quarta-feira, 7 de maio de 2008

APONTAMENTOS DE DIREITOS REAIS

Universidade de Lisboa
Faculdade de Direito








APONTAMENTOS DE

Direitos Reais

Regente Prof. Pedro Albuquerque
Livros Profs. Carvalho Fernandes, Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro






2005/2006
INTRODUÇÃO

. Fixação da terminologia: acepções subjectiva e objectiva da expressão direitos reais.

A expressão direitos reais pode ser usada em dois sentidos:
- Subjectivo – uma categoria de direitos subjectivos.
- Objectivo – ramo de direito objectivo, como divisão do direito civil.
Qual expressão usar para designar este ramo do direito:
- Direito das coisas – sugestivo na identificação de um ramo de direito. É aconselhável reservar este designação para o conjunto de normas jurídicas que estabelecem o regime das coisas, em si mesmas consideradas, independentemente da natureza dos direitos subjectivos que as têm por objecto (arts 202.º e ss).
- Direitos reais – deriva do vocábulo latino res, que significa coisa.
Como assinala o Prof. Oliveira Ascensão, nenhuma das fórmulas é muito rigorosa, tendo ambas um sentido meramente convencional, sedimentado por um uso corrente.

. A categoria Direito real

O nosso Código Civil contém um livro dedicado ao Direito das Coisas (III). Contudo, nem sempre aquilo que se refere o Livro III diz respeito a direitos reais. Para mais, poderá haver direitos reais que não se encontrem neste livro.
Ao analisar-se o Livro III, apura-se haver em comum, entre as demais figuras compreendidas, a atribuição ao respectivo titular de poderes de uso ou de fruição sobre uma coisa (direitos reais de gozo) – a enfiteuse está hoje abolida; de fora fica a posse.
Os direitos reais não se esgotam nesta categoria. O próprio legislador, no artigo 1539º/1 contrapõe direitos reais de gozo e direitos reais de garantia. Os direitos reais de garantia (656º a 761º) caracterizam-se por atribuir ao seu titular uma situação de preferência na realização de um crédito à custa do valor de certa coisa.
Para além destas duas categorias de direitos reais, encontram-se ainda dispersas no Código Civil, e legislação avulsa, certas figuras caracterizadas genericamente por terem eficácia real e atribuírem ao respectivo titular o poder (potestativo) de, mediante o seu exercício, adquirirem certo direito real sobre determinada coisa. Trata-se dos chamados direitos reais de aquisição (413º; 421º; 1409º; 1535º).
Perante esta multiplicidade de figuras reais fará sentido falar de uma categoria unitária de direitos reais? A resposta a esta questão é afirmativa. Para Prof. Pedro Albuquerque faz todo o sentido falar numa categoria unitária, porque há algo de comum a todos eles:
- todos incidem sobre coisas, envolvendo uma particular afectação das suas utilidades à realização de interesses de pessoas determinadas;
- todos têm eficácia erga omnes (eficácia real em relação a terceiros);
- por outro lado, o artigo 408º/1 refere-se a “direitos reais sobre coisa determinada”, sem estabelecer distinções entre as modalidades de tais direitos;

. A função e a estrutura dos direitos reais

Para Prof. Carvalho Fernandes os direitos reais asseguram, ao seu titular, a realização de interesses próprios mediante o aproveitamento de utilidade de coisas determinadas.
Para Prof. Pedro Albuquerque deve fazer-se uma aproximação mais rigorosa. Deve abandonar-se o interesse. Para ele, o direito real constitui a atribuição de coisas às pessoas. A atribuição não tem de ser exclusiva, pode repartir-se por várias pessoas (ex: compropriedade).

. A formação da categoria

. O Direito das Coisas como ramo do Direito Privado

Para Prof. Carvalho Fernandes, o Direito das Coisas pode definir-se como um conjunto de normas jurídicas que rege a atribuição de coisas com eficácia real.
No conjunto do Direito Civil, o Direito das Coisas tem marcada natureza patrimonial, segundo o critério corrente e sobejamente conhecido de repartição das realidades jurídicas em patrimoniais e não patrimoniais: avaliações em dinheiro.

. Razão de ordem (estudo de direitos reais)
- análise casuística do regime de casa um desses direitos reais;
- análise precedida de uma elaboração de uma teoria geral desta categoria jurídica;

TÍTULO I – DOS DIREITOS REAIS EM GERAL

Capitulo I – CARACTERIZAÇÃO DOS DIREITOS REAIS

Secção I – Noção de Direito Real
Professor Menezes Cordeiro

. Concepções clássicas e sua evolução

As concepções clássicas do direito real assentam numa primeira ideia, ligada à segunda sistemática e que, no essencial, vê nele um poder directo e imediato sobre uma coisa.
As concepções subjacentes à terceira sistemática propõem o direito real como poder absoluto, reportado a uma coisa.
Por fim uma síntese entre as duas construções anteriores implica no direito real uma face interna, expressa num poder directo e imediato sobre uma coisa e uma face externa, consubstanciada numa relação absoluta e virada para todos os sujeitos do ordenamento.

. Concepção defendida; doutrina de oliveira ascensão; critica

Para o Prof MC, o rireito real existe quando o bem implicado pelo direito subjectivo seja uma coisa corpórea, ou seja, é uma permissão normativa específica de aproveitamento de uma coisa corpórea.
O Prof. Oliveira Ascensão entende o direito real como um direito absoluto, inerente a uma coisa e funcionalmente dirigido à afectação deste aos interesses do sujeito. Na base surge a concepção do direito subjectivo como afectação de um bem a uma pessoa. Trata-se de uma concepção que supera a perspectiva de Regelsberger, evitando a intromissão da vontade na matéria, não comportando, porém, a integração sistemática e a operacionalidade possibilitadas pela ideia de permissão normativa de aproveitamento de um bem.
O Prof. Oliveira Ascensão acentua no direito real a nível do seu próprio conceito:
- Absolutidade – refere-se a ela numa perspectiva estrutural: a não integração em relação jurídica. Esta concepção é de aplaudir mas não caracteriza os direitos reais (há direitos reais relativos – integrados em relação jurídica) bem como direitos não reais relativos (os créditos, por exemplo.).
- Inerência – implica a ligação íntima entre o direito real e o seu objecto: enquanto ambos existirem, pode o titular atingir a coisa onde quer que ela esteja. O Prof. Menezes Cordeiro aceita-a como expressão do objecto do direito real: a coisa.
- Funcionalidade – O Prof. Oliveira Ascensão, refere-se a ela no sentido de restrição dos direitos reais às figuras em que houvesse um aproveitamento das próprias qualidades da coisa; de fora, designadamente, ficariam os casos de aproveitamento puramente jurídico, em que as vantagens atribuídas ao titular seriam artificialmente engendradas pelo Direito, sem ligação à coisa em si. Assim, se uma pessoa tivesse o direito de cobrar a outra metade das colheitas, em certas circunstâncias complementares, o direito seria real; se pudesse apenas receber um quantia fixa, faltaria a realidade.
Ora a um núcleo essencial em que a realidade implicava o aproveitamento das coisas como coisas veio, desde cedo, somar-se a hipótese de um aproveitamento artificial. Por isso, à categoria dos direitos reais de gozo vieram a somar-se a dos direitos reais de garantia e de aquisição, cujas vantagens são apenas potenciadas pelo direito. Por outro lado, há casos nos quais um aproveitamento funcional duma coisa é conseguido por via não real.
Não concorda por isso, o Prof. Menezes Cordeiro, com a funcionalidade defendida por Oliveira Ascensão

Professor Carvalho Fernandes

. Colocação do problema

Os direitos reais são direitos subjectivos, tomada esta expressão em sentido amplo, e participam, como tais, das categorias desta categoria jurídica. Quando se trata de fixar a sua noção, é legitimo partir da forma como se concebe o direito subjectivo e apurar de seguida as notas particulares do seu conteúdo, da sua estrutura ou do seu objecto, demarcando-se assim de outras modalidades de direitos subjectivos.
Deste modo, vamos ter em atenção as diferentes maneiras como os diversos Profs.[1]concebem os direitos reais.

Concepção clássica:
Nesta concepção o direito real é entendido como um poder directo e imediato sobre uma coisa. Esse poder é umas vezes entendido como um poder material e outras vezes como um poder jurídico. De qualquer modo, ao dizer-se poder directo está a traduzir-se uma ideia de domínio sobre certa coisa. Ao dizer-se poder imediato quer-se dizer a faculdade de aproveitamento das utilidades da coisa, sem necessidade da colaboração de outrem. Nesta concepção realça-se a particular posição da coisa como objecto do direito, chegando por vezes este ponto a ser formulado em termos que sugerem uma relação entre o titular do direito e a coisa.
- O Prof. Henrique Mesquita, que configura as relações jurídicas reais como relações de domínio ou soberania estabelecidas directamente entre as pessoas e as coisas.
Críticas a esta concepção clássica:
- A ideia de poder é imprópria para a realidade em questão (Menezes Cordeiro).
- Estaremos diante de um poder material ou um poder jurídico? É que os direitos reais nem sempre implicam poderes materiais sobre coisas (como a hipoteca ou a nua-propriedade). Com efeito, os defensores desta concepção não tomam posição sobre este problema.
- Esta concepção sugere a existência de uma relação entre certa pessoa e uma coisa, que se não ajusta à ideia corrente de relação jurídica. Os direitos reais, como todos os direitos subjectivos, envolvem uma relação entre pessoas, não com uma coisa.

Concepção moderna/ personalista:
Esta concepção parte da ideia de relação jurídica. A relação jurídica caracteriza-se por nela existir um poder absoluto, que a todos vincula, e a que corresponde, do lado passivo, o chamado dever geral de respeito. Nesta concepção entronca a ideia de obrigação passiva universal.
Esta ideia é errada. Com efeito, muitos autores salientam o absurdo de conceber uma relação jurídica na qual, do lado passivo, se encontre a generalidade dos homens, para além do titular do direito, ou seja, o absurdo de se conceber um direito absoluto caracterizado pela possibilidade de fazer valer contra quem ameace interferir, com a coisa.
Prof. Mota Pinto – concebe o direito real como «o poder de exigir de todos os outros uma atitude de respeito pela utilização da coisa em certos termos por parte do titular activo». Para fazer sentido, esta ideia impõe a necessidade de delimitar a esfera de acção a respeitar, ou seja, quais os poderes cujo exercício não pode ser perturbado.
Há no direito real um lado externo (traduz a ligação intersubjectiva correspondente ao poder de exigir dos outros uma conduta conforme à obrigação passiva universal) e um lado interno (poderes exercitáveis sobre a coisa).
Prof. Gomes da Silva – concebe o direito subjectivo como a afectação jurídica de um bem aos fins de pessoas individualmente consideradas. No direito real o bem afectado será uma coisa. Neste ponto o Prof. Oliveira Ascensão critica o facto de se cair na tentação de distinguir os direitos subjectivos pelo seu objecto, quando o elemento de distinção deve ser o conteúdo. A verdade é que esta critica não é decisiva, dado que a concepção do Prof. Gomes da Silva é suficientemente aberta para permitir ultrapassá-la, uma vez que a sua nota básica reside na afectação jurídica de um bem, e as diferentes modalidades de afectação traduzem, o conteúdo do direito subjectivo, permitindo assim delimitar as suas diversas manifestações.
Prof. Oliveira Ascensão – Concebe os direitos reais como absolutos, inerentes a uma coisa e funcionalmente dirigidos à afectação desta aos interesses do sujeito.
Temos de ter presentes duas considerações do autor: a possibilidade de conceber a existência de direitos subjectivos independentemente de um relação intersubjectiva, concebendo o direito subjectivo absoluto como direito oponível erga omnes (ponto que para o Prof. Carvalho Fernandes é discutível em relação aos direitos de crédito). Assim o direito real seria absoluto. Contudo, dado que essa é também característica de outros direitos este Prof. recorre a outros dois elementos na caracterização dos direitos reais:
- Inerência: respeita à posição da coisa no direito real e significa um tal grau de afectação da mesma que dele não pode ser desvinculada. Por isso, o direito real segue a coisa onde ela se encontrar e prevalece sobre os direitos de crédito relativos à mesma coisa. Também aqui Oliveira Ascensão reconhece que há direitos ditos inerentes, que não são os direitos reais.
- Afectação funcional da coisa: traduz-se em fazer o titular do direito real participar no aproveitamento da coisa para a realização de interesses dele. Aqui o prof. Carvalho Fernandes chama a atenção para o facto desta característica também se encontrar nos direitos pessoais de gozo, e ainda, para o facto de ficar por demonstrar em que consiste a afectação funcional do bem.
Prof. Carvalho Fernandes – Assenta na ideia de direito subjectivo, poder jurídico, como uma disponibilidade de meios jurídicos atribuídos a pessoa determinada para a realização de um fim ou fins jurídico-privados, mediante a afectação jurídica de certo bem.
A afectação do bem pode assumir modalidades muito diversas, tais como diversificados são os meios de actuação jurídica postos à disposição do titular do direito. A conjugação destes dois aspectos delimita o conteúdo de cada direito subjectivo e acaba por interferir com o tratamento jurídico do próprio bem afectado, enquanto objecto do direito.
Nos direitos reais o bem afectado é uma coisa corpórea. Por outro lado, o conteúdo do direito real caracteriza-se como o conjunto de meios que asseguram a realização de interesses determinados, mediante o aproveitamento, imediato, de todas ou de parte das utilidades de uma coisa.
Deste modo estão envolvidos duas notas:
- A exclusão de terceiros, em relação aos quais o direito é oponível, sendo absolutos neste sentido. A necessidade de C respeitar a situação jurídica de B, e daí a necessidade, em que C se pode ver colocado, de indemnizar os danos sofridos por efeito do não cumprimento da obrigação de dar preferência. Até aqui estamos na presença da «reserva de espaço jurídico que todos tem de respeitar». Mas, nos direitos reais há algo mais a assinalar, sob pena de se deixar sem explicação a faculdade atribuída a B, na preferência com eficácia real, de fazer valer esse seu direito sobre a aquisição da coisa por terceiro, titular de um direito com aquele incompatível. Esse algo é absolutidade, traduzida na oponibilidade erga omnes.
- A ligação particular com a coisa, implicando a efectiva afectação das suas utilidades à realização dos interesses do respectivo titular. Consiste nisto a inerência dos direitos reais. Existem direitos inerentes que não os reais. Nestes a inerência representa apenas «a mera determinação do sujeito passivo de uma obrigação», em termos mediatos, ou seja, atribuindo essa qualidade «a quem quer que seja o titular de um direito real». Não traduz a inerência certa maneira de ser da afectação da coisa ao titular do direito, que faz este participar no aproveita mente das suas utilidades para satisfazer necessidades próprias.
Deste modo para o Prof. Carvalhos Fernandes só em sentido impróprio certos direitos de crédito se podem dizer inerentes.
Poderíamos definir direito real como um direito absoluto e inerente a uma coisa corpórea, afectada à realização de interesses jurídico-privados de uma pessoa determinada. Identificado o direito como poder jurídico, no sentido de um conjunto de meios de actuação jurídica, e atendendo à modalidade de afectação das coisas própria do direito real, consideramos mais adequado defini-lo como o poder jurídico absoluto, atribuído a uma pessoa determinada para a realização de interesses jurídico-privados, mediante o aproveitamento imediato de utilidades de uma coisa corpórea (esta é a posição mais próxima do Prof PA. Discorda contudo o facto de se estar aqui perante um poder, pois, para ele estamos perante um direito subjectivo).

Secção II – Características do Direito Real
Professor Menezes Cordeiro

. A Inerência

Os direitos reais, implicando permissões normativas de aproveitamento de coisa corpórea, colocam-nas, nos termos do seu próprio conteúdo, às ordens do seu beneficiário: o titular do direito. Assim sendo, o titular pode atingir a coisa, enquanto esta existir e o seu direito se mantiver, independentemente de quaisquer vicissitudes que possam atingi-la. Em termos figurados, ocorre uma ligação íntima entre o direito e a coisa expressa. Por ex. nas possibilidades, conferidas ao proprietário, de reivindicar a coisa das mãos de qualquer terceiro (art. 1311.º, n.º1) ao credor hipotecário, de se pagar pelo valor de certos imóveis (art. 686.º) ou ao titular de promessa real, de adquirir a coisa onde ela estiver (art. 413.º). Essa ligação é expressa pela ideia de inerência.

. A Absolutidade

Na doutrina comum diz-se que os direitos reais seriam absolutos, contrapondo-se, assim, a uma alegada relatividade por banda dos direitos de crédito. O termo comporta três acepções:
Estrutural – um direito seria absoluto quando não integrasse nenhuma relação jurídica; na hipótese inversa, surgiria como relativo. Adiante-se já que é esta a acepção correcta para os termos absolutidade e relatividade (uma relação jurídica em sentido próprio implica uma situação complexa na qual dois sujeitos se encontram investidos, respectivamente, num direito e num dever simétricos). Assim sendo, a imagem comum do direito real é, de facto, absoluta: o beneficiário da permissão de aproveitamento da coisa não tem, perante si, ninguém cuja adstrição corresponda ao seu direito. Pelo contrário, o direito de crédito (a permissão normativa especifica de aproveitamento de uma prestação) implica, à primeira vista, uma relação jurídica: existe uma prestação para o devedor e simétrica da do credor.
Tal não chega, contudo, para afirmar a absolutidade estrutural. Com efeito, concebe-se a existência de direitos reais relativos (servidão de vistas, pela qual o beneficiário podendo abrir janelas a menos de metro e meio da sua extrema, aproveita a obrigação do vizinho de não construir a menos de metro e meio da sua própria construção (art. 1362.º) concretiza-se no cumprimento do dever em causa de não construir).
Do mesmo modo, nas obrigações, surgem créditos absolutos (por exemplo, o direito que tenha o destinatário de uma proposta contratual de a aceitar – art. 228.º e 230.º: é um direito potestativo, que não depende de quaisquer deveres simétricos: à sua frente existe, tão-só, uma sujeição.).
Portanto, o Prof. Menezes Cordeiro não concorda com eles.
Como oponibilidade – o direito real seria absoluto por produzir efeitos face a todos (erga omnes) contrapondo-se aos créditos que actuariam, apenas, entre as partes (inter partes).
- Oponibilidade fraca: os não titulares devem abster-se de qualquer ingerência no bem reservado ao titular. Ninguém deve causar danos ao proprietário (art. 483.º).
- Oponibilidade média: os não titulares são impelidos, positiva ou negativamente, a acatar deveres, instrumentais para o aproveitamento permitido. Perante ele, os vizinhos não podem provocar certas omissões (art. 1386.º)
- Oponibilidade forte: o titular pode exigir de um não-titular o próprio bem que lhe é atribuído pelo Direito. Face ao seu direito, os terceiros devem entregar-lhe a coisa (art. 1311.º)
Em direitos reais concretizam-se os três tipos de oponibilidade. Mas tal acontece também com os créditos. Não se contesta que existem diferenças nos regimes das diversas oponibilidades em jogo, consoante a natureza real ou não real dos direitos visados; tais diferenças prendem-se, porém, com o seu conteúdo e não, à partida com a oponibilidade.
Como fonte de responsabilidade – nos direitos reais qualquer terceiro violador seria responsável, por, contraposição aos créditos, em que apenas responderia o devedor. Há, pois, uma autonomização da designada oponibilidade fraca.
Não é assim. Quem viole um direito é sempre responsável (art. 483.º). Quanto muito haveria uma diferença de grau: o crédito redunda num vínculo abstracto que, normalmente, os terceiros desconhecem. Por isso pode acontecer que o violem sem culpa o que, pelo direito português, ilide a responsabilidade (art. 483.º). Pelo contrário, quem actue sobre coisa alheia sabe, em princípio, o que está a fazer; age com culpa. Tal clivagem não se prende, porém, com oponibilidade em si, mas com outro princípio que, esse sim, informa, de facto, os direitos reais: a publicidade.
Em qualquer caso, para o Prof MC a absolutidade não corresponde a qualquer princípio de direitos reais. A doutrina portuguesa veio, progressivamente, a aderir a esta tese, na medida em que acabou por subscrever a chamada doutrina da eficácia externa das obrigações: desde o momento que, ao crédito, é reconhecida a possibilidade de ser eficaz face a terceiros, foi dado o passo fundamental.

. As pretensas sequela e prevalência

Diz-se que os direitos reais são dotados de sequela para exprimir o facto de o seu titular poder atingir a coisa onde quer que ela esteja. Não há, porém, aqui qualquer princípio autónomo mas, apenas, uma expressão dinâmica da inerência.
Pela prevalência, os direitos reais incompatíveis que conflituassem levariam a melhor, uns sobre os outros por ordem de antiguidade, ao contrário dos créditos que apenas permitiriam um rateio sobre o património do devedor; por outro lado, havendo conflito entre direitos reais e direitos de crédito, os primeiros seriam satisfeitos em detrimento dos segundos.
Contudo na presença de direitos reais incompatíveis, não há prevalência: constituído validamente um direito real, seria inviável formar um segundo, faltaria pois o próprio conflito, condição necessária da prevalência.
Mas tão pouco cabe falar de prevalência na hipótese de concurso entre direitos reais e direitos de crédito: quando isso suceda, verifica-se apenas seja a nulidade da constituição do crédito, quando o direito real já existisse (art. 280.º, n.º1) seja a extinção do crédito, quando o direito real sobrevenha (art. 780.º, n.º1 e 801.º, n.º1) por impossibilidade jurídica em ambos os casos.

. Tipicidade

Um dos instrumentos de que o Direito se socorre na regulamentação da vida económica-social é o da fixação de certas categorias jurídicas ou tipos que ele próprio delimita de modo directo ou indirecto. Assim a compra e venda, o testamento, o direito de propriedade e o fruto são, em sentido amplo, categorias jurídicas.
A tipicidade normativa implica uma qualificação, ou seja, a definição das características específicas do tipo mediante a atribuição de um nomen iuris. A tipificação sendo normativa, não é necessariamente legal. O princípio da tipicidade dos direitos reais envolve duas consequências:
- Impossibilidade de constituição de direitos reais não previstos (não tipificados), na lei, isto é, atípicos.
- Impossibilidade de aplicação analógica das normas que fixam o regime dos direitos reais a situações jurídicas não reais.

Princípio da tipicidade

Nos direitos reais vigora o chamado princípio da tipicidade ou numerus clausus (números fechados). Como o próprio nome indica, este princípio impõe uma delimitação do número de direitos reais, admitidos pela ordem jurídica, o que significa que a ordem jurídica tipifica os direitos reais que considera como tais, e não admite que os particulares no uso da autonomia privada possam criar os direitos reais diversos daqueles que a lei consagra.
Importa referir que a limitação da lei não é uma limitação ao CC. O facto da sede principal em matéria de direitos reais ser o CC, não significa que a lei limite a tipicidade à consagração no CC. Pelo contrário, há vários direitos reais não consagrados no CC (por ex., as servidões reais).
O que sucede então quando há violação do princípio da tipicidade? Como o princípio a tipicidade tem natureza imperativa, a violação de uma norma imperativa conduz à nulidade do negócio jurídico. Portanto, se as partes quiseram constituir um direito real diverso daqueles que a lei prevê, o negócio é nulo enquanto negócio jurídico real. No entanto, a lei aproveita o mesmo negócio jurídico desencadeando uma eficácia meramente obrigacional (conversão legal – 293º)

. Valor dos actos constitutivos de direitos reais atípicos

A segunda parte do n.º1 do art. 1306.º no seguimento da consagração do princípio da tipicidade dos direitos reais, estatui que «toda a restrição resultante de negócio jurídico que não corresponda a uma limitação legalmente prevista tem natureza obrigacional».
Enquanto restritivas da autonomia privada, as normas que estabelecem o elenco dos direitos reais típicos não podem deixar de ter natureza imperativa ou injuntiva. Como tais a consequência natural dos actos que as violam é nos termos gerais do art. 294.º a sua nulidade. Contudo, a segunda parte do n.º1 do art. 1306.º ao atribuir-lhe eficácia obrigacional estatui a conversão legal desse negócio.

. A publicidade

Publicidade – quando referida a factos que pela sua relevância importa dar a conhecer para além do círculo das pessoas a quem directamente respeitem, tornando-as patentes ou públicas.

. Modalidades de publicidade

A publicidade pode ser espontânea ou provocada. À materialidade de certos comportamentos anda ligada à publicidade das situações jurídicas de que são um sinal exterior adequado e normal. Por essa publicidade resultar da simples realidade das coisas chama-se espontânea. A provocada é a que deriva de uma actuação intencionalmente dirigida a dar a conhecer a terceiros certa situação jurídica.

. A publicidade como característica dos direitos reais

É manifesto que não se pode afirmar que a publicidade seja um elemento caracterizador enquanto especifico dos direitos reais. Contudo, não é menos verdade que a publicidade assume, neste ramo de direito uma feição de relevo.
A publicidade espontânea, fundada na posse respeita tanto a coisas móveis como imóveis, mas funciona como meio exclusivo de publicidade de direitos reais que têm por objecto as coisas móveis, em geral.
Por seu turno a publicidade organizada assente no regime do registo é caracterizadora dos imóveis.

. A publicidade espontânea: a posse

A função de publicidade da posse podemos partir da noção legal que contém o art. 1251.º: «posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real». Esta noção é marcada por duas notas:
- Liga aos direitos reais de gozo.
- Revela que a posse envolve uma actividade material, genericamente de uso ou fruição de uma coisa correspondente ao conteúdo de certo direito real.
A publicidade possessória tem primordialmente um sentido material de facto e é necessário saber se essa publicidade de facto é acompanhante de uma publicidade jurídica.

Secção III – Classificação dos direitos reais
Professor Menezes Cordeiro

. Justificação e sequência

Elaborado o conceito de direito real e determinada a respectiva compreensão, vamos delimitar as figuras em que é possível descobrir as características da realidade, ou seja, vamos estudar a sua extensão.

. Classificação quanto ao objecto

São inúmeras as classificações possíveis de direitos reais, obedecendo a outros critérios. Tentaremos isolar as mais significativas.
O objecto da afectação que surge no direito real é uma coisa corpórea. Podemos, assim, classificar consoante os tipos de coisas sobre que recaiam.
Limitamo-nos a recordar a distinção principal: entre coisas móveis e imóveis, que dá lugar à classificação dos direitos reais em direitos sobre móveis e direitos sobre imóveis.

. Direitos reais de protecção definitiva e de protecção provisória; crítica

O titular de um direito real de gozo, em termos de direito, goza de uma protecção jurídica que perdura enquanto a existência do seu direito não for posta em causa. Diz a doutrina que a protecção desse direito é definitiva.
Paralelamente, no que toca aos direitos reais de gozo, pretende-se que o simples exercício material de poderes sobre a coisa dá lugar a uma protecção provisória: na medida em que, apurada a titularidade efectiva, surgiria, então, uma protecção definitiva.
Admitamos, a título de hipótese, que a posse é um direito real. Goza da protecção constante dos arts. 1276.º a 1286.º do C.C. Essa protecção, dados os efeitos presuntivos da posse (art. 1268.º, n.º1), cessaria assim que houvesse prova em contrário. Seria o cerne da protecção provisória.
A posse seria, por isso, um direito real de protecção provisória, por oposição aos restantes direitos reais, de protecção definitiva.
Não nos parece possível aceitar semelhante classificação. Se a posse for entendida como direito subjectivo, goza de inteira protecção jurídica, enquanto durar; cessando a protecção cessa a posse. Essa protecção é tão definitiva como a de qualquer outro direito real.
Por outro lado, a protecção que o titular de um direito real diferente de posse efectivamente tem pode ceder se, em qualquer momento, alguém adquirir melhor direito. Visto pelo prisma do eterno devir dos factos humanos, qualquer direito real é provisório.
Paulo Cunha: o critério desta classificação assentaria não na protecção definitiva ou provisória de direitos, mas na protecção definitiva ou provisória de interesses: na situação do possuidor, haveria uma protecção provisória, a aguardar melhor prova, de determinado interesse, ao passo que o titular do direito gozaria da protecção definitiva.
Mas esta ideia leva-nos à implicação do direito subjectivo com os interesses, com a qual o Prof. Menezes Cordeiro não concorda. Ainda assim, não havendo direitos perpétuos e dada a mortalidade da pessoa humana, parece que todos os interesses seriam de protecção provisória.
No fundo a única distinção que seria aqui possível é a de que existem direitos reais que levam a presumir a existência de outros direitos reais, ao passo que há direitos reais cuja existência se presume através de direitos diferentes. O que é dizer: sendo a posse um direito, providenciaria para a publicidade de outros direitos.
Contudo, este factor não nos habilita a classificar direitos reais: o cerne da posse como direito está na defesa e não na publicidade.

. Direito real máximo e direitos reais menores; da oneração ou desmembramento da propriedade.

Distinção clássica, por um lado, o domínio ou propriedade, considerada como direito real máximo, por oposição aos outros direitos reais, tomados como direitos reais menores. O critério de distinção residiria na extensão dos poderes de dominação contidos nas respectivas afectações.
Prende-se com esta distinção a questão de saber se os direitos reais menores são:
- Desmembramentos ou parcelamentos da propriedade.
Em defesa desta posição, dizia-se que havendo dois direitos sobre a mesma coisa, ambos seriam diferentes entre si e diferentes da propriedade; da sua admissão derivaria, no entanto, a propriedade plena. Em rigor, bastaria que sobre uma coisa recaísse, além da propriedade, qualquer direito a favor de terceiro para que já não houvesse propriedade plena: ambos teriam parcelas do domínio, de distinção meramente quantitativa, mas não a propriedade.
- Direitos «a se» que vêm limitar ou onerar um direito de propriedade que porventura exista.
A segunda posição é perfilhada com o considerando de que o proprietário de uma coisa continua a sê-lo, «próprio sensu», ainda que sobre a mesma coisa incidisse um direito de terceiro: esse direito nada mais faria do que limitar a propriedade, sem comparticipar da sua essência.
Não merece que se possa falar em desmembramento da propriedade ou em parcelas do domínio. Não obstante o C.C., em diversas passagens (art. 1306.º, n.º1) parecer defender a possibilidade de desmembramento, tomamos posição francamente contrária.
Hoje não é admissível uma definição quantitativa de propriedade; a propriedade tem traços qualitativos específicos, que não podem ser divididos e que são facilmente detectáveis pela elasticidade.

. Direitos reais simples e complexos

Esta distinção deve-se a Oliveira Ascensão.
Da definição que demos de direito real infere-se que a configuração concreta que cada direito reveste resulta da forma como a coisa é afectada. Ora, uma coisa pode ser afectada por uma forma determinada (direito simples) ou por uma combinação (direito complexo) de formas que, nos termos da lei, podem, noutras circunstâncias, consistir em direitos reais independentes.
Note-se que em rigor não há no direito real complexo um conjunto ou combinação de direitos reais simples: nos termos da tipicidade, não é possível aos particulares combinar direitos simples ou cindir direitos complexos, por um lado, e, por outro, os «direitos» componentes já nada têm a haver com os direitos simples cujos nomes usam.
Oliveira Ascensão entendeu completar a distinção atrás referida pela introdução da subdistinção, entre direitos reais complexos, dos direitos compostos e colectivos.
Direitos complexos compostos: são os que se referem simplesmente como direitos reais complexos.
Direitos complexos colectivos: seriam «certos conjuntos de direitos reais que não perdem, todavia, a sua autonomia: a ligação entre eles é mais lassa que nos direitos reais compostos».
Para o Prof. Menezes Cordeiro esta distinção não deve ser acolhida.

. Direitos reais puros e direitos reais combinados; direitos integrantes e integrados

Partindo da distinção do Prof. Paulo Cunha em direitos puros e integrados por obrigações propter rem, o Prof. Menezes Cordeiro propõe uma nova distinção:
«Todo o direito real é um direito real puro. O direito real combinado surgiria quando o mesmo titular detivesse um direito real e um direito não real, inter-relacionados numa mesma função».
O credor hipotecário teria um direito real combinado com um direito de crédito: a hipoteca em si e o crédito sobre o devedor. Havendo uma combinação de direitos que integre um direito real, não há novo direito real resultante do conjunto, de natureza real: se isso sucedesse, nos termos da tipicidade, teríamos um novo direito real unitário, puro, e não uma combinação de direitos.
- O direito combinado é integrado quando se encontra ao serviço de um direito de crédito – por exemplo, na situação do credor hipotecário, a hipoteca visa garantir a obrigação.
- O direito real combinado é integrante quanto ao seu serviço se encontram obrigações – por exemplo, na situação do comodatário, o essencial é o gozo da coisa proporcionada pela sua posse; as obrigações que o acompanham garantem esse direito real.
Uma vez que nos «direitos reais combinados» só o direito real integrante ou integrado é verdadeiramente real, só este está submetido à tipicidade e demais regras do direito das coisas.

. Direitos reais absolutos, relativos e mistos

Esta distinção baseia-se num critério estrutural. Para tanto partiremos da distinção que já acima estabelecemos entre direitos absolutos e relativos entendendo como tais os direitos que não dão lugar a uma relação jurídica e os que dão lugar a tal relação, respectivamente.
O direito real define-se pela natureza do bem em cuja afectação consiste (uma coisa corpórea) e não pela forma como essa afectação é conseguida. Portanto, a afectação de uma coisa corpórea pode-se conseguir directamente, pela própria actividade do titular – e o direito real será absoluto –, ou indirectamente, pela actividade de outrem – e o direito real será relativo. No primeiro caso não há qualquer relação jurídica intersubjectiva; no segundo caso, essa relação existe.
Por exemplo: propriedade de coisa móvel (o direito real realiza-se, apenas, pelo contacto pessoa-coisa); e o da servidão de vistas (o direito real implica a actividade negativa do titular do prédio serviente, que não pode construir a menos de determinada distância).
Uma categoria que se esclarece com esta distinção é a de direitos potestativo. O direito potestativo, não dá lugar a uma relação jurídica. É, pois, um direito absoluto. Mas sendo um direito dirigido à afectação de uma coisa, nenhuma dúvida há em considerá-lo como real.
Exemplo claro de direito real absoluto, por ser potestativo, é o direito de preferência real.

. Direitos reais de gozo, garantia e aquisição

Direitos reais de gozo: destinam-se a assegurar, ao seu titular, o gozo das utilidades de determinada coisa (por ex.: a propriedade, o usufruto, a superfície e a servidão).
Direitos reais de garantia: destinam-se a assegurar, ao seu titular, a realização de um direito de crédito.

A doutrina moderna tem vindo, porém, a pôr em causa esta distinção. Por um lado, ficaria de fora a importante categoria dos direitos reais de aquisição. Por outro, obedeceria a um critério duplo: estrutural nos direitos reais de gozo – o exercício de poderes sobre a coisa, em termos de dela retirar utilidades materiais – e funcional nos direitos reais de garantia – função de garantir o cumprimento de uma obrigação. Finalmente, conduziria a resultados confusos: existem direitos – como o penhor – em que se verificam aspectos de gozo – a posse – e de garantia – a faculdade de haver através da venda da coisa o valor do crédito não cumprido.

Direitos reais de aquisição: Wolf define-os como: «oneração de uma coisa que dão ao titular o direito de se converter em proprietário».
Há que ter presente que o direito real traduz uma afectação jurídica de uma coisa. Ora a afectação jurídica pode traduzir fórmulas artificiais de aproveitar uma coisa, ou seja, fórmulas que nada tenham a haver com as suas qualidades naturalísticas. Por isso não encontramos, apenas, direitos reais de gozo: os direitos reais de garantia traduzem já uma afectação que não é de apreensão empírica. A evolução consumou-se com a admissão dos direitos reais de aquisição: aqui, a afectação da coisa não traduz um benefício imediato: visa o aparecimento de novo direito.
O direito real de aquisição não provêm da eventual coisa de cuja aquisição se trate, mas sim da coisa afectada à aquisição de direitos, sejam estes reais ou de outra natureza. Pode haver coincidência entre a coisa afectada e a coisa objecto do direito de adquirir, mas essa coincidência não é necessária.
Que assim é, provam-no dois factos:
se o objecto do direito real de aquisição fosse, por definição, a coisa a adquirir, teríamos um direito sobre bem futuro, que nunca poderia ser real.
existem direitos reais de aquisição que visam a aquisição e coisas ainda inexistentes e até de créditos: é o caso dos ónus reais.
Assim, o critério de distinção entre as três figuras terá de ser da destinação global: um direito real será de gozo, de garantia ou de aquisição quando vise, no seu conjunto, proporcionar ao seu titular um disfruto de uma coisa, a garantia de um crédito ou a aquisição de um direito.

. Dos direitos reais de gozo como categoria autónoma

Giorgianni – autonomiza os direitos de gozo, transcendendo o âmbito dos direitos reais, agrupando todos os direitos em que o fenómeno peculiar de gozo fosse detectável.
Para Giorgianni como para o Prof. Menezes Cordeiro «o conceito técnico de gozo deve considerar-se restrito ao fenómeno do gozo directo, no sentido que isso postula uma relação imediata do sujeito com a coisa» e «gozar a coisa significa tirar dela a utilidade que, segundo a sua destinação económica, ela é apta a produzir».
A relação de gozo verifica-se em direitos tradicionalmente tidos por reais, quer em direitos geralmente considerados pessoais, como, por exemplo, a locação. Não pode negar-se uma perfeita identidade entre o gozo do locatário e o do usufrutuário. Ambos esses sujeitos gozam a coisa da mesma forma, através de uma actividade autónoma e própria. Existe, assim, uma relação estruturalmente bem determinada, identificável pelo exercício de poderes sobre a coisa, que se pode descobrir em diversos direitos, reais e de crédito.

. As criticas

O Prof. Antunes Varela critica a anterior construção:
- Em reposta à afirmação de que haveria direitos reais que não se traduziriam pela relação pessoa-coisa, responde que também, por exemplo, na hipoteca e no penhor essa relação existiria: «qualquer dos interesses do titular se satisfaz sem necessidade da cooperação do autor da garantia e, nesse sentido, cabe afirmar que o direito real de garantia se traduz num poder imediato sobre a coisa».
- Em resposta à própria categoria dos direitos pessoais de gozo, tentando demonstrar a natureza pessoal do direito do locatário.
Aquilo que Antunes Varela chama «poder directo» é, para Giorgianni, a inerência. Para o Prof. Menezes Cordeiro não há confusão possível entre os poderes sobre a coisa, implicados na relação material de gozo, e a íntima conexão direito-coisa, que, traduzindo uma afectação jurídica, nada tem a haver com a actuação do sujeito sobre a coisa. Nunca ninguém defendeu que a hipoteca fosse um direito de gozo, razão pela qual Giorgianni tem razão.
Mais importante ainda para nós é o facto de a teoria dos direitos de gozo, de Giorgiani, não poder ser posta em causa pela demonstração da natureza não real do direito de gozo do locatário: isto porque o próprio Giorgianni defende que o direito do locatário, embora de gozo, não é um direito real.
Parece indubitável que existe, em determinados direitos tradicionalmente considerados pessoais ou de crédito, uma faculdade de exercício de actividade directas sobre a coisa. Esse exercício é autónomo, não passando de forma alguma, em nossa opinião, por qualquer «prestação de gozo» da contraparte. Giorgianni tem, pois, razão quanto a este ponto.

. Natureza jurídica do gozo

A locação, o comodato, o depósito, a parceria pecuária são direitos de gozo: em todos eles se assiste ao aproveita mente das utilidades próprias de determinadas coisas, embora com limitações. Todos eles têm sido considerados direitos pessoais pela doutrina maioritária, razão por que seriam «direitos pessoais de gozo» (categoria genericamente admitida no art. 407.ºdo C.C.).
Já o direito de gozo do usuário é univocamente considerado real. As diferenças existentes justificarão tão grande abismo entre direitos de gozo?
Por fim temos de chamar a atenção para o seguinte facto:
- Havendo gozo de uma coisa, há o efectivo aproveitamento das suas qualidades próprias; sendo o gozo lícito, esse aproveitamento é permitido e protegido pelo direito. Há uma afectação de uma coisa corpórea! Se essa afectação não for jurídica, então é causal e cabe perguntar porque lhe assegura o C.C. tantos artigos. Pelo menos entende o Prof. Menezes Cordeiro que aqueles que pensam não existirem aqui alguns elementos reais terão de o demonstrar.

Secção IV – Diferenciação dos direitos de crédito

. A distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito

A doutrina portuguesa (com excepção de Menezes Cordeiro) mantém, em geral, a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito. Nem sempre recorre, porém para o efeito, aos mesmos elementos.
Para Oliveira Ascensão a verdadeira nota característica dos direitos reais reside na sequela. Os direitos reais gozam de sequela e só em relação a eles se pode falar desta característica. Mas, Oliveira Ascensão, atende também à prevalência.
Mota Pinto, distingue pelo recurso a vários elementos que qualificam os direitos reais e faltam nos direitos de crédito: a absolutidade, a sequela e a inerência, sendo esta um sintoma da sequela e da prevalência.
Para Antunes Varela, o traço saliente da distinção entre direitos reais e de crédito reside na natureza absoluta dos primeiros; daí derivam as características da prevalência e da sequela. Salienta ainda que os direitos reais se caracterizam, no seu lado interno, como poder de soberania sobre a coisa e estão subordinados ao princípio da tipicidade.
Para Carvalho Fernandes a distinção entre os dois tipos é de manter, com base em vários elementos:
- A sua permanência ao longo da história revela estarmos em presença de uma daquelas distinções entre institutos jurídicos que contribuem para a melhor descrição e compreensão da realidade jurídica. Sem ir ao ponto de daí inferir uma necessária diferente natureza de tais figuras, não podemos deixar de reconhecer que essa constância da doutrina não pode ser destituída de valor, só devendo ser eliminada perante argumentos decisivos. Não entendemos ser o caso.
Substancialmente, os direitos reais e os direitos de crédito, para além de corresponderem, na vida económica, a duas realidades modalidades de circulação de bens, têm, do ponto de vista jurídico, natureza diferente.
O problema reside na dificuldade de fixação dos elementos significativos da distinção. Ora os fundamentais têm de ser referidos ao conteúdo e à particular incidência das faculdades que o integram sobre o objecto dos direitos reais.
Assim, a primeira nota a assinalar é a sua absolutidade. Os direitos reais têm natureza absoluta, no sentido de as faculdades conferidas ao seu titular serem oponíveis erga omnes. Ela não é privativa dos direitos reais, contudo esta característica acaba por assumir nos direitos reais uma nota particular por razões ligadas ao seu próprio objecto. Sendo este sempre uma coisa certa e determinada, o carácter absoluto dos direitos reais projecta-se na inerência, que, por seu turno, se desenvolve em outras notas – a sequela e prevalência. A subsequente analise destas características ajudará a esclarecer estes aspectos.
Podemos chamar já a atenção para os seguintes pontos. O poder atribuído ao titular do direito real assume uma feição muito própria, traduzida na modalidade de que se reveste a afectação da coisa ao seu titular. A ordem jurídica põe à disposição do titular do direito real meios de actuação jurídica que lhe asseguram a possibilidade de realização dos seus interesses, mediante o aproveitamento imediato de utilidades da coisa. Nos direitos de crédito não acontece assim, havendo com maior ou menor relevância, a mediação do devedor. A este cabe a obrigação de entregar a coisa e a de assegurar o gozo dela.
Dessa forma particular de afectação da coisa, nos direitos reais, resulta que eles acompanham as coisas nas suas vicissitudes – sequela – e excluem direitos incompatíveis constituídos sobre a mesma coisa – prevalência.





TÍTULO II – A POSSE

Introdução
A posse exprime uma situação na qual uma pessoa tem o controlo material duma coisa. A ocorrência «controlo material» analisa-se em duas proposições:
- Uma pessoa (o possuidor) exerce, ou pode exercer, a sua actividade sobre uma coisa corpórea, de modo a, dela, retirar (ou poder retirar) as vantagens que, pela sua natureza, ela possa proporcionar.
- Essa mesma pessoa está em condições de excluir qualquer outra, desse aproveitamento.

Uma situação deste tipo não pode deixar de ter consequência no direito. Perante o controlo material, pode o direito tomar, em abstracto uma de duas posturas:
- Ou protege esse controlo, considerando-o como estatuição normativa.
- Ou, independentemente de haver protecção, toma-o como ponto de partida para a aplicação de novas regras.
No primeiro caso, o controlo material surge como um direito subjectivo ou como o conteúdo de um (ou mais) direitos subjectivos; no segundo, esse controlo é um facto jurídico.

Capítulo I – DOGMÁTICA GERAL

Secção I – A função da posse

. As teorias

Agrupamos as teorias relativas às funções da posse em:
Teorias relativas: vêem o fundamento ou função da posse em elementos ou factores a ela estranhos.
Teorias absolutas: intentam, descobrir, na própria posse, as razões do seu reconhecimento.

Oliveira Ascensão defendeu, recentemente, a posse como uma manifestação do princípio da inércia. Contudo o Prof. Menezes Cordeiro, acentua o papel autónomo da posse, designadamente pela função social.
Não há teorias erradas: todas elas nos dão uma parcela da verdade. De todo o modo, parece possível aproximar diversos aspectos do regime em jogo, de certas funções mais delimitadas.
Apenas excluiríamos uma particular relevância que intentam aproximar a posse da tutela de regimes económicos. A posse não discute os beneficiários da apropriação, nem o objecto da mesma.

. Posição adoptada: tutela dominial e protecção da confiança

No tocante à função da posse, para o Prof. Menezes Cordeiro é primordial sublinhar que ela não foi inserida, nos Direitos da actualidade, como algo de particularmente gisado ou pensado. Ela surge, fruto de longa evolução histórica.
A posse proporciona os seguintes efeitos práticos:
Publicação e defesa – transparecem nas presunções possessórias e nas acções possessórias. Fundamentalmente, defende-se, por esta via, a propriedade ou o direito de base, nos termos do qual a posse seja exercida: parece-nos evidente que, na grande maioria dos casos, o beneficiário dos esquemas possessórios é o titular do direito de base. Nas restantes situações, a publicidade e a defesa possessória tutelam a confiança: de próprios e de terceiros.
Usucapião e aquisição dos frutos – podem aproveitarão proprietário. Porém, se bem se atentar, a sua valia autónoma tem ver com tutela da confiança: quem, longamente, possua uma coisa sabe, a partir de certa altura, que não será despojado dela. E quem, de boa fé, aproveitar uma coisa, sabe que adquire, legitimamente, os frutos. A confiança é, geral: os adquirentes, de coisas ou de frutos, sabem ter uma hipótese suplementar de não adquirir a non domino.

Secção II – A posse e a detenção

. Os termos actuais do problema

A posse arranca do controlo material duma coisa corpórea. Uma situação desse tipo pode advir múltiplos circunstancialismos: compreende-se que o direito intervenha, de modo a fixar os contornos ou os limites da figura.
Uma tradição românica por Savigny, consagrou a ideia de posse assente em dois elementos: o corpus, ou controlo de facto em si e o animus ou intenção de ser proprietário (animus domini) de ser possuidor (animus possidendi) ou de ter a coisa para si (animus sibi habendi).
Não obstante, o peso da tradição e a necessidade de delimitar, em geral, a posse de detenção, têm elevado a doutrina maioritária do Sul a exigir, junto do corpus e para que, de posse, se possa falar, o animus.
Para Savigny, o ponto de partida é a detenção (controlo material da coisa) a qual, acompanhada duma especial vontade, dá azo à posse, para Jhering, tal ponto é constituído pela posse (controlo material, logo voluntário, da coisa) a qual, quando descaracterizada pelo Direito, se reduz a mera detenção.
As pessoas dispõem do controlo material das coisas: mas caso o queiram, evidentemente. Qualquer controlo cessa, de imediato, se essa for a decisão de quem exerça. A hipótese dum contrato puramente casual com uma coisa é, juridicamente irrelevante. Podemos assentar, como evidência cartesiana, em que tanto a posse como a detenção têm, na base, um controlo humano (e, logo, voluntária), da coisa.

.As dificuldades do «animus» subjectivismos linguísticos

O animus subjectivo levanta uma série de dificuldades. A primeira dificuldade tem a ver com o sentido da volição. Animus domini? Está hoje entendido que pode haver, nos termos dos direitos reais menores. Animus possidendi? A expressão é tautológica e deixa na penumbra os limites da posse: a posse nos termos dos direitos pessoais de gozo ficaria abrangida. Animus sibi habendi? Pouco esclarece e deixa, igualmente, na sombra, os limites da posse.
A segunda dificuldade tem a ver com a evidente inexistência actual de sistemas subjectivos puros. Savigny teve o cuidado de explicar que o animus era um requisito jurídico, para a existência da posse. Não havia leis modernas sobre o instituto: apenas o Corpus Iuris Civilis. Na falta de critérios explícitos, para a distinção entre posse e detenção, quedava o apelo à vontade humana. De certo, ele contracenava com a própria ideia de direito subjectivo, como poder da vontade e com a inclusão da posse no Direito das obrigações enquanto instrumentos destinado a assegurar a paz social.
Hoje, não é assim. Nenhum legislador abdica de prescrever a posse ou de vedar a sua existência, independentemente de quaisquer animi. Todas as leis actuais contêm o factor negativo, da fórmula objectiva de Jhering: é um dado da observação. O animus, a ser requerido, teria de se conjugar com ele.
Uma terceira dificuldade tem a ver com o regime do próprio animus. Em direito temos de assentar na subsidiariedade das ideias e dos conceitos. Quando se insista na presença dum animus, há que lhe aplicar o regime próprio da vontade e das suas exteriorizações.

. A orientação do Código Civil

Corpus (el. material) – exercício de direitos correspondentes ao direito sobre a coisa;
Animus (el. Psicológico) – vontade do possuidor de actuar como titular do direito;

No tocante à posse e à detenção, o CC coloca problemas que não têm encontrado qualquer solução satisfatória. Após a publicação do Código, a doutrina encaminhou-se para um entendimento subjectivista da posse: a detenção ocorreria perante a ausência de animus, na pessoa que exercesse o poder de facto.
Na opinião do Prof. Menezes Cordeiro, e também do Prof. Oliveira Ascensão, alterando a posição anterior, viria a considerar que «a lei é em tudo marcadamente objectivista», com excepção do art. 1253.º, al. a), para o qual, propõe, depois, determinada interpretação.
Se percorrermos todo o articulado, referente à posse, e com excepção do art. 1253.º al. a), verificamos que não há, de facto, referências ao animus ou a qualquer outro elemento subjectivo. Tais referências faltam no art. 1251.º e no 1263.º.
Constata-se a existência de soluções possessórias que dispensam qualquer animus: a posse pode ser adquirida por quem não tenha o uso da razão (art. 1266.º) ou tanto sucedendo com o funcionamento da usucapião (art. 1289.º, n.º2).
Mais relevante ainda parece ser a sistemática do CC, o qual define a posse, sem qualquer animus (1251.º) e, depois, por defeito, indica situações de detenção (art. 1253.º). O estilo e a sistemática são objectivistas.
O CC, aparentemente limita a posse ao exercício correspondente a direitos reais (art. 1251.º). Porém concede as defesas possessórias, ao locatário, ao parceiro pensador, ao comodatário e, até, ao depositário. O argumento, formalmente, é reversível: afinal, se o legislador concede acções possessórias, fá-lo por eles não serem possuidores. O Prof. Menezes Cordeiro, valoriza o aspecto material: se há acções, há posse. O resultado final é uma distribuição ampla da defesa possessória: logo o sistema é, substancialmente, de tipo objectivo.
Como argumentos subjectivistas temos:
- A opinião dos autores das revisões ministeriais;
- O art. 1253.º, al. a), do C.C. Com efeito, são havidos como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito.

. Continuação; as situações de detenção

O art. 1253.º do C.C. refere, nas suas três alíneas, outras tantas situações que considera detenção ou posse precária:
- O exercício do poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito al. a).
- O simples aproveitamento da tolerância do titular do direito al- b).
- A situação dos representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, dos que possuem em nome de outrem al. c).
Deixaremos a al. a) para mais tarde.
O art. 1253.º, al. b), refere, como detentor, o beneficiário da mera tolerância.
O ante projecto de Pinto Coelho tinha uma fórmula excelente (actos facultativos ou de mera tolerância), na qual se mantinha uma procurada indistinção entre os actos facultativos e os de mera tolerância e colocava-se o tema em sede exacta: afinal, não há, aí, nem possessio civilis, nem possessio naturalis, isto é, nem posse, bem detenção.
O C.C. consagrou uma solução onde aponta somente actos de mera tolerância, elevando-os a detenção.
A jurisprudência tem ampliado a noção de tolerância, levando-a para além da mera simpatia ou da obsequidade entre vizinhos. A jurisprudência veio a centrar a mera tolerância no exercício tácito ou expressamente autorizado pelo proprietário, mas sem a concessão, por este último, dum direito. Os tribunais superiores têm tido em vista, como sendo de detenção, situações de intenso controlo: assim o viver numa casa, o ocupar um terreno durante 12 anos, nele construindo um casa com anexos ou construir uma casa com autorização do dono do terreno: nenhum destes casos daria lugar a posse, por haver simples tolerância. Esta não se confunde com o comodato: não haveria, nela, qualquer contrato. O sistema português não reconhece as acções possessórias aos meros detentores, a qualificação legal do beneficiário da mera tolerância como detentor não tem tido consequências dogmáticas: apenas linguísticas.

A situação dos representantes ou mandatários do possuidor ou dos que possuem em nome de outrem, corresponde à possessio naturais ou detenção propriamente dita. Ficam abrangidos os possuidores da coisa em termos de direitos reais menores ou de outros direitos de gozo, em relação à posse, em termos de propriedade. Tais titulares são possuidores, em nome próprio, nos termos do direito que os legitime: meros detentores, contudo, em termos de propriedade. É o fenómeno da sobreposição de posses.
O art. 1253.º, al. c), abrange, ainda, as situações de representação formal, bem como as situações nas quais o agente actua em nome de outrem, mesmo sem representação formal. Tal o caso da gestão representativa de negócios, bem como da situação dos auxiliares com contemplatio domini.
A referência ao «mandatário do possuidor» resultou de lapso das revisões ministeriais: não se atentou em que o C.C. dissociou o mandato da representação. Havendo mandato sem representação, o mandatário «… adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra …» (art. 1180.º) e, portanto: adquire a posse. Apenas é obrigado, depois, a transferir para o mandante os direitos adquiridos, em execução do mandato (art. 1181.º, n.º1). Vamos, pois, admitir que a exopressão «mandatários do possuidor» tenha sido usada fora do seu alcance técnico, traduzindo, apenas, o mandato com representação e outras situações de actuação com contemplatio domini.

Alínea a): a sua interpretação literal levar-nos-ia a considerar como detentores as pessoas que exercem o poder de facto em termos altruísticos: «… sem intenção de agir como beneficiário do direito». Não pode ser: basta pensar numa interposição real de pessoas: alguém pode ser titular dum direito e agir sem intenção de ser seu beneficiário. O facto de exercer um poder, «… sem intenção de ser beneficiário do direito», não é incompatível com o animus domini, o animus possidendi ou o animus sibi habendi.
Saindo da interposição literal, poderíamos aproximar a al. a) da velha categoria dos actos facultativos. A sua supressão do anteprojecto de Coelho Pinto leva a optar por reconduzi-la aos actos de mera tolerância. Além disso, a al. a) não o mínimo de correspondência com «actos facultativos».
Uma terceira hipótese é hoje avançada por Oliveira Ascensão: o art. 1253.º, al. a), contemplaria aqueles casos nos quais o próprio agente declarasse não querer ser possuidor. Teríamos uma intenção declarada, compatível com uma orientação objectivista. Trata-se duma orientação muito interessante, que permite reflexões fecundas, mas que não podemos subscrever: quem, voluntariamente, exerça o poder de facto, não pode evitar ser possuidor apenas por exteriorizar uma vontade em contrário. Para não ser possuidor, uma de duas: ou abandona a coisa, ou se coloca numa situação típica de detenção. Duas razões:
- A irrelevância da protestatio facta contraria: de acordo com as regras gerais, a actuação voluntária não é descaracterizada pelo facto de o agente fazer afirmações em contrário.
- A posse não dá direitos, apenas; também provoca o aparecimento de deveres; assim, o possuidor de má fé responde pela perda ou deterioração da coisa (art. 1269.º), deve restituir os frutos e responde pelos frutos que o proprietário diligente poderia ter obtido (art. 1271.º).

Oliveira Ascensão dá dois exemplos, que passamos a transcrever:
Um emigrante deixou na sua aldeia bens ao abandono. Um vizinho toma conta deles mas declara categoricamente que o faz apenas em nome do emigrante, a quem restituirá tudo logo que regresse.
Ou que aquele que cultiva a terra alheia declara que trabalha para o dono da terra.
Em qualquer destes casos, não se adquiriu a posse, que tem de significar um poder autónomo exercido sobre a coisa. Ainda que não haja mandato ou contrato de trabalho, os intervenientes desvalorizaram a sua intervenção. Nestes casos não há posse, diz-nos a lei – há mera detenção.
Nestes casos há gestão de negócios (art. 464.º). Se o interventor declarar que actua em nome do proprietário, a gestão é representativa: há detenção, por via do art. 1253.º, al. c). se o não fizer, a gestão não é representativa: o interventor é possuidor, embora deva transferir tudo o que obtenha, para o dono, por força dos arts. 1181.º, n.º1 e 471.º. Os exemplos de Oliveira Ascensão, quando possam ser reconduzidos à detenção, são-no por via do art. 1253.º, al. c) e não da al. a).

. Conclusão; A natureza mista do sistema português

O CC. é o único que se aventura a referir, de modo expresso, a «intenção», a propósito da distinção entre a posse e detenção. Pela lógica savignyana, a falta de «intenção» deveria caracterizar todos os casos de detenção. Já se vê que não é essa a saída do C.C.: as als. b) e c) do art. 1253.º, consignam, em termos totalmente objectivos, duas situações que qualificam como sendo de detenção: a dos actos de mera tolerância e a da posse em nome de outrem.

A primeira constatação é a de que o C.C. português, pela ligeireza com que foi revisto, acabaria por consagrar um sistema misto. Desde os romano e até hoje que se tem visto, na simples detenção, a posse em nome alheio. Tal «posse» caracterizar-se-ia pela falta de animus. Eis o drama: ao referir e com a maior amplitude, na al. c), a posse em nome alheio, o legislador esgotou o universo da detenção; onde encaixar o «… poder de facto sem intenção …», da al. a).

A solução possível terá de ser doutrinária: a lei não consagra uma saída coerente. Seguro é que o legislador no art. 1253.º, al. a), fez uma opção subjectivista, sendo a mesma objectivista, nas restantes als. do mesmo artigo e, em geral, por todo o C.C. Como aproveitar o máximo dos preceitos desavindos?
A presença dum animus subjectivo levanta problemas insolúveis, acima aludidos: não está definido; não corresponde à realidade legislativa global; não implica um regime virado para a vontade humana. Podemos, agora, acrescentar mais dois óbices decisivos, de ordem geral:
- Fazer depender a posse do «animus» é subscrever uma visão emanente da realidade ético-jurídico, de sabor Kantiano; sabemos, porém que o Direito é ministrado do exterior, dependendo da sociedade.
- O Direito não tem maneira de conhecer o que se passa no espírito humano, sendo desejável que assim continue: remeter para um «animus» indecifrável é abdicar de dirigir as soluções.
A única saída para ressalvar o animus do art. 1253.º, al. a), é subscrever, para ele, a teoria da causa.

O art. 1253.º, al. a), contemplará, assim, as situações em que o poder de facto foi adquirido em termos tais que a própria lei afasta a posse desde que a situação não caia no âmbito das als. b) e c), do mesmo preceito. Esta última tem grande extensão, abrangendo, praticamente todas as situações privadas.
Fica-nos para o art. 1253.º, al. a), o exercício do poder de facto sobre bens do domínio público, como se infere do art. 1267.º, n.º1, al. b); também se poderia referir a situação do art. 2096.º, n.º2: o que sonegar bens da herança é considerado mero detentor desses bens. Aí, por via da teoria da causa, não há animus nem posse.
Qualquer outra solução implicaria a inutilização de alguma das al. a) ou c) ou a recondução, da primeira, à res facultatis.

Secção III – A prática do sistema e a sua extensão

Secção IV – Classificações da posse

. Espécies de posse; A posse causal e a posse formal

O art 1258º do CC, sob a epígrafe de posse, indica quatro classificações de posse: titulada e não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta e pública ou oculta.
A primeira distinção a referenciar é, contudo, doutrinária: não consta do Código. Trata-se da contraposição entre a posse causal e a posse formal.
Na posse causal, o possuidor é, em simultâneo, titular do direito em cujos termos se processo o exercício possessório (por outras palavras, estamos perante uma caso de posse causal quando há coincidência entre a titularidade do direito a que a posse se refere). Por ex., A adquiriu o direito de propriedade por usucapião. A usucapião é uma causa legítima de aquisição de propriedade, portanto a pessoa que tem a coisa em seu poder que adquiriu por usucapião a propriedade é simultaneamente proprietário e possuidor nos termos da propriedade.
Por sua vez, na posse formal o possuidor não tem – ou não invoca – essa qualidade. Porquê?
- porque o possuidor nunca adquiriu o direito a que a posse se refere. Por ex.., Américo furta o veículo de B. O autor do furto torna-se por efeito do furto possuidor por força de um facto constitutivo da posse que se chama apossamento. O autor do furto não adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo porque naturalmente o furto não é um modo legítimo de aquisição da propriedade sobre um veículo;
- ou tendo embora adquirido veio posteriormente a perder a titularidade do direito sem contudo perder a posse. Por ex.:, António vai comprar um livro a uma livraria. Escolhe o livre, mete-o no balcão para levar. Paga o preço, recebe a factura, mas o empregado da loja esquece-se de lhe entregar o livro, e António vai-se embora esquecendo-se também ele do livro. Em termos reais, houve celebração do contrato de compra e venda que tem eficácia obrigacional e eficácia real (408º/1 e 879º a)), o que significa que o António quando celebra o contrato adquiriu o direito de propriedade sobre o livro. Importa não confundir o direito de propriedade com a posse que só excepcionalmente se adquire por força do contrato (constituto possessório). Neste caso concreto, como o vendedor se esqueceu de entregar o livro, não houve entrega da coisa, o que significa que o comprador adquiriu a propriedade, mas não adquiriu a posse. Assim, o vendedor, que era proprietário e possuidor, deixou de ser proprietário por força do contrato de compra e venda em que transmitiu o direito ao comprador, mas no entanto, mantendo a coisa em seu poder, manteve a posse. O comprador é agora titular do direito de propriedade, mas não tem posse.

. Posse Civil e Interdictal e Posse Efectiva e Não Efectiva

A posse civil confere plenitude dos efeitos possessórios, sendo apanágio dos direitos reais de gozo, embora com excepções. A posse interdictal faculta, apenas, as defesas possessórias. Em rigor, ela poderá ainda conferir outras possibilidades, entre as quais a fruição, em termos a verificar caso a caso: mas não a usucapião.
Pergunta-se se não poderíamos chamar ao possuidor interdictal, simplesmente, detentor. A resposta é negativa. A posse interdictal é diminuída, por não implicar a usucapião. Mas continua ser verdadeira posse.
Outra classificação contrapõe a posse efectiva à não efectiva: a posse efectiva implica um controlo material sobre a coisa objecto, no momento considerado; a posse não efectiva conserva-se por via puramente jurídica, sem qualquer controlo corpóreo. Ex. paradigmático de posse não efectiva é a do esbulhado, durante o ano subsequente ao esbulho, como se infere dos arts 1278º/1 e 1282º.
A lei refere-se à posse efectiva dizendo, por vezes, “posse actual”: art 1278º/3.

. Posse titulada e não titulada

Segundo o art 1259º/1 do CC, a posse titulada é aquela que se funda em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico.
Importa não confundir a posse titulada, com a titularidade do direito a que a posse se reporta, porque são coisas completamente distintas. Uma coisa é ser titular de um direito a que a posse se reporta, e pode ser titular ou não se houver um facto constituinte desse direito. Outra coisa é a posse ser titulada, ou seja, quando for fundada num modo legítimo de adquirir.
O título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal. A lei afasta a hipótese do título putativo: o n.º 2 do art 1259º exige que o título seja provado por quem o provocar.
A posse titulada gera três efeitos: 1254º/2, 1260º/2 E 1278º/3.

. Posse de Boa Fé e de Má Fé

Pode dizer-se que há má fé, quando o sujeito conhecia, ou devia conhecer, certo facto, e há boa fé quando o sujeito, tendo cumprido os deveres de diligência e de cuidado aplicáveis, desconhecia esse mesmo facto. O CC define a boa fé subjectiva em sete definições não coincidentes (119º/3, 243º/2, 291º/3, 612º/2, 1260º/1, 1340º/1 e 1648º/1). Verifica-se que, nuns casos, ela é um simples desconhecimento enquanto noutros é um desconhecimento sem culpa. Há ainda a reter casos em que a lei, sem referir a boa fé, a teve em vista: 996º/2 e 1006º/2.
O art 1260º/1 definiu posse de boa fé aquela que surge quando o possuidor “… ignorava ao adquiri-la que lesava o direito de outrem”. Não obstante a simplicidade da noção do art 1260º/1, o prof MC considera a boa fé possessória ética.
O nº2 do art 1260º presume de boa fé a estabelecida a favor da posse titulada. Simetricamente, o n.º 3 do referido preceito considera a posse adquirida com violência sempre de má fé, mesmo quando seja titulada.
Esta classificação tem vários efeitos, em matéria de frutos (1270º/1, 1271º), usucapião (1296º), etc…

. Posse pacífica e violenta

O CC define, no art 1261º/2, a posse violenta como a que surge quando “… para obtê-la, o possuidor usou de coação física ou de coacção moral nos termos do art 255º”.
A qualificação duma posse como violenta tem diversas consequências. Assim, tal posse considerar-se-á sempre de má fé (1260º/3). O possuidor esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhado (1279º). Finalmente, os prazos da usucapião só começam a contar quando cesse a violência (1297º).
Estas regras mostram que a noção, aparentemente simples, do art 1261º/2 deve ser complementada. A posse violenta é a que se constitui com coacção. Supervenientemente, porém, a violência pode cessar. Parece, então, que a posse deixará de ser violenta, para ser pacífica. Poderíamos ainda, acrescentar um terceiro termo: o da posse supervenientemente violenta, isto é, a posse que não tendo sido tomada com violência, se mantenha graças a esta. Por ex., a pessoa que, tendo furtado um objecto, usa de violência quando surpreendida pelo dono, assim se mantendo na posse dele.
Perante a violência, o direito deve tomar uma posição muito clara de desamparo. Assim, a definição do 1261º/2 deve ser levada até aos seus limites: a posse constituída com violência será, sempre uma posse violenta, excepto quando a lei permita a recuperação. A má fé resultante do 1260º/3 é incurável.
A violência inicial não impede a sua cessação: é o que parece inferir-se do art 1297º. O Prof. MC defende que se deve tomar uma posição calculista e realista: a violência inicial pode ser sempre repetida; a manutenção duma situação possessória desse tipo é tributária dessa repetição. Assim, apenas uma mudança qualitativa muito clara, por parte da actuação do possuidor, poderá levar à “cessação da violência”. O ónus da prova terá de jogar contra o possuidor violento: cabe-lhe provar a cessação da violência em causa.
A violência supervenientemente deve ser ponderada em termos de normalidade social. Quando ela seja ilícita e causal, em relação à manutenção de determinada situação possessória pensamos que deve ser interpretado latamente o 1261º/2, de modo a, pura e simplesmente, considerar violenta a apontada situação.

. Posse Pública e Oculta

O art 1262º define a posse pública como a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados. Implicitamente, pareceria, pois, admitir-se uma posse oculta, sempre que esse conhecimento não fosse possível
Este preceito tem suscitado múltiplos problemas de interpretação e de inserção sistemática.
Desde logo, sempre se tem entendido que a posse, para o ser, deve ser acompanhada de publicidade. O sistema vigente vai nesse sentido: o art 1251º, define a posse como o “poder que se manifesta”, o que logo implica um traço de publicidade; além disso, o empossamento (1263 a)) implica uma prática reiterada e com publicidade, de actos materiais. Numa inegável contradição, o Código admite, no seu art 1297º, a possibilidade de a posse ter sido tomada ocultamente: não será, então, boa para a usucapião: mas é posse.
Uma segunda fonte problemática tem a ver com o facto de a posse pública ser definida, como tal, não por referência ao momento da sua constituição mas antes de acordo com o modo por que é exercida, em contínuo. Ou seja: a posse pode passar de pública a oculta ou inversamente.
Este segundo aspecto constitui a chave para a articulação dos diversos preceitos relativos à posse pública. Para se constituir, a posse terá de ser cognoscível pelos interessados; pode, porém, subsistir clandestinamente. Simplesmente, enquanto se mantiver neste último estado, ela não é boa para usucapião: será uma mera posse interdictal.

Exemplo Posse Pública: Imagine um imigrante que está a viver em França que tem cá um imóvel. Agora, um terceiro instala-se no seu imóvel e passa a viver sem o conhecimento do imigrante. A posse é pública ou oculta? Podia-se dizer “Bem, o fulano está em França não pode saber, logo a posse é oculta”. Nos termos do regime jurídico português não é assim. A lei diz apenas que é a possibilidade de conhecer. Ora, como relativamente ao imóvel basta a deslocação ao local para se aperceber da situação possessória, mesmo que o imigrante possuidor esteja em França e não saiba da nova posse de outrem, esta última considera-se uma posse pública, porque é susceptível de ser conhecida pelo interessado.
Exemplo Posse Oculta: a posse é oculta quando não é susceptível de ser conhecida pelo interessado. Imagine um carteirista do metro saca a carteira a um passageira desprevenido. Ele tornou-se possuidor pela base do apossamento. Consumou sem conhecimento do legítimo possuidor. O legítimo possuidor normalmente não sabe quem é o autor do furto.

Para Prof. Pedro Albuquerque:
Posse tomada Publicamente + Conhecida publicamente = Posse Pública;
Posse tomada ocultamente + Tomada Pública + Conhecida do anterior proprietário = Posse Pública;
Posse tomada ocultamente + Tomada pública + Desconhecida do anterior proprietário = Posse Oculta;

Para o Prof. PA a posse totalmente oculta não é uma posse em sentido técnico-jurídico.
Para o Prof PA a posse interdictal é uma posse tomada ocultamente que acabou por evoluir e se tornou cognoscível perante o esbulhado.


Capítulo II – VICISSITUDES DA POSSE

Secção I – Constituição e transmissão da posse

. Generalidades; o apossamento

Nas vicissitudes da posse, haveria que considerar, sucessivamente, as suas constituição, transmissão e extinção.
Distinguiremos a constituição ou aquisição originária, sempre que uma situação possessória surja ex novo e a aquisição derivada, aquisição ou transmissão, nos casos em que o sujeito receba, de outrem, uma situação já constituída.
O apossamento corresponde à tomada do controlo material duma coisa. O Código Civil, no art. 1263.º, al. a), exprime-se dizendo que a posse se adquire «pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito». Temos aqui, uma manifestação clara de ampliação e de refracção conceituais: pretendendo definir algo de muito simples, o legislador acabou por se arrimar a uma fórmula mais complexa do que a realidade a definir; além disso, acabou também por acentuar determinadas vertentes, em detrimento do conjunto.
O dispositivo do art. 1263.º, al) a), permite isolar três características que enformariam o apossamento:
- A materialidade: tem a ver com o tipo de controlo da coisa que deve passar a ocorrer, para se falar em posse. Trata-se dum ponto significativo para fazer a contraposição entre a constituição e a aquisição de posse:
a) O primeiro, operando ex novo, implica uma materialidade indubitável;
b) A segunda, como veremos, pode advir de puros esquemas jurídicos abstractos;
- A reiteração: é uma expressão menos feliz para exprimir a ideia de que não basta um acto casual, para consubstanciar apossamento. A reiteração dá-nos uma directriz de intensidade e de duração. Um único acto – meter um anel no bolso – pode ser suficiente, desde que, tendo uma intensidade mínima.
- A publicidade: deveria traduzir, segundo o art. 1262.º, a cognoscibildiade do início possessório, pelos interessados. Como o art. 1297.º admite uma posse «… tomada ocultamente …», temos uma disfunção em que o Código Civil, no tocante aos direitos reais, é pródigo. Vamos procurar harmonizar estes preceitos, admitindo que a «posse tomada ocultamente» não é posse civil mas, apenas, interdictal. A publicidade exigida no art. 1263.º, al. a), reporta-se, apenas, à posse civil. Eis a contraprova: havendo «posse oculta», seria impensável que todos pudessem, pela força, disputar a coisa-objecto, a pretexto de não haver tutela. Há-a, por certo; mas a usucapião não funciona.
Modalidade significativa de apossamento é o esbulho, isto é: o apossamento duma coisa sobre a qual incidia uma situação possessória de outrem, que não deu qualquer assentimento à operação. O esbulho cobre as hipóteses de inversão do título de posse. Mas já a entrega duma coisa, em execução de sentença, não tem sido considerada esbulho.

Exemplos. Questão da intensidade

Imagine que Ana chega ao estojo da sua amiga Sofia, e sem que ela esteja a ver, pega nele e leva-o para casa. Ana consumou um acto de apropriação que levou à constituição do corpus possessório. Este acto pelo qual alguém que não tem até aí nenhum contacto material com a coisa, chama-se apossamento. Contudo, o apossamento varia em termos de intensidade. O acto de apropriação relativamente a este estojo, é suficiente para consumar a intensidade. Às coisas móveis, um só acto é por vezes suficiente para a constituição do corpus. Mas, nem com todas as coisas se passa o mesmo, nomeadamente com os imóveis. Não basta qualquer contacto esporádico e ocasional sobre uma coisa imóvel, para que o apossamento se dê. Por ex., se o Bruno entra num prédio, está a passear e daqui a nada vai-se embora, essa actuação material sobre o prédio não é suficiente, para constituir a coisa debaixo do seu poder e portanto para criar o tal corpus possessório que consubstancie a posse. Contudo, se Bruno entrar no prédio, se instalar, e impedir que o possuidor o tire de lá para fora, pois aí houve uma actuação com intensidade suficiente, para colocar a coisa debaixo do seu poder.
Em suma, o que interessa no fundo, não é tanto a quantidade de actos praticados sobre uma coisa, é a intensidade da actuação que leva a coisa a ficar debaixo do controle do sujeito.

. A inversão do título da posse

A inversão do título da posse, referida no art. 1263.º, al. d), é a constituição duma situação possessória a favor do detentor.
O apossamento pressupõe que alguém, anteriormente sem qualquer contacto com a coisa, inicie um controlo possessório. Pode suceder que o candidato a possuidor já anteriormente tivesse o controlo da coisa sendo detentor: funcionaria, em relação a ele, algum dos factores previstos no art. 1253.º, como fonte de mera detenção ou posse precária. A inversão do título é uma operação pela qual o detentor obtém, ex novo, uma situação possessória, com referência à coisa que já detinha.
O art. 1265.º reporta-se a duas formas de inversão do título:
- A oposição do detentor do «direito» contra aquele em cujo nome possuía. Por ex., imaginemos um caseiro que é em termos legais possuidor em nome de outrem nos termos do 1253º c) O caseiro é também um trabalhador geralmente por conta do proprietário. Certo dia, o caseiro farta-se do seu estatuto e arroga-se da propriedade sobre o imóvel, e impede o possuidor de entrar no imóvel e de praticar qualquer acto relativamente à coisa, arrogando-se ele e afirmando ser o proprietário da coisa, e começa a comportar-se como tal. Ou seja, neste caso, aquele que era mero detentor passa a ser considerado pela ordem jurídica como possuidor nos termos do direito para o qual se arroga a respectiva actuação.
- O acto de terceiro capaz de transferir a posse. Vamos supor o mesmo caso do caseiro. O caseiro é um mero detentor, que é trabalhador por conta de outrem, que toma conta do imóvel para o proprietário que está fora. Vamos imaginar que o proprietário morre e que alguém se arroga da qualidade de herdeiro, e que celebra com o caseiro um contrato de compra e venda, para lhe transmitir a propriedade do imóvel. Que é que a lei considera? Considera este acto é um acto idóneo para inverter o título da posse relativamente ao caseiro. Este, passa a actuar na coisa como proprietário. O que é óbvio, pois uma pessoa que celebra um contrato em que julga ter adquirido determinado direito sobre a coisa, passa a actuar sobre a coisa nos termos desse direito.
A oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía quebra o vínculo da posse em nome de outrem: consumada a operação. Há posse em nome próprio. Impõem-se alguns comentários suplementares:
- A oposição do detentor deve ser interpretada de modo extensivo, por forma a cobrir as hipóteses de detenção que não se analisem em posse em nome alheio;
- A oposição aqui em jogo postula o não-acordo do possuidor anterior: de outro modo, não haveria verdadeira oposição.
Em termos práticos, a jurisprudência tem exigido, na inversão do título de posse, uma actuação mais enérgica do que num simples apossamento. Não basta o mero controlo da coisa pois isso já o interessado tinha, como mero detentor. Temos de presenciar uma actuação efectiva contra o possuidor.
Acto de terceiro capaz de transferir a posse é, no fundo, um acto próprio detentor, celebrado com um terceiro, que dê corpo a uma decorrência não enquadrável numa situação de mera detenção.
O locatário que compra o objecto a um terceiro, inverte o título de posse: fica quebrado o nexo que fazia, dele, um possuidor em nome do senhorio, em termos de propriedade.

. A tradição

A tradição vem referida no art. 1263.º, al. b), que acrescenta ser ela material ou simbólica e feita de anterior possuidor. O C.C. tem em vista uma transferência material do controlo possessório duma coisa, feito por uma pessoa e a favor de outra.
Normalmente, porém, as pessoas não se limitam a trocar objectos: dão uma cobertura linguística ou mesmo jurídica à cedência verificada. Assim, a tradição surge, em regra, como subproduto dum acordo mais vasto. Nesta base, podemos distinguir:
- Tradições típicas: ocorrem nos termos dum contrato translativo.
- Tradições atípicas: verificam-se à margem de contratos que não têm escopo translativo.
- Tradições nuas: processam-se no puro domínio dos factos, sem qualquer acordo que as enquadre.
A validade do acordo que presida ou acompanhe a tradicio é irrelevante: em termos possessórios, esta opera através dos simples actos materiais de entregar e receber a coisa
O CC distingue:
- Tradição material ou real: (se o acto de tradição é da própria coisa em si) seja qual for o enquadramento linguístico ou jurídico que as partes lhe dêem, há uma actividade exterior que traduza os actos de entregar e receber.
- Tradição simbólica: (se em vez de se entregar a coisa em si, se entrega uma outra que tem um significado de conferir posse sobre ela. Por ex., no contrato de compra e venda de um imóvel, o vendedor entrega no notário as chaves da casa ao comprador. Do ponto de vista jurídico esta entrega que não é do próprio imóvel, mas as chaves que lhe permitem o acesso ao imóvel, é equiparada à verdadeira tradição) tudo se passa a nível de comunicação humana, sem directa interferência no controlo material da coisa. De acordo com a tradição romana aqui temos:
a) Traditio longa manu – o acordo translativo opera à distância, sem que as partes cheguem a bulir na coisa. As partes encontram-se à janela, por exemplo, e fazem a entrega/recepção dum automóvel apontando, de longe.
b) Traditio ficta – não haveria, sequer, esse contacto distante com a coisa: tudo se passaria a nível simbólico podendo, quando muito, haver uma entrega/recepção de documentos (traditio per chartam).
c) Traditio brevi manu – o detentor passa a possuidor por acordo com o anterior possuidor. Nada se altera, a nível dos factos, uma vez que o detentor já tinha o controlo material sobre a coisa. Por ex., imaginemos que um arrendatário de um imóvel compra a casa ao proprietário. O arrendatário, em princípio é detentor. Detentor nos termos da propriedade possuidor nos termos do arrendamento. Terá a coisa em seu poder? Por força dos princípios do CC, as coisas processar-se-iam desta forma. O arrendatário teria que devolver a casa ao senhorio, para que este como vendedor lhe entregasse novamente a casa a si. Ora, este duplo acto de entrega é perfeitamente desnecessário se, se considerar que o acto de aquisição do direito por parte do detentor, determina a transferência jurídica da posse. E portanto, quando o arrendatário compra a propriedade ao senhorio, automaticamente se torna possuidor nos termos do direito que adquiriu.

. O constituto possessório

O constituto possessório é o modo de aquisição da posse que opera quando o cedente, após a transferência, se mantenha no controlo material da coisa, como possuidor em nome do adquirente. Segundo Savigny o possuidor passa a detentor, sendo a posse adquirida pelo beneficiário da operação. Por exemplo, Arlindo vai comprar um carro a um stand mas o vendedor só tem aquele carro e precisa dele para exposição ao público. Então combina com o comprador, que só entregará uma semana depois, e o comprador aceita.
Uma subhipótese de constitutum seria consubstanciada na situação em que um terceiro fosse detentor da coisa: ele possuiria em nome do antigo possuidor, passando a fazê-lo em nome do novo, mercê dum acto entre ambos concluído. Um ex. típico, é o caso em que o proprietário de uma casa que tem arrendada a vende a terceiro. A casa normalmente está com o arrendatário, não com o senhorio. Então, se o senhorio decidir vender a casa a terceiro, a lei considera que apesar da casa estar não com o senhorio, mas com o arrendatário, se considera a posse transferida para o comprador ainda que não tenha havido um acto material de entrega.
O CC refere o constituto possessório no art. 1263.º, al. c), explicando o seu funcionamento no art. 1264.º.
O constituto possessório é apenas mais uma forma de tradição simbólica (entrega da coisa sem modificação no controlo material e unicamente através de simbologia humana). Tradicionalmente vê-se nele um duplo acordo:
-Um primeiro pacto, destinado a transferir a posse.
- Um segundo que, mantendo o controlo no transmitente, dele faria um detentor.
Por exemplo: uma pessoa vende uma coisa a outra a qual a empresta à primeira; tudo fica como estava, no plano dos factos, embora o possuidor tenha passado a detentor.
Para Prof. Henrique Mesquita,, só há tradição da posse por constituto possessório se o possuidor for também titular do direito.

. A sucessão na posse

A sucessão na posse exprime o fenómeno pelo qual, havendo sucessão por morte, a posse continua na esfera do sucessor. O art. 1255.º estabelece essa importante regra, explicitando que ela opera independentemente da apreensão material da coisa. Tudo se passa como se, constituída uma situação possessória, esta permanecesse estática, havendo, apenas, uma modificação no seu sujeito.
A natureza intrinsecamente sucessória, da sucessão na posse, dá lugar a diversas particularidades de regime. Assim:
- Não é necessária apreensão material da coisa:
- Não é necessário qualquer acordo ou qualquer declaração de vontade, a tanto dirigida:
- Não há nenhuma modificação no circunstancialismo que qualifique a posse em causa.
É importante sublinhar que o sucessor não tem de dar o seu assentimento para que a sucessão opere: basta a sua qualidade de art. 1255.º e o 1256.º.
A razão é simples: a posse não é, apenas, um direito, antes se consubstanciando como uma situação complexa que envolve direitos e deveres.

Secção II – A perda da posse

. O abandono

O abandono é a cessação voluntária do controlo possessório sobre a coisa; vem especialmente referido no art. 1267.º, al. a). De certo modo, o abandono constitui o inverso do apossamento: tem natureza unilateral e material, devendo assumir um mínimo de intensidade e de publicidade, de modo a ser cognoscível pelos interessados.
Na verdade, depois dele, o apossamento levado a cabo por um terceiro já não constitui esbulho. Ele faz cessar a responsabilidade e os encargos respeitantes ao possuidor de má fé e isso sem prejuízo da aplicação própria das regras da responsabilidade civil.
A renúncia ao direito de propriedade, mesmo imobiliária, é sempre, possível, dispondo, mesmo, de cobertura constitucional. Por outro lado, a posse, sendo fonte de encargos, não pode manter-se contra a vontade do titular, que não queria conservar o controlo material. Estamos no domínio privado.

. A perda ou destruição da coisa

A perda da coisa é a sua saída fortuita do poder do possuidor. O C.C. refere-a, no art. 1267.º, b), como causa de extinção da posse. Impõe-se uma interpretação restritiva.
A pessoa que esqueça uma caneta no tribunal não perde a posse, enquanto puder encontrá-la (art. 1275.º, n.º1). Se no dia seguinte, se lembrar da ocorrência e verificar que ela foi encontrada por terceiro, que não a quer restituir, temos, da parte deste, um autêntico esbulho.
A perda da coisa envolverá a extinção da posse, quando:
- Sobrevenha, por mais de um ano, uma nova posse, de terceiros, incompatível com a anterior.
- Tudo se processe em termos tais que seja manifestamente impossível recuperar a coisa.
A destruição da coisa inviabiliza o controlo material sobre ela: não há, mais, que falar em posse.
A colocação da coisa fora do comércio extingue-se a posse, sempre segundo o art. 1267.º, n.º1, al. b). Trata-se dum esquema tradicional que deve, hoje, ser reconduzido à expropriação.

. O esbulho por mais de um ano

Segundo o art. 1267.º, n.º1, al. d), o possuidor perde a posse «pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano». A palavra «mesmo» deveria ter sido evitada: ela deixa entender que outro tanto sucede quando a nova posse tenha o acordo do anterior possuidor, o que não é o caso: nessa eventualidade, teríamos uma tradição, consumando-se a extinção da posse por cedência.
A posse de outrem contra a vontade do anterior possuidor dá lugar ao esbulho. Nessa altura, constitui-se uma nova posse; a anterior mantém-se por um ano: justamente para permitir ao esbulhado recuperar a coisa, através da acção de restituição. Após este ano caducam as acções possessórias e extingue-se a posse (arts. 1282.º e 1267.º, n.º1, al. d)).

. A cedência

A cedência, referida no art. 1267.º, n.º1, al. c), lado a lado com verdadeiras formas de extinção da posse, tem, apenas, um sentido relativo: ela traduz a perda, para cedente, da sua posse.
Trata-se, em rigor, apenas da outra face da tradição. Podemos desenvolver o tema, afirmando que a cedência pode ser material ou simbólica, envolvendo as hipóteses de traditio brevi manu e o próprio constitutum possessorium, agora pelo prisma do cedente.
A cedência não está dependente de quaisquer regras formais de validade, operando com a mera entrega da coisa, na tradição material, ou com a concretização das competentes operações, na tradição simbólica.

. Outras formas

O art. 1267.º, n.º1 enumera diversas formas de extinção da posse. Ele não é taxativo:
- A expropriação por utilidade pública: é forma idónea para a extinção dos diversos direitos reais. Seria totalmente estranho que, desaparecendo estes, continuasse a posse. Uns e outros cessam, pois, com a posse administrativa, judicialmente decretada.
- O não uso: os diversos direitos reais de gozo são sensíveis ao não uso, nos termos do art. 298.º, n.º3. Seria totalmente inesperado que, extinguindo-se o correspondente direito real, a posse prosseguisse.
- O esbulho seguido da posse de terceiros, de boa fé: resulta do art. 1281.º,n.º2 que a acção de restituição não pode ser intentada contra terceiros de boa fé, que tenham a posse da coisa. Resta concluir que o legislador consagrou uma nova forma de extinção da posse: o esbulho seguido pela posse de terceiro de boa fé.

Capítulo III – EFEITOS DA POSSE

Secção I – A publicidade

. A presunção de titularidade

A posse implica o controlo material de coisas corpóreas. O seu exercício é perceptível, no espaço jurídico, pelos diversos membros da comunidade.
Consubstanciando essa realidade, o art. 1268.º, n.º1 estabelece a favor do possuidor, a presunção de titularidade do direito. Nos caso paradigmáticos de posse em termos de propriedade ou de outro direito real marcante (por ex: servidão de vistas) não haverá duvidas. E quanto a direitos mais subtis? Recordamos que, nos termos da posse interdictal, há diversas situações não reais dotadas de cobertura possessória.
No caso de posse titulada, a presunção possessória vai ter o preciso conteúdo que resulte do titular. Não sendo a posse titulada, teremos de lhe emprestar o conteúdo presuntivo que mais se aproxime da aparência resultante do conteúdo possessório.
O registo predial também tem uma eficácia presuntiva: é o que resulta do art. 7.º do CRP[2]. Pode verificar-se um conflito entre a presunção registal e a presunção derivada da posse. O próprio art. 1268.º, n.º1 resolve o concurso: prevalece a presunção derivada da posse, excepto se houver uma presunção registal anterior.

. Posse vale título

Princípio «posse vale título»: a pessoa que, de boa fé, adquira uma coisa móvel, torna-se proprietário desta, ainda que o alienante não fosse proprietário e não tivesse os poderes necessários para efectuar a alienação. Este princípio, admitido pela generalidade dos países continentais, constitui o mais forte dos efeitos provenientes da posse de boa fé.
O direito português pode receber elementos derivados da «posse vale titulo», apesar de não vigorar entre nós. Tal sucederá, em parte, com o art. 1301.º do CC.

Secção II – Os frutos e o regime do risco

. O regime dos frutos

O art. 1270.º atribui os frutos ao possuidor de boa fé; havendo má fé, o possuidor deve restitui-los, respondendo ainda pelo valor daqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido (art. 1271.º). O sistema é completado por um regime explícito quanto à superveniência da má fé: os frutos são atribuídos ao proprietário, a partir do momento em que cesse a boa fé, havendo, quanto aos frutos naturais pendentes nessa ocasião uma atribuição integral ao proprietário, mediante certas compensações (art. 1270.º, n.º2 e 3).
Os encargos são repartidos pelo titular do direito sobre a coisa e pelo possuidor, na medida dos direitos de cada um sobre os frutos, no período a que respeitam os encargos (art. 1272.º).
Dúvidas quanto ao art. 1272.º:
- O art. 1272.º relativo a encargos, dobra o art. 1270.º, n.º1, no âmbito de aplicação deste, que estabelece os encargos na hipótese de frutos pendentes, quando cesse a boa fé do possuidor. Parte-se do princípio de que a especificação constante do art. 1270.º, n.º2, funciona no caso do art. 1271.º: de outra forma, haveria enriquecimento sem causa do titular do direito real.
- O art. 1270.º, n.º2, compreende uma restrição: os encargos suportados pelo titular não podem exceder o valor dos frutos que vieram a ser percebidos. Essa restrição deve ser estendida ao regime geral constante do art. 1272.º.
- O regime dos frutos, havendo má fé, requer, de igual modo, complementação. O possuidor responde, nesse cenário, também, «… pelo valor daqueles frutos que um proprietário diligente poderia ter obtido» (art. 1271.º).
Dupla desvantagens para o possuidor: obriga-o a uma diligência que não adstringe o titular e fá-lo suportar um risco que, pelas regras gerais, só ao titular diz respeito.

. A perda ou deterioração da coisa

Nos termos do art. 1269.º, «o possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa». A contrario, o possuidor de má fé responde, independentemente de culpa, pela perda ou deterioração da coisa: seria uma hipótese de imputação objectiva ou pelo risco.

Secção III – As benfeitorias

. Classificação das benfeitorias/ regime

As benfeitorias são definidas, no art. 216, n.º1, como «todas as despesas feitas para conservar ou melhor a coisa». Foi preterida a antiga distinção entre benfeitorias materiais ou jurídicas: estas últimas visariam «melhorar» os direitos. A ideia de «despesa» deve ser doutrinariamente alargada, de modo a abranger a adição de novas coisas ou partes de coisas e a incorporação de trabalho.
O C.C. distingue entre (art. 216.º, n.º2):
- Benfeitorias necessárias – têm por fim evitar a perda, destruição ou destruição ou deterioração da coisa;
Quanto ao regime: o possuidor tem o direito de ser indemnizado, esteja de boa ou de má fé
- Benfeitorias úteis – não sendo embora indispensáveis para a sua conservação, aumentam-lhe, todavia, o valor;
Quanto ao regime: o possuidor, de boa ou de má fé, pode levantá-las, desde que não haja detrimento para a coisa; não sendo o levantamento possível, ele é ressarcido de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.
- Benfeitorias voluptuárias – não se enquadram em nenhuma das categorias anteriores, apenas servindo para recreio do benfeitorizante;
Quanto ao regime: o possuidor de boa fé pode levantá-las, se não houver detrimento da coisa; caso contrário perde-as, sem ressarcimento; o possuidor de má fé perde-as, sempre.

Quanto à obrigação de indemnização por benfeitorias é susceptível de compensação com a responsabilidade do possuidor por deteriorizações (art. 1274.º). O preceito tem utilidade na medida em que afasta o art. 835.º, n.º1, al. a). O possuidor de má fé tem direito de retenção pelo valor que deva receber por benfeitorias, conforme se retira do art. 756.º, al. a) e b).

Secção IV – A usucapião

. Dogmática geral

A usucapião pode ser definida como a constituição, facultada ao possuidor, do direito real correspondente à sua posse, desde que esta assuma determinadas características e se tenha mantinha pelo lapso de tempo determinado na lei (art. 1287.º).
Assenta nos seguintes pressupostos:
- Uma posse – não chega a mera detenção, a menos que passe a posse, pela inversão (art 1290.º). A posse deve ser pública e pacífica, embora se admita a superveniência de ambas essas qualidades (arts. 1297.º e 1300.º, n.º1). O direito a constituir deve ser usucapível: ficam excluídos os direitos de uso e habitação e as servidões não aparentes (art 1293.º) e, ainda, em geral, todas as situações possessórias que não correspondem a direitos reais de gozo, nos termos acima propugnados a propósito da posse interdictal.
- Com certas características – ela aproveita a todos os que podem adquirir, podendo os incapazes fazê-lo por si ou por representante (art. 1289.º/1 e 2). Sendo actuada por compossuidor, ela aproveita a todos os restantes (art. 1291.º). Ela tem eficácia, retroactiva, reportando-se à data do início da posse (art. 1288.º). Ela implica as regras da prescrição, de acordo com a remissão do art. 1292.º: o seu regime é inderrogável (302.º); ela tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente (art. 303.º) podendo sê-lo por credores ou por terceiros com legítimo interesse (art. 305.º). Finalmente, e com as necessárias adaptações, são aplicáveis as regras atinentes à suspensão e à interrupção da prescrição, sempre segundo o art. 1292.º.
- Sendo o direito a constituir usucapível – é uma forma originária de aquisição dos direitos. Quando opere, cessam todos os encargos que antes oneravam a coisa desde que, naturalmente, a posse prescricional tivesse operado sem esses encargos. A usucapião sobrepõe-se ao registo.
- E mantida pelos prazos legais.

. A acessão na posse

A propósito da dogmática da usucapião, cabe examinar a figura na posse.
Podemos definir a acessão na posse como o instituto pelo qual, para efeitos, designadamente, de usucapião, o possuidor pode juntar à sua a posse do seu antecessor.
Foi introduzida pelo art. 1256.º.
Para operar a acessão, seria necessário que ambas as posses fossem contíguas, ininterruptas e do mesmo tipo. A interposição, entre ambas, duma posse de terceiro ou a quebra da situação possessória impediriam a acessão. Quanto à posse do mesmo tipo: a doutrina é assente no sentido de, havendo diferenças, a acessão opera no âmbito da menor. Trata-se, afinal, da orientação consagrada no C.C. actual.
O que é uma posse de menor âmbito para o efeito da lei? Imaginem que o possuidor anterior é um possuidor nos termos da propriedade e o possuidor actual é um possuidor nos termos do usufruto. Pode o possuidor nos termos do usufruto que é o possuidor actual invocar a usucapião nos termos da propriedade? Não pode. Quando alguém junta a sua posse à posse do possuidor anterior a lei admite que as posses juntas possam ser posses diferentes. No entanto, na usucapião só se pode dar nos termos do direito menor. Esta é a posse de menor âmbito. Ora se o possuidor actual nos termos do usufruto quiser juntar o seu tempo à posse anterior do proprietário ele só pode beneficiar da usucapião, nos termos do usufruto, pois essa é a posse de menor âmbito.
Mas a posse de menor âmbito não diz respeito apenas à junção de posses, nos termos de direitos reais diversos. Pode acontecer que o possuidor anterior seja um possuidor também nos termos da propriedade e o possuidor actual seja um possuidor também nos termos da propriedade. Simplesmente, o possuidor anterior estava de má-fé, e o possuidor actual está de boa-fé. Ora o prazo de usucapião sobre coisas imóveis sem ter registo que é a hipótese de prazo mais curto. E o prazo relativamente ao possuidor de má-fé é de 20 anos. O possuidor actual tem 15 anos e o possuidor anterior tinha uma posse de má-fé para a qual seria preciso 20 anos para que o prazo de usucapião se desse.
Se hoje o possuidor de boa-fé quiser invocar a usucapião ele só pode fazê-lo nos termos da posse de menor âmbito. Ora, entre uma posse de boa-fé e uma posse de má-fé, a posse de menor âmbito é sempre a posse pior. Se o possuidor actual quer beneficiar da usucapião juntando a sua posse à posse do possuidor anterior ele só pode usucapir com o decurso do prazo de posse pior, ou seja, de 20 anos.
Exige-se que haja um «vínculo» entre os dois possuidores sucessivos. Tal vínculo redunda na presença dum fenómeno de transmissão da posse, requerendo-se uma transferência de facto do poder sobre a coisa.
A transferência da posse há-de operar por uma das formas idóneas para tanto e, designadamente, por tradição ou por constituto possessório. Essa transmissão terá de assentar num título abstractamente idóneo para permitir o direito correspondente à posse: por ex., não há acessão na posse a favor do (mero) promitente adquirente que não possa invocar um título bastante de aquisição da posse. Concretamente o título poderá ser inválido sofrendo dos mais diversos vícios. Para haver acessão na posse, é indispensável seja acto escrito, seja a data certa da ocorrência.
A acessão na posse é pacificamente entendida como um instituto destinado a facultar o funcionamento da usucapião. Por isso, não faz sentido exigir para a cessão na posse mais requisitos do que os postos à própria usucapião.
A acessão na posse é, simplesmente, uma decorrência do fenómeno da transmissão da posse. Noutros termos: para efeitos de usucapião, conta-se o prazo desde o momento da constituição originária da situação possessória e independentemente das eventuais transmissões subsequentes.
Como bem explica Oliveira Ascensão, o sentido do art. 1256.º do C.C. não é o de facilitar a acessão; é, antes, o de, por excepção, permitir, ao interessado não beneficiar da acessão. Assim, quando a sua posse, por ser, por hipótese, titulada, ao contrário da do seu antecessor, conduzisse a prazos mais curtos de usucapião, convir-lhe-ia não invocar a acessão.
O essencial, na acessão, é que a posse se transmite: por isso há «posses consecutivas». Ora a transmissão da posse opera, sabidamente:
- Por tradição – em parte alguma a lei portuguesa exige, para a transmissão da posse, títulos, negócios ou «vínculos» válidos. Estamos no domínio do possessório e não do petitório.
- Por constituto possessório –
O C.C: vigente admite a usucapião baseada em posse não titulada a de má fé (art 1296.º). Ora nestes casos, nunca poderia haver acessão na posse: não havendo título ou registo do mesmo, nenhum notário lavraria a competente escritura. Seria um espantoso retrocesso histórico. Não se pode ter por admitido.

. Usucapião de imóveis (arts 1298º a 1300º do CC)

A distinção entre a usucapião de imóveis e de imóveis tem, hoje, a ver com a temática dos prazos. Temos o seguinte quadro:
- Usucapião de 5 anos (ver art. 1295.º, n.º 1, al. a) e 2).
- Usucapião de 10 anos (ver arts. 1295.º, n.º1, al. b) e 1294.º).
- Usucapião de 15 anos (ver arts. 1294.º, al. b) e 1296.º).

Quando a usucapião jogue contra o Estado, os prazos são aumentados 50%, segundo a Lei n.º 54, de 16 de Julho de 1913.
O funcionamento da usucapião, no tocante aos prazos, é fortemente facilitado pelo instituto da acessão da posse (art. 1256.º). Havendo transmissão da posse, o transmissário pode juntar, à sua, aposse do seu antecessor. A transmissão não exige qualquer título válido: pode, mesmo, ser uma entrega não titulada ou vício formal. Simplesmente, a posse do transmissário será, então, uma posse não titulada: a cessão opera «… dentro dos limites da posse com menos âmbito …», pelo que a posse do antecessor valerá como não titulada (art. 1256.º, n.º2).
Também na hipótese de sucessão na posse, o tempo do de cuius acresce ao do sucessor. Desta feita, porém, não se põe o problema de posses de diferente natureza, uma vez que a posse do sucessor tem precisamente, a mesma natureza da do antecessor.

. Usucapião de móveis

No tocante à usucapião de móveis, as particularidades essenciais são, também, comunicadas a propósito dos prazos.
Tratando-se de móveis sujeitos a registo, o quadro é o seguinte (art. 1298.º) – automóveis, navios e aeronaves:
- Usucapião de 2 anos, quando haja título e este esteja registado, de boa fé.
- Usucapião de 4 anos, nas mesmas condições, havendo má fé.
- Usucapião de 10 anos, não havendo registo, independentemente de título e de boa fé.

Tratando-se de móveis não sujeitos a registo (art. 1296.º):
- Usucapião de 3 anos, havendo boa fé e «justo» título.
- Usucapião de 6 anos, independentemente de boa fé e de título.

O art. 1300.º prevê, ainda, a hipótese de, havendo posse oculta ou violenta, esta passar a terceiros antes de cessarem esses vícios. Nessa altura, o interessado dispõe de (art. 1300.º):
- Usucapião de 4 anos, no caso de a posse ser titulada.
- Usucapião de 7 anos, se o não for.

Assinale-se que o art. 1301.º não tem já a ver com a usucapião. Trata-se de um esquema específico da tutela da confiança, que se aproxima um tanto da posse vale título. A jurisprudência mais recente tem vindo a reconhecer o perfil desse preceito.

Capítulo IV – O REGISTO

I – Publicidade; Noções gerais

. Noção de publicidade

Quando referida a realidades jurídicas, a publicidade respeita a factos que pela sua importância ou relevância importa dar a conhecer para além do círculo das pessoas a quem directamente respeitam, tornando-os patentes ou públicos. Com este sentido genérico, a publicidade acompanha realidades jurídicas muito diversas, em relação às quais se verifica essa necessidade de as tornar públicas, ou, pelo menos, de possibilitar ou facilitar o seu conhecimento.
A situação jurídica das coisas, encerra algo de semelhante, uma vez que faculta aos que pratiquem actos a elas inerentes a possibilidades de se certificarem da sua situação jurídica, e através dela, nomeadamente, da aptidão desses actos para lhes atribuírem os poderes jurídicos que sobre elas visam adquirir.
Visto o problema do lado das pessoas a quem o conhecimento dessas realidades interessa, mas não o podem obter directamente por não terem participado nos actos correspondentes (e que nesta medida se podem designar genericamente como terceiros), a sua publicação constitui um importante factor de tutela. O desconhecimento da real situação das coisas pode afectá-los, no que respeita às consequências dos negócios que em relação a elas venham a praticar.
Deste modo, a importância económico-social e, correspondentemente, jurídica da publicidade, neste sector levou o Estado a intervir e a organizar sistematicamente. Em Portugal, essa publicidade está de há muito confiada a conservatórias, que são serviços públicos.

. Modalidades da publicidade

Espontânea – resulta de comportamentos humanos que pela sua repetição e tipicidade social implicam, por si mesmos, na sua materialidade, a revelação e publicitação de certas realidades sociais e jurídicas. Daí, a adopção de tais comportamentos pode envolver, só por si, a produção de certas consequências no mundo do Direito (por exemplo, o proprietário dos bens adopta em relação a eles comportamentos correspondentes ao uso e fruição, os quais revelam a extensão exterior da propriedade).
Provocada – resulta da inscrição de certos factos em livros ou registo próprios, que são guardados, ou conservados, por um serviço público.
. A publicidade espontânea; a publicidade derivada da posse: «a posse vale título»

O exercício de poderes materiais sobre uma coisa dá lugar à posse, a qual, por natureza, é fonte de publicidade espontânea. A essa publicidade são reconhecidos os seguintes efeitos:
- Presuntivo: art. 1268.º, n.º1 do CC.
- Constitutivo: excepcionalmente, certos direitos só se constituem quando o seu beneficiário entre na posse da coisa (penhor, art. 699.º, n.º1; doação de móvel não feita por escrito, art. 947.º, n.º1; comodato, art. 119.º; mútuo, art. 1142.º; depósito, art. 1185.º).
- Enunciativos: gerais.

O Direito português não admite presunções inilidiveis derivadas da posse, a chamada posse vale título. Por esse princípio, quem, de boa fé, beneficie de um negócio aquisitivo, ainda que celebrado a non domino, isto é, por quem não seja titular e entre na posse da coisa, torna-se proprietário da coisa. O CC compreende, no entanto, uma figura que, com a posse vale título tem contactos: o regime da coisa comprada a comerciante (art. 1301.º do CC).
Havendo conflito de presunções derivadas da posse e do registo deve prevalecer a mais antiga (art. 1268.º, n.º1. havendo antiguidade semelhante, dá-se primazia à presunção derivada da posse).

. A publicidade como característica dos direitos reais

Em face do ficou dito anteriormente, é manifesto que não se pode afirmar que a publicidade seja um elemento caracterizador, enquanto específico ou exclusivo, dos direitos reais. Contudo, não é menos verdade que a publicidade assume, neste ramo o Direito, uma feição e um relevo muito próprios, que se prendem com a especificidade do objecto das situações jurídicas reais.
Deste modo, e dado que nos deparamos com duas formas de publicidade dos direitos reais, teremos um âmbito diferente de aplicação para cada um.
A publicidade espontânea, fundada na posse, respeita tanto a coisas móveis, como imóveis, mas funciona como meio exclusivo de publicidade de direitos reais que têm por objecto as coisas móveis, em geral. Por seu turno, a publicidade organizada, assente no regime do registo (predial ou outro), é, por razões decorrentes da natureza das coisas, privativa dos imóveis e de certos tipos de coisas móveis, que permitem uma fácil individualização e identificação: as coisas móveis registáveis.

II – Publicidade registal
Noções gerais

. A função de publicidade do registo predial

Nos termos do art. 1.º do C.R.Pre., a função essencial do registo predial é de «dar publicidade à situação jurídica dos prédios». Através desta função realiza-se o fim a que o registo predial primariamente está votado: «a segurança do comércio jurídico imobiliário».
A lei do registo só se refere a prédios e não a todas as coisas imóveis abrangidas na enumeração do art. 204.º C.C. Cabe, porém, referir que a partir dos actos de registo relativos a prédios é possível estabelecer a situação jurídica das demais coisas imóveis per relationem, uma vez que estas mantêm sempre uma ligação com um prédio, seja ele rústico seja urbano.
Será a publicidade registal uma característica dos direitos reais. Veremos, que a dinâmica própria da publicidade registal acaba por repercutir em matérias que se situam muito além daquela função primordial do registo, implicando mesmo consequências substantivas, impensáveis num primeiro exame.
Deve dizer-se que o registo predial não esgota a função de publicidade provocada dos direitos reais. Existem serviços de registo com competência para a inscrição de factos jurídicos relativos a coisas móveis registáveis: automóveis, aeronaves e navios.

. Características gerais do sistema de registo predial português

O sistema de registo predial português identifica-se por algumas características. As que o Prof. Carvalho Fernandes tem por definitivas permitem dizer que este sistema se afigura como:
Público: contrapõe-se a um sistema privado, revelando-se na circunstância de o registo predial estar a cargo de serviços públicos (Conservatórias do Registo Predial).
Quer o conservador quer as demais pessoas, que nas Conservatórias prestam serviços são funcionários públicos (sujeitos a sanções como decorre do art. 153.º do C.R.Pre.).
Para efeitos da organização do serviço, e fixação da competência de cada Conservatória, o território nacional está dividido em várias áreas, existindo em cada uma delas uma Conservatória. Essas áreas são estabelecidas em função das circunscrições administrativas: concelhos ou freguesias.
A competência das conservatórias é estabelecida segundo um critério territorial, que se manifesta de dois modos:
- Cada conservatória tem a competência limitada à sua circunscrição territorial.
- Os registos devem ser feitos na conservatória da situação dos prédios (art. 19.º do C.R.Pre.)
A aplicação desta regra pode levantar algumas dificuldades, por razões de diversa ordem. Os limites dos prédios não coincidirem necessariamente com os limites das circunscrições administrativas, e, com áreas de competência territorial das conservatórias. Deste modo, um prédio pode pertencer à área de mais de uma conservatória, devendo ser então o registo feito nas duas conservatórias correspondentes (art. 19.º, n.º2 do C.R.Pre.)
Mas pode acontecer que o mesmo facto jurídico respeite a dois prédios, situados em áreas distintas. Se tal ocorrer, esses factos serão registados em cada uma das conservatórias competentes na parte respectiva[3] (n.º3 do art. 19.º do C.R.Pre).
Devemos considerar ainda alterações das áreas de circunscrição administrativas (arts. 20.º e 21.º do C.R.Pre.).
Os registos feitos em conservatória incompetente são inexistentes, (art. 14.º, al. a) do C.R.Pre.).
Real: contrapõe-se a real, uma vez que respeita a prédios e não a pessoas.
Esse acto central do registo para poder, com eficácia, realizar a sua função e finalidade que o domina, necessita de descrição, que vamos em seguida analisar.

. Modalidades dos actos de registo

São três as modalidades de registo, quanto aos actos, em si mesmo:
Descrição: no art. 79.º, n.º1 do C.R.Pre. aparece como o acto de registo dirigido à identificação física, económica e fiscal de cada prédio. É como que um «retrato escrito» do prédio.
Prédio rústico – da descrição constará o nome, a sua localização geográfica, a sua área e tipo de cultura, as confrontações, o valor patrimonial e o número de inscrição matricial.
Prédio urbano – da descrição constará menção da rua, do número de polícia e da localidade onde existem, do número de pisos e da sua composição e destino (art. 82.º, n.º1 do C.R.Pre.).
A regra que preside à elaboração da descrição é a seguinte: abre-se uma descrição para cada prédio (n.º2 do art. 79.º). A descrição faz-se numa ficha, que será ordenada por freguesias e, em cada freguesia, por um número de ordem privativo, acompanhado da data da correspondente apresentação.
As descrições são dependentes, em geral, de uma inscrição ou de um averbamento (art. 80.º, n.º1, C.R.Pre.). A ligação entre cada descrição e as inscrições que lhe respeitam é feita mediante uma cota de referência, lançada à margem da respectiva ficha, com menção do correspondente número.
Este regime sofre alguns desvios em certos casos:
a) No registo de autorização para loteamento, de cada lote de terreno para a construção deve ser feita uma descrição (art. 80.º, n.º3 do C.R.Pre.).
b) No registo de constituição da propriedade horizontal ou do direito real de habituação periódica, há dois tipos de descrição:
- Uma genérica, para o prédio ou empreendimento turístico.
- Outras subordinadas, para cada fracção autónoma ou unidade de alojamento ou apartamento (art. 81.º, n.º1 C.R.Pre.), por referência ao prédio ou empreendimento.
a) No caso do direito de habitação periódica, abre-se uma segunda via de subordinação, por referência a cada unidade de alojamento ou apartamento, mas agora destinada às fracções temporais (n.º2 do art. 80.º do C.R.Pre.).
Os averbamentos às descrições servem para alterar, complementar ou rectificar os elementos delas constantes, devendo naturalmente neles ser feitas as menções relativas ao seu fim. Os averbamentos, além do seu número privativo, devem ser também o número e data da apresentação, quando dela dependem (arts. 88.º, n.º1 e 89.º do C.R.Pre.).

Inscrição: Este é o acto de registo que vai revelar a situação jurídica dos prédios descritos. Para assegurar esta finalidade, a inscrição consiste num extracto dos factos jurídicos relativos a cada prédio. Deste modo, compreende-se que as inscrições respeitem sempre a uma descrição genérica ou subordinada (art. 91.º do C.R.Pre.).
A identificação do registo faz-se mediante uma letra, seguida do número de ordem correspondente, e o número e data da apresentação, elementos que devem constar do correspondente extracto. São as seguintes:
a) G, para a inscrição de aquisição ou reconhecimento de propriedade.
b) C, para a inscrição de hipoteca.
c) F, para as demais.
A inscrição deve fazer menção do facto inscrito e da identificação dos respectivos sujeitos. Quando a inscrição seja provisória, deve ainda referir-se se o é por natureza ou por dúvidas, indicando-se naquele caso, as causas da provisoriedade.
Este o conteúdo genérico da inscrição, constante do art. 93.º do C.R.Pre. Cada tipo de inscrição. Em função do facto que se inscreve, tem um conteúdo especial, enumerado nos arts. 95.º e 96.º do mesma Código.
Os averbamentos às inscrições servem para completar, restringir ou actualizar uma inscrição já existente, devendo ser lançados na inscrição a que respeitam (n.º 1 e 4 do art. 100.º do C.R.Pre.).
Do conteúdo genérico dos averbamentos à inscrição fazem parte a letra e o número da inscrição a que respeitam, acompanhados do número de ordem do próprio averbamento e do número e data da respectiva apresentação, quando dela dependa. Além disso, deve mencionar-se o facto a averbar, respectivo conteúdo e a identificação dos seus sujeitos (art. 102.º, n.º1 do C.R.Pre.).

Averbamento: tanto podem referir-se a uma inscrição como a uma descrição.

Quanto à sua eficácia:
Definitivos: por satisfazerem os requisitos legais, estão em condições de produzirem sem reservas a sua eficácia própria.
Provisórios: quando se verifica alguma circunstância que impeça a feitura do registo definitivo, ou seja a produção dos efeitos que este se destina a assegurar, há que estabelecer uma distinção.
Em determinados casos o conservador deve recusar o registo. Não sendo caso de recusa, mas não podendo também lavrar-se o registo como definitivo, deve ele ser feito como provisório. Existem duas modalidades de registo provisório:
a) Provisório por dúvidas: quando se verifique algum motivo que impeça o conservador de lavrar tal como foi pedido, desde que tal motivo não seja um dos fundamentos de recusa enumerados no art. 69.º do C.R.Pre.
Quanto à primeira modalidade, está sobretudo em causa a possibilidade de o registo passar a valer como definitivo. É o que se designa por conversão (art. 101.º, n.º2, al. c) do C.R.Pre.). a conversão ´
E feita através de averbamento. Assim o registo provisório por dúvidas, converte-se em definitivo quando, em tempo, sejam removidas as dúvidas que impuseram a sua realização como provisório.
b) Provisório por natureza: são bem diferentes e prendem-se com a maneira de ser do fato a inscrever. Em termos gerais, e perante a enumeração dos casos de inscrição provisória constante do art. 92.º do C.R.Pre., eles reconduzem-se às seguintes categorias fundamentais:
1 - Carácter preliminar ou precário do facto a inscrever (als. a), b), g), h), i), j), l), m), n) e o) do n.º1 do art. 92.º do C.R.Pre.).
2 - Ineficácia sanável do acto a inscrever (als. e) e f) do n.º1 do art. 92.º do C.R.Pre.).
3 - Dependência de registo não lavrado ou não lavrado como definitivo (als. c) e d) do n.º1, e als. b) e d) do n.º 2 do art. 92.º do C.R.Pre.).
Quanto à sua eficácia, para gerar conversão é necessário que se verifique novo facto que afaste a causa da provisoriedade. Assim, se ela reside no carácter preliminar ou precário do facto a inscrever, o novo facto tem de lhe dar carácter definitivo; se ela reside na ineficácia sanável do acto, o novo facto tem de implicar a sua sanação; se o registo é provisório por dependência de outro, este tem de ser lavrado ou convertido em definitivo
As duas causas de provisoriedade podem concorrer no mesmo registo. O registo provisório é temporalmente limitado. O prazo de vigência é de seis meses, findo o qual o registo caduca, se não for convertido em definitivo ou renovado (art. 11.º, n.º3 e 4 do C.R.Pre.).
Assim, entende-se que a renovação não pode ter lugar se o registo for provisório por dúvidas, sob pena de se eternizar uma situação que não convém prolongar no tempo.
Por outro lado, o prazo geral de caducidade é substancialmente alargado em vários casos de registo provisório por natureza, como resulta dos n.º3 a 6 do art. 92.º do C.R.Pre.
Notas relativas ao funcionamento do sistema.
A elaboração do registo envolve vários suportes materiais e actos preparatórios ou complementares do registo. Desde logo, estão aqui em causa os documentos que os próprios interessados devem apresentar, servindo de título e comprovação do facto que pretendem registar, e os que instruem a própria requisição do registo, ou seja, o documento em que se formula o pedido de registo dirigido à Conservatória. Os documentos são em geral restituídos aos interessados, mas alguns devem ficar na Conservatória, constituindo o seu arquivo (art. 26.º do C.R.Pre.).
Para além disso, a realização do registo determina sempre uma notação escrita, para a qual devem existir suportes documentais ou outros. O registo é feito no Livro Diário ou em fichas (art. 22.º C.R.Pre.). Além destes suportes documentais há ainda outros complementares, para efeitos de busca e consulta, que são os verbetes reais e pessoais, constituindo o conjunto de cada uma das suas espécies um ficheiro real e um ficheiro pessoal (art. 24.º do mesmo Código[4]).
Importa esclarecer que o ponto de partida de todos os actos de registo é o diário, pois, como se diz na al. a) do art. 22.º C.R.Pre., nele se inscrevem, por ordem cronológica, os pedidos de registo e respectivos documentos. É o que se chama apresentação. Esta ordem tem de ser rigorosa, em relação a cada dia, uma vez que o número da apresentação acaba por ser decisivo e matéria tão relevante como é a da prioridade do registo (art. 6.º, n.º1, do C.R.Pre.).

III – Princípios do registo predial

. Princípio da instância / Princípio da inoficiocidade

Princípio da instância – contrapõe-se a um regime de registo oficioso. É definido no art. 41.º do C.R.Pre. e significa que, salvo nos casos previstos na lei, o registo deve ser pedido pelos interessados.
Deste princípio decorre que os serviços estão à disposição dos interessados, mas a estes cabe a iniciativa de requerer os registos que lhes convenham.
Cabe às partes o impulso inicial do registo, o que se faz mediante o preenchimento e apresentação de um impresso de modelo aprovado (requisição), acompanhado dos suportes documentais necessários a cada acto de registo.
O art. 41.º-A do C.R.Pre. admite que a remessa ou apresentação do pedido de registo, embora subscrito pelos interessados, possa ser feita pelo notário, acompanhado dos documentos necessários e preparo.
Envolve a necessidade de determinação das pessoas que podem requerer o registo, ou seja, legitimidade registal.
A regra básica contém-se no art. 36.º do C.R.Pre., segundo o qual a legitimidade para requerer o registo cabe:
a) Aos sujeitos activos e passivos da correspondente relação jurídica. Por exemplo, a inscrição de um contrato de compra e venda pode ser pedida tanto pelo comprador como pelo vendedor.
b) A todos quantos na sua feitura tenham interesse. Daqui decorre a consequência de à pessoa com legitimidade para requerer certo registo ser também reconhecida legitimidade para requerer aqueles de que ele dependa.
Para além desta norma geral, o Código estabelece regimes especiais para:
- Contitularidade (art. 37.º).
- Incapacidade (art. 40.º).
- Representação voluntária (art. 39.º).
- Certas categorias de averbamentos à descrição (art. 38.º).

O princípio da instância não implica o carácter facultativo do registo. O registo pode depender do pedido dos interessados, ser obrigatório. Neste caso, o interessado não tem apenas um ónus mas o dever de requerer o registo. Se não cumprir, comete uma infracção, ficando sujeito às consequências daí advenientes.
O Código actual não estabelece nenhum caso de obrigatoriedade de registo, sendo neste domínio elucidativo o facto de a sua falta não configurar qualquer transgressão, nem se estabelecer qualquer sanção. Contudo, o princípio da legitimação, que é uma novidade do Código actual, envolve, uma obrigatoriedade indirecta.
Como é próprio desta situação jurídica a não observância do ónus de registo acarreta consequências indesejáveis para o interessado no registo, ou a ele desfavoráveis, entre outras as que estão implicadas na violação do princípio da legitimação.
Este regime geral pode sofrer desvios decorrentes de lei especial, como acontece, por força do art. 3.º, do D.L. n.º 255/93, de 15 de Julho, com o registo da propriedade de prédio urbano ou de fracção autónoma, destinados a habitação feita ao abrigo do regime instituído por este diploma legal[5].
A lei prevê casos particulares de registo oficioso, por iniciativa do conservador: quanto a registos de factos que se constituem simultaneamente com outros, que sejam objecto de registo e quanto a registos de actos de conversão ou cancelamento dependentes de outros actos ou registos (arts. 92.º, n.º6; 97.º; 98º, n.º3; 100.º, n.º3; 101.º, n.º4; 119.º, n.º3 e 6; 148.º, n.º4; 149.º).

. Princípio da legalidade

Princípio da legalidade – o carácter publico do registo, decorre daqui. Sendo o conservador e a conservatória um serviço público., subordinados à lei. Por esta simples razão o princípio em analise, tem alcance mais vasto, que cabe precisar, e que decorre do art. 68.º do C.R.Pre.
a) Conteúdo formal: aos funcionários do registo apenas se exigiria a verificação da regularidade formal dos actos apresentados a registo e a legitimidade dos respectivos requerentes.
b) Conteúdo substancial: vai-se mais longe, impondo-se ao conservador a obrigação de se pronunciar sobre a validade do pedido de registo, tomando em conta a validade substancial dos actos a registar. Neste sentido tem uma função próxima do juiz.

Logo uma primeira leitura mostra ser desta segunda modalidade de legalidade que se trata no art. 68.º do C.R.Pre. O conservador deve pronunciar-se sobre a viabilidade do pedido de registo, tendo de verificar se, à luz das normas aplicáveis, os documentos apresentados e os registos anteriores permitem lavara o registo requisitado. Esta actividade fiscalizadora do conservador, implica uma apreciação dos seguintes aspectos:
a) Identidade entre o prédio a que se refere o acto a registar e a correspondente descrição.
b) Legitimidade dos interessados.
c) Regularidade formal dos títulos referentes aos actos a registar.
d) Validade dos mesmos actos.
Para o Prof. Carvalho Fernandes, o poder do conservador restringe-se, no que diz respeito à alínea d) atrás referida, aos casos de nulidade. Várias razões impedem que a sua apreciação se alargue aos actos anuláveis. Desde logo, estes produzem os seus efeitos enquanto não sejam invalidados, a requerimento das pessoas em favor de quem a lei estabelece a invalidade (art. 287.º, n.º1 do C.C.); não seria correcto atribuir um poder que iria pôr em causa a eficácia de um acto, num campo que é deixado aos particulares. Para além disso estas invalidades não são de conhecimento oficioso.
As considerações anteriores são postas de lado em casos particulares:
a) quando a anulabilidade resulte da falta de consentimento de outrem ou de consentimento do tribunal, impõe a al. e) do n.º1 do art. 92.º do C.R.Pre. a realização do registo como provisório por natureza.
b) Actos praticados por gestor ou por representante sem poderes, enquanto não ratificados (al. f) do art. 92.º do C.R.Pre.).
Note-se, em qualquer caso, não poder o conservador recusar o registo.
Levado às últimas consequências, o princípio da legalidade devia conduzir, sempre que o registo se mostrasse inviável, à recusa do registo. Tal seria um regime excessivo sobretudo se estiverem em causa irregularidades facilmente sanáveis.
Daí, como alternativa à figura da recusa do registo, surge a do registo provisório por dúvidas. Só nos casos mais graves, que estão enumerados no art. 69.º do C.R.Pre., o registo deve ser recusado. São casos de recusa, além da incompetência da conservatória e da falta de preparo relativo ao custo do registo:
a) A manifesta insuficiência dos documentos apresentados para titular o registo.
b) A manifesta nulidade do acto.
c) A existência de registo anterior do mesmo acto ou não sujeição deste a registo.
d) A existência de anterior registo provisório por dúvidas não removidas.
A recusa do registo ou a sua realização como provisório constituem, actos que importam a denegação do registo tal como foi requerido. Não podem deixar de estar previstos meios de reacção do interessado, pois, havendo indevida aplicação da lei pelo conservador, a recusa ou a provisoriedade do registo não se devem manter. Trata-se, então, de repor a legalidade. Para tal abre-se a possibilidade de impugnação por parte do requerente.
Os meios de impugnação das decisões do conservador podem revestir carácter hierárquico (recurso para o Director-Geral dos Registos e Notariado – art. 140.º do C.R.Pre.) ou carácter contencioso (recurso para o tribunal de comarca – art. 140.º, n.º1 do C.R.Pre.).
Para além deste meios o interessado dispõe ainda de outros dirigidos à reparação dos danos que a conduta do conservador lhe tenha causado, efectivando a responsabilidade criminal e civil em que este incorra (art. 153º do C.R.Pre.).
A doutrina não recebe sem reparos a configuração dada a este princípio. Oliveira Ascensão realça os inconvenientes de tal regime, que sujeita a entraves burocráticos a circulação dos imóveis, em matérias que deviam ser deixadas à actuação dos particulares, nomeadamente por recurso a meios judiciais, quando necessário. Refere também o desajustamento do princípio de legalidade substancial perante um registo predial que só a título muito excepcional é constitutivo (relembre que o acto constitutivo é o contrato – art. 875.º e 408.º do C.C.).

. Princípio da tipicidade

Princípio da tipicidade – o problema coloca-se quanto aos factos sujeitos a registos, estando em causa saber se estes constituem um numerus clausus. Dito por outras palavras, importa apurar se a enumeração dos factos e das acções sujeitos a registo, constante dos arts. 2.º e 3.º do C.R.Pre., tem carácter taxativo ou exemplificativo.
A tipicidade dos direitos reais não se estende aos factos constitutivos de que dependem as suas vicissitudes, sendo desde logo claro valer este regime para os factos constitutivos, que podem inclusivamente ser negócios jurídicos atípicos.
Deste modo, se referirmos a tipicidade ao objecto do registo em si mesmo não pode senão entender-se que a enumeração dos factos sujeitos a registo, feita no C.R.Pre., não pode ser taxativa. Logo não há um princípio da tipicidade de registo.
O problema pode ser visto de outro ângulo, não referido a factos jurídicos, enquanto categorias jurídicas, mas sim a factos relativos, de um modo ou de outro, às vicissitudes dos direitos reais. Como é bem de ver, passando a tomar-se os direitos a que os factos registáveis respeitam, por referência, é manifesto que só os factos com eficácia real podem estar sujeitos a registo.
Assim, podemos dizer que só deviam estar sujeitos a registo, para além das acções contempladas no art. 3.º, factos que interfiram com as vicissitudes dos direitos reais. Pelo que, presidindo a estes o princípio da tipicidade, poderia ainda fazer sentido falar de uma tipicidade indirecta do registo.

. O princípio do trato sucessivo

Princípio do trato sucessivo – consta do art. 34.º do C.R.Pre. De acordo com este preceito o registo definitivo de aquisição de direitos reais ou de constituição de encargos por negócio jurídico só pode ter lugar se os bens que tais actos têm por objecto estiverem inscritos em nome de quem os transmite ou onera.
Este princípio, que apenas admite excepções muito limitadas, assegura uma cadeia ininterrupta de inscrições de alienações ou onerações relativas a certa coisa, desde a pessoa primeiramente inscrita como titular do correspondente direito até quem figura, no novo acto a registar, como autor da alienação ou oneração dessa coisa.
Em suma, a observância deste princípio dá garantia de, salvo vício substantivo ou de registo, a consulta das inscrições relativas à descrição de certo prédio permitir apurar a história da situação jurídica desse bem.
A garantia do respeito do princípio do trato sucessivo reside na proibição de ser lavrado registo, quando o trato sucessivo estiver interrompido. Se, em tal caso, for submetido a registo um determinado facto, o registo definitivo deste só é possível uma vez reatado o trato sucessivo.
Pode dar-se o caso de apenas faltar a inscrição de um ou mais actos intermédios e estarem disponíveis os documentos que os titulam. Sendo assim, tudo se resume em requerer a prévia inscrição dos actos omissos; como já sabemos, para tanto tem legitimidade o requerente do registo da última aquisição.
Mas também pode suceder estar vedada esta via, por os títulos que poderiam servir de base aos registos intermédios em falta serem desconhecidos, se terem extraviado ou destruído, não estarem disponíveis, ou não serem localizáveis. Para obviar aos inconvenientes que daí resultariam, previu o legislador um meio próprio: a justificação relativa ao reatamento do trato sucessivo (art. 116.º, n.º1, do C.R.Pre.).

. O princípio da legitimidade registal

Princípio da legitimação registal – era desconhecido do direito anterior. Foi introduzido pelo art. 9.º, atribuindo plena eficácia ao trato sucessivo. Segundo este princípio, não podem ser titulados actos jurídicos de que resulte a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sobre imóveis, que sem que estes estejam definitivamente inscritos a favor de quem transmite ou constitui o encargo (art. 9.º ,n.º1 do C.R.Pre.). É essencialmente dirigido aos notários, incumbindo as partes de fazer prova nos actos a titular da existência legítima do registo. Se a prova não for feita, deve o notário recusar a intervir no acto em causa.
A nova lei do registo veio instituir um instrumento de garantia do trato sucessivo, pois este só levanta entraves à realização do registo definitivo do acto, se o trato estivesse interrompido. O princípio da legitimação vai mais longe, visando impedir a própria prática do acto a registar.
Este princípio admite duas excepções:
a) O art. 9.º, n.º3 do C.R.Pre., faz com que em zonas onde não vigorava o registo obrigatório, o legislador tenha afastado a legitimação no primeiro acto de transmissão, titulado a partir da entrada em vigor do novo Código, desde que se exiba documento comprovativo do direito alienado ou seja feita justificação simultânea. Este é um expediente de muito uso.
b) As restantes estão no n.º2 do mesmo art.

O preceito que consagra o princípio da legitimação, perante o silêncio da lei, tem levantado à doutrina a dificuldade de saber as consequências substantivas da sua violação, pois não nos parece que se possam levantar sérias dúvidas quanto às sanções disciplinares em que o notário incorre.
Menezes Cordeiro – estamos operante um vício de forma, que, nos termos gerais de direito (art. 220.º), torna o próprio negócio nulo.
Oliveira Ascensão – o negócio em si mesmo é válido, sustentando tratar-se, no caso, de uma legitimação formal, não estando em causa a legitimação substantiva.
Carvalho Fernandes – entende inadequado alargar o regime da invalidade formal até cobrir este tipo de hipóteses, a menos que o legislador expressamente o diga ou, ao menos, o deixe perceber de forma clara. Está aqui subjacente o carácter excepcional da forma, como requisito de validade dos negócios jurídicos, num sistema claramente dominado pelo princípio consensualista. Aceita o entendimento do Oliveira Ascensão, que sustenta a validade do negócio, com a referência adicional de se circunscrever o valor do princípio da legitimação ao campo do registo. De resto, é em função dele que o princípio fundamentalmente existe e nele deve actuar, como elemento adjuvante, que é, dói princípio do trato sucessivo, na realização da função e da finalidade do registo. Como é evidente, vai aqui pressuposto que o problema se situa apenas no domínio da legitimidade registal. Se o alienante ou onerante não for efectivamente titular do direito, a questão ganha outra feição. Está em causa um vício substantivo do negócio e este é nulo por falta de legitimidade, nas relações entre as partes, e ineficaz em relação ao verdadeiro titular do direito.

. O princípio da prioridade

Princípio da prioridade do registo – vem estabelecido no art. 6.º do C.R.Pre. e conduz à prevalência do direito primeiramente inscrito sobre os que, relativamente aos mesmos bens, se lhe seguirem, quando incompatíveis.
A prioridade é estabelecida pela ordem cronológica de realização dos registos. Pode dar-se o caso de se realizarem vários registos na mesma data. Recorre-se à ordem cronológica das apresentações, ficando assim esclarecida a importância que a seu tempo atribuímos ao Livro Diário. É o regime contido no art. 62.º, n.º1 do C.R.Pre.
Só admite uma excepção, em matéria de hipoteca. Neste caso, as hipotecas inscritas na mesma data concorrem entre si, na proporção dos créditos que cada uma delas garante (n.º 2 do art. 6.º do C.R.Pre.)- não funciona relativamente a direitos incompatíveis.
O alcance do princípio da prioridade sofre noutro plano, o influxo de alguns aspectos do próprio sistema de registo. Na verdade, ele seria irrelevante se não atendesse ao regime do registo provisório e do registo recusado. No primeiro caso, projectam-se nesta matéria os efeitos da sua conversão em definitivo; no segundo, releva o facto de, por via de recurso, a recusa ser julgada infundada e elaborado o registo requerido. A solução é, em qualquer dos casos, óbvia, e contém-se nos n.º3 e 4 do art. 6.º do C.R.Pre.
Assim, o registo provisório, qualquer que seja a causa da provisoriedade, quando venha a ser convertido em definitivo, conserva a prioridade que tinha enquanto provisório. Dito noutros termos: a prioridade do registo é determinada segundo critérios do n.º1 do art. 6.º do C.R.Pre. Este regime demonstra, só por si, a importância da provisoriedade do registo, como alternativa à sua recusa, se esta fosse fundada.
Quanto às consequências do atendimento do recurso relativo a registo recusado, diz o n.º4 do art. 6.º do C.R.Pre. que a prioridade do registo assim efectuado é estabelecida em função da ordem de apresentação do acto recusado.

IV – Efeitos do registo predial

. Efeitos presuntivos; os vícios do registo

De efeitos substantivos do registo fala-se aqui, em sentido amplo, como abrangendo todas as repercussões tabulares nas situações jurídicas privadas.
O registo visa dar publicidade, às situações jurídicas prediais, através da inscrição dos factos que lhes tenham dado origem. Nesse sentido vai o art. 104.º do Cód.R.P.
O conhecimento que os particulares venham, assim, a obter das situações jurídicas prediais já é, em si, valioso. Trata-se de um conhecimento derivado da actividade de serviços públicos estaduais especialmente criados e geridos para o efeito. Daí que, aos elementos colhidos no registo se deva atribuir um peso especial, a fé pública do registo, assente na confiança suscitada nos particulares pelas inscrições tabulares.
Efeito presuntivo – está no art. 7.º do Cód.R.P. Os arts349.º e 350.º do C.C., sobre presunções, permitem concluir que, quem tenha a seu favor um registo determinado, escusa de provar:
a) Que o direito existe.
b) Que é o titular dele.
c) Que ele tem a configuração dada pelo registo..
Esta presunção é contudo ilídivel, ou seja, é susceptível de ser afastada mediante prova em contrário.
Quem assim, não entenda terá de provar a inexactidão do registo. A referida prova, capaz de destruir a presunção tabular, pode advir de um de dois esquemas:
a) Da demonstração de o registo em causa ser inexistente ou nulo, por alguma das causas referidas nos arts. 14.º e 16.º do Cód.R.P. Neste casos há inexistência ou nulidade do registo ou invalidade extrínseca.
b) Da demonstração de o registo em causa, válido em si, se reportar a factos substancialmente inválidos, ou insuficientes, o que envolve o cancelamento da inscrição – art. 13.º do Cód.R.P. – ou a sua complementação. Neste caso há invalidade substantiva ou extrínseca.

Qualquer das invalidades referidas exige uma acção judicial destinada ao seu reconhecimento; veja-se o art. 17.º, n.º1 do Cód.R.P. Apenas a inexistência dispensaria tal cautela, numa solução controversa.
Os efeitos presuntivos do registo são gerais, pelo que a determinação exacta desses efeitos faz-se, pela negativa, através do estudo dos vícios do registo.

As presunções derivadas do registo têm dois limites:
a) Cedem perante uma presunção derivada de posse mais antiga.
b) Não abrangem os elementos identificadores dos prédios, incluindo as confrontações, as áreas e as delimitações.
A primeira regra advém do art. 1268.º, n.º1, do C.C. A segunda é menos firme. A opção surge mais pragmática do que jurídica: não há meios que assegurem os elementos identificadores dos prédios, de modo a tornar fidedignas as descrições. Quando, porém, os elementos descritivos tenham a ver com os direitos existentes, condicionando-os ou sendo pressupostos da sua existência, a presunção vai até eles, sob pena de esvaziar o registo. O que seria da propriedade horizontal se não se presumisse a existência do edifício com o necessário número de fracções autónomas?

Quanto aos vícios do registo temos:
Inexistência – quando o registo tenha sido lavrado em conservatória territorialmente incompetente ou quando não falte, em termos insupríveis, a competente assinatura (art. 14.º do Esta regra advém do art. 1268.º, n.º1 do Cód.R.P.
Resulta disto que o registo não produza efeitos, numa situação que poderia ser invocada por qualquer pessoa, a todo o tempo, e independentemente de declaração judicial (art. 15.º, n.º1 e 2 do Cód.R.P.).
Nulidade – sempre que o registo seja falso ou seja lavrado com base em títulos falsos, seja lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado, esteja ferido de omissões ou inexactidões de que resulte a incerteza acerca dos sujeitos ou da situação a que se refira o registo em causa, seja assinado por pessoa sem competência funcional ou seja efectuado sem apresentação prévia ou com violação do trato-sucessivo – art. 16.º do Cód.R.P. esta só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado (art. 17.º, n.º1 do Cód.R.P.).
Da inexactidão – nos casos em que o registo se mostra lavrado em desconformidade com o título que lhe serviu de base ou enforme de deficiência provenientes desse mesmo título, que não sejam causas de nulidade – art. 18.º, n.º1 do Cód.R.P.
A inexactidão dá lugar à rectificação – arts. 18.º, n.º2 e 120.º e ss. do Cód.R.P.

Merece um destaque a inserção da categoria da inexistência. Esta foi feita, em detrimento da nulidade: os casos de inexistência constantes do art. 14.º, do Cód.R.P., podiam reconduzir-se a nulidades, no âmbito do Cód. De 1967. Em termos substantivos, a categoria da inexistência veio restringir a fé pública. O registo inexistente, ao contrário do nulo, antes de haver declaração judicial de nulidade, com trânsito em julgado, não tem efeitos presuntivos, nem poderia alicerçar uma aquisição tabular.
Acresce que não se vê, no concreto, motivação bastante para considerar mais graves as causas da inexistência do art. 14.º do que as de nulidades do art. 16.º. A inexistência jurídica terá, pois, sido introduzida em obediência a imperativos teóricos.
Assim, o Prof. M.C. critica a introdução desta categoria.

Os vícios do regime não esgotam a delimitação negativa da eficácia tabular presuntiva; como se refere, o registo perde os seus efeitos quando se se reportar a factos substancialmente inválidos, seja pedido o seu cancelamento.

. A aquisição tabular

O registo pode ser destruído, nos seus efeitos, por invalidade intrínseca ou extrínseca, nos termos atrás citados. Assim sucede, designadamente, nos casos de nulidade do registo. Pode acontecer que, antes de declarada tal nulidade por sentença, alguém, fiado no registo, adquira novas posições. Dispõe o art. 17.º, n.º2 do do Cód.R.P.
A declaração de nulidade do registo, não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo de acção de nulidade. Assim, temos o seguinte esquema:
a) se houver registo nulo.
b) Se alguém, com base nesse registo, a adquirir uma posição substantiva.
c) Se o fizer a título oneroso.
d) Se estiver de boa fé.
e) Se registar a aquisição antes de registada uma eventual acção de nulidade, gera-se por força do registo uma situação que não mais pode ser impugnada. Desta feita, a presunção derivada do registo é inilidível. Dá-se uma aquisição tabular[6].

A aparente amplitude da referência a terceiro tem vindo a suscitar interesse jurisprudencial e doutrinário:
a) terceiros são apenas as pessoas que, do mesmo adquirente, tivessem adquirido um direito incompatível.
b) Terceiros são todos os que tenham um registo incompatível com o do interessado. É esta posição defendida pelo Prof. M.C. Com efeito, a lei pretende dignificar o registo e generalizá-lo: isso implica uma tutela alargada que, de resto, resulta da própria lei (o STJ enveredou por esta via no acórdão 15/97, de 20 de Maio).
Todavia o STJ, em acórdão 3/99, de 18 de Maio, voltou à concepção restrita (terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, vejam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente).
Também o D.L. n.º 533/99, de 11 de Dezembro, consagrou no art. 5.º, n.º4, a noção restritiva de terceiros.
A aquisição tabular traduz a projecção substantiva mais relevante do registo predial: por força da fé pública, pode acontecer que alguém, mercê de mecanismos registais, veja consubstanciar-se, na sua esfera jurídica, uma posição que não lhe caberia em termos civis.

A aquisição tabular não pode, de modo algum, considerar-se como subproduto das nulidades do registo.
Em primeiro lugar, ela funciona, independentemente de quaisquer nulidades, a favor do titular legítimo da posição registada. Isto é: a pessoa que, com base em registo prévio, de boa fé e a título oneroso, adquiria uma posição que registe pode, por maioria de razão, alegar o seu registo para se defender, sem que se ponha sequer, um problema de possível prova em contrário: caso esta fosse tentada com base na nulidade do registo prévio, seria detida pelo art. 17.º, n.º2 do Cód.R.P.; e não o sendo, muito menos poderia incomodar o titular beneficiário.
Ela deve ser estendida às invalidades substantivas ou intrínsecas. Em termos sintéticos, pelo que se segue. O art. 17.º, n.º2 do Cód.R.P. visou conceder uma protecção máxima à pessoa que, com fé no registo, adquira uma posição jurídica, em certas circunstâncias. Vai tão longe nessa via que admite tal protecção em casos radicais de nulidade do registo: por exemplo, a pessoa que adquire a não proprietário, torna-se titular efectivo, em detrimento do verdadeiro sujeito, quando o vendedor, com títulos forjados, tenha obtido um registo a seu favor. Não é possível, sem disfuncionalidade, negar protecção às pessoas que adquiram, em situação similar, uma posição a um proprietário autêntico, mas que possa, supervenientemente, deixar de o ser – e arrastando com isso, em termos civis, a ilegitimidade de todos os subadquirentes – por ter, na base do seu direito, um negócio que, à face do Direito privado, venha a ser anulado ou declarado nulo. O art. 17.º, n.º2 do Cód.R.P. deve, pois, aplicar-se à invalidades substantivas.

. Efeitos consolidativo, enunciativo e constitutivo

A pessoa que adquira um direito, de modo legítimo, pode exercê-lo, salvo o caso de registo constitutivo, abaixo referido, independentemente de o inscrever. O próprio esquema do encargo tabular, firmado no art. 9.º, n.º1 do Cód.R.P apenas impede a faculdade de alienação: não actuação do direito nos outros domínios. O art. 5.º, n.º1 do Cód.R.P. segundo o qual «os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo» não depõe em sentido contrário: uma interpretação doutrinária e jurisprudencial constante – embora com flutuações de linguagem – alicerçada em razões legais e científicas que não cabe, aqui, desenvolver, entende nesse preceito, uma norma que torna inoponível o direito não registado perante a pessoa que tenha registo e enquanto este se mantiver. O que é dizer: o art. 5.º, n.º1 do Cód.R.P. proclama a vulnerabilidade das posições não registadas às possíveis aquisições tabulares por terceiros.
O verdadeiro titular de um posição jurídica, quando a registe, fica protegido contra aquisições de terceiros. Fala-se, então, de um efeito consolidativo do registo. Trata-se de um efeito não previsto, directamente, mas que resulta da aquisição tabular.
O art. 5.º, n.º1 do Cód.R.P. procede, pois, a um anunciar do esquema da aquisição tabular. Mas tem outro papel: permite que, no art. 5.º, n.º2, sob a capa formal de excepções à pretensa regra da inoponibilidade a terceiros dos direitos sujeitos a registo, mas não registados se introduzam casos de insensibilidade à aquisição tabular. São eles: o dos direitos adquiridos por usucapião, o das servidões aparentes e o dos direitos relativos a bens indeterminados, enquanto a sua especificação não operar.
De facto, a usucapião importa um tipo de publicidade assegurado pela posse, tão forte que conduz a constituição originária dos próprios direitos correspondentes ao seu exercício: pode operar contra tabulas não se compreendendo, por maioria de razão, que pudesse ser atingido pelo registo de terceiros. Também as servidões são fortemente publicitadas por natureza, jogando, nelas, uma ordem de ideias semelhante à que opera na usucapião. A ocorrência de factos relativos a bens indeterminados impede, em relação a estes, uma possibilidade clara: justo é, pois, que não possam ser prejudicados pelo registo.
Nos casos das situações constituídas por usucapião e das servidões aparentes, o registo, não sendo necessário para a consolidação do direito – isto é, para impedir, contra ele, possíveis aquisições tabulares por terceiros – é possível, sendo efectuado, dá-se o efeito enunciativo do registo, que assegura tão-só, ao beneficiário um suplemento de publicidade. Trata-se de outro efeito do registo, doutrinariamente apurado e que se mantém no actual Cód.R.P.
No direito português os direitos constituem-se independentemente de registo. A regra não foi alterada pelo encargo de registo, estabelecido no art. 9.º, n.º1 do Cód.R.P.: o registo neste exigido é-o, por banda do alienante, para a celebração formal válida do negócio e não, do lado do adquirente, para o ingresso efectivo, na sua esfera jurídica, da situação em causa.
Exceptua-se, a esse princípio a hipoteca: esta só produz efeitos depois de registada. A qualificação deste fenómeno é controversa. Entende-se porém, que uma posição privada de quaisquer efeitos não existe: o registo das hipotecas revela-se pois, como constitutivo, numa solução disposta no art. 687.º do CC, e que, constante do art. 4.º, n.º2 do Cód.R.P. (registo constitutivo da hipoteca).

V – A inscrição de acções

. O dispositivo vigente

Sobre esta matéria versa o art. 3.º do Cód.R.P., precisamente sob a epígrafe «acções sujeita a registo».
O objectivo do legislador ao submeter determinadas acções a registo é, precisamente, o de assegurar a sua publicidade, junto do público interessado. A necessidade de assegurar essa publicidade é máxima, na hipótese de haver transmissões dos próprios bens ou direitos litigiosos.
Perante uma acção sujeita a registo, o resultado final não é oponível a terceiros que obtenham um registo anterior ao da acção e incompatível com o que nela se peça. Nas palavras do Supremo: «o registo da acção tem como finalidade demonstrar que, a partir da sua feitura, nenhum interessado poderá prevalecer-se, contra o registante, dos direitos que sobre o mesmo imóvel adquira posteriormente ou adquiridos antes tenha negligenciado o seu registo».
Nestas condições, pensamos que uma acção deve ser sujeita a registo sempre que se torne injusto impor a correspondente sentença a terceiros adquirentes que não conhecessem o pleito.
Segundo a jurisprudência não estão sujeitos a registo:
- A reivindicação com base na usucapião: pela razão de que o direito definitivo, proveniente de usucapião, não depende, na sua plena eficácia, do registo, como se infere do art. 5.º, n.º2, al. a); a publicidade é assegurada pela posse.
- O pedido de indemnização por destruição da coisa: é de natureza pessoal; não se põe a hipótese de transmissão sem o consentimento do credor..
- A reivindicação deduzida por quem se encontre inscrito como proprietário: não apanha desprevenido qualquer terceiro adquirente: ela já está publicitada..
- A reconvenção em que não se impugne a propriedade do autor.
- A acção em que se peça o reconhecimento de que uma determinada parcela faz parte de certo prédio: a inclusão de parcelas prende-se, apenas, com a configuração do prédio.
- A acção relativa ao direito de retenção: decorre automaticamente da lei.



Capítulo IV – MODALIDADES DE DIREITOS REAIS

I – Direitos Reais de Garantia

. Sede legal e enumeração

O Regime dos Direitos Reais de garantia contém-se no Livro II do CC, mais especificamente, ocupam-se desta categoria as Secções III a VII do Capítulo VI, subordinado, este, à epígrafe «garantias especiais das obrigações», que vem na sequência de outro que traça o regime da «garantia geral das obrigações».
Pesou aqui a tradição do Cód. De Seabra, a circunstância de a função de garantia desta modalidade de direitos reais se exercer fundamentalmente no campo das relações obrigacionais.
O elenco dos direitos reais de garantia compreende a consignação de rendimentos, o penhor, os privilégios creditórios e o direito de retenção.
Não é de todo claro se a esta lista se não devem acrescentar a penhora e o arresto (neste sentido vai o prof. Almeida da Costa).

. Consignação de rendimentos

Previsto no art. 656.º, n.º1, sendo designado também por anticrese, e consiste na adjudicação dos rendimentos de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo ao cumprimento de uma obrigação e respectivos juros ou só da obrigação ou dos juros.
Diversamente do que é comum da generalidade dos direitos reais de garantia, esta não garante o cumprimento da obrigação através do valor da própria coisa, mas mediante a afectação dos rendimentos por ela produzidos. Estes são adjudicados ao credor, durante um prazo (que nos imóveis não pode exceder 15 anos) ou até ao pagamento da dívida consignada (art. 659.º).
A anticrese pode ser, consoante a sua fonte (art. 658º, n.º1):
- Voluntária: constituída por negócio jurídico (inter vivos ou mortis causa) celebrado pelo próprio devedor ou por terceiro (art. 658.º, n.º2). Quando constituída por negócio jurídico intervivos, este deve constar de escritura pública, se tiver por objecto bens imóveis, e de documento particular, se estes forem móveis (art. 660.º, n.º1).
O título constitutivo, qualquer que seja, está sujeito a registo (art. 660.º, n.º2, CC e art. 2.º, al. h) do Cód.R.P.).
- Judicial.

O conteúdo da consignação depende em larga medida do título constitutivo. No aspecto que mais releva para a sua qualificação como direito real, interessa salientar que a coisa cujos rendimentos são consignados tanto pode ficar na posse do (art. 661.º, n.º1):
- Concedente: aqui para obviar ao inconveniente que deriva do facto de o concedente te também nas suas mãos os rendimentos que cabem ao credor, a lei impõe a prestação periódica de contas, se a importância a receber não for certa (art. 662.º, n.º1).
- Credor: aqui a lei equipara o credor ao locatário e reconhece-lhe a faculdade de ele próprio locar os bens. Quando os bens passam para terceiro, podem ser-lhe atribuídos a mais de um título, nomeadamente a locação, mas o direito de receber os frutos pertence ao credor.
- Ser entregue a terceiro.

Em face deste regime, o credor consignatário participa de poderes de gozo da coisa, pelo que na classificação da consignação de rendimentos como direito real de garantia se atende fundamentalmente à sua função.
Na verdade, a garantia do credor reside aqui no próprio mecanismo da consignação ou seja, na afectação dos rendimentos. Por isso, não se põe a necessidade de conceder preferência ao credor garantido em relação aos demais.

. Penhor

A palavra penhor é usada na linguagem jurídica em vários sentidos: designa um direito real de garantia, o contrato donde este emerge, e ainda o próprio bem que o direito ou o negócio têm por objecto.
Enquanto direito real de garantia, o penhor segue vários regimes. Vamos olhar ao regime geral, relativo ao penhor de coisas.
Segundo o art. 666.º, o credor pignoratício tem a faculdade de obter a satisfação do seu crédito, e dos respectivos juros, pelo valor da coisa móvel ou de créditos ou outros direitos não susceptíveis de serem objecto de hipoteca, com preferência sobre os restantes credores.
O bem empenhado tanto pode pertencer ao credor como a terceiro; ficam, porém, excluídos os bens susceptíveis de hipoteca. Daqui resulta que nem todas as coisas móveis podem ser objecto de penhor.
A constituição do penhor de coisas de regime geral depende de um negócio jurídico real quoad constitutionem, por força da estatuição do art. 669.º.
A tradição de coisa empenhada desempenha, nesta garantia, uma função de publicidade, decorrente da posse, sucedânea de registo.
É esta função correntemente invocada pela doutrina para justificar a manutenção da construção clássica do contrato de penhor.
Por isso mesmo, a manutenção da posse da coisa empenhada é essencial à existência do direito, extinguindo-se este com a sua restituição, como se estatui no art. 677.º. Segundo a melhor doutrina, deve entender-se que a extinção se dá desde que haja restituição, ainda que esta não seja dirigida à extinção.
O credor pignoratício pode defender a sua posse, mesmo contra actos do dono da coisa, mediante o recurso aos meios de tutela possessórios.
Salvo consentimento do autor do penhor, o credor pignoratício não tem, em regra, direito de uso (art. 671.º, al. b)). Quanto aos frutos há a distinguir:
- se devem ser restituídos ao autor do penhor (art. 672.º, n.º2).
- se o seu valor seja usado para pagar, sucessivamente, as despesas feitas com a coisa, os juros vencidos e ainda o capital do crédito, salvo convenção em contrário (art. 672.º, n.º2). Neste caso o penhor participa de características próprias da consignação de rendimentos, funcionando como uma anticrese mobiliária.
Quanto a benfeitorias, o credor pignoratício tem posição equivalente ao possuidor de boa fé (por força do art. 670.º, al. b)).
O direito de penhor tem perfil próprio de um direito real de garantia, revelada na «noção» do art. 666.º, manifesta-se plenamente na faculdade, concedida ao credor pignoratício, de fazer vender a coisa empenhada, para se pagar pelo produto da venda com preferência sobre os demais credores. Em princípio, a venda é judicial, mas as partes podem convencionar a venda extrajudicial, como podem admitir a adjudicação da coisa ao credor, pelo valor fixado pelo tribunal (art. 675.º) - art. 1013.ºCC. São, porém, nulos, nos termos do art. 694.º, aplicável por remissão do art. 678.º, os chamados pactos comissórios, ou seja, as convenções pelas quais se reconheça ao credor a faculdade de, na falta de cumprimento da dívida garantida, fazer sua a coisa empenhada, sem avaliação ou mediante avaliação dele próprio.

. Hipoteca

Verifica-se quanto à palavra hipoteca uma elevada polissemia: identifica o direito de hipoteca, o seu negócio constitutivo, a própria coisa hipoteca.
Enquanto direito real, a hipoteca dá ao credor hipotecário a faculdade de obter a satisfação do seu crédito e respectivos juros pelo valor de certas coisas imóveis ou móveis equiparadas, com preferência sobre os outros credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art. 686.º, n.º1).
Em contrapartida, se o devedor for o dono da coisa hipoteca, o credor deve começar por ela a execução, só podendo penhorar outros bens, uma vez reconhecida a insuficiência da garantia hipotecária (art. 697.º).
A coisa hipotecada tanto pode pertencer ao devedor como a terceiro, mas tem de ser sempre uma coisa sujeita a registo, o que limita, em termos já conhecidos, o elenco das coisas móveis hipotecáveis. A relevância deste aspecto acentua-se, por o registo ter, neste caso, efeito constitutivo.
A enumeração das coisas hipotecáveis consta dos arts. 688.º e ss., que fazem uso de um técnica pouco apurada quando colocam no mesmo plano coisas e direitos, como se este também fossem hipotecáveis. O legislador pretende assim significar que, além do proprietário, uma coisa pode ser dada de hipoteca pelo titular de outros direitos reais que sobre ela incindam, mas abrangendo então, apenas, as utilidades afectas ao correspondente direito.
O direito de hipoteca pode ter fontes diversas, em função das quais o CC distingue (art. 703.º) nos arts. 704.º, 710.º e 712.º:
- Hipoteca voluntária: depende da vontade do titular da coisa hipotecada manifestada em contrato ou em negócio unilateral, que pode ser o testamento (art. 712.º e 714.º). Na hipoteca voluntária, o título deve, sob pena de nulidade, especificar as coisas hipotecadas (art. 716.º). Também neste caso a constituição da hipoteca depende de registo, nos termos já conhecidos.
- Hipoteca legal: não «resulta imediatamente da lei», no sentido literal desta expressão, contida no art. 704.º. DO que se trata, na realidade, é de a constituição da hipoteca poder ter lugar sem dependência da vontade do titular do bem hipotecado, como, aliás, aquele mesmo preceito também afirma. A norma permissiva da hipoteca pode nem sequer individualizar os bens sobre que recai a hipoteca (art. 708.º). sendo assim, como a hipoteca tem de incindir sobre coisa certa, o registo, para além do seu efeito constitutivo, vai servir sobre coisa certa, o registo, para além do seu efeito constitutivo, vai servir para determinar os bens hipotecados.
- Hipoteca judicial: aqui o título constitutivo é uma sentença de condenação na prestação de dinheiro ou de outra coisa fungível, podendo o credor, com base, nela proceder ao registo de hipoteca sobre quaisquer bens do devedor. Aqui o registo tem uma função equivalente à referida quanto à hipoteca legal.
Na falta de pagamento da dívida garantida, ou mesmo antecipadamente, em certos casos (arts. 695.º, 701.º, n.º1, e 725.º), o credor hipotecário tem o direito de fazer vender a coisa em execução judicial, para ser pago, preferentemente, pelo produto da venda.
Não tem, porém, o direito de a fazer sua nos termos já expostos a respeito do penhor, como resulta da proibição do pacto comissório, que é nulo, ex vi do art. 694.º. Para a protecção do devedor, por razões equivalentes às da proibição do pacto comissório, é também nula a convenção de proibição de alienação ou oneração dos bens hipotecados, embora se possa convencionar o vencimento antecipado do crédito, se esses actos forem praticados (art. 695.º).
Este regime não prejudica oc redor hipotecário por os actos subsequentes de alienação ou oneração lhe serem inoponíveis. Nomeadamente, no caso de transmissão, isso significa que ele pode fazer executar a coisa hipotecada no património do adquirente, sendo esta uma manifestação da sequela do direito de hipoteca.
O mais que a lei reconhece ao adquirente de bens hipotecados, não sendo pessoalmente responsável pelo pagamento da dívida garantida, é o direito de expurgação da hipoteca, para desonerar os bens adquiridos. Em rigor este direito não põe em causa o direito do credor hipotecário, pois este, ou obtém o pagamento do crédito, ou tem assegurado o valor da coisa hipotecada.
Nas suas linhas essenciais, o regime do direito de expurgação, tal como resulta dos arts. 722.º a 724.º do CC e dos arts. 998.º a 1006.º do CPC é o seguinte.
A primeira nota a salientar é a da expurgação se verificar em processo judicial. O adquirente dos bens hipotecados , em alternativa, a faculdade de optar entre:
- pagar aos credores hipotecários garantidos pelo bem hipotecado.
- Declarar-se disposto a entregar aos credores hipotecários o bem, para pagamento dos respectivos créditos, até à quantia pelo qual o adquiriu ou em que o estima, quando a aquisição tenha sido gratuita ou não tenha havido fixação de preço.
No segundo caso, pode o valor em causa ser igual ou superior ao da dívida, não se levantando então problemas relevantes, mas pode ser inferior. Se assim acontecer, o art. 1003.º, n.º1, do CPC permite aos credores hipotecários impugnar o valor declarado pelo adquirente, procedendo-se, de seguida, à venda judicial dos bens hipotecados «pelo maior lanço que obtiverem sobre o declarado pelo requerente». Se não se obtiver valor mais elevado, os credores hipotecários terão direito, apenas, a receber o valor declarado (n.º 2 e 3 do citado preceito).
O regime exposto permite caracterizar a hipoteca como direito real de garantia, de forma ainda mais nítida o que no próprio penhor. Resulta também do facto de, neste caso, não havendo posse da coisa por parte do credor hipotecário, nem sequer lhe estarem conferidos poderes que aproximem a hipoteca dos direitos reais de gozo.

. Privilégios creditórios

Os privilégios creditórios concedem ao credor privilegiado a faculdade de, sem necessidade de registo, ser pago por bens do devedor, com preferência a outros credores (art. 733.º).
Esta noção geral deve ser esclarecida por dois elementos que, com frequência, têm de se verificar a sua concessão liga-se, ou à qualidade dos credores ou à natureza do próprio.
O regime dos privilégios aproxima-se do penhor, por dispensar o registo, mas logo dele se demarca por ser independentemente da posse da coisa sobre que incide a garantia. Por seu turno, afastam-se os privilégios creditórios da hipoteca por dispensarem o registo.
Em particular, para além de terem sempre fonte legal, os privilégios creditórios apresentarem, tanto em relação ao penhor como à hipoteca, a característica de poderem ter por objecto, indiferentemente, coisas móveis e imóveis.
Ponto comum à hipoteca é o de os privilégios garantirem, além do capital, os juros, mas só dos dois últimos anos (art. 734.º).
Os privilégios creditórios revestem várias modalidades, delimitadas sempre em função do seu objecto. Assim, há privilégios creditórios imobiliários e mobiliários, podendo estes ser ainda gerais e especiais (art. 735.º). Embora o art. 735.º, n.º 3 determine que os privilégios imobiliários são sempre especiais, há que ter em conta a reincidência do legislador, ao consagrar, em leis especiais, privilégios creditórios imobiliários gerais, não tanto por a lei civil, melhor sede da matéria, os não admitir, mas por a solução ser incorrecta, no plano da construção dogmática, e injusta, no seu regime.
Neste domínio, devem, justamente, ser assinaladas as recentes decisões proferidas pelo TC, ac. N.º 362/2002, de 17 de Setembro que, em matéria homóloga, declararam a insconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas que estabelecem privilégios imobiliários gerais, na interpretação que lhes dá preferência sobre a hipoteca.. Quanto à segunda distinção há que levar em conta o facto de o privilégio abranger o valor de todos os bens móveis do devedor, à data da penhora ou acto equivalente, ou só o valor de determinados bens.
A multiplicidade dos privilégios coloca o problema do seu valor relativo, o que a lei faz mediante a sua graduação (arts. 746.º a 748.º). No fundo, estabelece-se entre eles uma hierarquia com base em certos critérios de prevalência.
A qualificação dos privilégios creditórios como direitos reais não levanta dificuldades quando são especiais, como resulta dos arts. 750.º e 751.º.
Com efeito, segundo o primeiro destes preceitos, o privilégios mobiliário especial, quando em conflito com direitos de terceiros, prevalece sobre este, segundo a regra clássica da prevalência – prior tempore, potior iure. Goza, pois, da característica da sequela.
Quanto ao privilégio imobiliário, do art. 751.º resulta ser oponível a quem adquire, sobre o prédio, um direito real. Mas há mais. Segundo o mesmo preceito, e numa solução discutível, que pode frustar razoáveis expectativas de terceiros, o privilégio creditório imobiliário prefere mesmo à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que constituídos e registados anteriormente.
Pelo contrário, não pode ser reconhecida a qualidade de direito real aos privilégios creditórios mobiliários gerais, por faltar quanto a eles a característica da determinação da coisa. Isso mesmo se manifesta no regime estatuído no art. 749.º, segundo o qual este privilégio «não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente».

. Direito de retenção

Vem previsto nos arts. 754.º a 761.º. Em sentido próprio, consignado no art. 754.º, o direito de retenção traduz-se na faculdade de alguém, que está obrigado a entregar certa coisa, a poder manter em seu poder enquanto, por seu turno, não for pago de um crédito que tem sobre o titular dessa coisa, resultante de despesas feitas com ela ou de danos por ela causados. Para além disso, o credor titular do direito de retenção pode pagar-se à custa dela com preferência sobre os demais credores.
Por exemplo: do contrato de prestação de serviços celebrado entre A, dono de uma oficina de reparação de automóveis, e B, dono de um veículo entregue para a reparação, resulta para A a obrigação de entregar o automóvel, uma vez reparado. Contudo, enquanto B não pagar o preço da reparação, A pode recusar-se a fazer a entrega.
O art. 755.º configura vários casos especiais de retenção, que acrescem aos genericamente previstos no artigo anterior.
O direito de retenção pode ter por objecto tanto coisas móveis como imóveis, mas pressupõe sempre a detenção da coisa que constitui a garantia do crédito.
Por isso, o direito de retenção se extingue pela entrega da coisa (art. 761.º), ou seja, por cessação da situação de detenção, quando resultante de acto voluntário do retentor. Deste modo, tem este recurso aos meios possessórios se for indevidamente desapossado da coisa, mesmo pelo seu próprio dono.

O Regime do direito de retenção não é uniforme, mas sim comandado pela natureza da coisa retida.
Sendo móvel, determina o art. 758.º a aplicação do regime do penhor, quanto aos direitos e obrigações do retentor, nomeadamente quanto à venda da coisa. Sendo imóvel, a faculdade de a executar segue o regime da hipoteca (art. 759.º, n.º1); se a coisa estiver hipotecada, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca (n.º2 do mesmo preceito).
O direito de retenção resulta directamente da lei e não carecer de ser registado.
A função de garantia do direito de retenção exerce-se por duas vias diversas, qualquer delas compatível com a sua qualificação como direito real.
Desde logo, a doutrina identifica uma função compulsória, pois o dono da coisa retida, para obter a sua restituição, sentir-se-á compelido a pagar a sua dívida para com o detentor. Mas, para além disso, e no que mais interessa à matéria do nosso estudo, o direito de retenção de se pagar pelo valor da coisa retida, segundo as regras do penhor ou da hipoteca, consoante os casos.
Por outro lado, embora a lei não o diga expressamente, a transmissão do direito do devedor sobre a coisa retida não é oponível ao retentor. Nesse sentido, aponta, de resto, o facto de a lei não prever a transmissão desse direito como causa de extinção do direito de retenção.

II – Direitos Reais de Aquisição

. Noção e enumeração

Os direitos reais de aquisição identificam-se pela modalidade de afectação da coisa sobre que recaem, a qual assume aqui uma configuração muito particular e diversa da dos direitos reais de gozo e de garantia. O tipo de afectação da coisa nos direitos reais de aquisição constitui a primeira fonte da complexidade do seu regime.
Aqui a atribuição da coisa não respeita às suas utilidades, ou mesmo ao seu valor, mas sim à coisa, em si mesma, enquanto objecto do direito a adquirir pelo seu titular.
Os direitos reais de aquisição verdadeiros e próprios têm de gozar de autonomia, como bem salienta Menezes Cordeiro, ou seja, corresponder a um afectação autónoma da coisa. Não podem constituir mera faculdade de um direito preexistente.
Por outro lado, mesmo quando a aquisição dependa de um manifestação de vontade do titular do direito r eal, ela deve dar-se sem necessidade de outro acto adquirente, como seja a apreensão material da coisa (ocupação) – o direito de aquisição é que é real.

O direito a adquirir por efeito do exercício do direito real de aquisição não tem necessariamente de ser real; pode ser pessoal, como acontecerá com o arrendamento, para quem qualifique o correspondente direito como obrigacional.
Por outro lado, esse direito – o adquirido – pode existir já no momento em que se constitui o direito real de preferência, por exemplo, ou constituir-se no momento do exercício do direito real de aquisição e por efeito dele. Assim, o comproprietário tem preferência na alienação do direito de propriedade do outro consorte a terceiro. Exercida a preferência, há uma transmissão daquele direito de propriedade. As coisas assumem diferente feição no caso do direito a novo arrendamento reconhecido a certas pessoas que viviam com o arrendatário, no caso de o contrato caducar por morte deste (art. 90.º e seguintes do RAU). Se a pessoa a quem esse direito é concedido o exercer, constitui-se um novo direito de arrendamento.
Em geral, a actuação do direito real de aquisição depende de uma manifestação de vontade do seu titular e neste caso diz-se potestativo. Mas pode dar-se sem dependência de tal vontade e o direito diz-se automático.
O direito de superfície fornece-nos um óptimo laboratório de prova destas distinções. Assim, o direito de preferência atribuído ao fundeiro pelo art. 1535.º, bem como o direito à servidão reconhecido ao superficiário pelo n.º2 do art. 1529.º são potestativos. Mas são já automáticos o direito à servidão que cabe ao superficiário, ex vi do n.º1 do art. 1529.º, e a expectativa reconhecida ao fundeiro no art. 1538.º.
A doutrina levanta algumas dúvidas quanto à possibilidade de conciliar a natureza do direito real de aquisição com a natureza potestativa que ele por vezes reveste.
Não vemos dificuldade em conceber uma qualquer situação jurídica activa como real ou pessoal. Assim, o direito à anulação de um contrato anulável é um direito potestativo pessoal; mas o direito à constituição de uma servidão de passagem é real. A expectativa jurídica do herdeiro legitimário é pessoal; mas a do fundeiro, acima referida, é real.
Bem vistas as coisas, a expressão direito real tem um alcance genérico, não podendo ser entendida à letra, nem restringida aos direitos subjectivos. Em verdade, e não será caso único na linguagem jurídica, nesta matéria, ela significa qualquer situação jurídica activa.

. Preferência real

A preferência com eficácia real consiste no direito de certa pessoa adquirir, com afastamento de outro adquirente, e nas mesmas condições acordadas com este um direito relativo a uma coisa, no caso de ele ter sido transmitido por título oneroso.
Ao lado da preferência real, o direito positivo constrói uma preferência pessoal, com efeitos meramente obrigacionais (art. 414.º).
Consoante a sua fonte, o direito real de preferência pode ser legal ou convencional. Neste caso, a sua fonte é um contrato, conhecido correntemente como pacto de preferência (art. 414.º, n.º1).
As preferências legais resultam da lei e têm, em regra, eficácia real. Surgem, então, muitas vezes conexas com o conteúdo de outro direito (real ou não). Com frequência, o seu domínio é o dos conflitos e dos concursos dessas situações. Exemplo paradigmático é aqui o da preferência atribuída aos comproprietários.
Em face do exposto, logo se compreende que a análise dos casos de preferência legal mais significativos seja feita a respeito dos tipos de direitos reais com cujo conteúdo mantêm conexão. Por assim ser, vamos centrar a nossa atenção apenas em dois pontos: regime geral da preferência e demonstração do carácter real da preferência convencional.

Ao pacto de preferência pode ser atribuída eficácia real, segundo se dispõe no art. 421.º, quando tenha por objecto coisas imóveis ou móveis sujeitos a registo.
O pacto de preferência deve então observar os requisitos de forma e de publicidade da promessa com eficácia real, consignados no art. 413.º, por remissão daquele preceito. Para evitar repetições, em sede de promessa real estudaremos estes pontos.
O regime de actuação da preferência real, quando não seja automática, resulta da combinação do disposto nos arts. 416.º a 418.º e do art. 1409.º, funcionando por efeito depois aqueles preceitos como regime modelo das preferências legais.
Para maior facilidade de exposição vamos tratá-la quanto à preferência real de compra.
O pacto de preferência real impõe ao vendedor a obrigação instrumental de comunicar ao preferente o projecto de venda. Na falta de convenção ou norma em contrário, o preferente deve, sob pena de caducidade, exercer o seu direito no prazo de oito dias (art. 416.º, n.º1 e 2).
O carácter real da preferência não se manifesta nesta hipótese de cumprimento voluntário, cujo regime é comum à preferência pessoal, mas sim quando a obrigação de comunicação é violada e o vendedor aliena a coisa, sem dar preferência (art. 1410.º).
Na preferência real, como resulta da estatuição, devidamente generalizada, do art. 1410.º, o preferente tem o direito de haver para si a coisa alienada, devendo requerê-lo no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação. Se exercer a preferência, tem, como é natural, de entregar ao adquirente o preço por ele satisfeito, devendo depositá-lo no prazo de 15 dias seguintes deve abrir mão da coisa em favor do titular do direito de preferência.
Manifestam-se aqui as notas essenciais do direito real, consubstanciadas nas características da inerência e da sequela.

. Promessa real

O contrato-promessa com eficácia real atribui ao promitente adquirente um direito real de aquisição – uma promessa real. O promitente tem o direito de, no caso de alienação indevida da coisa a terceiro, mediante decisão judicial que supra a declaração negocial do promitente faltoso, adquirir o direito e de o fazer valer contra terceiro adquirente.
A promessa real, como resulta já da exposição anterior, tem por fonte um contrato-promessa come eficácia real.
Importa aqui traçar o regime deste contrato no que interessa à configuração, como direito real, do direito nele atribuído ao promitente adquirente e, de seguida, fixar o seu esquema de funcionamento.
O art. 413.º, n.º1, permite às partes atribuir eficácia real à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo. Devem ser, porém, observados certos requisitos quanto ``a modalidade e forma das correspondentes declarações e quanto ao registo do negócio.
Relativamente ao primeiro ponto, a lei exige que a declaração seja expressa, sendo, pois, um caso particular de exclusão da relevância da declaração tácita genericamente admitida pelo art. 217.º, n.º1.
Para além disso, o contrato-promessa com eficácia real é um negócio jurídico formal, dependendo as formalidades a observar da forma legal exigida para o contrato prometido e, por isso, indirectamente, em regra, da natureza dos bens que este tem por objecto (art. 413.º, n.º2). Assim, se o contrato prometido dever constar de escritura pública, essa forma deve também ser observada; se for exigida qualquer outra forma ou se o contrato prometido for consensual, basta documento particular assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante a promessa seja unilateral ou bilateral, mas com reconhecimento da assinatura.
Mais dificuldades levanta o texto do n.º1 do art. 413.º, quanto ao efeito nele atribuído ao registo. Entendido estritamente, à letra, o preceito parece sugerir um caso de registo constitutivo, quando nele se diz que a promessa tem eficácia real «mediante ... inscrição no registo».
Não é este o sentido que a doutrina atribui ao preceito, até porque a obrigatoriedade de registo tem carácter excepcional.
Na exposição do regime da promessa real, à semelhança do que fizemos quanto à preferência real, vamos partir do modelo do contrato-promessa de compra e venda.
Se o promitente vendedor cumprir o contrato, esbate-se a relevância de a sua eficácia ser obrigacional ou real. Deste modo, esta última manifesta-se, fundamentalmente, quando, violando a promessa, ele aliena a coisa prometida a terceiro.
Em tal hipótese, na falta de regime legal específico, da eficácia real da promessa, sob pena de esta não passar de letra morta, decorre a sua oponibilidade a terceiros, pelo que não pode deixar de se ter essa alienação como inoponível ao promitente comprador, se ele quiser valer-se do seu direito real de aquisição.
Sendo assim, uma solução possível seria a de a aquisição se produzir por simples declaração de vontade do promitente comprador, mas nada na lei aponta neste sentido. Deste modo, só resta o recurso à execução específica, através da qual se vai obter a aquisição do direito prometido.
Deste modo, não é admitir, nos contratos-promessa com eficácia real, convenção contrária à execução específica, sob pena de insanável indeterminação de conteúdo do negócio. Por razões análogas, não faz sentido jogar aqui a presunção do n.º2 do art. 830.º.
Se à execução específica se opuser a natureza obrigacional assumida, a eficácia real da promessa, no caso violação, fica comprometida.
A acção do promitente comprador deve ser intentada contra o promitente e terceiro, para este ser condenado a abrir mão da coisa, embora este pedido não deva ser visto como verdadeira reivindicação. Em qualquer caso, se a aquisição de terceiro estiver registada, tem de se pedir o cancelamento da inscrição feita a favor deste.

DA OCUPAÇÃO, DO ACHAMENTO E DA AQUISIÇÃO DO TESOURO

. A ocupação no Código Civil;

O CC vigente trata a ocupação na secção II do capítulo II (“Aquisição da propriedade”) do título reservado ao direito de propriedade. O CC não define a ocupação, limitando-se no artigo 1318.º a dizer:
“Podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvo as restrições dos artigos seguintes”.

. A “occupatio” e a aquisição da “res derelicta”;

Ocupação é uma forma de constituição do direito de propriedade que consiste na apropriação ou tomada de posse de uma coisa sobre a qual não recaiam quaisquer direitos.
Tem sido discutida a situação das coisas abandonadas (res derelictae). Para o Prof. MC a aquisição de uma coisa abandona, pela apropriação, é, de facto, ocupação em sentido próprio.

. A ocupação de coisas inanimadas; a caça e a pesca; os enxames de abelhas

O núcleo fundamental da ocupação clássica, ou seja, a constituição da propriedade feita pela apreensão de res nullius, acabou por não ser regulada no CC. Para além da noção geral do artigo 1318º, o Código limitou-se a remeter para legislação especial a caça e a pesca, a consagrar dois artigos (1320º e 1321º) aos animais selvagens com guarida própria e aos animais fugidos e a tratar o caso especial dos enxames de abelhas (1322º).
Não obstante, para o Prof. MC, podemos construir uma teoria geral da ocupação, decompondo-a em três ordens de elementos:
- um elemento pessoal: o ocupante;
- um elemento real: a coisa;
um elemento formal: a tomada de posse;
Quanto ao elemento pessoal, bastará dizer que terá de consistir numa pessoa com capacidade de gozo bastante. A ocupação pode ser realizada por representante (porque não?), produzindo-se os seus efeitos na esfera jurídica do representado, através do nexo de representação ou por pessoa colectiva através de um nexo de organicidade. Nestas duas hipóteses, em caso de dúvida, pensamos que se deve aplicar, por analogia, o artigo 1252.º, n.º 2: a ocupação presume-se feita a favor do representante ou do órgão da pessoa colectiva.
Em compensação, a pessoa pode, pela lei portuguesa, ocupar sem ter capacidade de exercício ou sem ter quaisquer discernimento, com inclusão de crianças de tenra idade ou de dementes. É o que deduzimos do artigo 1266º.
O elemento real da ocupação é sempre constituído por coisas móveis, Ficam excluídas as coisas imóveis, que, quando não tenham dono, pertencem ao Estado (1345.º), nunca sendo nullius. Deve entender-se que as res nullius em causa têm de ser susceptíveis de apropriação privada, isto é, devem estar no comércio (202.º/2).
Além de móveis e de estar no comércio, as coisas boas para ocupação devem, nos termos do próprio artigo 1318º, nunca ter tido dono, ter sido abandonadas, perdidas ou escondidas. Estes últimos dois casos não dão lugar à ocupação, razão porque diremos que podem ser ocupadas:
- as coisas que nunca tiveram dono;
- as coisas que, tendo tido dono, foram voluntariamente abandonadas pelo anterior proprietário (res derelictae).
O elemento formal da ocupação é a própria tomada de posse da coisa. A constituição da posse sobre uma coisa móvel, apropriável e mullius conduz, simultaneamente, à constituição da propriedade: O que não admira, uma vez que aquela é conteúdo desta.
Resta acrescentar que a constituição da propriedade se verifica no próprio momento da tomada de posse. É o que manda o artigo 1317.º, al. d), do CC:
Mas o regime geral da ocupação, tal como o delineamos, só tem aplicação directa à ocupação de coisas inanimadas.
Em relação à caça e à pesca remete o artigo 1319º do CC para legislação especial.
Quanto ao enxame de abelhas, dispõe o artigo 1322º. Sabemos que o proprietário de um enxame de abelhas o pode perseguir em prédio alheio, o que, na da tendo a haver com a ocupação, constitui uma restrição independente ao conteúdo positivo dos direitos reais.
Se, porém, não perseguir imediatamente o enxame, ou se, fazendo-o, não conseguir capturá-lo dentro de dois dias, o enxame torna-se nullius, podendo ser ocupado, nos termos gerais, pelo proprietário do prédio onde se encontre, ou por qualquer outra pessoa com consentimento do proprietário do prédio onde se encontre, ou por qualquer outra pessoa com consentimento do proprietário (1322º/2). Faltando esse consentimento, o ocupante estranho adquire o enxame, na mesma, só que é responsável perante o proprietário. Se assim não fosse, então deveríamos entender que o enxame já pertencia ao proprietário do prédio.

. O achamento e a aquisição do tesouro

Por achamento entendemos a forma de constituição do direito de propriedade sobre coisas móveis perdidas por parte de quem as encontre. O achamento distingue-se da ocupação pelo elemento real e pelo regime regime.
De facto, no achamento a coisa móvel não é nullius. É uma coisa perdida, isto é, uma coisa que saiu do poder do anterior proprietário casualmente, independentemente da vontade deste. Por isso, a coisa perdida mantém-se na propriedade do titular anterior, até que se constitua um novo direito.
O facto de a coisa achada ter dono levou o legislador a regulamentar este tipo de aquisição com especial cuidado, no artigo 1323º. Deste modo, podemos concluir que o achador:
- se constitui no dever de anunciar o achado ou de avisar a pessoa a quem a coisa pertence, se conhecer a sua identidade;
- tem direito a indemnização e a prémio, calculado como manda o artigo 1323.º, n.º 3;
- tem um direito real de garantia, nos termos do artigo 1323º, n.º 4 – direito de retenção;
- tem a posse da coisa;
- tem uma expectativa real que redundará num direito de propriedade, caso a coisa não seja reclamada pelo dono dentro do prazo de um ano;
Trata-se, portanto, de uma forma de aquisição originária complexa, a que chamamos simplesmente de achamento.
O CC dá uma noção de tesouro, no seu artigo 1324.º, n.º 1. O regime da aquisição do tesouro é o seguinte:
- se for evidente que o tesouro foi escondido ou enterrado há mais de vinte anos, o descobridor faz imediatamente sua metade do tesouro, pertencendo a outra metade ao dono da coisa, móvel ou imóvel, onde o tesouro, pertencendo a outra metade ao dono da coisa, móvel ou imóvel, onde o tesouro tiver escondido (1324.º/1);
- se tal não suceder, o descobridor deve anunciar o achado, nos termos gerais (1324.º, n.º 2); parece, assim, que o regime anterior se aplicará, então ao fim de um ano;
- se para descobridor prevaricar por alguma das formas indicadas no artigo 1324.º, n.º 3, perde, a favor do Estado, os direitos que teria como descobridor.
A aquisição do tesouro distingue-se, pois, da ocupação e do achamento pelo elemento real e pelo regime, Quanto ao elemento real, a coisa não é nullius nem perdida, mas enterrada ou escondida, Quanto ao regime, complexo, o Prof. MC pensa que traduz uma forma própria de aquisição, aquisição de tesouro.

. A ocupação, o achamento e a aquisição de tesouro: constituição, apenas de propriedade? (pag. 489 MC)

DA ACESSÃO, DA UNIÃO E DA ESPECIFICAÇÃO

. A acessão no Código Civil.

O CC define acessão, no seu artigo 1323.º, nos termos seguintes: “Dá-se acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que lhe não pertencia”.
A acessão diz-se natural, quando resulta exclusivamente das forças da Natureza; dá-se acessão industrial, quando, por facto do homem, se confundem objectos pertencentes a diversos donos ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com a propriedade alheia.
Se percorremos os artigos subsequentes, encontraremos as seguintes figuras jurídicas:
- acessão natural: quando a uma coisa acresce logo por efeito da natureza (1327.º e ss.);
- acessão industrial mobiliária – união ou confusão: quando alguém une ou confunde objecto seu com objecto alheio (1333º e ss.);
- acessão industrial mobiliária – especificação: quando alguém pelo seu trabalho dá nova forma a coisa alheia (1336.º e ss.);
- acessão industrial imobiliária: quando alguém construa obra ou faça sementeira ou plantação, de tal forma que as coisas aí intervenientes não tenham o mesmo proprietário ou não lhe pertençam.

. A acessão e suas modalidades no Direito Romano (pag. 492 e ss.).

. A acessão natural e a acessão industrial imobiliária.

A acessão é natural quando derive da incorporação de uma coisa que seja propriedade de alguém com outra coisa que não lhe pertença (1325.º), por obra exclusiva da Natureza (1326.º/1). O Código prevê, depois quatro hipóteses (aluvião, 1328.º; avulsão, 1329.º; mudança de leito, 1330.º e a formação de ilhas e mouchões, 1331.º). Para Prof. MC podemos a priori afastar a mudança de leito e as formações de ilhas e mouchões, pela leitura das suas disposições, uma vez que não há aí qualquer união ou incorporação de coisas nem se produz quaisquer novos direitos, isto é, não se descortina qualquer acessão.
A aluvião, diz respeito àquelas hipóteses em que, por força de qualquer facto da natureza, vento, erosão, acções das águas, etc, vai-se deslocando imperceptível mas sucessivamente uma porção de terreno que pertenciam a um proprietário, para outro terreno que pertence a um proprietário diferente (1328.º/1). Na avulsão o acrescento e devido à acção violenta dessas forças naturais (1329.º/1) – exemplo: ciclone.
OA e MC são da opinião que nalgumas hipóteses de aluvião não haveria qualquer acessão ou sequer alguma forma de aquisição de direitos reais: havendo uma incorporação paulatina de pequenas partícilas sobre um prédio – partículas essas que, individualmente tomadas, não podem ser consideradas coisas em sentido jurídico, por total irrelevância - , faltaria o pressuposto mínimo da acessão, nos termos do artigo 1325.º, a união de coisas. O sistema do CC só interessa quando da aluvião resulte algo que substancialmente traduza o aditamento efectivo de nova coisa.
Na aluvião, a acessão opera imediata e automaticamente, isto é: constitui-se o direito real sobre a coisa assim que se verifiquem os factos naturais do seu funcionamento, independentemente da vontade do adquirente.
Na avulsão, o regime é diferente: quando, pela acção das forças naturais, materiais alheios sejam arrojados sobre um prédio, o titular de direitos sobre ele tem o direito de exigir, no prazo de seis meses, a sua entrega, podendo esse prazo ser encurtado por decisão do Tribunal (1329.º/1). Não se fazendo a remoção nesses prazos, o titular do prédio adquire, automaticamente (1329.º/2, que manda aplicar o 1328.º) o direito sobre os materiais em causa. A aquisição opera aqui diferida e automaticamente.
Quanto à acessão industrial imobiliária – união ou incorporação em prédios (imóveis) de coisas alheias por acção do homem – trata o Código, sempre conjuntamente, as hipóteses de obras, sementeiras ou plantações (1339.º e ss.).
O regime que resulta do artigo 1339.º e ss. é bastante complexo e atende a quatro critérios na cominações de soluções:
- a titularidade do terreno;
- a titularidade dos materiais, sementes ou plantas;
- a boa ou má fé dos intervenientes;
- o valor relativo das coisas intervenientes;

Assim:
- a incorporação feita pelo titular do terreno com materiais, sementes ou plantas alheios, confere-lhe o direito à aquisição, independentemente da boa ou má fé e do valor relativo do terreno ou das coisas incorporadas, pagando o seu valor e a indemnização a que haja lugar (1339º);
- a incorporação feita em terreno alheio com materiais, sementes ou plantas próprios, de boa fé, confere o direito de aquisição do conjunto ao titular da coisa mais valiosa, desde que pague ao outro o valor da coisa adquirida (1340.º, n.º 1 e 3). Se o valor for igual, aplica-se o disposto no artigo 1333.º, n.º 2, por força do artigo 1340.º, n.º 2 (licitação);
- a incorporação feita em terreno alheio com materiais, plantas ou sementes próprios, de má fé, confere ao titular do terreno a faculdade alternativa de adquirir as coisas incorporadas, pelo valor fixado de acordo com as regras do enriquecimento sem causa, ou de exigir que o terreno seja restituído ao seu estado primitivo; à custa do incorporador (1341.º);
- a incorporação feita em terreno alheio com materiais, plantas ou sementes alheios confere o direito à aquisição ao titular da coisa mais valiosa (ou a licitação), independentemente da boa ou má fé do incorporador, excepto se o titular das coisas incorporadas tiver culpa na incorporação, altura em que o titular do terreno pode adquirir, pagando de acordo com as regras do enriquecimento sem causa ou , em alternativa, exigir que o terreno seja restituído ao seu estado primitivo; se o autor da incorporação, na última hipótese, estiver de má fé, aplica-se o disposto no final do artigo 1342.º, n.º 2. Não interessa, ergo, a boa ou má fé do titular do terreno.

Prevê ainda o Código a hipótese de, na construção de um edifício, em terreno próprio, se ocupar, de boa fé, uma parcela de terreno alheio (1343.º/1): nessa altura, se decorrerem três meses sem a oposição do titular do terreno, o construtor pode adquirir a propriedade do solo ocupando pagando o seu valor e demais prejuízos. O termo “parcela” é importante, porque traduz a ideia de que apenas uma pequena parte da construção poderá ocupar o terreno vizinho: se for a maior parte da construção, deve-se aplicar o regime geral da acessão (1340.º).
Como vimos, na acessão industrial imobiliária, ao contrário da acessão natural, a aquisição é potestativa o resultado da acção humana e não da natureza), isto é, depende de manifestação de vontade de seu beneficiário e ainda, normalmente, da efectuação de determinado pagamento.
Importa ainda chamar a tenção para o facto de o beneficiário adquirir pagando (1339.º e 1340.º/1), adquirir após licitação (1340.º/2), ter o direito de adquirir ou de exigir a demolição (1341.º) ou de adquirir pagando após três meses (1343.º/1).

. A acessão industrial mobiliária (união ou confusão)

Por acessão industrial mobiliária deve entender-se, nos termos do CC vigente, a união ou confusão de coisas móveis objecto de direitos pertencentes a pessoas diferentes, em termos tais que a separação não seja possível. A união ou confusão será, normalmente originada por acção do homem, mas pode sê-lo também casualmente (1335.º), razão por que o termo “industrial” é discutível: para Prof. MC parece perfeitamente correcta a designação de “união” ou “confusão”.
O regime da união ou confusão é, no direito português, ditado pela boa ou má fé dos autores da operação, pelo valor relativo das coisas e pela própria vontade dos intervenientes, depois da ocorrência. A saber:
- a união provocada de boa fé, quando a separação das coisas acarrete danos a quaisquer das partes, confere ao titular da coisa mais valiosa o direito de aquisição do conjunto, desde que indemnize o outro titular (1333.º/1); porém, o autor da união fica sempre com o resultado da adjunção, independentemente do valor das coisas, se a outra parte preferir a indemnização;
- a união provocada de má fé, quando a separação das coisas acarrete danos à outra parte, confere a esta o direito de aquisição do conjunto, pagando ao autor da união um valor calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa ou, em alternativa, o direito a uma indemnização, ficando então o autor da confusão com a coisa dela derivada (1334.º):
- a união casual confere ao titular da coisa mais valiosa o direito a adquirir o conjunto, pagando ao outro titular o justo valor da sua coisa ou, em alternativa, o direito ao justo valor da sua coisa, adquirindo então o titular da coisa menos valiosa (1335.º). Se as coisas forem de igual valor ou se nenhum dos intervenientes quiser ficar com a resultante da união, dispõem os n.ºs 2 e 3 do artigo 1335.º.

. A especificação

Dá-se a especificação quando alguém, pelo seu trabalho, dá nova forma a coisa móvel alheia (artigo 1336.º, n.º 1). O CC exemplifica com a escrita, a pintura, o desenho e a fotografia, a impressão, a gravura e outros actos semelhantes, feitos com utilização de materiais alheios (1338.º).
O regime da especificação é a resultante da boa ou má fé do especificador, do valor relativo acrescentado pela operação e da vontade do titular da coisa modificada. Assim:
- a especificação de boa fé, quando a coisa não possa ser restituída à forma primitiva sem perda do valor acrescentado, confere a titularidade da coisa resultante do trabalhador ou ao dono da coisa anterior, consoante o valor aditado seja ou não superior ao valor da coisa e podendo o dono da coisa, no último caso, preferir a indemnização, a que se encontrará sempre obrigada a parte que adquirir (1336.º);
- a especificação de má fé confere a titularidade da coisa transformada ao titular da coisa primitiva, independentemente do valor acrescentado, devendo o especificador ser indemnizado apenas, se o acréscimo de valor for superior, em um terço, ao valor da coisa e na medida em que exceder esse terço (1337.º).
A especificação deve constituir um modo autónomo de constituir direitos reais (aquisição originária).

. Da inconveniência do conceito unitário de acessão

Até onde poderemos levar o conceito de acessão no direito português actual? Página 506 e ss.

. A acessão, a união e a especificação: constituição apenas do direito de propriedade? Pági. 510 e ss.

. Da acessão e da aquisição de benfeitorias.

Qual é a exacta diferença entre uma benfeitoria e uma acessão? Para o Prof. MC os conceitos de benfeitoria e de acessão são distinto; têm, no entanto, uma zona comum, que só se pode distinguir por uma diferença de perspectiva. A benfeitoria é toda a coisa que se incorpora ao imóvel para o conservar ou melhorar (216.º); a acessão é a forma de constituição de direitos reais derivada da incorporação inseparável de uma coisa a outra, imóvel. A acessão pode derivar de coisa que nada conserve ou mlehore, assim como a benfeitoria pode ser separável, não consubstanciando qualquer acessão. Mas a coisa unida. Na acessão . pode conservar ou melhorar a coisa, sendo uma benfeitoria, podendo, paralelamente, a benfeitoria estar inseparadamente incorporada no solo, provocando uma acessão. Quando isto suceda, a única distinção possível é dizer que a benfeitoria e a acessão estão, entre si, numa relação de causa-efeito.

Como adquire o proprietário de uma coisa as benfeitorias realizadas através da incorporação da coisa de terceiro? O CC nada nos diz sobre a forma por que o titular da coisa adquire a benfeitoria, pertença de terceiro. A análise atenta dos artigos 1273º e 1275º do CC revela-nos que o proprietário adquire:
- as benfeitorias necessárias;
- as benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa;
- as benfeitorias voluptuárias feitas pelo possuidor de boa fé que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa;
- as benfeitorias voluptuárias feitas pelo possuidor de má fé.
Verifica-se , portanto, que o titular em causa adquire as benfeitorias que se incorporaram inseparavelmente à sua coisa, entendendo por separabilidade a possibilidade de destaque sem dano para a coisa, comum na acessão.

Quando o objecto da acessão seja qualificável, simultaneamente, como benfeitoria, que regime deve ser aplicado? Atentemos às diferenças principais dos dois regimes:
- na acessão, a aquisição do direito é potestativa; porém, na aquisição de benfeitorias tudo leva a crer que a aquisição seja automática, sempre que, evidentemente, se verifique a inseparabilidade (1273.º e 1275.º);
- na acessão, a determinação do titular adquirente obedece a regras complicadas, em que intervêm a titularidade do solo, valor relativo das coisas incorporadas e a boa ou má fé do intervento;
- o cálculo das indemnizações é diverso nas duas figuras: na acessão corresponde ao próprio valor da coisa incorporada, ao tempo da incorporação, quando o interventor esteja de boa fé e às regras de enriquecimento sem causa quando haja má fé; na benfeitoria, há simples direito a indemnização, a calcular nos termos gerais independentemente da boa ou má fé, quando seja necessária, fazendo-se o seu cálculo, quando seja útil, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa;
- na benfeitoria nunca se menciona o direito do titular pedir a restituição ao estado primitivo, a expensas do benfeitor;

Como harmonizar os dois regimes?
- a regra geral é sempre a da acessão; portanto, e sempre que, por uma razão ou por outra, a coisa incorporada não seja qualificável como benfeitoria, aplica-se o regime daquela, e nomeadamente:
· Quando a coisa incorporada valha mais do que a coisa incorporadora;
· Quando a coisa incorporada modifique o destino económico do conjunto;
· Quando a coisa incorporada não conserve ou melhore a coisa e não sirva para recreio do benfeitor;
- a regra especial, a das benfeitorias, aplica-se quando a lei expressamente diga, como sucede na locação (1046º), no comodato (1138º) e no usufruto (1450º);
- no caso da melindroso da mera posse, O prof. MC pensa que a solução deve ser ponderada cuidadosamente á luz de cada caso concreto.
Em caso de dúvidas, deve prevalecer a acessão.

DA PROPRIEDADE

. Noção de propriedade (Prof. MC)

A propriedade é um direito real pleno e exclusivo, isto é, é a afectação jurídico-privada de uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins de pessoas individualmente consideradas ou, se preferir, a permissão normativa, plena e exclusiva, de aproveitamento de uma coisa corpórea.

. Características da propriedade (pág. 625 e ss.)

. Do conteúdo da propriedade

O artigo 1305º do CC, atribui ao proprietário os “direitos” de:
- uso;
- fruição;
- disposição;
O que é o uso? O uso representa a possibilidade de afectar uma coisa corpórea às necessidades de alguém. Assim, o proprietário de um automóvel, realiza a respectiva condução, transportando-se a si ou a quem ele quiser, e assim utilizando o automóvel, que é uma coisa, para as respectivas utilidades de que a coisa é susceptível. Casa coisa corpórea tem um ou várias utilidades. Usá-la significa afectar as utilidades de que a coisa é susceptível. O exercício de toda e qualquer utilidade de que uma coisa é susceptível, consiste no uso.
O que é a fruição? A fruição reporta-se tanto à fruição civil ou à fruição natural. Há coisas que são susceptíveis de se reproduzirem. O dinheiro reproduz-se através do juro, e há determinadas coisas que se reproduzem naturalmente, por ex., os animais têm crias, o solo é susceptível de nascerem novas plantas, as plantas e árvores por sua vez darem frutos, e por aí fora. A fruição engloba o gozo que o direito real de gozo é susceptível. Permite aproveitar a capacidade produtiva da coisa. Os frutos englobam os frutos civis ou os frutos naturais.
O que é a disposição? A disposição é talvez o poder mais complexo que o gozo invoca. Tem duas dimensões. Uma dimensão material chamada poder de transformação, que significa naturalmente, mudar ou até destruir fisicamente uma coisa. Assim , o poder que o proprietário tem de transformar um prédio rústico, num prédio urbano, erigindo um edifício, o poder que o proprietário tem de mudar uma fracção para habitação, numa loja para comercio, etc… consubstanciam poderes de transformação material que o direito real de gozo em maior ou menor medida afecta. Ao lado do poder material de transformação que engloba a referência ao poder de disposição, encontramos também um poder jurídico de disposição. Poder jurídico esse que consubstancia a possibilidade de alienar ou onerar o direito real. Assim, o proprietário pode transmitir a terceiro o seu direito, vendendo, doando, permutando o seu direito, assim como pode alienar o direito perdendo-o a favor de um terceiro, ou inclusivamente, renunciando a ele pode também onerar o seu direito, nomeadamente o proprietário pode constituir um usufruto, uma servidão, etc…


DA PROPRIEDADE HORIZONTAL

. Generalidades

Segundo o artigo 1414º do CC: “As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime da propriedade horizontal”.
A noção primeira de propriedade horizontal será, assim, a da situação jurídica que se se verifica quando as fracções autónomas que componham um edifício estejam na titularidade de pessoas diversas.

. Natureza da propriedade horizontal (pág. 636)

. Construção jurídica; objecto

O direito de propriedade horizontal é o direito real que assiste a cada um dos titulares de fracções num edifício sujeito ao regime da “propriedade por andares”.
O regime da propriedade horizontal é a regulamentação a que fica sujeito o edifício cujas fracções autónomas sejam objecto de direitos de propriedade horizontal.
O condómino é o titular de um direito de propriedade horizontal.
A coisa corpórea sobre que incide o direito de propriedade horizontal é composta:
- por uma fracção autónoma;
- pelas “partes comuns” do edifício.
A fracção autónoma, em condições de construir uma unidade independente (1414º), tem de ser distinta e isolada do resto do edifício, tendo saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (1415º). A fracção é o núcleo essencial do objecto do direito de propriedade horizontal, tendo as partes comuns mero papel instrumental.
As partes comuns do edifício, que são também objecto do direito de propriedade horizontal, vêm referidas no artigo 1421º do CC: Podemos distinguir entre partes necessariamente comuns e partes eventualmente comuns, consoante estejam nessa situação por disposição imperativa da lei ou, pelo contrário, assim sejam consideradas por negócio jurídico ou, na falta de acto em contrato+ario, por disposição supletiva da lei,
As partes necessariamente comuns figuram no nº1 do artigo 1421º.
As partes eventualmente comuns são todas aquelas que assim sejam consideradas no título constitutivo de propriedade horizontal e ainda aquelas que, estando enumeradas no n.º 2 do artigo 1421º dp CC, não vejam a sua natureza comum afastada por acto em contrário. Em geral, podemos dizer que são negocialmente comuns todas as partes que, não estando enumeradas no n.º 1 do artigo 1421º. Sejam utilizadas por mais de um condómino.
O que sucede se se pretender constituir um direito de propriedade horizontal sobre uma coisa que não obedeça aos requisitos apontados? Nessa hipótese, há que distinguir consoante o vício respeite à fracção autónoma ou às partes comuns.
Se não forem respeitados os requisitos que devem assistir às fracções autónomas – a sua existência, o isolamento e a saída própria -, dá-se a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, nos termos do artigo 1416º. Como, porém, o edifício não pode ficar nullius determina o n.º 1 do artigo citado que o prédio fique sujeito ao regime da compropriedade próprio sensu.
Respeitando a falha às partes comuns, verifica-se, nos termos gerais, a nulidade da cláusula viciada (280.º/1).

. Características e conteúdo da propriedade horizontal

. Da administração das partes comuns


DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

. Generalidades

Nos termos do art.1524º do C.C., “o direito de superfície consiste na faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações”. O direito de superfície terá de compreender mais faculdades do que as de “manter” e “construir”, senão ficaria esvaziada de significado económico. Diremos assim, que o direito de superfície é a “afectação jurídica de um prédio alheio em termos de nele efectuar, ou simplesmente manter, edifícios ou plantações, com o subsequente aproveitamento das coisas mantidas”.

. Modalidades de superfície

▪ Quanto ao objecto, verificamos que o direito de superfície pode recair sobre plantações em terreno alheio como sobre obras ou construções, tendo assim respectivamente:
1) Superfície vegetal (quando recai sobre plantações)
2) Superfície edificada (quando recai sobre obras ou constuções)
Por outro lado, as plantações e obras referidas tanto podem já existir ao tempo da constituição da superfície, como podem derivar da actividade do superficiário, posterior à sua constituição. Distinguiremos, por isso, a superfície vegetal da superfície para plantação e a superfície edificada da superfície para edificação ou construção. Os termos desta classificação constam do art.1524º
De acordo com a sua duração, a superfície pode ser:
1) temporária – aquela que deva extinguir-se pelo decurso de determinado prazo ( art. 1524º, 1530º, nº2, 1536º,nº1, al.c)
2) Perpétua (a contrario)

A superfície pode, na sua constituição, obrigar o seu beneficiário ao pagamento de um preço ou, pelo contrário, implicar a sujeição a prestações anuais. Neste último caso, o fundeiro verá surgir a seu favor obrigações devidas pelo superficiário, seja ele quem for. Trata-se de um ónus real que onera a superfície, razão por que distinguimos, nessa base, a superfície onerada da superfície plena. A superfície onerada pode ser perpetuamente onerada ou temporariamente onerada, consoante as aludidas obrigações se formem apenas durante um prazo determinado ou, pelo contrário, surjam indefinidamente. É o que deduzimos do art.1530º

. Conteúdo da superfície; o objecto; o direito de sobreelevação

A situação jurídica da superfície é complexa, centrando-se em torno de 2 sujeitos: o titular do terreno - o fundeiro - e o titular do direito de superfície propriamente dito - o superficiário.
O conteúdo positivo do direito do superficiário consiste:
1) Construir ou plantar em terreno alheio (art.1524º, veja-se também o art.1536º, nº1, al b).
2) Manter edifícios ou plantações em terreno alheio, considerando-se como seu titular, em detrimento das regras de acessão (art. 1524º).
3) Construir as servidões necessárias para o correcto aproveitamento do implante.
4) Usar, fruir e dispor dos bens implantados, Veja-se o art.1529º, nº1 e o artigo 1534º.

Quanto ao seu conteúdo negativo há que salientar a possibilidade da incidência de um ónus real, gravando o direito do superficiário (art.1530º,nº1)

Passando agora à análise do direito do fundeiro, verificamos que ele abrange:
1) A propriedade do terreno, o que implica a presença de todas as faculdades próprias do direito real de propriedade
a) o uso e fruição da superfície do solo antes de o superficiário proceder ao implante, desde que não se prejudique este (art. 1532º )
b) o uso e fruição do subsolo, com responsabilidade pelos danos que daí advenham para o superficiário (art. 1533º )
c) a disposição do seu direito (art.1534º)
2) Um direito de preferência na venda ou dação em cumprimento do direito de superfície, graduado em último lugar entre os vários direitos de preferência existentes (art.1535º, nº1)
3) Um ónus real – o cânon superficiário (art.1530º, nº1)
4) Um direito de aquisição sobre o implante, caso a superfície deva extinguir-se pelo decurso do prazo ( art.1538º, nº1)

O objecto do direito de superfície é, necessariamente uma coisa imóvel. Em compensação, o direito de superfície “ não pode ter por objecto a construção de obra no subsolo, amenos que ela seja inerente à obra superficiária” (art.1525º, nº2). O C.C. consagra ainda a figura de sobreelevação, que tem 2 ordens de especialidade. Quanto ao objecto, é forçosamente, um edifício alheio. Quanto ao conteúdo, traduz-se na faculdade de construir sobre ele, isto é, de o sobrelevar, com a aquisição subsequente de porção construída. É o que dispõe o art 1526º.O direito de sobreelevação manda a citada disposição do C. C. que se apliquem as regras da propriedade horizontal, passando o construtor a ser condómino das partes referidas no art.1421º. Consequentemente extingue-se a superfície, com a conclusão da sobreelevação, nascendo, em sua substituição, um direito de propriedade horizontal.
O direito de sobreelevação e o seu exercício ou, se se quiser, a constituição do direito de superfície, quando opere sobre um edifício que já esteja em regime de propriedade horizontal, exige alteração do título constitutivo. A alteração do titulo constitutivo da propriedade horizontal só é possível quando decidida por unanimidade (art.1419º, nº1).

. Natureza da superfície; teses em confronto; posição adoptada

Qual será a natureza da superfície ou, mais precisamente, dos direitos do fundeiro e do superficiário?
Em relação ao fundeiro, supomos que não são possíveis dúvidas: trata-se de um direito de propriedade, como repetidamente indica o C.C. (art.1524º,1527º,1528º,1531º,nº2, 1532º,1533º,1534º,1535º) Simplesmente, é um direito de propriedade onerado pela coexistência de um poderoso concorrente - o direito do superficiário - o que lhe retira, ou pode retirar, várias faculdades importantes - maxime o uso e fruição da superfície. As complicações surgem com o direito do superficiário. A maioria da doutrina tem entendido que o direito do superficiário é simplesmente, um direito de propriedade sobre o implante, isto é , o direito de propriedade superficiária – posição defendida por Oliveira Ascensão
Posição de Menezes Cordeiro – Trata-se de um direito real complexo, um vez que no seu conteúdo, analiticamente, descobrimos faculdades que, noutros tipos reais, a lei automatiza como direitos reais. A variabilidade do seu conteúdo está tipificada na lei, o que nada tem de extraordinário. É esse direito que deve ser chamado do superficiário ou simplesmente direito de superfície.

. Especificidades do regime

Quanto ao pagamento do “Cânon superficiário”, quando exista, remete o art 1531º, nº1, para as regras referentes ao pagamento do foro enfitêutico, tal como resulta dos art.1505º e 1506º. O título constitutivo da superfície dispõe de certa latitude quanto à concreta configuração dos direitos do fundeiro e do superficiário. Assim, em matéria de cânon superficiário (art.1530º,nº1) de formas de extinção da superfície ( art.1536º, nº2 ) e de eventual indemnização ao superficiário, em caso de extinção (art.1538º, nº2).

DAS SERVIDÕES


. Generalidades; nota histórica

A ideia geral de servidão resulta do art.1543º do C.C., que dispõe:” servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia”.
No direito justinianeu distinguiam-se as servidões prediais das servidões pessoais: as primeiras traduziam o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio; as segundas redundavam num encargo estabelecido num prédio em favor de uma pessoa individualmente considerada, independentemente da titularidade de quaisquer prédios. Hoje em dia não se admite a figura da servidão pessoal.

. Os princípios clássicos das servidões e o direito civil vigente

Nos termos do art.1543º, a servidão é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio, ao mesmo tempo que o art. 1544º, depois de assinalar largo conteúdo à servidão, especifica deverem as respectivas utilidades ser gozadas por meio do prédio dominante.
As servidões são consideradas como acessórias em relação aos prédios dominante e dominado. Têm, pois, de os acompanhar em todas as vicissitudes. Nesse sentido, dispõe o art.1545º, nº1 que as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem , mandando o nº2 do mesmo art. Que a afectação das utilidades próprias de uma servidão a outros prédios implique sempre a constituição de uma nova servidão e a extinção da antiga.
A servidão grava todo o prédio dominante a favor de todo o prédio dominado. Consequentemente, fala-se na indivisibilidade das servidões; nesse seguimento, se o prédio serviente for dividido, cada parcela fica sujeita à parte da servidão que lhe cabia; se for dividido o prédio dominante, cada novo titular pode usar a servidão (art.1546º).

. Modalidades das servidões

As servidões são legais ou voluntárias consoante derivem da lei ou sejam constituídas no âmbito da autonomia da vontade. Falava-se ainda em servidões naturais quando derivassem da natureza das coisas. As servidões legais encontram-se nos arts. 1550º a 1563º. O traço mais característico das servidões legais reside no art. 1547º, nº2: “ As servidões legais , na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa”. Por isso se chama às servidões legais servidões coactivas ou servidões judiciais.
As servidões são classificadas em positivas ou negativas, consoante o seu conteúdo permita ao titular do prédio dominante praticar actos sobre o prédio serviente ou beneficiar da obrigação de não praticar determinados actos por parte do titular do prédio serviente.
Esta última modalidade de servidão traduz o tipo desvinculativo: por força da servidão excluir-se-ia uma faculdade do prédio dominado face ao prédio dominante. Parece-nos que a servidão de vistas prevista no art.1362º seria um exemplo claro desta modalidade.
As servidões dizem-se contínuas ou descontínuas consoante o seu uso seja ou não incessante, dependente ou não da vontade do homem.
De acordo com a publicidade de que sejam acompanhadas, as servidões dizem-se aparentes ou não aparentes; as primeiras, ao contrário das segundas, revelam-se por sinais exteriores permanentes( art.1548º). Esta distinção tem importância, uma vez que como sabemos, só as servidões aparentes podem ser constituídas por usucapião ( art.1548º, nº1 e art.1293º, al a), a contrario, estando também sujeitas a mero registo enunciativo.

. Especificidades do regime

Deparamos, no art 1549º, com uma forma de constituição específica das servidões: a destinação do pai de família. A servidão constitui-se por destinação do pai de família quando havendo em dois prédios pertencentes ao mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, sinais aparentes e permenentes se serventia de um em relação ao outro, venham a ser separados.
O regime concreto de cada servidão deve resultar do respectivo titulo constitutivo (art.1564º);na sua falta ou insuficiência aplicam-se as regras supletivas do C. C. ( arts. 1565º e ss. )de que em principio geral, constante do art. 1565º, nº2 é :
- deve satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante;
- com o menor prejuízo possível para o prédio serviente.
A servidão compreende tudo o que seja necessário ao seu uso e conservação (art 1565º, nº1 ). Assim sendo, o titular do prédio dominante pode fazer obras no prédio serviente, desde que não torne mais onerosa a servidão ( art.1566º, nº1). O art.1567º contém depois normas importantes no que toca aos encargos com as obras. Vê-se aí que embora o regime normal seja o de as obras serem custeadas pelo titular do prédio dominante, o titular do prédio serviente pode ter de as custear:
- quando também beneficie dessas obras e na medida do seu beneficio
- quando a isso esteja obrigado, nos termos do titulo constitutivo

Oliveira Ascenção considera a usucapio libertatis, tratada no artigo 1574º, como uma forma de usucapião. A usucapio libertatis é uma forma de extinção especifica das servidões prediais que opera quando, opondo-se o titular do prédio serviente ao exercício da servidão , decorram os prazos fixados para a usucapião. Menezes Cordeiro - parece-nos, que, salva a tese que vê na usucapio libertatis uma modalidade da usucapião está seriamente implicada na ideia falaciosa da servidão como desmembramento da propriedade.

. Das servidões legais de passagem

As servidões legais de passagem são aquelas cuja constituição os titulares de prédios “ que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivos incómodos ou dispêndio”têm a faculdade de exigir, sobre os prédios rústicos vizinhos “(art.1550º, nº1)
A sua constituição implica, no entanto o pagamento de uma indemnização correspondente ao prejuízo que o prédio serviente vai sofrer (art.1554º ), sendo essa indemnização agravada até ao dobro quando o encrave absoluto ou relativo que origina a servidão derive de acto voluntário e não justificado ( art.1552º)
A servidão legal de passagem pode provir não só da falta de comunicação com a via pública, mas também da necessidade de alcançar” fontes, poços e reservatórios públicos e correntes do domínio público, nos termos e condições do art.1556º
Existe a possibilidade, por parte do possível prédio serviente, de evitar a constituição de servidão quando se trate de “ quintas, muradas, quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos “ adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor ( art. 1551º, nº1), judicialmente fixado, em caso de necessidade, e havendo licitação quando sejam 2 ou mais os titulares interessados (nº2).

. Das servidões legais de águas

O C.C. refere-se, nos arts 1557º e 1558º, duas servidões de aproveitamento de águas, para gastos domésticos e para fins agrícolas. Tentando reduzi-las ao menor denominador comum, diremos que a sua constituição requer as seguintes condições:
- um prédio sem água bastante para fins domésticos ou agrícolas, em condições que não sejam de excessivo incómodo ou dispêndio;
- com prédios vizinhos onde haja águas sobrantes ou sem utilização;
- o pagamento prévio de uma quantia compensatória

Temos as servidões legais de aqueduto e de escoamento, tratadas nos art.1561º, 1562º, 1563º. Pela servidão legal de aqueduto permite-se a constituição de um direito real nos termos do qual determinadas águas a que se tenha direito podem ser conduzidas por prédio alheio em proveito do prédio dominante.
O art. 1560º dispõe sobre a constituição de servidão legal de presa para o aproveitamento de águas públicas.
[1] Essencialmente os Profs. Oliveira Ascensão, Menezes Cordeiro, Carvalho Fernandes e Pedro de Albuquerque.
[2] Código de Registo Predial
[3] Suponhamos que A e B trocam entre si prédios situados, um, na área da conservatória X e, outro, na conservatória Y; ou que C vende a D um prédio, situado na conservatória X, constituindo na mesma escritura, o comprador, em favor do vendedor, como garantia do pagamento do preço, hipoteca sobre outro prédio, situado na área da conservatória Y. Em qualquer destes casos, os correspondentes actos têm de ser registados nas duas conservatórias.
[4] As fichas são ordenadas por freguesias e, em cada uma delas, pelo número da descrição.
[5] O registo deve ser promovido pela instituição de crédito interveniente na aquisição, por força do preceituado no citado texto.
[6] A aquisição tabular não se confunde com a aquisição prevista no art. 291.º do CC, que não prevê um registo prévio e que postula, após o registo feito pelo interessado, o decurso do prazo de três anos para a consolidação da situação.

Sem comentários: