não apoia e promove suficientemente as estruturas sociais e culturais; em segundo lugar, a ideia de que o Estado constitui a instância própria para formular concepções do bem; por último, a ideia de que um poder político legítimo é um poder que assenta na partilha efectiva de valores substanciais . Vejamos cada um destes aspectos.
Quanto ao primeiro aspecto, o que parece estar em causa é saber se o reconhecimento da existência de deveres que recaiem sobre o poder político relativos à protecção da estrutura cultural de uma sociedade é, ou não, incompatível com a neutralidade do Estado. Devem os interesses das pessoas quanto a uma forma de vida valiosa ficar dependentes do mercado cultural, isto é, das escolhas individuais, ou devem, pelo contrário, ser protegidos pelo Estado? Segundo Kymlicka não está aqui necessariamente em causa uma escolha entre perfeccionismo e neutralidade, mas apenas uma escolha entre perfeccionismo da sociedade civil e perfeccionismo do Estado. Significa isto que o liberalismo neutral pode reconhecer a necessidade de proteger as estruturas culturais de uma sociedade. Assim sucede com Dworkin quando sustenta que o Estado não pode intervir para promover opções particulares quanto a formas de vida, mas já nada impede que intervenha no sentido de assegurar a disponibilidade de um conjunto adequado de opções, devendo no entanto a avaliação dessas opções ocorrer no seio da sociedade civil, fora do aparelho do Estado. É através dos direitos fundamentais que o Estado neutral protege a possibilidade efectiva de as pessoas exercerem a sua autonomia individual, não através da ordenação do valor relativo das várias opções no âmbito da cultura.
Segundo os críticos comunitaristas, a preferência liberal pelo mercado cultural, em detrimento do Estado, como o domínio próprio da avaliação de diferentes formas de vida, decorre de uma crença atomista segundo a qual os juízos sobre o bem são apenas autónomos quando emitidos por indivíduos isolados e protegidos das pressões sociais . Mas se é verdade que a participação em práticas culturais e sociais partilhadas é aquilo que permite aos indivíduos adoptarem decisões inteligentes sobre a vida boa, já não é verdade que essa participação deva ser organizada pelo Estado, em vez das associações da sociedade civil.
Por último, os comunitaristas acreditam que só uma forma de vida comum é capaz de sustentar a legitimidade do poder político. Simplesmente, este modo de ver assenta numa perspectiva ancronista de sociedades passadas em que a legitimidade se baseava na efectiva prossecução de fins comuns e partilhados pelos membros da comunidade. Ora, não pode deixar de se reconhecer que esse tipo de legitimidade era assegurado pela exclusão de largas camadas de pessoas sujeitas da qualidade de membro da comunidade política em causa, embora não deixassem de estar sujeitas ao exercício do poder político no âmbito dessa comunidade. Pense-se, por exemplo, nas cidades antigas da Grécia, em que a cidadania excluía as mulheres e os escravos.

29. Será realmente procedente esta rejeição da crítica comunitarista? Tal rejeição, recordemo-lo, assenta na ideia de que a defesa do Estado neutral não é incompatível com o reconhecimento da importância dos vínculos sociais, na ideia de que não é ao Estado, mas à sociedade civil que cabe formular concepções do bem e, finalmente, na ideia de que não é hoje possível sustentar que o poder político pressupõe uma certa homogeneidade cultural. Segundo vimos, a primeira ideia significa que o Estado não pode promover uma forma de vida particular ou uma determinada concepção do bem, mas já nada impede que assegure um conjunto adequado de opções aos cidadãos. Assim, por exemplo, dir-se-á que o Estado não pode aceitar o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas por professores dessas mesmas escolas, mas já nada impede que aceite que todas as religiões possam usar, em pé de igualdade, as salas da escola, fora do seu horário normal de funcionamento, para o ensino das suas doutrinas. Qual é, no entanto, o significado de uma exigência destas numa detemirnada zona em que só existam crentes de uma religião? A segunda ideia não é igualmente isenta de problemas. Está certo dizer que é à sociedade civil que incumbe a formulação de concepções do bem, mas o que acontece em relação àqueles casos em que ainda não se autonomizou por completo aquilo a que chamamos sociedade civil, isto é, o conjunto de instituições livres que se distinguem do Estado e no seio das quais os cidadãos se associam voluntariamente? Por último, podemos sem dúvida afirmar que certas sociedades políticas não pressupõem homogeneidade cultural e, antes pelo contrário, são caracterizadas desde as suas origens pela coexistência de grupos sociais e culturais muito diversos (pense-se, por exemplo, no Canadá ou, em menor medida, no Estados Unidos). Mas há muitos outros casos onde isso não é assim e onde pelo contrário a diversidade cultural no mesmo espaço geográfico constitui um entrave ao exercício do poder político (o conflito entre israelitas e palestinianos, os diversos movimentos separatistas). Em suma podemos dizer que as sociedade capazes de sustentar actualmente um Estado estritamente neutral são tão escassas (talvez os Estados Unidos e, com resultados menos felizes, a Grã-Bretanha) que a simples defesa dessa visão de Estado levanta suspeitas de etnocentrismo.
Na verdade, a reacção liberal aos desafios comunitaristas mostra bem a dificuldade de manter separadas duas ordens de abordagem da vida social e política. A abordagem ontológica diz-nos que factores devemos considerar para dar conta da vida social. A este propósito é possível distinguir entre atomistas e holistas. Os primeiros entendem que (i) apenas podemos compreender as estruturas sociais em termos das propriedades dos indivíduos; (ii) o bem comum não passa de uma agregação do bem dos indivíduos. Os holistas, pelo contrário, sustentam que as estruturas sociais se explicam em si próprias e que o bem comum é distinto do bem dos indivíduos. É possível encontrar uma discussão semelhante a propósito das teorias sobre a natureza das pessoas colectivas: são estas, ou não, entidades que se podem reduzir à soma dos indíviduos que as compõem?
A segunda abordagem situa-se no plano da moral ou política que cada pessoa adopte: devemos dar a primazia às liberdade e aos direitos individuais ou, pelo contrário, à vida comunitária e aos bens das colectividades? Neste plano cabe distinguir entre individualismo e colectivismo.
Ora, parece possível combinar qualquer opção no debate entre atomismo e holismo com qualquer posição no debate entre individualismo e colectivismo. Assim, Nozick é assumidamente um atomista e um individualista. Marx, por sua banda, era um holista e um colectivista. Mas é possível também pensar em holistas e individualistas, precisamente todos aqueles que, sem abandonarem o princípio da autonomia da pessoa, adoptam uma visão perfeccionista do Estado e advogam as críticos comunitaristas do liberalismo neutral. Finalmente, é possível pensar numa combinação entre atomismo e colectivismo, como sucede no pesadelo esboçado por B. F. Skinner de uma sociedade totalmente dominada pelas ciências exactas . Como se situam, no entanto, do ponto de vista da articulação entre estas duas oposições (atomismo e holismo; individualismo e colectivismo) aqueles liberais que procuram reconciliar a neutralidade do Estado com o reconhecimento da importância dos vínculos sociais? A verdade é que estes parecem ser incapazes de equacionar a distinção entre a abordagem ontológica e a abordagem política e assim encaram as críticas comunitaristas como simplesmente relevando desta última abordagem, envolvendo a opção por políticas colectivistas em detrimento do respeito pelas liberdades individuais.
Um exemplo permite-nos confirmar o que acaba de ser dito, ao mesmo tempo que introduz o tema das próximas aulas. Em que consiste a dignidade do cidadão? Charles Taylor propõe-nos dois modelos para o efeito. De acordo com o primeiro, chamemos-lhe modelo A, o que importa são os direitos individuais e a igualdade de tratamento, bem como uma actuação do poder político que toma em consideração as preferências dos indivíduos. A cidadania consiste principalmente na possibilidade de invocar e tornar efectivos estes direitos através dos tribunais. O objectivo não é o de governar e ser governado, alternadamente, mas a protecção. Pelo contrário, de acordo com o modelo B, a cidadania consiste na participação política, ou pelo menos inclui-a como seu aspecto essencial, e sem esta a liberdade não faz qualquer sentido. Surge assim a questão: pode o modelo A ser objecto de um sentimento comum de patriotismo ou de identificação cívica? É claro que a resposta depende das tradições e cultura de cada sociedade. Mas depende também de se reconhecer que a simples ideia de identificação cívica pressupõe uma ontologia holística, só sendo possível avançar para as questões de política depois de se ter resolvido as questões ontológicas .



10.ª lição, de Novembro

30. As concepções deliberativas da política: introdução; 31. Hannah Arendt e o republicanismo clássico




Acórdãos do TC para discutir: Acórdão n.º 509/02, sobre rendimento social de inserção; Ac. n.º 247/05, sobre limite de idade quanto ao crime de abuso sexual de menores, em casos de hetero- e homossexualidade; Acórdãos n.º 144/04, n.º 196/04 e 303/04, sobre proibição de lenocínio; Acórdão n.º 174/93, sobre ensino da moral e religião católicas.

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