quarta-feira, 7 de maio de 2008

APONTAMENTOS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL



Da Responsabilidade Civil no Novo CódigoEugênio Facchini Neto

Doutor em Direito Comparado, pela Universidade de Florença (Itália), Mestre em Direito Civil, pela USP, Professor nos Cursos de graduação e pós-graduação da PUC/RS e na Escola Superior da Magistratura/RS, Magistrado no Rio Grande do Sul.
“O principal objetivo da disciplina da responsabilidade civil consiste em definir, entre os inúmeros eventos danosos que se verificam quotidianamente, quais deles devam ser transferidos do lesado ao autor do dano, em conformidade com as idéias de justiça e eqüidade dominantes na sociedade”1.
Introdução. A responsabilidade civil no novo código.
O Livro III, da Parte Geral do novo Código Civil, introduziu uma nova sistematização relativamente aos Fatos Jurídicos, diante da recepção legislativa da categoria do negócio jurídico. Depois de disciplinar essa categoria no Título I, o codificador dedicou o Título II (composto de um único artigo, que remete ao título anterior) aos atos jurídicos lícitos e reservou o Título III para algumas disposições gerais acerca dos atos ilícitos (arts. 186 a 188). Estas disposições genéricas são posteriormente complementadas e detalhadas no penúltimo título (Título IX – arts. 927 a 954) do Livro I da Parte Especial, denominado Da Responsabilidade Civil. Além disso, há inúmeras outras disposições esparsas pelo novel estatuto que igualmente tratam de aspectos da responsabilidade civil. Assim, ao invés de concentrar os dispositivos legais acerca da responsabilidade civil num único título, o legislador optou por desmembrar o tema em duas partes distintas, além de consagrar disposições avulsas para disciplinar certos aspectos particulares2 (como por exemplo, os arts. 12, 20, 43, 206, par. 3º , inc. V, 398, 406, 1.278, 1.296, 1.311, par. único, 1.385, par. 3º, dentre outros).
Embora não o diga expressamente, e talvez até mesmo de forma não consciente, a sistematização do legislador revela toda a complexidade do abrangente tema da responsabilidade civil. O art. 186, por exemplo, que deve ser lido conjuntamente com o art. 927, caput, assenta a regra geral da responsabilidade extracontratual subjetiva por fato ilícito. Já o preceito do art. 188 deve ser compreendido à luz do que dispõem os arts. 929 e 930. Da sua conjugação percebe-se a previsão de hipóteses de responsabilidade civil extracontratual por fato lícito. O art. 187, por sua vez, contém importante preceito, aplicável tanto a direitos absolutos quanto relativos, contratuais ou não, direitos obrigacionais, reais, de família ou outros. O parágrafo único do art. 927, e arts. 931, 933, além de outros, de forma expressa adotam o princípio da responsabilidade civil objetiva – fora aqueles que implicitamente adotam tal posicionamento, como é o caso, a título meramente exemplificativo, dos arts. 936, 937 e 938.
O objetivo deste trabalho é abordar as inovações mais significativas em tema de responsabilidade civil, não sendo o momento de aprofundar a análise de certos temas que, conquanto importantes, não sofreram significativa alteração legislativa. Da mesma forma, não nos deteremos sobre inovações meramente formais, em que o legislador apenas trouxe para o código civil aspectos já cristalizados na jurisprudência ou já constantes de outras fontes – como é o caso do dano moral (teria sido melhor que se utilizasse a nomenclatura cientificamente mais correta, de dano extrapatrimonial, do qual o dano moral é apenas uma espécie3), de diuturna aplicação nos pretórios e previsto inclusive no texto constitucional.
Noções gerais e evolução histórica.
Savatier4 define a responsabilidade civil como sendo a obrigação que incumbe a uma pessoa de reparar o dano causado a outrem por ato seu, ou pelo ato de pessoas ou fato de coisas que dela dependam. Na verdade, o dano ocorrido não se cancela mais da sociedade: o ressarcimento não o anula. Trata-se simplesmente de transferi-lo de quem o sofreu diretamente para quem o deverá ressarcir5.
Dificilmente haverá no direito civil matéria mais vasta, mais confusa e de mais difícil sistematização do que a da responsabilidade civil. Ao tempo do Código de 1916, ponderava-se6 que “em nenhum ramo do direito mais se patenteia o indesejado desequilíbrio entre a disciplina legislativa e as impacientes exigências da vida moderna. As nossas leis no campo da responsabilidade civil espelham um passado extinto. Refletem, na rígida simetria do seu ordenamento, um estado de coisas que não é mais o estado das coisas contemporâneas. Impotentes para solucionar os conflitos que não são do seu tempo e do seu mundo, obrigam os seus aplicadores ao uso de artifícios e acomodações que, por vezes, tocam as raias do abstruso e do inconseqüente”.
Pois bem, o novo diploma civil não alterou substancialmente este estado de coisas7. Poucas foram as inovações profundas e significativas. A maioria das aparentes alterações legislativas nada mais é do que uma incorporação, à lei, de entendimentos jurisprudenciais consolidados ou tendenciais.
O presente trabalho não pretende seguir uma linha meramente exegética, simplesmente comentando, artigo por artigo, os novos dispositivos que disciplinam a responsabilidade civil. Busca-se, ao contrário, trabalhar o tema da responsabilidade civil, à luz de sua evolução histórica e das tendências percebidas no exame do direito comparado, para que se possa melhor apreender o sentido das alterações legislativas, que serão, obviamente, apontadas.
O foco atual da responsabilidade civil, pelo que se percebe da sua evolução histórica e tendências doutrinárias, tem sido no sentido de estar centrada cada vez mais no imperativo de reparar um dano do que na censura do seu responsável. Cabe ao direito penal preocupar-se com o agente, disciplinando os casos em que deva ser criminalmente responsabilizado. Ao direito civil, contrariamente, compete inquietar-se com a vítima8.
Por outro lado, tende-se a substituir a idéia de um débito ressarcitório derivado de um fato ilícito a cargo do sujeito responsável, pela noção de crédito a uma indenização a favor da vítima9. Trata-se de uma verdadeira inversão de perspectiva, com inúmeras conseqüências no âmbito da responsabilidade civil. Como diz M. Bessone, a tendência de atribuir à responsabilidade civil a função de assegurar uma tutela ressarcitória em todos os casos de danos sofridos por um sujeito induziu a doutrina e a jurisprudência a submeter a uma revisão as categorias dogmáticas, velhas de séculos10. Já vai longe a época em que uma Corte de Justiça podia afirmar que “o empresário industrial deveria ser considerado, por definição, um benemérito da sociedade, e que, portanto, deveria ser tutelado contra pretensões ressarcitórias relativas a danos conexos à sua atividade; pretensões essas –acrescentava-se – que se viessem a ser acolhidas com largueza, colocariam em perigo a produtividade e a eficiência da indústria, com graves danos para a economia do país. Disto decorreria o dever de cada cidadão de suportar os riscos que a atividade industrial, de per se, comporta”11.
O casuísmo que caracterizou a legislação romana impediu o surgimento de um princípio geral de responsabilidade. Em nenhum momento o direito romano dispôs de uma ação que abrangesse toda e qualquer espécie de dano. Foi somente com Domat, no séc. XVII, que desabrochou, no solo fértil criado criado pelo jusnaturalismo, o princípio genérico da responsabilidade civil, em texto que posteriormente serviu de base à redação do art. 1382 do Código Civil francês, inspirador de inúmeras legislações posteriores.
Do ponto de vista histórico, portanto, o ilícito civil procede do ilícito penal. Todo o progresso em termos de responsabilidade civil tem consistido em generalizar as regras desta, ao passo que ciência penal procura, cada vez mais, precisar claramente os elementos do delito penal.
Dentro deste contexto, a importância do Código Civil francês de 1804 é paradigmática, pois ali ficou consagrado, em termos claros, que “todo e qualquer fato do homem, que causa um dano a outrem, obriga o culpado a repará-lo” (art. 1.382). Ou seja, ficou consagrado o princípio da atipicidade da responsabilidade civil, mediante cláusula geral instituidora de uma responsabilidade subjetiva.
Mudança profunda passou a sofrer a teoria da responsabilidade civil a partir do último quartel do século XIX, acentuando-se ao longo do século XX, em conseqüência dos fenômenos da industrialização, acentuada urbanização e massificação da sociedade. É o que alguns chamam de era do maquinismo. A vida em conglomerados urbanos acarretou a multiplicação dos acidentes. Com a disseminação do uso de máquinas no processo industrial e no quotidiano das pessoas, operou-se sensível modificação na orientação da doutrina e da jurisprudência para o tratamento das questões relativas à responsabilidade civil. “Surgiu então a necessidade de socorrer as vítimas”12.
Foi aí que a doutrina partiu para a revisão de alguns conceitos até então considerados dogmas, como o da necessidade de uma culpa para justificar o dever de reparar os danos causados por alguém. Difundiram-se, então, as teorias do risco. Na verdade, a idéia genérica de responsabilidade objetiva (= independente de culpa) abrange uma miríade de teses e enfoques diversos – sendo mais importantes as teorias do risco-proveito, risco-criado, idéia de garantia, responsabilidade objetiva agravada13.
Até o final do século XIX o sistema da culpa funcionara satisfatoriamente. Os efeitos da revolução industrial e a introdução do maquinismo na vida cotidiana romperam o equilíbrio. A máquina trouxe consigo o aumento do número de acidentes, tornando cada vez mais difícil para a vítima identificar uma ‘culpa’ na origem do dano e, por vezes, era difícil identificar o próprio causador do dano. Surgiu, então, o impasse: condenar uma pessoa não culpada a reparar os danos causados por sua atividade ou deixar-se a vítima, ela também sem culpa, sem nenhuma indenização.
Para resolver os casos em que não havia culpa de nenhum dos protagonistas, lançou-se a idéia do risco, descartando-se a necessidade de uma culpa subjetiva. Afastou-se, então, a pesquisa psicológica, do íntimo do agente, ou da possibilidade de previsão ou de diligência, para colocar a questão sob um aspecto até então não encarado devidamente, isto é, sob o ponto de vista exclusivo da reparação do dano. Percebe-se que o fim por atingir é exterior, objetivo, de simples reparação e não interior e subjetivo, como na imposição da pena 14.
Os juízes, em princípio, recusaram-se a aplicar desde logo a teoria da responsabilidade objetiva. Desejosos de se manterem dentro da teoria da culpa, mas tendo que garantir às vítimas a efetivação de seu direito à reparação do mal injustamente sofrido, passaram eles a usar um método singular. Tradicionalmente, constatava-se a existência da culpa antes de condenar-se o culpado. Inverteram eles, então, o iter lógico: constatando que a vítima tinha “direito” a ver reparado seu prejuízo, esforçavam-se em descobrir uma culpa que pudesse justificar a decisão. Ou seja, adotavam-se ‘processos técnicos’ de extensão do conceito de culpa, para tentar garantir o direito à reparação dos danos, sob a égide da responsabilidade subjetiva, dilatando abusivamente a idéia de culpa, de que são exemplos os expedientes das presunções de culpa, da teoria da culpa na guarda das coisas, teoria da culpa anterior, teoria da culpa desconhecida, teoria da culpa coletiva, culpa das pessoas jurídicas, etc15.
Outros mais audazes, todavia, romperam com a idéia de culpa e tentaram formular uma doutrina de responsabilidade civil com base em idéias objetivistas. Na França, inicialmente, a teoria do risco foi imaginada tendo em vista uma situação especial: a responsabilidade do patrão no caso de acidente de trabalho de que fossem vítimas seus empregados. Assinalou-se, então, que era justo que quem recolhesse o benefício, as vantagens, de uma empresa, indenizasse aqueles que, sem poder esperar os mesmos proveitos, fossem vítimas de acidentes: ubi emolumentum ibi onus; cuius commoda, eius et incommoda.
Os partidários da teoria do risco (então risco-proveito), passaram a pretender aplicar suas idéias a outros campos da responsabilidade civil. Era a evolução da teoria do risco-proveito em direção à teoria do risco-criado. Assim, pelo simples fato de agir, o homem muitas vezes cria riscos potenciais de dano para os outros. É justo, portanto, que suporte ele os ônus correspondentes16.
Dentro da teoria do risco-criado, destarte, a responsabilidade não é mais a contrapartida de um proveito ou lucro particular, mas sim a conseqüência inafastável da atividade em geral. A idéia do risco perde seu aspecto econômico, profissional. Sua aplicação não mais supõe uma atividade empresarial, a exploração de uma indústria ou de um comércio, ligando-se, ao contrário, a qualquer ato do homem que seja potencialmente danoso à esfera jurídica de seus semelhantes. Concretizando-se tal potencialidade, surgiria a obrigação de indenizar17.
Uma outra idéia que encontra abrigo no amplo espectro da responsabilidade objetiva é a de garantia, que é particularmente eficiente para explicar certas espécies de responsabilidade objetiva, como quando o autor direto do dano é desprovido materialmente de bens ou renda18. Ou seja, o legislador, exemplificativamente, ao responsabilizar os preponentes pelos atos dos prepostos, teria visado assegurar às vítimas a efetivação de seu direito à indenização dos prejuízos injustamente sofridos, direito este que restaria seriamente comprometido se dependesse unicamente da solvabilidade do autor direto do ato danoso.
Uma idéia que transita sob a mesma denominação, porém com configuração distinta, foi formulada por B. Starck19. Parte o ilustre autor da constatação de que as demais teorias buscam o fundamento da responsabilidade civil pelo lado do autor do dano. Na teoria da culpa, o agente responde porque agiu culposamente. Na teoria do risco, a responsabilidade se explica porque o agente teria criado um risco para os demais, ou porque retirou algum proveito de uma coisa ou do trabalho de outrem. Criticando tais posicionamentos, entende Starck que tal fundamento deve ser buscado pelo lado da vítima. Diz ele que toda pessoa possui direito à vida e à integridade corporal, da mesma forma que tem direito à “integridade material dos bens que lhe pertencem, e, mais genericamente, à segurança material e moral”. Existindo estes direitos subjetivos, “eles devem ser protegidos e garantidos pelo Direito” [objetivo]. Ou seja, Starck reconhece a existência de um direito individual à segurança, cuja violação não autorizada constitui um dano causado em contrariedade ao direito, uma injustiça em si mesmo, independentemente das disposições físicas ou psicológicas do seu causador. Também André Tunc abre espaço em sua obra20 para abordar o tema da responsabilidade civil sob o ângulo da garantia dos direitos individuais.
Costuma-se dizer que “os partidários da culpa colocam-se como defensores das liberdades individuais e protetores das atividades necessárias à vida em sociedade, ao passo que os promotores do risco surgem como pioneiros da seguridade social”21, ou, ainda, que “é a equidade que engendrou a teoria do risco. É a moral que mantém a teoria da culpa”22.
O fato é que a teoria da responsabilidade civil comporta tanto a culpa como o risco. Um como o outro devem ser encarados não propriamente como fundamentos da responsabilidade civil, mas sim como meros processos técnicos de que se pode lançar mão para assegurar às vítimas o direito à reparação dos danos injustamente sofridos. Onde a teoria subjetiva não puder explicar e basear o direito à indenização, deve-se socorrer da teoria objetiva. Isto porque, numa sociedade realmente justa, todo dano injusto deve ser reparado.
Destarte, o foco atual da responsabilidade civil, pelo que se percebe da sua evolução histórica e tendências doutrinárias, reside cada vez mais no imperativo de indenizar ou compensar dano injustamente sofrido, abandonando-se a preocupação com a censura do seu responsável. Cabe ao direito penal preocupar-se com o agente, disciplinando os casos em que deve ser criminalmente responsabilizado. Ao direito civil, contrariamente, compete inquietar-se com a vítima. Na esfera dos danos materiais, busca-se substancialmente reparar um dano, e não punir o agente causador (ao menos não como objetivo ou função da responsabilidade civil). Como refere Karl Larenz, “não se trata, como no direito penal, de reagir frente ao fato culpável, mas sim de levar a cabo uma justa distribuição dos danos: quem causa um dano a outrem por meio de um ato antijurídico, ainda que de modo apenas ‘objetivamente’ negligente, está mais sujeito a ter que suportar o dano do que aquele que diretamente o sofreu, sem ter contribuído para o evento”23.
Houve a participação do legislador neste movimento renovador, como indicam as leis sobre acidentes de trabalho e sobre acidentes ferroviários que foram então sucessivamente promulgadas, nas quais a teoria da responsabilidade objetiva encontrou guarida. Mas foi sobretudo a jurisprudência, mormente a francesa, que desempenhou ativo papel no alargamento dos limites da responsabilidade civil, no intuito de, cada vez mais, proteger as vítimas.
A Responsabilidade Civil no Direito Contemporâneo e suas Tendências
Como foi visto, a tendência manifesta da teoria da responsabilidade civil é no sentido de ampliar, cada vez mais, a sua abrangência, a fim de possibilitar que todo e qualquer dano possa ser reparado. Para que isso aconteça, é necessário afastar-se, progressivamente, do princípio da culpa. Isso ocorreu, avançando-se em direção a um modelo misto, onde, ao lado da culpa, há espaço para uma responsabilidade civil objetiva, fundada no risco ou na idéia de garantia.
Nas últimas décadas, porém, percebe-se que esse modelo misto tornou-se mais complexo, com o surgimento de um terceiro modelo de responsabilidade, não individual, mas coletiva, fundada na idéia de solidariedade. Jean Guyenot24 e René Savatier25, por exemplo, afirmam que as tendências contemporâneas se traduzem por um movimento em direção à socialização da responsabilidade e dos riscos individuais, ao término do qual toda a vítima de um acidente deverá estar virtualmente certa de ser indenizada. Nesse sistema, o Estado absorveria todos os riscos e os redistribuiria por todo o corpo social, através de um imposto. Assim, o prejuízo de um seria suportado, afinal, por todos.
Este terceiro modelo vai além da idéia de uma simples responsabilidade objetiva, pois esta permanece uma idéia vinculada a parâmetros individuais, ao passo que o modelo ao qual agora nos referimos transcende o indivíduo e socializa as perdas. Não se trata, portanto, de condenar alguém individualizado a ressarcir um prejuízo, mas sim de transferir para toda a sociedade ou para um setor desta, uma parte do prejuízo. A hipótese, aliás, não é nova, bastando ter presente o que sucedeu no âmbito da responsabilidade por acidente de trabalho, bem no campo do seguro obrigatório de responsabilidade civil envolvendo veículos automotores26.
Costuma-se dizer que onde o sistema de seguridade social se apresenta particularmente abrangente, de modo a satisfazer em modo adequado o princípio ‘do berço ao túmulo’, a responsabilidade civil poderá recobrir territórios mais limitados e ser ativada de acordo com seus princípios clássicos27. Onde, ao contrário, for deficiente o sistema de seguridade social, por apresentar importantes lacunas em seu programa assistencial, parece inevitável que o modelo de responsabilidade civil venha a desenvolver uma função camuflada de um tipo de ‘seguridade social privada’, cumprindo, em via supletiva, uma função distributiva de riqueza.
Outras funções da responsabilidade civil.
A função originária e primordial da responsabilidade civil, portanto, é a reparatória (de danos materiais) ou compensatória (de danos extrapatrimoniais). Mas outras funções podem ser desempenhadas pelo instituto. Dentre essas, avultam as chamadas funções punitiva e dissuasória28. É possível condensar essa tríplice função em três expressões: reparar (ou compensar), punir e prevenir (ou dissuadir). A primeira, e mais antiga, dessas funções é conhecida e a ela já fizemos referências. Vejamos as outras duas.
Função punitiva. A função punitiva, presente na antigüidade jurídica, havia sido quase que esquecida nos tempos modernos, após a definitiva demarcação dos espaços destinados à responsabilidade civil e à responsabilidade penal. A esta última estaria confinada a função punitiva. Todavia, quando se passou a aceitar a compensabilidade dos danos extrapatrimoniais, percebeu-se estar presente ali também a idéia de uma função punitiva da responsabilidade civil. Para os familiares da vítima de um homicídio, por exemplo, a obtenção de uma compensação econômica paga pelo causador da morte representa uma forma estilizada e civilizada de vingança, pois no imaginário popular está-se também a punir o ofensor pelo mal causado quando ele vem a ser condenado a pagar uma indenização. Com a enorme difusão contemporânea da tutela jurídica (inclusive através de mecanismos da responsabilidade civil) dos direitos da personalidade, recuperou-se a idéia de penas privadas. Daí um certo revival da função punitiva, tendo sido precursores os sistemas jurídicos integrantes da família da common law, através dos conhecidos punitive (ou exemplary) dammages. Busca-se, em resumo, ‘punir’ alguém por alguma conduta praticada, que ofenda gravemente o sentimento ético-jurídico prevalecente em determinada comunidade29. Tem-se em vista uma conduta reprovável passada, de intensa antijuridicidade.
Função dissuasória. Distingue-se esta da anterior por não ter em vista uma conduta passada, mas por buscar, ao contrário, dissuadir condutas futuras. Ou seja, através do mecanismo da responsabilização civil, busca-se sinalizar a todos cidadãos sobre quais condutas a evitar, por serem reprováveis do ponto de vista ético-jurídico. É óbvio que também a função reparatória e a função punitiva adimplem uma função dissuasória, individual e geral. Porém, esse resultado acaba sendo um ‘efeito colateral’, benéfico, mas não necessariamente buscado. Na responsabilidade civil com função dissuasória, porém, o objetivo de prevenção geral, de dissuasão ou de orientação sobre condutas a adotar, passa a ser o escopo principal. O meio para alcançá-lo, porém, consiste na condenação do responsável à reparação/compensação de danos individuais.
No direito pátrio, também encontramos referência à função dissuasória, tanto na doutrina30, quanto na jurisprudência31, embora o nível de profundidade e de sistematização das análises ainda esteja aquém das análises encontradas no direito comparado.
Da responsabilidade civil subjetiva.
A cláusula geral relativa ao tema, que no código de 1916 estava consubstanciada no art. 159, agora resulta da fusão de dois dispositivos legais – os arts. 186 e 927, caput. Efetivamente o art. 186 estabelece um preceito segundo o qual “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, ao passo que o caput do art. 927 prevê as conseqüências jurídicas de tal fattispecie: “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Desconsiderando-se a menção ao dano moral32 (inovação meramente formal, como já salientado), e abstraindo-se a subdivisão em dois artigos da cláusula geral anteriormente contida no art. 159, a diferença de redação entre as duas cláusulas pode até passar desapercebida a uma rápida leitura, embora pudesse conter uma profunda conseqüência jurídica. De fato, enquanto o antigo art. 159 falava em violar direito, ou causar prejuízo a outrem, a nova cláusula refere “violar direito e causar dano a outrem”. Se a alteração fosse em sentido contrário, poder-se-ia sustentar que o legislador estaria acolhendo a idéia de uma responsabilidade civil de cunho punitivo ou eventualmente dissuasório, e não de natureza reparatória/compensatória. Isto porque a obrigação de indenizar poderia decorrer, em tal hipótese, tanto do fato de ter sido causado um prejuízo, quanto da hipótese de uma mera violação do direito. Todavia, uma interpretação sistemática consolidada já então conduzia ao entendimento de que um dos requisitos da responsabilidade civil era justamente a presença de um dano (material ou moral). Assim, o novo código civil apenas deixou claro o que antes era implícito.
Portanto, quanto a esse aspecto, a alteração foi mais de forma do que de conteúdo. De acordo com a vontade do legislador, a responsabilidade subjetiva continua sendo o fundamento básico de toda a responsabilidade civil: o agente só será responsabilizado, em princípio, se tiver agido com culpa.
Da responsabilidade civil objetiva
Uma das maiores novidades introduzidas pelo novel estatuto reside no parágrafo único do art. 927, que assim dispõe: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (g.n.)33.
Na vigência do velho diploma civilista, repetia-se a lição segundo a qual o fundamento (único) da responsabilidade civil era a culpa, e que somente em casos específicos, previstos expressamente em lei, albergava o ordenamento pátrio algumas hipóteses de responsabilidade objetiva, citando-se, então, os casos da responsabilidade civil do Estado, do acidente de trabalho, do seguro obrigatório de responsabilidade civil dos proprietários de veículos (DPVAT), dos acidentes nucleares, do transporte ferroviário, do transporte aéreo, dentre vários outros, sempre previstos expressamente na legislação. Quanto a esse aspecto, nenhuma alteração real ocorreu, resolvendo o legislador simplesmente transpor para o formante34 legislativo a lição doutrinária corrente.
A novidade se encontra na segunda parte do referido parágrafo único, onde se consagra uma segunda cláusula geral em tema de responsabilidade civil, reconhecendo-se a obrigação de reparar os danos independentemente de culpa, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
A periculosidade deve ser aferida objetivamente, pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios empregados, e não em virtude do comportamento negligente ou imprudente de quem agiu. Ou seja, a periculosidade deve ser uma qualidade preexistente, intrínseca e não eliminável. O homem prudente pode apenas reduzir tal periculosidade, sem jamais conseguir eliminá-la.
Discorrendo acerca de atividades perigosas, ainda sob a vigência do código de 16, Carlos A. Bittar referia que “deve ser considerada perigosa aquela atividade que contenha em si uma grave probabilidade, uma notável potencialidade danosa, em relação ao critério da normalidade média e revelada por meio de estatísticas, elementos técnicos e de experiência comum”35.
Pertinentes ao tema são as observações do Prof. Pietro Trimarchi36 a respeito de dispositivo similar do codice italiano: “no exercício de qualquer atividade perigosa é pensável a adoção de medidas suplementares de segurança, além daquelas em relação às quais é exigível, por um critério de razoabilidade, a adoção. Pode-se exigir que os controles sejam feitos em modo sempre mais minucioso e freqüentes; os dispositivos de segurança podem ser multiplicados, e outros, mais novos e complexos, podem vir a ser adotados. Mas há um limite razoável a tudo isto: lá onde o risco residual é suficientemente escasso, levando-se em conta – numa apreciação pontual – a utilidade social de tal atividade, em cotejo com o custo excessivo de ulteriores medidas de segurança a serem adotadas, a ponto de poder paralisar a atividade. Além deste limite, certamente existem medidas ainda possíveis de serem adotadas e idôneas a reduzirem o risco, mas não se pode falar em culpa se tais medidas não são empregadas. Assim, se a responsabilidade civil ainda assim vem a ser imposta, ela não mais estará fundada na culpa”.
Percebe-se, assim, que a lição do direito comparado é no sentido de que cabe substancialmente ao magistrado identificar a periculosidade da atividade, mediante análise tópica. Não se trata de simples ‘decisionismo’ judicial, em que cada juiz possa desenvolver um critério próprio. Ao contrário, além da análise tópica, não se pode jamais olvidar que o direito configura um sistema, embora aberto e móvel. Assim, o magistrado deve ser sensível às noções correntes na comunidade, sobre o que se entende por periculosidade, bem como deve estar atento a entendimentos jurisprudenciais consolidados ou tendenciais. Além disso, em bom exemplo de mobilidade inter-sistemática, pode o julgador inspirar-se (embora não esteja vinculado a ela) na legislação trabalhista e previdenciária que caracteriza determinadas atividades como sendo perigosas para efeitos de percepção do respectivo adicional.
Segundo Miguel Reale37, a adoção da cláusula geral da responsabilidade objetiva pelo novo código teria sido uma decorrência do acolhimento do princípio por ele denominado da socialidade. Segundo ele, “em princípio, responde-se por culpa. Porém, se aquele que atua na vida jurídica desencadeia uma estrutura social que, por sua própria natureza, é capaz de por em risco os interesses e os direitos alheios, a sua responsabilidade passa a ser objetiva e não mais subjetiva”. Diz o projetista ter recorrido a um “conceito de estrutura social”, semelhante ao que ocorre em matéria de acidente de trabalho, isto é, “toda vez que houver uma estrutura sócio-econômica que ponha em risco, por sua natureza, os direitos e interesses de terceiros, daqueles com os quais essa estrutura entra em contato – às vezes sem nem sequer ter qualquer benefício direto ou indireto da sua operabilidade”.
Do abuso do direito38
Inovação importantíssima, que poderá vir a sofrer grande desenvolvimento jurisprudencial, reside no novo art. 187, que assim dispõe: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Trata-se da figura do abuso do direito, um dos institutos jurídicos de reação ou de contenção à invocação de um direito subjetivo, por objeção de caráter ético, dentro do entendimento que o direito não pode se prestar a finalidades consideradas contrárias à ética. Insere-se na mesma linha, por exemplo, do princípio do nemo auditur turpitudinem suam allegans.
Embora a teoria do abuso do direito seja relativamente recente, seus germes já estão contidos no direito romano, como deixa entrever a expressão de Paulo: “non omne quod licet honestum est”39, bem como na máxima de Cícero: “summum jus summa injuria”.
A ascensão da figura do abuso do direito está ligada à relativização do instituto do direito subjetivo. Diz-se, por exemplo, que a crise do direito subjetivo leva ao surgimento de outras situações jurídicas subjetivas, ou interesses socialmente apreciáveis, que não seriam direitos tuteláveis erga omnes, como ocorre com a propriedade, mas interesses juridicamente protegidos. Nessa perspectiva, o exercício de um direito subjetivo estaria condicionado à realização de finalidades de caráter supraindividual, orientadas axiologicamente pela Constituição. Conexo a esta tendência estaria o caráter objetivo de tal responsabilidade40.
Inicialmente a teoria do abuso do direito era vista sob um prisma subjetivo, segundo o qual um ato seria considerado abusivo se fosse exercido sem um real interesse e com o intuito de prejudicar terceiros (era a hipótese da aemulatio, o primeiro caso de abuso de direito de que se cuidou, reprimindo-se-o em praticamente todos os sistemas jurídicos), ou então quando do ato não decorresse quaisquer vantagens para o agente.
Posteriormente, porém, ampliou-se tal noção, objetivando-se sua base. Isto porque ainda quando ausente o animus nocendi, o exercício de um direito pode causar a terceiros danos desproporcionais em relação aos benefícios hauridos pelo titular do direito. Josserand foi o divulgador de tal concepção. Seu pensamento pode ser resumido nos termos seguintes: “haverá abuso de direito quando o seu titular o utiliza em desacordo com a finalidade social para a qual os direitos foram concedidos. [...] os direitos foram conferidos ao homem para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espírito da instituição” 41.
Na maioria dos sistemas jurídicos, a idéia de abuso do direito foi inicialmente acolhida pela jurisprudência42. Somente em um segundo momento o legislador, depois de consolidada a instituição, por força de sistematização doutrinária, buscou incorporá-la em texto normativo.
Assim, por exemplo, diante de textos legislativos que qualificavam o direito de propriedade como um direito absoluto, sagrado e inviolável, os juízes franceses ousaram romper com tal absolutismo do direito subjetivo e, através de sucessivas decisões, firmaram naquele ordenamento jurídico a figura do abus du droit. A primeira decisão paradigmática a respeito foi pronunciada no longínquo ano de 1855, pelo Tribunal de Colmar, na qual se determinou a demolição de uma falsa chaminé que um vizinho havia construído em seu terreno (invocando um suposto irrestrito direito de construir que integraria o direito de propriedade), com o aparente propósito de retirar a iluminação e circulação de ar sobre a janela do prédio vizinho. Naquela decisão, ainda que os juízes tivessem o cuidado de reconhecer que “o direito de propriedade é de certa forma absoluto”, afirmaram que o direito subjetivo deve ter um limite, consistente na satisfação de um “interesse sério e legítimo” da parte do titular do invocado direito subjetivo. Naquele caso, os juízes não identificaram tal interesse sério e legítimo na edificação da falsa chaminé – daí a ordem de sua demolição. Estas duas qualidades – seriedade e legitimidade do interesse – foram posteriormente aceitas e absorvidas pela doutrina e jurisprudência, a fim de serem aplicadas a casos análogos. Com isso se estabeleceu, em solo francês (mas com grande influência sobre as demais experiências jurídicas), um limite para o exercício excessivo e irregular de um direito43.
No caso brasileiro, tal teoria já fora acolhida pelo codificador de 16, que a havia inserido no art. 160, I, segunda parte, do Código Civil, interpretado a contrario sensu.
O novel legislador, a respeito do chamado abuso de direito, tomou posição a respeito das duas tendências principais existentes a respeito do tema, a teoria subjetiva do abuso do direito e a teoria objetiva, adotando esta última. De fato, o novo Código, como se viu, não exige intenção de prejudicar, contentando-se com o excesso objetivamente constatável. De acordo com o art. 187 do novo texto, em exegese confirmada por uma interpretação sistemática (já que o novel estatuto fala também em função social do contrato e função social da propriedade – tendo o Prof. Miguel Reale várias vezes referido ter sido adotada a diretriz da socialidade como uma das chaves de leitura do projeto), percebe-se que o legislador entende que os direitos subjetivos não são conferidos ou reconhecidos aos indivíduos de uma maneira aleatória, ou em perspectiva meramente individual. Os direitos, mesmo os de natureza subjetiva, possuem uma destinação econômica e social. Considerando que vivemos em forma societária e que o exercício dos direitos subjetivos repercute na esfera jurídica das outras pessoas, interessa à sociedade a maneira pela qual exercemos nossos direitos. Destarte, quando, no exercício de um direito, o seu titular se desvia destes parâmetros, vindo a causar um dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Da responsabilidade civil dos incapazes
Relativamente à responsabilidade civil dos incapazes, houve importante inovação introduzida pelo novel código. Sob a égide do código de 16, os incapazes eram considerados irresponsáveis, sendo que pelos seus atos danosos respondiam seus pais, tutores e curadores, na forma do art. 1.521. Apenas em relação aos menores púberes, entre 16 e 21 anos, havia previsão de que também eles responderiam pessoalmente por seus atos ilícitos extracontratuais44, consoante art. 156 – e nesse caso tratava-se de responsabilidade solidária com seus genitores ou tutores.
Pois bem, o novo art. 928, na esteira das codificações européias, adota o regime da responsabilidade da responsabilidade subsidiária e eqüitativa dos incapazes. Tratando-se de verdadeiro jus novum, convém que nos detenhamos um pouco mais sobre a inovação.
A responsabilidade dos incapazes passou por uma singular evolução na história do direito. Ao cabo de uma evolução que durou milênios, chegou-se novamente ao ponto de partida, embora sob formas mais civilizadas e mediante novos fundamentos. Efetivamente, na antigüidade os incapazes eram pessoalmente responsáveis pelas conseqüências de seus atos45. Posteriormente, deixaram de sê-lo46. Atualmente, há uma forte tendência universal a torná-los mais uma vez responsáveis pela reparação dos prejuízos a que derem causa, sob o prisma da eqüidade. Tratar-se-ia de uma responsabilidade patrimonial, não de responsabilidade pessoal.
A idéia da responsabilização dos incapazes com base na eqüidade apresenta duas características, realçadas por Eugenio Bonvincini47: a subsidiariedade, porque opera em substituição à ausência de obrigação de ressarcimento por parte do encarregado da vigilância, e a discricionariedade por parte do juiz, que deverá fixar o montante da indenização com base em um critério de eqüidade - portanto em valor que poderá ficar aquém do prejuízo sofrido.
Constata-se, assim, que a teoria da irresponsabilidade absoluta da pessoa privada de discernimento está em franca decadência, substituída que está sendo pelo princípio da responsabilidade mitigada e subsidiária. É nessa tendência que se insere o novo código, que introduz inovação importante no campo teórico, embora provavelmente fadado a receber poucas invocações práticas, pois parece-nos que o suporte fático hipotético da nova norma raramente se concretizará.
Perante o novo diploma, a responsabilidade do incapaz será subsidiária, pois somente será acionada se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Como a responsabilidade dos pais, tutores e curadores, pelos atos danosos praticados por seus filhos, pupilos e curatelados é de natureza objetiva, independente de culpa (art. 933 do novo C.C.), serão muito raras as hipóteses em que tais pessoas não terão tal responsabilidade48. Igualmente raras serão as hipóteses em que os menores disponham de recursos hábeis para suportar a indenização e que o mesmo não ocorra com seus pais. Mais comum poderá vir a ser uma tal hipótese, no caso dos pupilos e curatelados, pois muitas vezes os tutores e curadores tem patrimônio menor do que o daqueles.
De qualquer sorte, a responsabilização direta dos incapazes só ocorrerá se os recursos necessários ao pagamento da indenização não privarem o incapaz ou as pessoas que dele dependam do necessário, segundo a dicção da lei.
Da responsabilidade pelos atos lícitos.
Em relação à responsabilidade civil pelos atos lícitos, não houve significativa inovação legislativa. De fato, o sistema anterior foi substancialmente mantido, como se constata do exame conjunto dos arts. 188, 929 e 930 do novo Código, comparado com o disposto nos arts. 160, 1.519, 1.520 e 1.540 do Código anterior.
Ou seja, quem pratica as condutas previstas no art. 188 (ato praticado em legítima defesa, exercício regular de um direito e estado de necessidade49) não comete ato ilícito, como expressamente refere o legislador. Conseqüentemente, pratica ato lícito. Apesar da licitude da conduta, se a vítima tiver sofrido um dano injusto, por não ter dado causa ao seu infortúnio, o agente causador do dano deverá reparar os danos, uma vez preenchidos os suportes fáticos dos artigos 929 e 930 do novel estatuto.
Responsabilidade pelo fato do produto.
O novo código, em seu art. 93150, alude à responsabilidade civil do empresário pelo fato do produto, mantendo-a sob a égide da responsabilidade objetiva, na esteira da experiência semelhante apontada pelo direito comparado. Num exame superficial, poder-se-ia dizer que nenhuma inovação real se apresenta, pois o direito vigente, representado pelo Código de Defesa do Consumidor, já estabelecia a responsabilidade objetiva pelo fato do produto, como se percebe da leitura de seu artigo 12, em mais extensa redação. Aliás, o próprio art. 931 ressalva outros casos previstos em lei especial, como não poderia deixar de ser, pois o código civil, sendo uma lei geral, não poderia pretender revogar uma lei que disciplina relações especiais, como são as relações de consumo. A época das codificações totalizantes, que buscam tudo disciplinar, já ficou definitivamente para trás. Assim, os códigos gerais, como é o novo diploma, devem coexistir com diplomas que disciplinam relações especiais, à luz de princípios próprios, cabendo à constituição fornecer os critérios e os princípios necessários para a composição de um sistema coerente.
Todavia, um exame mais detido aponta algumas diferenças de redação entre o novo texto e o dispositivo consumerista. De fato, enquanto o art. 12 do C.D.C. faz alusão a produtos com “defeitos”, o novo art. 931 refere, de maneira simples, que os empresários respondem “pelos danos causados pelos produtos postos em circulação”, não fazendo qualquer menção a produtos defeituosos. Por isso que a Comissão que tratou do tema da “Responsabilidade Civil”, na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal (S.T.J.), em Brasília, nos dias 11 a 13 de setembro de 2002, aprovou, por unanimidade, a proposta apresentada pelo renomado jurista gaúcho Adalberto Pasqualotto, incorporando as ponderações do notável mestre argentino Jorge Mosset Iturraspe, no sentido de que "o art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no art. 12 , do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabilidade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circulação dos produtos”.
Por outro lado, ao contrário do C.D.C. que busca definir o que se pode entender por produto “defeituoso” (art. 12, §1º) e fixa as hipóteses defensivas que o fornecedor poderá argüir em seu favor, o diploma civilista nada dispõe a respeito. Relevante, ainda, o fato de que não houve qualquer menção à “época em que [o produto] foi colocado em circulação” – argumento central daqueles que entendem que o C.D.C. não contempla a responsabilidade do fabricante pelos chamados riscos do desenvolvimento (development risks). Daí porque é possível sustentar-se que o novo código civil foi além do diploma protetor dos consumidores, pois contemplou inclusive os riscos de desenvolvimento. Nesse sentido, aliás, resultou outra conclusão unânime da referida Comissão, com o seguinte enunciado: “A responsabilidade civil pelo fato do produto prevista no art. 931, do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento”.
Como o art. 931 contém verdadeira cláusula geral, pois, ao contrário dos art. 12 e 13 do C.D.C., não especifica uma fattispecie concreta que desencadeie sua aplicação (genericamente se refere a danos causados pelos produtos postos em circulação, sem distinguir a responsabilidade do fabricante daquela dos comerciantes), acreditamos que a proteção fornecida pelo estatuto do consumidor passará a ser enriquecida por este dispositivo. Além disso, a vantagem do inclusão de tal matéria no âmbito de um código civil, de necessário caráter geral, reside em que tal dispositivo poderá ser invocado quando eventualmente não se estiver diante de uma relação de consumo e quando não for aplicável o contido no disposto no art. 17 do C.D.C.
Da responsabilidade civil pelo fato de outrem.
Dentro da teoria da responsabilidade civil, a idéia originária era no sentido de que uma pessoa só poderia ser responsabilizada pelos seus próprios atos danosos. A responsabilidade, portanto, seria direta, pessoal. No desenvolvimento da teoria, passou-se à idéia da responsabilidade indireta ou complexa. Ou seja, constatou-se que era possível alguém vir a ser civilmente responsabilizado pelos atos praticados por outra pessoa, a quem fosse ligada de alguma forma. Essa evolução ocorreu para que se pudesse garantir às vítimas dos danos a possibilidade efetiva da reparação dos prejuízos sofridos.
O novo Código Civil não inovou substancialmente no tratamento da matéria relativa à responsabilidade civil indireta. A inovação formal consiste em reconhecer que se trata de responsabilidade objetiva, independente de culpa. Todavia, já era esse o fundamento reconhecido pela doutrina mais atilada51 e pela jurisprudência mais conseqüente.
No Código Civil vigente, a matéria veio tratada no art. 1.521, que previu a responsabilidade dos pais, tutores e curadores, patrões e comitentes, por atos de seus filhos, pupilos, curatelados, empregados e prepostos, além dos donos de hotéis52 e internatos, por atos de seus hóspedes e alunos internos. Quanto ao inc. V do art. 1.521, trata-se de “actio in rem verso”, cuja previsão, aliás, sequer seria necessária, pois é inerente ao sistema. Exatamente as mesmas regras foram reproduzidas no novo estatuto, como se percebe da leitura do novo art. 932.
Responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhos menores.
Estabelece o art. 1.521, inc. I, do Código Civil novecentista, a responsabilidade dos pais pelas conseqüências danosas dos atos praticados por seus filhos menores que estiverem sob seu poder e em sua companhia. O novo diploma legal substancialmente manteve tal regra, apenas substituindo o vocáculo poder pelo vocábulo autoridade.
Sob a égide do velho código, a quase unanimidade dos doutrinadores costumava vincular a responsabilidade dos pais à existência do poder familiar, ou mais precisamente, aos deveres de guarda e de educação que lhe são inerentes. Segundo este posicionamento, se o menor comete um ato ilícito, isto significa que seus pais não o teriam vigiado com o cuidado necessário (culpa in vigilando) ou porque falharam na educação do filho (culpa in educando). Ou seja, os próprios pais teriam cometido uma culpa.
Para nós, que inclusive sob a égide do código de 1916 vislumbrávamos na responsabilidade por fato alheio uma obrigação de cunho objetivo, não podíamos encontrar na culpa o fundamento único de tal responsabilidade, mesmo sendo ela presumida. Somente poderia ela resultar da existência do poder familiar, vinculado a uma idéia de garantia e não a uma idéia de culpa. É a solução que o legislador vem de adotar, expressamente indicando o caráter objetivo da responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos.
Quanto aos demais pressupostos para a responsabilização dos genitores, não houve alteração digna de nota. O legislador, aliás, poderia ter aproveitado a nova codificação para espancar algumas divergências que persistem a respeito do tema, como a questão da responsabilidade dos pais pelos atos dos filhos emancipados53, eventual responsabilidade do responsável de fato por incapaz não interditado54, responsabilidade dos genitores, em caso de separação de fato, separação judicial e divórcio, a adoção ou repulsa expressa da teoria do posto social, segundo a qual pessoas que estejam exercendo funções assemelhadas a dos pais (v.g., padrasto ou madrasta, detentor de guarda, etc.) responderiam civilmente nos mesmos moldes dos genitores55.
Responsabilidade civil dos empregadores e comitentes.
No Código Civil de 1916, a matéria estava regulada nos artigos 1521, III, 1522, 1523 e 1524. Pela leitura dos referidos dispositivos, constata-se que o legislador havia adotado o regime da culpa provada, ou seja, o patrão ou comitente só responderia pelas conseqüências danosas decorrentes de atos de seus empregados ou prepostos se ficasse provada uma conduta culposa de sua parte.
Posteriormente, através do trabalho da jurisprudência, interpretou-se o art. 1.523 como se contivesse uma presunção relativa de culpa (Súmula 341/STF). Apesar da possibilidade teórica da reversão de tal presunção relativa, mediante prova em contrário, o exame das soluções jurisprudenciais efetivamente aplicadas, revelava o extremo rigor na admissão de tal prova exculpatória, mostrando que, na verdade, praticava-se uma verdadeira presunção absoluta de culpa, já que não se admitia, na prática operacional, que o empregador afastasse a sua responsabilidade demonstrando apenas que ele, empregador, não tinha agido com culpa. Ora, presumir-se alguém culpado e não se admitir que ele desfaça tal presunção significa a adoção, na verdade, de um critério de responsabilização objetiva, independentemente de culpa. E nesse sentido efetivamente vem se orientando a jurisprudência há longas décadas, embora nem sempre verbalizando tal posicionamento.
Para que exista relação de preposição não se exige a presença de um vínculo laboral típico56. Da mesma forma, pouco importa que o serviço consista numa atividade duradoura ou num ato isolado, possua caráter gratuito ou oneroso, revista a forma de tarefa manual ou intelectual57.
Por outro lado, para que surja a responsabilidade do preponente pelos atos danosos do preposto, é necessário que também este seja responsável pessoalmente. Isto não significa que deva ter ele incorrido em culpa. Se porventura o preposto tiver agido em estado de necessidade, causando um dano, seu ato será lícito e ele não terá agido com culpa, a teor do disposto no art. 188, II, do novo Código Civil . Não obstante, será constrangido a indenizar os danos causados, nos termos do art. 929 do novo C. C. Nesta hipótese, tal obrigação estender-se-á ao preponente.
Diante da ausência de alteração significativa do texto pertinente (art. 1.521, III, do código de 16 e art. 932, III, do novo diploma), deverá ser mantido o entendimento58 segundo o qual subsiste a responsabilidade dos patrões e comitentes pelos danos ocasionados por seus empregados no exercício das funções que lhes incumbem, ainda que os últimos tenham agido excedendo os limites de suas atribuições ou tenham inclusive transgredido as ordens recebidas, não sendo necessário que o comportamento ilícito dos prepostos se contenha na esfera das funções que lhes tenha sido atribuídas. Basta que entre tais funções e o subseqüente fato danoso subsista uma relação de ocasionalidade necessária, no sentido de que , ainda que faltando uma relação rigorosa de causa e efeito entre tais funções e o fato danoso, exista entre tais termos um nexo lógico, de tal forma que a função desempenhada pelo preposto tenha sido a ocasião necessária do fato ilícito e que aquela (função) tenha tornado possível ou favorecido notavelmente a realização deste (fato ilícito)59.
A questão do direito regressivo.
Para aqueles que fundamentavam a responsabilidade do comitente unicamente sobre a noção de culpa, provada ou presumida, era difícil conceber a existência do direito regressivo. Isto porque, como argutamente já havia assinalado M. I. Carvalho de Mendonça60, “se o obrigado indireto provou que empregou toda a diligência e precaução, claro é que dirimiu a culpa, deixou de ser obrigado e pois não se trata de condenação e nem de regresso. Se ao contrário, não fez tal prova, há culpa pessoal e se esta existe, não se compreende como possa existir tal regresso.”
Todavia, qualquer que fosse o fundamento da responsabilidade civil dos empregadores, a existência de direito regressivo em face dos empregados era garantido pelo art. 1.524 do estatuto de 1916, orientação essa que foi mantida no art. 934 do novo C.C.
Todavia, a questão pode apresentar algumas peculiaridades. Tal direito regressivo existe sempre? É ele integral? É de justiça a sua existência? Analisemos tais questões.
Nem sempre existe tal direito regressivo. Em primeiro lugar, afasta-se a possibilidade do exercício do direito regressivo quando o preposto for incapaz, por menoridade ou demência61.
Outro caso de inexistência de direito regressivo seria quando o preposto houvesse agido estritamente sob as ordens e instruções do comitente. Se da execução de tais ordens decorrerem danos a terceiros, o preponente será considerado pessoal e diretamente responsável, sem poder exercitar direito regressivo. É o quanto afirmam Henri & Leon Mazeaud62.
Lembramos, ainda, a hipótese de o preposto, praticando ato lícito, vir a causar danos, como, por exemplo, o caso do ato praticado em estado de necessidade, não sendo a vítima do dano a causadora do perigo que originou o ato.
Assim, entendemos só existir direito regressivo se houver culpa do preposto, em seu duplo aspecto - objetivo (ilicitude do ato) e subjetivo (imputabilidade).
A esse respeito, Geneviève Viney63 entende que não se pode deixar de levar em consideração o fato de que o preposto não age para si, mas sim em proveito de uma empresa, cuja organização não lhe pertence. Tendo em vista tal circunstância, afirma ela que o preposto só deverá responder pelas culpas graves por ele cometidas, devendo o preponente absorver a indenização decorrente de culpas leves do preposto.
A independência relativa da responsabilidade civil frente à responsabilidade penal.
Dispõe o novo art. 935 do C.C. que a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Como este dispositivo praticamente reproduz o disposto no art. 1.525 do código de 16, poder-se-ia entender não ter havido qualquer inovação a respeito do relacionamento entre as jurisdições civil e criminal. A regra da independência entre as duas esferas efetivamente restou mantida, mas paradoxalmente a manutenção da velha redação do art. 1.525 do código civil implica, em princípio, inovação sustancial.
De fato, além do disposto código civil, o tema do relacionamento entre as duas jurisdições encontra regramento também no Código Penal (Art. 91, I) no Código de Processo Penal (arts. 63 a 68, esp. art. 66) e no Código de Processo Civil (art. 584, II).
Ora, cotejando-se o disposto no art. 1.525 do código Beviláqua com o disposto no art. 66 do C.P.P., percebe-se que a legislação processual penal havia inovado substancialmente, pois enquanto o diploma civil admitia que a decisão criminal que definisse a questão da autoria influenciasse também a esfera civil, o art. 66 do C.P.P. somente atribuía tal eficácia às decisões penais que decidissem sobre a materialidade do fato. Decisões sobre a autoria, portanto, não repercutiriam no cível. Além disso, não mais qualquer decisão sobre a materialidade do fato teria influência no cível, mas somente aquela que tivesse, “categoricamente, reconhecido a inexistência material do fato”.
Como o C.P.P. (D.l. 3.689, de 03.10.41) foi editado posteriormente ao código de 1916, obviamente derrogou o código civil naquilo que com ele era incompatível.
O novo diploma civil simplesmente passou ao largo de tal controvérsia, reproduzindo o disposto no art. 1.525 do código anterior. Daí porque se tem, agora, que derrogado restou o disposto no art. 66 do CPP, o que acarreta uma substancial inovação sobre o tema64.
Responsabilidade civil pelo fato dos animais.
O art. 936 do novo C.C. disciplina a chamada responsabilidade civil pelo fato dos animais. Houve alteração da forma legislativa, mas não houve inovação substancial. Efetivamente, utilizou-se fórmula mais sintética para expressar o velho conteúdo do art. 1.527 do C.C. anterior. Segundo a nova redação, “o dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior”. Embora se possa entender que se trate de presunção de culpa, ou de simples inversão do ônus da prova, entendemos que o novo dispositivo prevê uma autêntica responsabilidade objetiva, pois não exige o legislador que se prove a culpa do dono ou detentor do animal. O fato de poder tal pessoa excluir a sua responsabilidade não significa tratar-se de responsabilidade subjetiva, pois ser objetivamente responsável não implica o dever de indenizar sempre - significa apenas não ser necessária a demonstração de sua culpa. A responsabilidade objetiva admite causas de exclusão de responsabilidade. Dentre estas encontram-se justamente a demonstração da interveniência de caso fortuito ou de força maior65, a presença de culpa da vítima e o fato de terceiro. O Prof. Silvio Venosa66 realçou o rigor do novo dispositivo, ao não exigir que a posse do animal seja qualificada, bastando a simples detenção. “Nessa posição, coloca-se aquele que loca o animal para cavalgar ou para serviço rural. Seciona-se o nexo causal, se o animal foi furtado, o mesmo que ocorre a respeito do automóvel. Também não há responsabilidade se os animais são selvagens ou sem dono. O dispositivo refere-se a animais domésticos ou mantidos em cativeiro”.
Da responsabilidade civil pelo fato das coisas.
Costuma-se estudar sob a denominação “responsabilidade civil pelo fato das coisas” as duas espécies de responsabilidade civil previstas nos arts. 937 e 938 do novo Código Civil, que correspondem exatamente às duas hipóteses reguladas nos arts. 1.528 e 1.529 do código de 16. Trata-se, aqui, de tradicionais figuras já disciplinadas pelo direito romano, sob a denominação de actio de positis et suspensis e actio de effusis et dejectis. Também aqui não houve qualquer inovação. A mesma interpretação que vigorava sob a égide do código antigo, no sentido de vislumbrar em ambas as hipóteses casos de responsabilidade objetiva, deverá ser mantida67. Da mesma forma deverá prosseguir-se na interpretação ampla do vocábulo “ruína”, constante do art. 937, no sentido de abranger não só a ruína total, mas também a ruína parcial e a simples queda de partes da edificação, como, por exemplo, queda de marquises, de sacadas, de rebocos, muros, etc.
Da solidariedade na responsabilidade civil e sua transmissibilidade.
Igualmente não há inovações em relação ao disposto no novo art. 942, que reproduz ipsis litteris (com exceção da substituição do vocábulo “cúmplices” pela expressão “co-autores”, no parágrafo único) , o disposto no antigo art. 1.518. Nenhuma novidade, portanto, nessa área. Mantém-se, destarte, a regra da solidariedade68 de todos os envolvidos em matéria de responsabilidade civil, inclusive no que pertine à chamada responsabilidade civil pelo fato de outrem.
Da mesma forma mantém-se inalterada a regra do antigo art. 1.526, reproduzido no novo art. 943 do novo estatuto. A relação obrigacional decorrente da responsabilidade civil transmite-se, ativa e passivamente, com a morte dos envolvidos, respeitando-se, porém, as forças da herança, consoante previsão constitucional (art. 5º, inc. XLV).
Da quantificação da indenização
Enquanto o primeiro capítulo do Título IX, do Livro que trata dos direitos obrigacionais, lança os fundamentos da responsabilidade civil aquiliana, fixando as hipóteses em que uma pessoa é obrigada a indenizar os danos sofridos por outrem (an debeatur), o capítulo seguinte busca estabelecer alguns critérios para a quantificação dos danos (quantum debeatur).
Referido capítulo segundo abre-se com uma declaração de princípio, segundo a qual a indenização mede-se pela extensão do dano (art. 944). Uma regra semelhante não existia, de forma expressa, no Código de 1916. Todavia, a novidade é apenas aparente, pois tal princípio sempre foi acatado doutrinária e jurisprudencialmente69, já que corresponde à clássica função reparatória da responsabilidade civil70. Como sempre se entendeu que a função primordial da responsabilidade civil seria aquela de indenizar (= tornar indene, do latim indemne, ou seja, que não sofreu dano ou prejuízo; íntegro, ileso, incólume) a vítima, logicamente uma tal função seria obtida mediante aplicação do princípio da restitutio in integrum, ressarcindo-se a vítima de todos – e tão-somente - os prejuízos sofridos. Até porque a cláusula geral do art. 159 era complementado pelas disposições dos arts. 1.056 a 1.061 e 1.533 a 1.553, todos do Código Beviláqua. Assim, “limitou-se, através destes artigos, a discrição dos juízes”71.
Daí a lição, que era corrente, segundo a qual o montante da indenização seria obtido levando-se em conta a extensão do prejuízo e desconsiderando-se a intensidade da culpa. Reafirma-se, destarte, a tradição do direito brasileiro de adotar a teoria objetiva para a quantificação dos danos indenizáveis.
Efetiva inovação, porém, comparece no art. 944, parágrafo único, do novo estatuto. Ali se refere que “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização”. Trata-se de preceito que permite ao magistrado exercer seu prudente arbítrio para resolver aquelas situações – não infreqüentes, aliás - em que o autor do ato danoso (lícito ou ilícito), mesmo agindo com culpa levíssima (ou até mesmo sem culpa, como nos casos de responsabilidade civil por ato lícito), tenha causado danos elevados.
Note-se que o dispositivo em análise contém duas limitações. Em primeiro lugar, ele incide apenas aos casos de desproporção (qualificada de excessiva) entre a intensidade da culpa e o dano. Ou seja, em se tratando de danos materiais, o referido dispositivo não admite que se leve em consideração eventual desproporção entre os patrimônios envolvidos. Assim, se o agente causador do dano for pobre e a vítima for rica, o juiz continuará (já que este é o sistema vigente) a fixar o valor da condenação levando em conta apenas o montante do prejuízo, sem qualquer redução em razão da capacidade econômica do réu ou em função de eventual riqueza da vítima. Se o réu terá ou não solvência para pagar o montante da condenação continuará a ser uma questão de fato. Saliente-se que o referido dispositivo não se aplica aos danos extrapatrimoniais, permanecendo inalterada a recomendação de se levar em consideração, no arbitramento do valor dos mesmos, dentre outros fatores (como a intensidade da culpa, as circunstâncias do evento, a duração dos efeitos, a repercussão dos mesmos na vida da vítima, etc.), também a condição socioeconômica tanto da vítima quanto do agente.
Em segundo lugar, pelos seus expressos termos, o mencionado parágrafo único não parece permitir a solução inversa, qual seja, de aumentar o valor da indenização quando a excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano for no sentido contrário: a uma intensa culpabilidade corresponder um dano de reduzida monta.
Acreditamos, porém, que o referido parágrafo único tem suficiente potencial para, futuramente, através de uma interpretação sistemática e evolutiva, sofrer um exegese ampliativa, vindo a albergar também a possibilidade de se conceder uma indenização superior ao montante dos danos, quando patente a desproporção entre a intensidade da culpa e o valor dos danos. Uma tal possibilidade representaria a adoção, entre nós, do instituto das penas privadas72.
Concorrência de culpas.
O art. 945 igualmente constitui uma inovação apenas formal no ordenamento jurídico pátrio, pois embora não conste da legislação vigente, a jurisprudência desde sempre levou em consideração a concorrência de culpas para a fixação do valor das indenizações.
Registre-se que embora esteja absolutamente consagrado pelo uso jurisprudencial (predominando também na doutrina) a expressão concorrência de culpas, na verdade a questão não se coloca tecnicamente no plano da culpabilidade, mas sim no plano da causalidade (concorrência de causas ou concausalidade), onde se deve fazer a distinção entre causa e condição. Todavia, referir-se a concorrência de culpas é um uso lingüístico tão arraigado que dificilmente poderá ser revertido, apesar da impropriedade técnica. Rendemo-nos, assim, à tradição, embora registrando nossa discordância.
Da liquidação das obrigações ilíquidas
O novo art. 946 do C.C. busca substituir, com maior precisão e abrangência, o antigo art. 1.553 do velho diploma. A maior abrangência do novo dispositivo revela-se pelo fato de abranger também a liquidação das obrigações contratuais. E a maior precisão técnica expressa-se pelo fato de que a legislação processual atualmente vigente prevê duas formas de liquidação: por arbitramento e por artigos (art. 603 e ss. do CPC, após a reforma processual levada a efeito pela lei 8.898/94). Efetivamente, para a apuração do montante da indenização devida, por vezes há necessidade de se alegar e provar fatos novos, ainda não discutidos na ação de conhecimento (condenatória), caso em que se revela adequado o uso da liquidação por artigos.
Todavia, acreditamos firmemente que deverá ser mantida a sólida e recomendável tradição de se fixar o valor desde logo, pelo próprio juiz que proferir a sentença condenatória, o valor da indenização, quando todos os elementos necessários à sua identificação estiverem nos autos.
Ainda nesse tópico da liquidação das obrigações, cumpre ressaltar duas alterações que interferem com o tema da responsabilidade civil. A primeira delas se refere à supressão do instituto dos juros compostos, que incidia nos casos de responsabilidade civil derivada de crime (antigo art. 1.544). A outra alteração não pertine apenas ao capítulo da responsabilidade civil, mas interfere com todo o direito obrigacional. Segundo o novo art. 406, os juros moratórios deverão ser fixados de acordo com “a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional” – atualmente, a denominada taxa SELIC.
Da indenização pelo fato da morte
Também é caso de mera inovação meramente formal os acréscimos constantes do novo art. 948, que reproduz substancialmente o contido no art. 1.537 do código novecentista. De fato, cotejando-se a nova redação com a velha, percebe-se que houve dois acréscimos – um no caput, outro no inciso II. No caput acrescentou-se a expressão “sem excluir outras reparações”73. Já no inciso II, adicionou-se a expressão “levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”.
Trata-se efetivamente de mera acolhimento, em texto legal, de orientação jurisprudencial já consolidada sob a égide do velho código. Quanto ao primeiro acréscimo, ponderava-se que tendo o sistema do código albergado o princípio da restitutio in integrum, todo e qualquer dano que se demonstrasse derivar do fato da morte deveria ser reparado74. No que pertine ao segundo aspecto, durante a década de noventa a jurisprudência, principalmente a do STJ, já se havia consolidado no sentido de que a pensão devida aos familiares da vítima deveria permanecer até a data em que a vítima completaria 65 anos, que representava a expectativa média de vida do brasileiro em geral. Como tal indicador tende a elevar-se, da mesma forma a jurisprudência deverá ir reajustando para cima o seu limite, à medida em que os indicadores do IBGE indicarem tal elevação. Nesse sentido é que deve ser interpretada a parte final do disposto no inciso II do art. 94875.
A jurisprudência, como dissemos, já vinha adotando tal posicionamento, mesmo à míngua de regra própria no estatuto civil. Tratava-se, na verdade, de concretização do princípio constitucional de proteção aos idosos, previsto nos arts. 229 e 230 da Constituição Federal de 198876.
Nem sempre, porém, a morte de um familiar próximo causa danos materiais. Quando se trata de morte de filho menor, de pouca idade, na maioria das vezes, o dano causado é meramente moral (no sentido próprio, de dor intensa, aflição, desgosto profundo)77.
Da indenização em casos de danos à pessoa
Alguma novidade comparece na nova disciplina legal dos danos à integridade física. O novo art. 949 corresponde substancialmente ao antigo art. 1.538, com exceção da parte final do dispositivo, além da substituição da expressão ferimento pelo vocábulo lesão. No sistema anterior, a indenização deveria abranger as despesas de tratamento e os lucros cessantes até o fim da convalescença, além da importância da multa no grau médio da pena criminal correspondente. A inovação está, portanto, na supressão dessa referência à multa criminal, substituída que foi pela expressão “além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”78.
Na identificação dos outros prejuízos que a vítima venha a alegar ter sofrido, será de grande auxílio o recurso ao direito comparado. Isto porque em se tratando de tema de escassa densidade legislativa em todos os sistemas contemporâneos, e tratando-se de situação existencial substancialmente homogênea nos diversos sistemas jurídicos, não há qualquer razão para rechaçar as experiências estrangeiras.
Tanto na experiência francesa como na americana, por exemplo, a jurisprudência vem reconhecendo crescentemente novos tipos de danos justificativos de indenizações especiais, isto é, independentes daquela que tem por finalidade reparar a incapacidade física como tal, de que são exemplo o “prejuízo sexual”, o “prejuízo juvenil” (entendido como a dor particular que provoca, em um jovem, a consciência de sua própria degradação física e da perda da esperança de uma vida normal), “prejuízo à capacidade matrimonial”, dentre outros79.
O Prof. Clóvis do Couto e Silva, a respeito dos danos biológicos, entendia aplicável ao direito pátrio a distinção germânica entre danos pessoais primários (consistentes na morte ou nos ferimentos em si considerados) e secundários (que seriam aqueles relativos às conseqüências resultantes das lesões)80. Já a doutrina italiana prefere rotular diversamente tal distinção relativa aos danos biológicos: fala-se em aspecto estático (entendido como a mera diminuição da integridade psicofísica) e em aspecto dinâmico (consistente nas conseqüências causadas pelos danos biológicos sobre as atividades laborais ou extralaborais da vítima), devendo ambos os aspectos serem indenizados81.
Ainda é o caso de lembrar a indenizabilidade do préjudice d’agrément na jurisprudência francesa, assemelhado ao loss of amenities of life da jurisprudência anglo-americana. Em ambos os casos, trata-se de indenizar a privação que uma pessoa sofreu, em virtude das lesões causadas por outrem, da possibilidade de gozar dos prazeres da vida, próprios de sua idade, cultura e meio social em que vive (atividade sexual, esporte, lazer, dança, variedade gastronômica, etc)82. O conceito inicialmente era aplicado restritivamente, abrangendo apenas as hipóteses em que o ferido, antes das lesões, havia se destacado em atividades desportivas ou artísticas. A partir de uma lei francesa de 1973, a noção adquiriu maior amplitude, passando a se definir como “a diminuição dos gozos da vida causada pela impossibilidade de dedicar-se a algumas atividades prazerosas normais”83.
Segundo Clóvis do Couto e Silva84, não seria fácil “separar, em alguns casos, essa indenização do pretium doloris e até mesmo do dano estético, podendo até mesmo o préjudice d’agrément abranger a perda do gosto, do olfato, quando considerado no seu sentido mais amplo”. Segundo o saudoso Professor, “não se tem considerado [no direito brasileiro] como indenizável ‘a perda das atividades de lazer’, razão pela qual a resposta seria claramente negativa a quem pretendesse essa indenização, muito embora a reparação ampla do dano extrapatrimonial devesse permitir esse tipo de indenização”, acrescentando ainda o mestre, que uma interpretação ampla do art. 5º, inc. X, da Constituição Federal poderia embasar a concessão de uma tal indenização85.
Agora, com cláusula geral remissiva do art. 949 do novo código (além de algum outro prejuízo), acreditamos que o novel ordenamento permite o acolhimento de tal pretensão, até mesmo diante de uma necessária visão constitucionalizada do direito civil, já que os direitos da personalidade foram grandemente valorizados na Carta de 88, vindo a receber agora também a proteção do código do cidadão.
Na experiência italiana, os danos decorrentes de lesão corporal são tradicionalmente denominados de danos à pessoa ou danos biológicos86, sendo igualmente perceptível a tendência de cada vez mais discriminarem-se outros tipos de danos, com quantificação autônoma, como é o caso, por exemplo, dos danos psicológicos87, caracterizados como representativos de um comprometimento durável e objetivo que diga respeito à personalidade individual na sua eficiência, na sua adaptabilidade, no seu equilíbrio. Trata-se, portanto, de um dano consistente, não efêmero nem meramente subjetivo, e que reduz, de alguma forma, as capacidades, as potencialidades, enfim, a qualidade de vida da pessoa.
Também da experiência italiana podemos retirar alguma inspiração para ajudar na resolução do espinhoso problema da avaliação dos danos à saúde. Não há como fugir de considerações pontuais, tendo em vista a unicidade dos fatos que se apresentam à apreciação do juiz. Porém, para um sistema jurídico que se pretende orgânico, racional, sistemático e minimamente previsível, constitui exigência lógica de operacionalidade a existência de um mínimo de uniformidade (ou ao menos de harmonização) de critérios88.
Por outro lado, não houve qualquer modificação no sistema legislativo quanto aos critérios para a fixação do valor da indenização das lesões pessoais incapacitantes, pois o art. 1.539 do velho código foi reproduzido ipsis litteris no caput do art. 950 do novo diploma.
A novidade se encontra no parágrafo único do novo art. 950, que dispõe sobre a forma de pagamento. De fato, o novo dispositivo refere que “o prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de uma só vez.” A prática jurisprudencial vigente é no sentido que os danos emergentes e os danos extrapatrimoniais são arbitrados em valor único e pagos de uma só vez. Já em relação aos danos materiais sob a modalidade de lucros cessantes – e esse é o caso de pensão alimentícia devido quer em caso de morte, como em caso de lesões incapacitantes – costuma-se fixar o valor da pensão em forma de múltiplos de salários-mínimos, a serem pagos mensalmente. Pois bem, o novo dispositivo legal aparentemente atribui ao lesado, somente na hipótese prevista no caput do art. 950, a escolha entre receber uma pensão mensal – provavelmente vitalícia – ou receber a indenização em um único pagamento89.
Para encerrar esse capítulo, saliente-se que o novo código não estabeleceu disciplina específica para o caso de dano estético, que, sob o velho estatuto, encontravam-se previstos nos dois parágrafos do art. 1.538. Nem por isso, obviamente, deixou o mesmo de ser reparável – até mesmo concomitantemente com danos morais puros, já que ambos são espécies de danos extrapatrimoniais. Agora, o seu fundamento legal passou a ser genérico e não específico, enquadrando-se na cláusula geral dos arts. 186 e 927 (aplicáveis a qualquer tipo de dano), ou na previsão um pouco mais específica do art. 949, parte final (“além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”), do novo código civil.
Responsabilidade civil na área da saúde.
Inovações meramente formais novamente comparecem em tema de responsabilidade civil na área da saúde, comumente designada de responsabilidade civil médica ou do médico, cujos princípios sempre foram tidos como extensíveis aos demais operadores na área da saúde. O código de Miguel Reale adota, em seu art. 951, cláusula mais genérica e tecnicamente mais aperfeiçoada, comparada com a anterior. Não mais se enumeram os profissionais aos quais se aplicaria o preceito. Adota-se a expressão mais abrangente “aquele que, no exercício de atividade profissional”. Destarte, a cláusula geral prevista neste dispositivo legal abrange não só os profissionais que eram expressamente nominados no velho código (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas), mas todos aqueles que atuam profissionalmente na área da saúde, como os enfermeiros, fisioterapeutas, massagistas, laboratoristas (bioquímicos), psicólogos, psicoterapeutas, ópticos, dietistas, auxiliares de radiologia, fonoaudiólogos, técnicos em calçados ortopédicos, etc90.
Ressalte-se que também guarda pertinência com o tema o disposto no art. 15, que estabelece que ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica". Aliás, mesmo na ausência de risco de vida ninguém poderia ser compelido a submeter-se a qualquer tratamento, diante do princípio geral da liberdade (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – art. 5º, inc. II, da CF/88). Tampouco se fez referência ao requisito do consentimento informado, que norteia o moderno sistema jurídico que regula a relação médico-paciente. Trata-se do dever do médico de esclarecer e informar o paciente, em modo claro e inteligível, do quadro clínico diagnosticado, apresentando-lhe as alternativas de tratamento (quer clínico, quer cirúrgico), expondo-lhe os riscos e possíveis conseqüências de cada uma das alternativas, com os correlativos benefícios e vantagens. Assim informado, o paciente poderá fazer uma escolha consciente. A ausência de previsão legal não significa, porém, que tal requisito não mais seja necessário, pois a lei sabidamente não representa todo o direito, sendo apenas uma parte (embora a mais importante, na nossa tradição jurídica) do mesmo. O direito é constituído também por outros formantes (com destaque para a jurisprudência e a doutrina), sendo que a exigência de tal requisito (do consentimento informado) está solidamente radicada nos mesmos. Além disso, tal exigência consta também dos códigos deontológicos da profissão médica em todos os países civilizados.
Quanto ao mais, manteve-se o regime da responsabilidade subjetiva, vinda do código anterior e reafirmada no Código de Defesa do Consumidor (art. 14, par. 4º ), desde que se trate de atividade desempenhada na condição de profissional liberal. Em se tratando, porém, de prestação que se enquadre como relação de consumo, aplica-se o Estatuto do Consumidor, inclusive quanto ao regime da responsabilidade objetiva (salvo quanto aos profissionais liberais) e à inversão do ônus da prova91, na forma prevista nos arts. 14 e 6º, VIII, do C.D.C. É o caso da responsabilidade dos hospitais92, clínicas médicas, laboratórios, etc.
Substancialmente, portanto, permanece válida a orientação jurisprudencial formada sob a égice do código Beviláqua a respeito da responsabilidade civil dos médicos.
Da indenização em caso de usurpação ou esbulho.
Embora não tenha havido alteração substancial, o novo regramento para o caso de danos decorrentes de esbulho é tecnicamente melhor. O que sob o código anterior estava disperso em dois artigos (1.541 e 1.543), agora restou unificado sob o art. 952 e seu parágrafo único. Outra novidade formal foi a inclusão dos lucros cessantes nas parcelas indenizáveis, além dos danos emergentes (valor das deteriorações). Referimos que se trata de novidade formal pelo fato de que a jurisprudência sempre incluiu, na indenização, rubrica referente aos lucros cessantes (pense-se nos inúmeros casos de esbulho relativo a imóvel rural produtivo, em que o esbulhador é condenado também ao pagamento dos lucros cessantes, consistentes nas colheitas que não puderam ser obtidas durante o período do esbulho).
Na impossibilidade de devolver a própria coisa, hipótese em que se restitui valor equivalente, ficou mantida a referência ao valor de afeição, já tradicional em nosso direito formal, embora raríssimos os casos jurisprudenciais aplicadores de tal critério.
Da indenização em caso de dano à honra
A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. É o que expressamente prevê o caput do art. 953 do novo código, repetindo expressamente os termos do art. 1.547 do velho diploma. A novidade, mais aparente do que real, reside no novo parágrafo único. De fato, enquanto no sistema anterior, na impossibilidade de se demonstrar prejuízo material, previa-se que o ofensor deveria pagar “o dobro da multa no grau máximo da pena criminal respectiva”, no novo sistema, “caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso”.
Também aqui, porém, a jurisprudência há muito já vinha adotando o critério ora formalmente previsto, embora encontráveis acórdãos que usavam o referencial da pena de multa para a fixação do valor da indenização.
Da indenização por ofensa à liberdade pessoal
Nenhuma alteração sensível comparece no dispositivo que trata de indenização por ofensa à liberdade pessoal. Os casos que se consideram ofensivos da liberdade pessoal permanecem os mesmos93. Igualmente inalterada restou a previsão do critério principal a ser utilizado para a fixação do valor da indenização, qual seja, o “pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido”.
Houve uma alteração formal, aglutinando-se em apenas um artigo (o de n. 954) a matéria que, sob o código de 16, estava distribuída nos arts. 1.550 e 1.551.
A segunda alteração está relacionada à modificação introduzida no cálculo da indenização por danos à honra, na impossibilidade de se demonstrar a existência de danos materiais. Em tal hipótese, segundo o código anterior, dever-se-ia fixar a indenização em valor equivalente ao dobro da multa no grau máximo da pena criminal respectiva. Idêntico critério era adotado, por remissão, em se tratando de ofensa à liberdade pessoal. Como o atual código aboliu a referência à pena de multa, atribuindo ao juiz a faculdade de fixar, eqüitativamente, o valor da indenização na hipótese de dano à honra, também para o caso de ofensas à liberdade pessoal tal possibilidade foi estendida.
Da prescrição.
A prescrição da pretensão condenatória derivada de responsabilidade civil extracontratual ocorria em 20 anos, na forma do art. 177 do velho código, em virtude da regra prevista no art. 179. No novo diploma, o prazo prescricional é drasticamente reduzido para três anos (art. 206, par. 3º, inc. V). Trata-se de sensível mudança.
Quanto aos fatos danosos ocorridos antes da entrada em vigor do novo Código, a disposição transitória do art. 2.028 prevê que “serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”.
Da conjugação dos dois elementos que compõem tal suporte fático, deduz-se que a prescrição vintenária só continuará aplicável para os eventos danosos ocorridos até 11 de janeiro de 1.993. A todos os fatos ocorridos a partir de tal data, aplica-se a prescrição trienal prevista na nova codificação. Isso significa que a entrada em vigor do novo código, prevista para 11.01.2003, acarretará a prescrição da ação condenatória relativa a todos os fatos ocorridos entre 11.01.1993 e 11.01.2000, caso as ações judiciais respectivas ainda não tenham sido propostas (ressalvados, obviamente, os casos de suspensão e interrupção da prescrição).
Uma interpretação menos drástica, quanto aos efeitos, embora menos aderente ao texto sub comento, poderá defender que o novo prazo prescricional das ações de reparação de danos – três anos – incidirá apenas a partir da vigência do novo código. Assim, se pela regra de direito intertemporal prevista no art. 2.028 concluir-se que o prazo prescricional a invocar é o da lei nova (03 anos) e não o da lei antiga (20 anos), tal novo prazo incidirá por inteiro a partir da vigência do novo Código. Com isso se evitaria o efeito referido no parágrafo anterior, última frase94.
Conclusões.
Do quanto foi exposto, embora sem maiores aprofundamentos, podem ser extraídas algumas conclusões:
O novo código manteve a primazia da culpa (responsabilidade subjetiva), como fundamento básico da responsabilidade civil, como se percebe da cláusula geral do novo art. 186;
Robusteceu-se a tendência de objetivação da responsabilidade civil extracontratual, já anunciada pela legislação especial e com reflexos na jurisprudência, embora muitas vezes camuflada com o rótulo de presunção de culpa (v.g., súmula n. 341 do STF). Efetivamente, seja inovando materialmente, ao estabelecer novos casos de responsabilidade sem culpa, seja através de inovações meramente formais, ao transformar em dispositivo legal determinados desenvolvimentos jurisprudenciais, o fato é que o novo código prevê vários casos de responsabilidade civil objetiva, como é o caso do exercício abusivo de um direito, previsto no novo art. 187, a cláusula geral da responsabilidade objetiva por risco criado (art. 927, parágrafo único), a responsabilidade subsidiária e por eqüidade dos incapazes (art. 928), a responsabilidade pelo fato do produto (art. 931, que constitui inovação formal no âmbito do código civil, embora já estivesse consagrado pelo código de defesa do consumidor), a responsabilidade civil pelo fato de outrem (art. 932 c/c art. 933), a responsabilidade pelo fato dos animais (art. 936 – embora aqui apenas tenha deixado mais claro aquilo que já poderia ser extraído, via hermenêutica, do antigo art. 1.527);
O novo diploma manteve-se no interior da tradição latina da atipicidade da responsabilidade civil extracontratual (permanecendo afastado do modelo da tipicidade relativa dos sistemas germânico e anglo-americano), ao manter a cláusula geral da responsabilidade subjetiva, e alargou ainda mais o âmbito da responsabilidade objetiva, prevendo três cláusulas gerais para orientar o desenvolvimento jurisprudencial da responsabilidade sem culpa (arts. 187, 927, parágrafo único, e 931);
Não restou desautorizada toda a jurisprudência formada sob a égide do velho código civil, tendo o novo codificador recebido substancialmente as criações jurisprudenciais (como a responsabilidade objetiva pelo fato de outrem, embora anteriormente disfarçada com o rótulo de presunção de culpa; bem como o princípio da relevância civil da concorrência de culpas);
Acolheu-se, igualmente, a lição doutrinária e jurisprudencial no sentido de que, em se tratando de danos materiais, “a indenização mede-se pela extensão do dano” (agora expresso sob forma legal – art. 944), sem indagação do elemento subjetivo (intensidade do dolo ou da culpa). Todavia, importante inovação material foi introduzida ao se relativizar tal critério objetivo, permitindo-se que o juiz reduza, eqüitativamente, o montante da indenização, “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano” (art. 944, parágrafo único);
Confirmou-se, igualmente, os desenvolvimentos jurisprudenciais ocorridos em matéria de responsabilidade civil pelo fato da morte e por danos à pessoa, ao se reproduzir substancialmente as rubricas indenizatórias/compensatórias já previstas sob o antigo código, acrescentando-se, porém, que tais previsões não excluem outras reparações (parte final do caput dos artigos 948 e 949);
O prazo prescricional das pretensões ressarcitórias por responsabilidade civil foi reduzido sensivelmente, abandonando-se a prescrição vintenária e adotando-se a prescrição trienal, adequando-se aos modelos existentes no direito comparado;
Como toda obra humana, é possível vislumbrar-se deficiências na nova sistemática da responsabilidade civil, principalmente se, com o auxílio do direito comparado, pretender-se selecionar pontualmente o que há de melhor em cada um dos sistemas legislativos mais conhecidos da tradição jurídica ocidental. Todavia, comparando-se globalmente a nova sistemática com os demais modelos existentes, conclui-se que o novo código (e aqui estou considerando apenas o formante legislativo, comparando-o com os sistemas legislativos alhures existentes, sem focar os desenvolvimentos jurisprudenciais de parte a parte) insere-se entre os modelos mais avançados. A técnica das cláusulas gerais, largamente utilizadas no âmbito da nova sistemática da responsabilidade civil, permitirá grandes desenvolvimentos jurisprudenciais, o que permitirá, inclusive, corrigir eventuais insuficiências ou deficiências presentes na obra legislativa. Até porque, como salientou o Prof. Miguel Reale, “a estrutura hermenêutica é um complemento natural da estrutura normativa” 95, motivo pelo qual “o Código surge com a idéia de deixar algo a cuidado da doutrina e da jurisprudência, as quais virão a dar conteúdo vivo às normas, na sua expressão formal, para que se atinja a concreção jurídica, isto é, a correspondência adequada dos fatos às normas segundo o valor que se quer realizar”96.
Notas de Rodapé
1 Konrad Zweigert & Hein Kötz, Introduzione al Diritto Comparato, vol. II, Istituti. Milano, Giuffrè, 1995, p. 316.
2 Uma das inovações mais importantes do novo estatuto civilista é o capítulo referente aos direitos da personalidade, introduzido logo nos primeiros artigos do código (arts. 11 a 21). O caráter pedagógico de tal previsão é sobremodo importante, por revelar um novo sistema de valores, uma chave de leitura oferecida ao intérprete já no início do código. Tal previsão pode ser interpretada como um sinal da atenuação do patrimonialismo reinante no direito civil clássico, e como um impulso em direção à desejada repersonalização do direito privado. Ou seja, um direito em que a pessoa humana (e sua dignidade existencial) passa a ser colocada no centro do sistema, no lugar do patrimônio. O codice civile italiano de 1942 foi o primeiro a disciplinar (embora sucintamente), em forma sistemática, os direitos da personalidade (arts. 5 º a 10). No código civil português, a matéria é tratada nos arts. 70 a 81. Para uma visão sintética a respeito da sistemática portuguesa, consulte-se Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra ed., 1985, pp. 84/88 e 206/213. A respeito da evolução da tutela dos direitos da personalidade na Alemanha, em prisma comparativo, veja-se B. S. Markesinis, The German Law of Obligations, vol. II – The Law of Torts: A Comparative Introduction, 3 ª ed., Oxford, Clarendon Press, 1997, esp. pp. 63ss. A tutela dos direitos da personalidade é ampla e variegada, abrangendo a repressão penal, proteção administrativa, tutela reparatória, preventiva e inibitória. No âmbito restrito da responsabilidade civil, a tutela meramente reparatória muitas vezes revela-se deficiente ou inadequada, motivo pelo qual é justamente em tema de tutela dos direitos de personalidade que mais se percebe a perseverança de instrumentos sancionatórios de tipo punitivo (como a idéia de pena privada), quando não se lograr evitar o dano, através de uma tutela preventiva (que o novo C.C., em seus arts. 12, 20, e 21, corretamente propicia). Sobre a aplicabilidade do instituto das penas privadas para a tutela dos direitos de personalidade, veja-se PAOLO GALLO, Pene private e Responsabilità civile, Milano, Giuffrè, 1996, esp. pp. 8/15 e GUIDO PONZANELLI, La Responsabilità civile. Profili di diritto comparato, Bologna, Il Mulino, 1992, p. 15. Sobre os direitos de personalidade em geral, veja-se RABINDRANATH V. A. CAPELO DE SOUZA, O direito geral de personalidade, Coimbra, Coimbra Ed., 1995, esp. p. 485ss sobre tutela preventiva; ENZO ROPPO, “I diritti della personalità”, in L’influenza dei valori costituzionali sui sistemi giuridici contemporanei, Milano, Giuffré, 1985, tomo I, pp. 99/122, onde o autor discorre sobre os três modelos principais de tutela dos direitos da personalidade no direito comparado contemporâneo, ou seja, o sistema norte-americano (caracterizado como um sistema de tutela forte e articulada), o sistema alemão (tutela igualmente forte, mas menos articulada) e o sistema francês (identificado como um sistema de tutela mais débil). Em perspectiva mais constitucionalista, consulte-se ERNST BENDA, “Dignidad humana y derechos de la personalidad”, in: BENDA, MAIHOFER, VOGEL, HESSE, HEYDE, Manual de derecho constitucional, Madrid, Marcial Pons, 2001, 2 ª ed., pp. 117/144, bem como Paulo Mota Pinto, “Notas sobre o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e os direitos de personalidade no direito português”, in: Ingo Wolfgang Sarlet (org.), A Constituição Concretizada – Construindo pontos com o público e o privado, Porto Alegre, Liv. do Advogado, 2000, pp. 61/83.
3 Disto decorre a possibilidade de se identificar outros danos extrapatrimoniais, ao lado do dano moral puro, do que é exemplo o dano estético: STJ, 3 a. T., REsp 94569/RJ, DJ de 01.03.99 e STJ, 4 a. T., REsp 228244/SP, DJ de 17.12.99.
4 In Traité de la responsabilité civile en droit français, t. I, nº 1.
5 É a lição de Pietro Trimarchi, Rischio e responsabilità oggettiva, Milano, Giuffrè, 1961, p. 16.
6 Mário Moacyr Porto, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 65, p. 476, verbete “Responsabilidade pela guarda das coisas inanimadas”.
7 Em relação ao Código REALE como um todo, já foi dito que “o novo Código é arrojado e ao mesmo tempo tímido na função de conformação da realidade. É arrojado porque estabelece as bases a partir das quais o direito pode evoluir, mudar e se adaptar às novas realidades. Essa possibilidade de mudança está na estrutura aberta e flexível, nas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, os quais vão manter o novo Código jovem independentemente das transformações futuras da sociedade. Porém, o Código de 2002 é tímido porque não inova em suas regras, somente consolidando modelos jurídicos que a doutrina e jurisprudência já haviam recepcionado” (BRANCO, Gerson Luiz Carlos. “O culturalismo de Miguel Reale e sua expressão no novo Código Civil”. In: BRANCO, Gerson L. C., & MARTINS-COSTA, Judith (org.): Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 79.).
8 Aliás, trata-se de lição antiga entre nós, se lembrar-mos que Clóvis Bevilaqua já afirmava que “o direito penal vê, por trás do crime, o criminoso, e o considera um ente anti-social, que é preciso adaptar às condições da vida coletiva [...]; o direito civil vê, por trás do ato ilícito, não simplesmente o agente, mas, principalmente, a vítima, e vem em socorro dela, a fim de, tanto quanto lhe for permitido, restaurar o seu direito violado” – in Teoria Geral do Direito Civil, Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1976, 2 ª ed., págs. 272/273.
Deve ser imediatamente ressalvado, porém, que nas últimas décadas percebe-se um movimento em sentido parcialmente contrário – mas que paradoxalmente não neutraliza o quanto foi dito acima. Refiro-me à assim chamada ‘redescoberta das penas privadas’. Trata-se do movimento, intenso sobretudo nos Estados Unidos e na Itália, que vai na direção da percepção da impossibilidade de se atribuir apenas ao direito penal o desempenho de uma função sancionatória. Também o instituto civilista das penas privadas pode ser utilizado para tal fim, sancionando economicamente alguém que tenha violado preceitos ético-jurídicos, afetando dolosamente (ou em forma gravemente culposa) interesses juridicamente protegidos, a tal ponto de merecer, por isso, uma sanção civil consistente no pagamento de uma indenização. Usa-se, assim, um instrumento de direito privado para fazer avançar políticas sociais. Voltaremos ao tema ao longo do trabalho. Quanto à não exclusividade do direito penal para o exercício de funções sancionatórias, veja-se Paolo Cendon, “Responsabilità civile e pena privata”, in: Francesco D. Busnelli e G. Scalfi (org.), Le pene private, Milano, Giuffrè, 1985, p. 294 .
9 De acordo com Guido Alpa, Trattato di Diritto Civile, vol. IV, La responsabilità civile, Milano, Giuffrè, 1999, p. 7.
10 “Problemi attuali della responsabilità civile”, in: Francesco Macioce (org.), La responsabilità civile nei sistemi di Common Law, vol. I, Profili generali, Padova, Cedam, 1989, p. 21.
11 Trata-se do caso Losee v. Buchanan, julgado pelo equivalente ao Tribunal de Justiça do Estado de Nova Iorque, em 1871. Alusão ao caso e ao desenvolvimento posterior da responsabilidade civil, sob o influxo renovador do princípio da solidariedade social, encontra-se em Letizia Vacca (org.), La responsabilità civile da atto illecito nella prospettiva storico-comparatistica, Torino, Giappichelli, 1995, pp. 14/15.
12 Mazeaud & Mazeaud, Leçons de droit civil, Paris, Ed. Montchrestien, 1956, p. 302.
13Responsabilidade civil agravada é a denominação empregada pelo Prof. Fernando Noronha (“Responsabilidade Civil: uma tentativa de ressistematização”,Revista de Direito Civil, vol. 64, pp. 12-47, e “Desenvolvimentos Contemporâneos da Responsabildiade Civil”, Revista dos Tribunais, vol. 761, pp. 31-44), para se referir à responsabilidade que excepcionalmente ocorre quando uma pessoa é obrigada a indenizar, independentemente de haver um nexo de causalidade adequada entre a sua atividade e o dano acontecido. Seriam exemplos de uma tal responsabilidade agravada a responsabilidade do estabelecimento prisional pela incolumidade do preso, em caso de suicídio, ou de assassínio por outros detentos; a responsabilidade do hospital pela incolumidade do paciente; do estabelecimento bancário pela incolumidade do cliente, ainda que não correntista; do transportador pela incolumidade do passageiro, ainda que este não tenha adquirido bilhete; do fabricante ou consumidor pelo chamado acidente de consumo, etc.
14 Sobre essa passagem, consulte-se J. Mosset Iturraspe, Responsabilidade por Daños, p. 119.
15 Uma percuciente análise crítica de tais expedientes técnicos encontra-se em Alvino Lima, Culpa e Risco, São Paulo, R.T., 1999, 2 ª ed., pp. 70 a 108; bem como em Wilson Melo da Silva, Responsabilidade sem culpa, São Paulo, Saraiva, 1974, pp. 80 a 94.
16 Uma das aplicações desta teoria pode ser percebida no fantástico desenvolvimento da responsabilité du fait des choses (responsabilidade pelo fato das coisas), levado a cabo pela jurisprudência francesa. Sobre tal desenvolvimento, v. Geneviève Viney – in: Jacques Ghestin (dir.), Traité de Droit Civil, volume dedicado à Introduction à la Responsabilité, Paris, L.G.D.J., 1995, esp. p. 292.
17 Este seria o caso da responsabilidade do proprietário de um veículo. Possivelmente não houve, na história da humanidade, uma outra invenção que tenha causado mais destruição e ceifado mais vidas do que o automóvel. O proprietário de um veículo deve ter plena consciência da sua enorme potencialidade danosa. Sabedor disso, ele deve ter consciência dos riscos agregados quando coloca um veículo em movimento. Se, por culpa ou por uma fatalidade, aquela potencialidade de dano se concretizar, deve o proprietário assumir o dever de indenizar (ressalvando-se hipóteses em que tal responsabilidade não se justifica, como quando o acidente tiver ocorrido por culpa da própria vítima, por exemplo). É a idéia de risco-criado, que se distingue da anterior idéia de risco-proveito pelo fato de que mesmo na ausência de qualquer proveito para o proprietário da coisa perigosa, o dever de indenizar é acionado.
Já em 1942 o código civil italiano estabelecia, em seu art. 2054, a responsabilidade objetiva do condutor do veículo, solidariamente com o seu proprietário, pelos danos causados pela circulação do mesmo. Andrea Torrente e Piero Schlesinger referem, a propósito, que a circulação de veículos constitui uma típica atividade perigosa – Manuale di diritto privato, Milano, Giuffrè, 1995, p. 636.
Quanto à responsabilidade objetiva do proprietário perante os direitos francês e alemão, v. F. H. Lawson e Basil S. Markesinis, Tortius Liability for Unintentional Harm in the Common Law and the Civil Law, vol. I, Cambridge, Cambridge Univ. Press, 1982, pp. 174/177. No direito alemão, v. Karl Larenz, Derecho de Obligaciones, t. II, Madrid, Ed. Rev. de Derecho Privado, 1959, pp. 677/683. Sobre os sistemas de ressarcimento de danos causados pela circulação de veículos no espaço europeu, em geral, consulte-se Guido Alpa e Mario Bessone, La Responsabilità Civile, vol. II, 2 ª ed., Milano, Giuffrè, 1980, esp. pp. 93 a 125.
Também no sistema pátrio vem se entendendo, embora sem muita clareza e sem tanta coesão, que a responsabilidade civil em matéria de acidentes de trânsito é de natureza objetiva (idéia de risco-criado), no sentido de que os riscos derivados da circulação de veículos devem ser suportados pelos proprietários dos mesmos, desde que presente relação de causalidade adequada. Isto significa que, ocorrido um dano derivado de acidente de circulação, deve o proprietário do veículo responder pelo mesmo, independentemente de culpa, salvo se demonstrar a inexistência ou a ruptura de nexo causal, ou seja, a ocorrência de força maior (o chamado fortuito interno, como problemas mecânicos do veículo, não afasta a responsabilidade civil), culpa exclusiva da vítima (a culpa concorrente apenas implica a repartição de danos) e fato de terceiro. Nesse sentido: STJ, 4 a.T., AgResp 250237/SP, D.J. de 11.09.2000 e STJ, 3 a. T., REsp 56731/SP, DJ de 10.03.97.
18 Este, por exemplo, é o posicionamento de Mazeaud-Tunc (Tratado Teórico y Práctico de la Responsabilidad Civil Delictual y Contractual, Buenos Aires, E.J.E.A., 1963, t. I, vol. II, p. 513 e p. 525), Sourdat (Traité Général de la Responsabilité, Paris, I.L.G.J., 1911, t. II, p. 64), Henri Lalou (La Responsabilité Civile, Paris, Dalloz, 1928, págs. 231/232, e mais recentemente, Mauro Bussani (As peculiaridades da Noção de Culpa - um estudo de direito comparado (trad. de H. Saldanha), Porto Alegre, Liv. do Advogado, 2000, p.15).
19“Domaine et Fondement de la Responsabilité sans Faute”, in Revue Trimestrielle de Droit Civil, nº LVI, ano 1958, p. 509 e Essai d’une théorie générale de la responsabilité civile considérée en sa double fonction de garantie et de peine privée, Paris, L. Rodstein, 1947, págs. 217/218.
20André Tunc, La Responsabilité civile, Paris, Economica, 1989, 2 ª ed., pp. 149/155.
21 Leon Husson, Les Transformations de la Responsabilité, Paris, P.U.F., 1947, p. 149.
22 A. Wald, Influence du droit français sur le droit brésilien dans le domaine de la Responsabilité civile, Rio de Janeiro, Dep. de Imprensa Nacional, 1953, p. 12.
23 Karl Larenz, Derecho Justo. Fundamentos de etica juridica. Madrid, Ed. Civitas, 1985, 1990, pp. 118/119.
24 La Responsabilité des Personnes Morales Publiques et Privées, Paris, L.G.D.J., 1959, p. 6.
25 René Savatier , Les Métamorphoses économiques et sociales du droit civil d’aujourd’hui, Paris, Dalloz, 1952, p. 263.
26 Tal modelo, portanto, não é novo sequer entre nós. Todavia, algumas experiências identificadas no direito comparado demonstram que se trata de um modelo com grande potencial expansivo, como atestam alguns exemplos. As duas experiências mais ousadas dentro desse modelo ocorreram na Suécia e na Nova Zelândia (sendo este o modelo mais abrangente). Tratam-se de sistemas que tendencialmente buscam garantir a indenizabilidade de qualquer acidente sofrido por uma pessoa. Tais programas são mantidos através de fundos instituídos por uma imposição tributária generalizada. Uma análise dos sistemas representativos desse terceiro modelo de responsabilidade civil, encontra-se em Giulio Ponzanelli, La Responsabilità civile – Profili di diritto comparato, Bologna, Il Mulino, 1992, esp. pp. 119 a 148.
27 É por isso que, em doutrina, fala-se, por vezes, em zenith (André Tunc) ou de parábola (F. Busnelli) da responsabilidade civil, exatamente para sublinhar o fato de que este instituto, depois de ter atingido seu ápice no séc. XX, estaria começando a perder terreno diante de outros institutos em ascendência, igualmente finalizados a disciplinar o custo social dos acidentes, como, por exemplo, o seguro e a previdência social. Sobre esse enfoque, veja-se Paolo Gallo, Pene private e Responsabilità civile, Milano, Giuffrè, 1996, esp. p. 4ss.
28 Seria interessante notar que os antigos sistemas socialistas de responsabilidade civil concediam maior importância que os sistemas ocidentais às funções de prevenção e dissuasão de condutas anti-sociais que igualmente seriam ínsitas na responsabilidade civil, como refere ANDRÉ TUNC, International Encyclopedia of Comparative Law, vol. XI, Torts, Chapter 1, Introduction, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1974, p. 12.
29 Trata-se de uma função freqüentemente invocada pelos tribunais, do que serve de exemplo o seguinte acórdão: “Responsabilidade civil. Dano moral. Acusação injusta de furto em mercado. A injusta imputação de furto a cliente de mercado e a sua revista causam constrangimento passível de indenização. A fixação do dano deve levar em conta o caráter compensatório e punitivo” (TJRS, 6 a. CC., C.C. 70001615152, j. em 11.04.01, rel. Des. Cacildo de Andrade Xavier).
30 Dentre outros, Fernando Noronha, “Desenvolvimentos Contemporâneos da Responsabilidade Civil”, Revista dos Tribunais, vol. 761, pp. 40/41, que denomina tal função de função preventiva.
31 “(…) A condenação, além de reparar o dano, deve também contribuir para desestimular a repetição de atos desse porte (…)” (trecho da ementa do REsp 295175/RJ, STJ, 4 a. T., DJ de 02.04.01);
“Responsabilidade civil. Dano moral. Espancamento de condômino por seguranças do Barrashopping. A indenização por dano moral objetiva compensar a dor moral sofrida pela vítima, punir o ofensor e desestimular este e a sociedade a cometerem atos dessa natureza” (STJ, 3 a. T., REsp 283319/RJ, DJ de 11.06.01); No mesmo sentido: (STJ, 4 a. T., REsp 265133/RJ, DJ de 23.10.00); aludindo a uma função inibitória da r.c., v. TJRS, 10 a. CC., A.C. 70001051846, j. em 31.08.2000, sendo relator o Des. Luiz Ary Vessini de Lima.
32 Refere-se, apenas, que o novel legislador concedeu uma tutela incondicionada aos danos morais, deixando de seguir – no que fez bem – alguns modelos restritivos existentes no direito comparado. A legislação italiana , por exemplo, praticamente restringe a reparabilidade dos danos extrapatrimoniais aos casos em que o comportamento do agente configure um ilícito penal. É verdade que a jurisprudência italiana vem ampliando tal tutela, a partir de uma visão constitucionalizada do direito privado. A mesma limitação legal e a mesma superação hermenêutica, ocorreu na Alemanha. No direito inglês, os danos não patrimoniais costumam ser indenizados somente quando se inserem em uma das seguintes rubricas: a) pain and suffering (dor física ou psíquica); b) loss of expectation of life (ou seja, uma presumível diminuição da duração da vida da vítima); c) loss of amenities of life, também chamada de loss of enjoyment of life (trata-se da impossibilidade de continuar a gozar de alguns prazeres mundanos, como praticar esportes, andar a cavalo, guiar, etc), e, mais recentemente, d) nervous schock (traumas psíquicos, fortes abalos emocionais, etc.).
33 A nova norma possivelmente inspirou-se no art. 2050 do cód. civil italiano de 1942 (“chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un’attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, è tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno”), embora a nossa fórmula legislativo possua feição mais rigorosa, já que não prevê cláusula exoneratória. A jurisprudência italiana a propósito do referido dispositivo legal é abundante. Dela se extrai que cabe ao juiz decidir, segundo juízos de experiência, se a atividade é perigosa ou não. Indicações jurisprudenciais sobre atividades tidas como perigosas são encontradas em G. Pescatore e C. Ruperto, CODICE CIVILE annotato com la giurisprudenza della Corte Costituzionale, della Corte di Cassazione e delle giurisdizioni amministrative superiori, vol. II, pp. 3.394 a 3.397 (Milano, Giuffrè, 1993) e em Vinicio Geri, Responsabilità civile per danni da cose ed animali, Milano, Giuffrè, 1967, pp. 162ss.: manipulação de explosivos; uso de serra elétrica; atividades envolvendo metais incandescentes; produção e distribuição de metano; serviço de abastecimento de gás para uso doméstico; circulação de veículos automotores, atividades de caça, parque de diversões, dentre outros.
Os eméritos comparatistas alemães Zweigert e Kötz referem que “a jurisprudência austríaca foi mais corajosa do que a alemã ao reconhecer, mesmo na ausência de legislação específica, que possa haver responsabilidade sem culpa quando o dano tenha sido causado por ‘atividade perigosa’ do empresário réu, deixando-se ao juiz a decisão sobre a ‘periculosidade’ da atividade” (Introduzione al Diritto Comparato (trad. it.), vol. I – Principi fondamentali, Milano, Giuffrè, 1992, p. 204).
34 Usa-se aqui a expressão “formante” legislativo no sentido utilizado pela doutrina comparatista italiana, a partir da teoria da dissociação dos formantes, desenvolvida por Rodolfo Sacco.
35 Carlos Alberto Bittar, Responsabilidade civil nas atividades nucleares, São Paulo, RT, 1985, p. 89.
36 Pietro Trimarchi, Rischio e Responsabilità oggettiva, Milano, Giuffrè, 1961, p. 277.
37 Miguel Reale, O projeto de Código Civil. Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo, Saraiva, 1986, pp. 10/11.
38 Não há como aprofundar o estudo deste instituto – que comportaria extenso tratamento monográfico – no âmbito destas considerações panorâmicas sobre as novidades mais importantes em tema de responsabilidade civil extracontratual no novo código. Para um aprofundamento, remetemos o leitor para a leitura, dentre outros, dos seguintes trabalhos: Giulio Levi, L’abuso del diritto, Milano, Giuffrè, 1993; Alberto G. Spota, Tratado de Derecho Civil, t. I, vol. 2, Relatividad y abuso de los derechos, Buenos Aires, Depalma, 1967 (860 páginas dedicadas ao tema, em ótica comparada); Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Da Boa Fé no Direito Civil. Coimbra: Liv. Almedina, 1984, vol. II, pp. 661 a 901; Lino Rodrigues Arias, El Abuso del Derecho, Buenos Aires, E.J.E.A., 1971; e Mario Rotondi (org.), Inchieste di diritto comparato, vol. 7, L’abus de droit, Padova, Cedam, 1979, obra coletiva e indicativa da matéria no direito comparado.
39 D., 50, 17, 144.
40 Nesse sentido manifesta-se Giulio Levi, Responsabilità Civile e Responsabilità Oggettiva, Milano, Giuffrè, 1986, p. 77.
41 Apud Silvio Rodrigues , Direito Civil, São Paulo, Saraiva, 1975, vol. IV, p. 54.
42 É o quanto informa Giovanna Visintini, I Fatti Illeciti, vol. II, Padova, Cedam, 1990, p. 286.
43 Referências a esse caso, numa discussão que abrange a necessidade e a tendência de um direito mais solidário e menos individualista, encontram-se em SESSAREGO, Carlos Fernandez, “Un nuovo modo di fare diritto”, in: VISINTINI, Giovanna (org.), Il Diritto dei Nuovi Mondi, Padova: Cedam, 1994, pp. 229/276 – o trecho citado encontra-se na página 236.
44 Além da hipótese excepcional de responsabilização de um adolescente (menor entre 12 e 18 anos), pelas conseqüências patrimoniais de um ato infracional (crime ou contravenção), na forma do art. 116, c/c arts. 112, II, 103 e 2 º, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
45 Primeiro, porque poderia sofrer sanções pelo simples resultado material de seu agir; segundo, porque, fazendo parte de um agrupamento familiar, territorial ou político, ele acompanhava a coletividade na adversidade, para que fosse dada satisfação à vítima.
46 Foi somente ao final do período pré-clássico do direito romano que se passou a entender os menores e os loucos como irresponsáveis.
47 La responsabilità civile per fatto altrui, Milano, Giuffré, 1976, p. 633.
48 Algumas hipóteses poderão ocorrer, porém. Pense-se na hipótese em que o menor estiver empregado, caso em que a responsabilidade pelos atos danosos praticados por ocasião do trabalho desloca-se dos pais para o patrão. Na hipótese do empregador ser insolvente, a vítima poderia ter interesse de ressarcir-se junto ao próprio menor, acaso tivesse patrimônio, já que nessa situação os seus genitores não teriam responsabilidade indenizatória.
49 “Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Colisão com veículo regularmente estacionado. Fato de terceiro. ‘Fechada’. Estado de necessidade. Licitude da conduta do causador do dano. Ausência de culpa demonstrada. Circunstância que não afasta a obrigação reparatória (arts. 160, II, e 1.520, CC). O motorista que, ao desviar de ‘fechada’ provocada por terceiro, vem a colidir com automóvel que se encontra regularmente estacionado Responde perante o proprietário deste pelos danos causados, não sendo elisiva da obrigação indenizatória a circunstância de ter agido em estado de necessidade. Em casos tais, ao agente causador do dano assiste tão-somente direito de regresso contra o terceiro que deu causa à situação de perigo” (STJ, 4 a. T, REsp, 12840/RJ, DJ de 28.03.94). No mesmo sentido: STJ, 4 a. T., REsp 127747/CE, DJ de 25.10.99.
50 Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.
51 Realmente, “uma pessoa é responsável pelo ato danoso praticado por outrem somente quando nenhuma culpa lhe puder ser atribuída. Efetivamente, se uma culpa lhe pudesse ser atribuída, esta pessoa seria certamente obrigada a reparar os danos, mas isso então ocorreria em razão de sua própria conduta. Não existe responsabilidade pelo ato de outrem cada vez que uma pessoa repara um dano causado por outrem, mas unicamente quando uma pessoa repara as conseqüências danosas de uma culpa exclusivamente alheia” - Janine Ambialet , Responsabilité du fait d’autrui en droit médical, Paris, L.G.D.J., 1964, p. 13.
52 É escassa a casuística relativa à responsabilidade dos hotéis com fulcro no art. 1.521, IV. Eis um caso interessante: “Responsabilidade civil. Hóspede de hotel que lesiona o gerente. Culpa presumida do dono do estabelecimento. Art. 1.521, IV, do CC. (…) 2. A lei presume a culpabilidade do hoteleiro por ato do seu hóspede. Cabe ao estabelecimento tomar todas as medidas de segurança e precaução, por cuja falta ou falha è responsável (…)” (STJ, 4 a. T., REsp 69437/SP, DJ de 14.12.98).
53 Há quem entenda que como a lei se refere a filhos menores, sem restrições ou condicionamentos, tal expressão abrangeria inclusive os filhos emancipados por qualquer das formas em lei.
A maior parte da doutrina, porém, costuma distinguir a causa da emancipação para determinar a subsistência ou não da responsabilidade paterna. Assim, distingue-se a emancipação expressa (por concessão paterna) da emancipação por casamento, entendendo-se que naquela a responsabilidade dos pais persiste, só ficando afastada nesta última hipótese.
Um terceiro posicionamento, com argumentos aparentemente mais sólidos, sustenta que a responsabilidade dos pais é afastada sempre que o filho se encontra emancipado por qualquer forma. Nesse sentido o magistério de Orlando Gomes (Obrigações, Rio de Janeiro, Forense, 1976 p. 357), Alvino Lima (A Responsabilidade civil pelo fato de outrem, Rio de Janeiro, Forense, 1973, p. 35), Antonio Chaves (Tratado de Direito Civil, São Paulo, R.T., 1985, vol. 3, p. 97), Vicente de Paulo Vicente de Azevedo (Crime - Dano - Reparação, São Paulo, R.T., 1934, págs. 330/331), Serpa Lopes (Curso de Direito Civil, Rio de Janeiro, Liv. Freitas Bastos, 1962, vol. V. págs. 274/275).
54 A respeito do tema, veja-se Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro, Ed. Borsoi, 1972, vol. 53, p. 123; M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1938, t. II, p. 458; Mazeaud-Tunc, Tratado Teórico y Prático de la Responsabilidad Civil Delictual y Contractual, Buenos Aires, E.J.E.A., 1962, t. I, vol. II, p. 475.
55 Aguiar Dias (Da Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1979, vol. 2, págs 175, 177 e 179/180), Pontes de Miranda (Manual do Código Civil Brasileiro de Paulo de Lacerda, Rio de Janeiro, Jacinto R. Santos Ed., 1927, vol. XVI, 3ª parte, I tomo, p. 289) e Serpa Lopes (op. cit., vol. V, p. 275), por exemplo, entendem que a responsabilidade civil prevista no antigo art. 1.521, I, do CC (reproduzido no atual art. 932, I) incide não apenas sobre os pais mas também sobre quem lhes faz as vezes. Tais posicionamentos, em verdade, revelam a adoção da teoria do posto social, a que se refere Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil, São Paulo, Max Limonad, 1957, vol. XII, t. II, págs. 647/648).
56 Nesse sentido: “Quanto à relação de preposição, não importa, para a sua caracterização, que o preposto seja ou não salariado, e nem se exige que as relações entre preponente e preposto sejam permanentes, podendo elas ser meramente eventuais. Assim, o serviço pode consistir numa atividade duradoura ou num ato isolado, tanto material, quanto intelectual. Para haver relação de preposição, é suficiente a existência de um vínculo de dependência, que alguém preste um serviço por conta e sob a direção de outrem, deste recebendo ordens e instruções, sendo indiferente que a relação de serviços, podendo resultar até de um ato de cortesia, como, por exemplo, quando um proprietário de um carro o empresta a um amigo” (trecho do voto vencedor do Min. Natal Nader, em acórdão do STF, inserto na RF 299/41); no mesmo sentido: STJ, 4 a. T, AGA 54523/DF, DJ de 22.05.95; STJ, 4 a. T., REsp 304673/SP, DJ de 22.03.02; STJ, 4 a. T., REsp 119121/SP, DJ de 21.09.98; STJ, 4 a. T., REsp 304673/SP, DJ de 22.03.02; STJ, 4 a. T., REsp 119121/SP, DJ de 21.09.98.
57 “Responsabilidade civil. Acomoda-se ao disposto no art. 1.521, III, CC e à relação de preposição nele descrita, a hipótese em que, embora o automóvel causador do dano pertencesse ao seu condutor, estava locado à empresa à qual ele prestava serviços, destinado a propiciar maior presteza na execução das atividades profissionais e ensejar lucros indiretos à empregadora-locatária” (STJ, 4 a. T., REsp 36386/SP, DJ de 04.10.93)
58 Nesse sentido: Alvino Lima (op. cit., p. 236), Wilson Melo da Silva (Da responsabilidade civil automobilística, p. 203) e, de certa forma, Pontes de Miranda (Manual, cit,, vol. XVI, 3ª parte, 1º tomo, pp. 373 e 374).
59 A amplitude de tal entendimento é evidenciada pelo seguinte acórdão: “Responsabilidade civil do empregador. O dolo do preposto, na prática do ato ilícito, não exclui, por si só, a responsabilidade do empregador. Hipótese em que o empregado, no exercício da profissáo de motorista, praticou o homicídio após uma discussão de trânsito com a vítima, motorista de um ônibus coletivo” (STJ, 3 a. T, AGA 109953/RJ, DJ de 15.11.96).
60 Op. cit., p. 470.
61 Nesse sentido as lições de Carvalho de Mendonça (Op. loc. cit., p. 471) e Henri Lalou (op. cit., p. 626).
62Traité Théorique et Pratique de
63 Exemplo do caráter objetivo dessa responsabilidade é o seguinte acórdão, fundado no art. 1.529 do velho código: “Responsabilidade civil. Objetos lançados da janela de edifícios. A reparação dos danos è responsabilidade do condomínio. A impossibilidade de identificação do exato ponto de onde parte a conduta lesiva, impõe ao condomínio arcar com a responsabilidade reparatória por danos causados a terceiros. Inteligência do art. 1.529 do Código Civil Brasileiro” (STJ, 4 a. T., REsp 64682/RJ, DJ de 29.03.99).
64 Citam-se alguns exemplos de jurisprudência já consolidada sobre o tema, à égide do velho código:
“Responsabilidade civil. Lesões corporais. Briga em casa noturna. (…) Participação do demandado confirmada pela versão uníssona da prova testemunhal judicializada no sentido de ter ele segurado a vítima, enquanto ela era agredida por um companheiro de sua turma. Responsabilidade solidária (...)” (TJRS, 9 a. CC., A.C. 70000932186, j. em 17.05.00, rel. Des. Paulo de Tarso V. Sanseverino); “Responsabilidade civil. Construção de imóvel. Responsabilidade do agente financeiro pela solidez e segurança da obra. Precedente da Turma já assentou que ‘a obra iniciada mediante financiamento do Sistema Financeiro da Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança” (STJ, 3 a. T., REsp 45925/RS, DJ de 18.06.01). O precedente a que se fez referência é o REsp 51169/RS, 3 a. T., DJ de 28.02.00). Ainda no mesmo sentido, existe precedente da 2 a. Turma (REsp 85886/DF, DJ de 22.06.98).
65 Por exemplo: “Acidente de trânsito. (...) Sem embargo de respeitáveis opiniões em contrário, quando os orçamentos são de valor superior ao de mercado, mais razoável se mostra a reparação por quantitativo que possibilite a compra de outro, semelhante ao veículo sinistrado, deduzindo-se da indenização o valor da sucata. Excepcionam-se da regra geral as hipóteses de veículo antigo, de coleção, de estima ou raridade no mercado de usados (...)” (STJ, 4 a. T, REsp 324137/DF, DJ de 25.02.02); no mesmo sentido: STJ, 4 a. T., REsp 69435/SP, DJ de 26.05.97 e STJ, 1 a. T., REsp 56708/SP, DJ de 10.04.95.
70 O Prof. Clóvis do Couto e Silva extraía tal conclusão do próprio art. 1.060 do código Beviláqua, que entendia aplicável não só à responsabilidade contratual, mas também à responsabilidade extracontratual – in “Dever de indenizar”, RJTJRGS, n. 6 (1967), p. 7.
71 Clóvis do Couto e Silva, “O conceito de dano no Direito brasileiro e comparado”, Revista dos Tribunais, vol, 667 (1991), p. 9.
72 Cumpre notar que, na Itália, o jogo combinado dos artigos 1.224 e 2.056 igualmente aponta para o ressarcimento de danos materiais em montante idêntico ao valor dos prejuízos efetivamente sofridos. Isto não impediu, porém, que também lá a jurisprudência mais recente tivesse adotado o instituto das penas privadas, principalmente na tutela de direitos da personalidade.
73 È antigo o posicionamento dos tribunais, favoráveis à indenizabilidade do dano moral em virtude de homicídio, como se vê da seguinte ementa: “Responsabilidade civil. Homicídio. Dano Moral. Indenização. Cumulação com a devida pelo dano material. Os termos amplos do art. 159 do Código Civil hão de entender-se como abrangendo quaisquer danos, compreendidos, pois, também os de natureza moral” (STJ, 3 a. T., REsp 5236/RJ, DJ de 01.07.91).
74 Como exemplo da amplitude de tal entendimento, cita-se acórdão concedendo indenização por danos morais a um nascituro, devidos em virtude da morte do pai (JULGADOS do TARGS, 97/298, rel. Rui Portanova).
75 Isso não significa alteração, porém, no entendimento jurisprudencial consolidado, no sentido de que quando os beneficiários da pensão são filhos menores, o pensionamento deve cessar aos 24 ou 25 anos, como regra geral: STJ, 4 a. T, REsp 142526/RS, DJ de 17.09.01; STJ, 1 a. T, REsp 202868/RJ, DJ de 13.08.01; STJ, 1 a. T, REsp 205847/RJ, DJ de 08.03.00. Ou que a partir do momento em que a vítima completaria 25 anos, o pensionamento deveria ser reduzido pela metade: STJ, 4 a. T., REsp 189172/RJ, DJ de 15.03.99; STJ, 4 a. T., REsp 138373/SP, DJ de 29.06.98 e STJ, 4 a. T., REsp 124565/MG, DJ de 09.02.98.
76 “Responsabilidade civil. (…) Assim como é dado presumir-se que o filho trabalhador, vítima de acidente fatal, teria, não fosse o infausto evento, uma sobrevida até os sessenta e cinco anos, e até lá auxiliaria a seus pais, prestando alimentos, também pode-se supor, pela ordem natural dos fatos da vida, que ele se casaria aos vinte e cinco anos, momento a partir do qual já não mais teria a mesma disponibilidade para ajudar materialmente a seus pais, pois que, a partir do casamento, passaria a suportar novos encargos, que da constituição de uma nova família são decorrentes. A pensão fixada, (…) deve, a partir de quando a vítima viesse a completar vinte e cinco anos, ser reduzida pela metade, assim ficando, caso haja a sobrevida dos pais, até os presumíveis sessenta e cinco anos de idade” (STJ, 4 a. T., REsp 178380/SP, DJ de 24.05.99). No mesmo sentido: STJ, 4 a. T., REsp 274521/MG, DJ de 25.06.01. (STJ, 3 a. T., REsp 35040/SP, DJ de 11.04.94; STJ, 4 a. T., REsp 220234/SP, DJ de 03.04.00; STJ, 4 a. T., REsp 68527/RJ, DJ de 22.05.00.
77 “Responsabilidade civil. Morte de filho menor de tenra idade. Dano moral. (…) O dano sofrido pelos pais em decorrência da morte de filho menor de tenra idade, que ainda não trabalhava e tampouco contribuía para o sustento da família, é de natureza extrapatrimonial e pode ser indenizado através de uma pensão mensal” (STJ, 4 a. T, REsp 57872/CE, DJ de 12.06.95); No mesmo sentido: STJ, 4 a. T, REsp 119963/PI, DJ de 22.06.98; e STJ, 4 a. T., REsp 89205/RJ, DJ de 26.05.97
78 “Responsabilidade civil. Dano estético. Perda de um dos membros inferiores. Acumulação com o dano moral. Devido a título diverso do que justificou a concessão do dano moral, é o dano estético acumulável com aquele, ainda que oriundos do mesmo fato. Precedentes” (STJ, 4 a. T., AGA 100877/RJ, DJ de 15.10.96); no mesmo sentido: STJ, 2 a. T., REsp 68668/SP, DJ de 04.03.96.
79 Sobre tais aspectos, consulte-se Ricardo de Angel Yágüez, Algunas previsiones sobre el futuro de la Responsabilidad civil, Madrid, Ed. Civitas, 1995, p. 141ss. Aliás, este autor refere a Resolução n. 75-7 do Conselho da Europa, cujo art. 11 recomenda a indenização, a título de danos morais decorrentes de lesões corporais, de “perturbações e desgostos tais como mal-estar, insônia, sentimento de inferioridade, diminuição dos prazeres da vida, produzida sobretudo pela impossibilidade de dedicar-se a certas atividades de lazer” (op. cit., p. 144).
80Op. loc. cit.
81 Sobre o tema, cf. Pier Giuseppe Monateri, Trattato di Diritto Civile, Le Fonti delle Obbligazioni, vol. 3, La Responsabilità Civile, Torino, Utet, 1998, p. 529.
82 Sobre tal rubrica, no direito francês e inglês, consultem-se GENEVIÈVE VINEY & BASIL MARKESINIS, La reparation du dommage corporel. Essai de comparaison des droits anglais et français, Paris, Economica, 1985, esp. pp. 70/71.
83 Cf. Francesco Donato Busnelli, “Problemas de la clasificación sistemática del daño a la persona”, in: Mosset Iturraspe, Díez-Picazo e outros (org.), Daños, Buenos Aires, Depalma, 1991, p. 38.
84 “O conceito de dano no Direito brasileiro e comparado”, Revista dos Tribunais, vol. 667 (1991), p. 15.
85Op. loc. cit.
86 A Professora Judith Martins-Costa (“Os danos à pessoa e a natureza da sua reparação”, inA Reconstrução do Direito Privado, São Paulo, R. T., 2002, pp. 408/446) refere ter sido a doutrina italiana a primeira a utilizar a expressão “danos à pessoa” (à qual posteriormente agregou-se a denominação “danos biológicos”) para referir-se a “quase todos os danos extrapatrimoniais que estivessem conexos a qualquer lesão ao bem jurídico ‘saúde’, entendido em seu mais amplo sentido, seja saúde física, seja o bem-estar psíquico ou mental” (op. cit., p. 418).
87 Sobre o tema, para uma análise transdisciplinar, consulte-se a obra coordenada por Daniela Pajardi, denominada Danno biologico e danno psicologico, Milano, Giuffrè, 1990.
88 Na Itália, há quem defenda (Prof. Busnelli) que se faça recurso à eqüidade, mas substanciando-a com referências concretas a precedentes jurisprudenciais, de onde se pode retirar informações sobre a média de somas liqüidadas em casos análogos. Alguns tribunais italianos seguiram essa orientação, entendendo que, em qualquer situação, cabe ao juiz fixar, por arbitramento, o valor dos danos, levando em consideração todas as circunstâncias presentes no caso (danos primários e secundários, ou estáticos e dinâmicos). Nesse sentido se orienta, aliás, a prática jurisprudencial brasileira.
Diante do evidente risco de dispersão de critérios, outros tribunais italianos buscaram uma maior objetivação em tal setor. Um primeiro critério em tal direção consiste no chamado método genovês, que consistia substancialmente na multiplicação do triplo do valor da pensão previdenciária anual, devida ao inválido, por um coeficiente fixado em função da idade da vítima e do seu grau de invalidez. Justamente pela mecanicidade de tal critério, que deixava de considerar variáveis importantes dos casos concretos, a Corte de Cassação (órgão de cúpula do Poder Judiciário italiano), em 1993 (acórdãos de n. 357 e 2009), vetou a utilização do mesmo.
Um segundo critério objetivo foi então construído por outro setor da magistratura italiana. Trata-se do denominado método pisano (em alusão à cidade de Pisa, onde foi desenvolvido). Referido método leva em consideração o aspecto estático das lesões, entendido como a mera diminuição da integridade psicofísica, bem como o aspecto dinâmico, consistente nas conseqüências das lesões sobre as atividades, laborais ou não, da vítima. O método pisano, bem mais complexo do que o anterior, aceita os percentuais de invalidez predispostos em tabelas previdenciárias e securitárias, e os aplica sobre os valores fixados em precedentes jurisprudenciais pertinentes. A partir daí, fazem-se ajustes ao caso concreto, mediante juízo de eqüidade.
Em verdadeiro movimento pendular, voltou-se, em tempos mais recentes, a uma maior objetivação na fixação dos valores. Alguns tribunais italianos (com destaque para o tribunal milanês), em curioso fenônemo de autoregulamentação visando uniformizar o setor, elaboraram autênticas tabelas para a liquidação dos danos biológicos. Na tabela adotada pela Conferência dos Presidentes de Câmaras do Tribunal de Milão, em 1995 (atualizada em 1996), o valor monetário básico do percentual de invalidez permanente, estabelecido com base na média extraída dos precedentes jurisprudenciais, sofre variação de acordo com o grau de invalidez (de 1% a 100%) e de acordo com a idade da vítima. Assim, o valor básico é multiplicado pelo grau de invalidez do caso concreto e pelo coeficiente multiplicador relativo à idade.
Tendo em vista a proliferação de tais tabelas, por outras jurisdições, em 1996 um Grupo de Pesquisas patrocinado pelo Consiglio Nazionale di Ricerca (assemelhado, grosso modo, ao nosso CNPq), elaborou uma Tabella Indicativa Nazionale, que representa a média dos índices e valores encontrados nas diversas tabelas regionais. Experiência semelhante (elaboração de uma tabela indicativa, para uso nacional), foi levada a efeito em solo britânico, com a elaboração, já em 1991, de Guidelines for the Assessment of Damages in Personal Injury Cases, por parte do Judicial Studies Board. Sua estrutura é diversa, porém, os objetivos são semelhantes.
Uma ampla análise de tais experiências, de onde recolhemos as informações supra, encontra-se em Pier Giuseppe Monateri, Trattato di Diritto Civile, Le Fonti delle Obbligazioni, vol. 3, La Responsabilità Civile, Torino, Utet, 1998, p. 527ss, obra na qual inclusive são reproduzidas as tabelas acima referidas.
89 Pensamos que tal regra não deva ser interpretada literalmente, no sentido de conferir ao lesado verdadeiro direito subjetivo. Parece mais razoável entender-se que a nova regra permite ao juiz que, a pedido da vítima e sopesadas todas as circunstâncias do caso, arbitre a indenização em montante único. Dentre as circunstâncias a serem avaliadas pelo magistrado, sobrelevam o valor da indenização a ser pago e as condições socioeconômicas do responsável e da vítima.
90 Sobre os profissionais que são considerados, por lei, auxiliares da medicina, na Argentina, consulte-se Felix A. Trigo Represas, Responsabilidad civil de los profesionales, Buenos Aires, Ed. Astrea, 1987, p. 119ss. Sobre a responsabilidade médica na Inglaterra, consulte-se a monumental obra de B. S. Markesinis & S. F. Deakin, Tort Law, Oxford, Clarendon Press, 1994, 3 ª ed., esp. pp. 228 a 267.
91 O ônus da prova, aliás, é o grande problema da responsabilidade civil médica. Em poucas relações profissionais encontra-se uma das partes em situação de maior vulnerabilidade. Daí a necessidade de, mesmo mantendo-se sob a égide do regime da culpa o problema da responsabilidade civil médica, facilitar-se a defesa dos interesses do paciente. E isso se pode fazer através do mecanismo da inversão do ônus da prova (na forma prevista no Código de Defesa do Consumidor), a critério do julgador e relativamente a determinados aspectos do thema decidendum. Outros mecanismos podem ser lembrados, que visam facilitar a situação do paciente, quanto ao ônus probatório, como a teoria da carga probatória dinâmica, segundo a qual, o ônus probatório deve recair sobre a parte que se encontrar em melhores condições de produzir determinada prova (sobre este tema, v. Luís Andorno, “La responsabilidad civil medica”, AJURIS, 59/224, e Ruy Rosado de Aguiar Jr., “Responsabilidade civil do médico”, Revista dos Tribunais, 718/39).
Uma outra teoria que costuma ser aplicada em caso de responsabilidade médica é a da res ipsa loquitur (a coisa fala por si). Parte-se da idéia de que em determinadas circunstâncias, a simples ocorrência de um certo evento é suficiente para permitir a presunção (extremamente relativa, diga-se logo) de que o mesmo deve ter decorrido de algum procedimento culposo.
A teoria da perda de uma chance também tem aplicação em tema de responsabilidade civil médica. A rigor, uma tal teoria deve ser discutida no âmbito da análise do nexo causal, pois envolve aquelas hipóteses em que não se tem certeza se uma determinada ação tempestiva teria tido o condão de evitar um mal ou de obter um resultado positivo. Todavia, diante da relavância dos interesses em jogo, a inação torna-se intolerável e este juízo de reprovabilidade seria suficiente para se responsabilizar civilmente, por omissão, quem deixou de agir. No campo da medicina, exemplo adequado seria o do médico plantonista que, recebendo um paciente grave no meio da noite, examina-o e resolve encaminhá-lo para cirurgia apenas na manhã seguinte. Antes do amanhecer, porém, o paciente vem a falecer. Restaria, então, a dúvida: se a operação fosse realizada ainda durante a noite, ter-se-ia logrado evitar o óbito, ou este ocorreria de qualquer forma, diante da gravidade do estado do paciente? Nenhuma resposta absolutamente conclusiva poderá ser dada em tal hipótese. Mas basta, no caso, que se tenha negado ao paciente a chance, a expectativa, a esperança de sucesso com uma tempestiva intervenção cirúrgica, para que se tenha configurada a potencial responsabilidade civil do médico. Obviamente, em tal caso, poderá o médico demonstrar que sua intervenção em momento anterior igualmente seria inócua, diante da gravidade do caso. Isto porque quando está em jogo a vida humana, basta uma pequena probabilidade de sucesso de uma tempestiva intervenção, para que se tenha como subsistente o nexo de causalidade adequada entre a omissão e o evento danoso subseqüente. Para mais informações sobre a aplicação da teoria da perte d’une chance no âmbito do direito comparado, consulte-se V. Zeno-Zencovich, “ La Responsabilità Civile”, in: G. Alpa et alii, Diritto Privato Comparato – Istituti e problemi, Bari, Laterza, 1999, p. 271ss.
92 “Responsabilidade civil. Indenização por danos sofridos em conseqüência de infecção hospitalar. (…) I. Tratando-se da denominada infecção hospitalar, há responsabilidade contratual do hospital relativamente à incolumidade do paciente (...) II – Essa responsabilidade somente pode ser excluída quando a causa da moléstia possa ser atribuída a evento específico e determinado. (…)” (STJ, 4 a. T., REsp 116372/MG, DJ de 02.02.98); no mesmo sentido: TJRS, A.C. 595060146, j. em 19.12.95, rel. Des. Osvaldo Stefanello.
93 Exemplificativamente, “Responsabilidade civil. Dano moral. Lojas Americanas. Detenção indevida. A detenção indevida de três pessoas, sendo duas menores, por suspeita de furto em estabelecimento comercial, causa dano moral que é arbitrado, nas circunstâncias, de acordo com o voto médio, em valor equivalente a 300 salários mínimos” (STJ, 4 a. T, REsp 298773/PA, DJ de 04.02.02).
94 Foi esta a interpretação que acabou por prevalecer na Comissão que tratou da Responsabilidade Civil, na Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (STJ), em Brasília, nos dias 11 a 13 de setembro de 2002, reunindo professores de Direito Civil de todo o Brasil. O enunciado da 14ª proposição, a respeito do art. 2.028, foi o seguinte: “A partir da vigência do novo Código Civil, o prazo prescricional das ações de reparação de danos que não houver atingido a metade do tempo previsto no Código Civil de 1916 fluirá por inteiro, nos termos da nova lei (art. 206)” (autor da proposta: Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino).
95 Miguel Reale, O Projeto de Código Civil. Situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo, Saraiva, 1986, p. 12.
96Op. cit., p. 9.

Comentários
2 por enquanto (insira o seu)
Senhores,Muito importante o texto sobre R. S. No caso da saúde, é importante a teoria da res ipsa loquitur, pois provar algo contra médico / clínica é quase impossível.No caso da educação, creio que o CDC é plenamente viável, pois a relação aluno X escola, não deixa de ser uma relação de consumo.Parabéns,Armando
Enviado por Armando do Prado em: Monday, January.28.2008 @ 10:03am #5677
Ler os trabalhos do Prof. Facchini é sempre altamente enriquecedor, não só pela carga de profundo conhecimento como pela didática com que são elaborados. Gostaria apenas de atentar para as notas de rodape, que, certamente por um lapso, passa da 65 para 70.Grata pela atenção.Eliese Almeida
Enviado por Eliese Aparecida Lopes Rodrigues de Almeida em: Sunday, February.10.2008 @ 16:29pm #6227
function form_Validator(form)
{
if (form.name.value == "")
{
alert("Por favor, insira seu nome.");
form.name.focus();
return (false);
}
if (form.message.value == "")
{
alert("Por favor, insira sua mensagem.");
form.message.focus();
return (false);
}

return (true);
}
//-->


Insira seu comentário:
Nome completo:
Comentário:


Nota: Reservamo-nos o direito de excluir comentários ofensivos ou impróprios.
653

Sem comentários: