terça-feira, 3 de junho de 2008

DIREITO FINANCEIRO E FISCAL - RENDIMENTOS ILICITOS

FACULDADE DE DIREITO DE LISBOA
DIREITO FINANCEIRO E FISCAL
2006/2007










A TRIBUTAÇÃO DE RENDIMENTOS ILÍCITOS












Pedro Malaquias
15096
Índice
I - Introdução. 2
II – Notas Gerais. 3
Rendimentos ilícitos: o que são?. 3
Rendimentos ilícitos: tributar ou não tributar?. 3
A ilicitude relativa e a ilicitude absoluta. 4
III - A tributação de rendimentos ilícitos em Portugal. 6
Enquadramento legal 6
A capacidade tributária como requisito prévio. 7
A necessidade de inserção numa categoria de rendimentos. 7
A possibilidade de dedução dos custos. 8
IV – A situação no exterior. 11
A situação nos EUA: o caso United States v. Sullivan (1927) 11
Idem: o caso James v. United States (1961) 11
A situação nas Comunidades: introdução. 12
Idem: o caso Mol 12
Idem: o caso Happy Family. 13
Idem: o caso Coffeeshop “Siberië” 14
Idem: apreciação crítica. 15
V - Conclusão. 17
VI - Bibliografia. 18




I - Introdução
Com o seguinte estudo, realizado no âmbito da cadeira de Direito Financeiro e Fiscal, pretendem analisar-se alguns dos problemas suscitados pela tributação de rendimentos obtidos através de actividades ilícitas.

Assim, começar-se-á por uma breve explicação sobre o que se consideram rendimentos ilícitos e sobre às razões que justificam a tributação destes rendimentos. Posteriormente, passar-se-á para o enquadramento da questão no ordenamento jurídico nacional. Por fim, será analisada a situação noutros ordenamentos jurídicos e serão comentados alguns casos.


II – Notas Gerais
Rendimentos ilícitos: o que são?
Por rendimentos ilícitos, entendem-se todos os rendimentos obtidos através da violação de preceitos legais de carácter imperativo. Não está em causa o carácter moral (ou antiético) do acto que dá origem aos rendimentos, já que tal é, do ponto de vista jurídico, totalmente irrelevante. Tomam-se em consideração apenas os actos ilícitos.

Esta ilicitude poderá resultar da violação de diversas disposições, nos diversos ramos do ordenamento jurídico. Assim, a ilicitude poderá ser uma ilicitude civil (exemplo: a celebração de um negócio jurídico nulo), uma ilicitude contra-ordenacional (exemplo: a prática de uma profissão sem a necessária licença) ou uma ilicitude criminal (exemplo: o tráfico de droga).

Rendimentos ilícitos: tributar ou não tributar?
A tributação de rendimentos provenientes de actividades ilícitas apresenta complicados problemas quanto à sua justificação, surgindo eles no plano doutrinal, sociológico e moral.

Apesar de, no nosso entendimento, ser inequívoca a necessidade desta tributação, não é difícil apresentar argumentos que apontem em sentido contrário, podendo este motivo explicar a reacção negativa, ocorrida em alguns meios, a partir do momento em que se tornou evidente a intenção de ser incluída, na Lei Geral Tributária, uma disposição, na qual estivesse prevista a tributação de ganhos obtidos de forma ilegal.

Alguns autores defenderam que o confisco destes rendimentos seria a solução que mais sentido tem. Contudo, como observa Saldanha Sanches, “a experiência demonstra que a solução possível é a tributação de tais ganhos”[1].

Ao mesmo tempo, pode parecer que a tributação de rendimentos ilícitos torna o Estado “cúmplice interessado”, o que levaria ao surgimento de uma contradição valorativa: por um lado, são estabelecidos tipos legais de crimes ou de contra-ordenações, sujeitos a determinadas sanções, mas, ao mesmo tempo, permite-se a tributação dos rendimentos provenientes de comportamentos que normas legais pretendem prevenir, obtendo o Estado proveito de actividades ilícitas.

Este argumento não parece ser aceitável. A tributação de ganhos obtidos ilicitamente não torna as actividades de que esses ganhos resultam lícitas. O Estado continua a censurar tais actividades e a punir os seus autores. Porém, a função do Direito Fiscal e dos impostos não é uma função punitiva. O que se pretende é que, caso exista capacidade contributiva, sejam pagos impostos.

Afastado este argumento, não é difícil vislumbrar na tributação de rendimentos ilegais uma concretização do Princípio (constitucional) da Igualdade, já que optando pela não tributação destes rendimentos, duas situações que, do ponto de vista fiscal, são semelhantes, seriam tratadas de forma totalmente oposta, concedendo-se, desta forma, um privilégio fiscal a um comportamento reprovável. É, assim, o próprio Princípio da Igualdade Tributária que impõe a tributação dos rendimentos ilícitos.

A ilicitude relativa e a ilicitude absoluta
A jurisprudência comunitária (cf. Capítulo respectivo) tem vindo, no que diz respeito à tributação de ganhos ilícitos, a distinguir, no âmbito dos rendimentos conseguidos através de ilícitos penais, entre dois tipos de situações diferentes:
as situações de ilícito penal absoluto (exemplo: importação de moeda falsa, prostituição de menores, tráfico de estupefacientes);
as situações de ilícito penal relativo (exemplo: transmissão de certos bens sem a necessária autorização legal);

Nas situações de ilícito criminal absoluto, foi consagrada uma proibição total de transacção dos referidos bens, enquanto que nas situações de ilícito criminal relativo, a proibição é meramente parcial, não sendo a natureza dos bens a causa do impedimento.

De acordo com esta corrente jurisprudencial (adoptada, posteriormente, por parte da doutrina), estão excluídos de “tributação os actos ou negócios colocados fora do circuito económico, que não podem ser senão absolutamente nulos”[2], só podendo ser tributados os rendimentos provenientes de ilícitos penais relativos.

Para os autores que defendem esta tese, o artigo 10.º da Lei Geral Tributária não toma em conta os rendimentos resultantes de ilícitos penais absolutos. Segundo Paulo Marques, “a configuração da relação de imposto como uma relação jurídica, isto é, de direito, e não fundada somente no poder, exigirá como pano de fundo uma espécie de moralidade tributária, ainda que com a aparência formal de uma cega neutralidade”[3].

Apesar de a questão em causa colocar bastantes interrogações, temos muitas dúvidas quanto à necessidade desta distinção. A neutralidade tributária não pode ser apenas umas aparência formal, devendo ser algo real. Na nossa opinião, tudo depende do preenchimento dos pressupostos das normas de incidência.

Ainda assim, parece-nos que esta é uma questão que carece de concretização legal, cabendo ao legislador nacional a escolha do que deve ser tributado.

III - A tributação de rendimentos ilícitos em Portugal
Enquadramento legal
A tributação dos rendimentos resultantes de actividades ilícitas é um traço comum aos sistemas fiscais da maioria dos Estados, ainda que nem sempre tal esteja expresso na lei.

Actualmente, não se colocam dúvidas, no nosso ordenamento jurídico, quanto à admissibilidade da tributação de rendimentos provenientes de actos ilícitos, sendo várias as disposições que a contemplam:
Artigo 10.º da Lei Geral Tributária: “O carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão de bens não obsta à sua tributação quando esses actos preencham os pressupostos das normas de incidência aplicáveis”.
Artigo 1.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares: “O imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) incide sobre o valor anual dos rendimentos das categorias seguintes, mesmo quando provenientes de actos ilícitos…”.
Artigo 1.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas: “O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo quando provenientes de actos ilícitos, no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, nos termos deste Código”.

O Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado não faz qualquer referência à tributação dos actos ilícitos, mas esta tributação continua assegurada pela previsão constante do artigo 10.º da LGT.

De seguida, será analisada a forma pela qual essa tributação é realizada, fornecendo-se especial atenção aos problemas resultantes da concepção cedular do IRS.

A capacidade tributária como requisito prévio
Como foi referido, não se pretende com a tributação de rendimentos ilegais aplicar uma sanção patrimonial a qualquer tipo de comportamentos. Não estamos, neste domínio, perante uma multa, coima ou algo semelhante. “O que se pretende com a tributação de actividades ilícitas é colectar a capacidade contributiva detectada”[4]. Só devem ficar sujeitos a tributação os que podem pagar.

Não sendo afastada nenhuma das consequências nefastas da prática do acto ilícito, pode dar-se o caso de serem retirados ao autor todos os benefícios económicos obtidos. A isto se junta a existência de um dever de indemnização dos danos causados [os rendimentos obtidos pelo lesado, decorrente dessa indemnização, são também tributados – artigo 9.º/1 b) do CIRS] e os artigos 109.º e 110.º do Código Penal (bem como de normas idênticas, em regimes especiais). Assim, para haver tributação, torna-se necessário que o negócio produza os seus efeitos económicos e que dele resulte algum benefício para o seu autor.

Desta forma, só haverá tributação no caso de ocorrer um efectivo acréscimo no património do autor do acto ilícito.

A necessidade de inserção numa categoria de rendimentos
O artigo 10.º da Lei Geral Tributária refere expressamente a necessidade dos rendimentos preencherem os pressupostos das normas de incidência tributária. É, portanto, necessário que os rendimentos possam ser subsumidos às regras de incidência real, não sendo ampliada a actual incidência do IRS.

Não é criada uma nova categoria de rendimentos, sendo apenas clarificado o sentido e o alcance das normas de incidência das várias categorias já existentes, isto é, não se procede, desta forma, à criação de uma categoria para os rendimentos dos actos ilícitos. Assim, não será tributável um rendimento ilícito que não possa ser inserido numa das categorias de rendimentos.

A concepção cedular do nosso IRS poderá gerar, neste domínio, alguns problemas. Contudo, o artigo 9.º/1, alínea d) do CIRS, ao prever os “acréscimos patrimoniais não justificados” como incrementos patrimoniais, aumenta a concepção de rendimento para o IRS, parecendo abdicar dos requisitos formais que acompanham a tributação cedular. Tal é feito através de uma remissão para o modo como são determinados tais acréscimos, os quais são tributados nos termos dos artigos 87.º, 88.º e 89.º-A da Lei Geral Tributária.

Estes artigos contêm regras de quantificação para esses acréscimos patrimoniais não justificados, atribuindo poderes para utilizar métodos indirectos de avaliação à Administração Fiscal. Nesta sede, releva especialmente o art. 89.º-A que, além de definir uma situação que permite uma avaliação indirecta da matéria colectável, a qual parece ser a mais normal em caso de rendimentos ilícitos, cataloga diversas manifestações exteriores de riqueza, as quais permitem presumir rendimentos, invertendo o ónus da prova, cabendo ao contribuinte demonstrar que as presunções estão erradas.

A possibilidade de dedução dos custos
Nos casos em que a tributação dos rendimentos ilícitos é realizada através do artigo 9.º/1 d) do CIRS e correspondente remissão para a Lei Geral Tributária, é a própria lei que, ao apontar a forma através da qual se determina, por métodos indirectos, a matéria tributável, impõe que sejam tidos em conta “os custos presumidos em função das condições concretas do exercício da actividade”. Não sendo feita qualquer referência ao carácter lícito ou ilícito das despesas, não vemos qualquer razão para que se possam colocar dúvidas sobre a natureza dos custos que são tidos em conta.

Contudo, nos casos em que os rendimentos provenientes de actos ilícitos se possam inserir numa das categorias de rendimentos, a tributação deve ser feita de forma “normal”, isto é, os rendimentos devem ser tributados “normalmente”, sem atenção à sua ilicitude, ou seja, como qualquer outro rendimento, já que a tributação é valorativamente neutra.

Deste pensamento (e, forçosamente, da distinção necessária entre imposto e sanção patrimonial) decorre que não só os ganhos do contribuinte deverão ser levados em conta, devendo atender-se, igualmente, aos custos que o sujeito suportou de forma a obtê-los.

Este ponto é, contudo, controverso, havendo mesmo indícios legais que parecem apontar em sentido contrário. O artigo 23.º/2 do CIRC determina que “não são aceites como custos as despesas ilícitas, designadamente as que decorram de comportamentos que fundadamente indiciem a violação da legislação penal portuguesa (...)”. Semelhante disposição se encontra em sede de IRS, no artigo 33.º/7 do CIRS.

Estes artigos devem, contudo, considerar-se revogados pelo artigo 10.º da Lei Geral Tributária[5]. De facto, entendendo-se que estes artigos se mantêm em vigor, está a conferir-se um carácter sancionatório ao imposto, já que não são tomados em conta factos que relevam para o apuramento do rendimento tributável.

Obviamente, não se está a pensar aqui nas despesas resultantes do pagamento de coimas e sanções criminais. Essas despesas não são um custo necessário ao prosseguimento da actividade, constituindo, na realidade, uma sanção pelo acto ilícito praticado. Considerando essas despesas como dedutíveis, estaríamos perante uma “comparticipação” fiscal (nunca desejável) do Estado no pagamento da coima[6]. Há, por isso, um regime especial que se aplica a estas despesas.

Os custos que relevam neste ponto são os custos realmente necessários para a obtenção do rendimento. No caso de um site ilegal de apostas, pensam-se nos custos relativos ao alojamento, nos pagamentos ao web designer, etc; no caso de um “produtor caseiro de drogas leves”, pensa-se, por exemplo, nos custos decorrentes da aquisição de sementes da planta cannabis sativa. Exemplos como estes não são difíceis de imaginar.

Sendo estes rendimentos tributados como quaisquer outros, parece que os custos referidos em segundo lugar (ao contrário das despesas resultantes de multas ou de coimas) devem poder ser deduzidos, não havendo qualquer motivo lógico (ou, pelo menos, qualquer motivo que não conflitue com o carácter não sancionatório dos impostos) que o impeça. Para a possibilidade de uma verdadeira tributação destes rendimentos, sem por em causa a natureza do imposto, esta parece-nos a única solução aceitável.



IV – A situação no exterior
A situação nos EUA: o caso United States v. Sullivan (1927)
Nos Estados Unidos da América, a tributação dos rendimentos obtidos de forma ilegal foi resolvida, pelo Supremo Tribunal, em 1927, no caso United States v. Sullivan, 274 U.S. 259, no qual se discutia um recurso de um traficante de bebidas alcoólicas, na época da “Lei Seca”.

O contribuinte tinha já sido condenado pela prática do crime, mas não tinha pago impostos sobre os rendimentos obtidos através desta ilicitude. Como razão da não declaração destes rendimentos, alegava que a declaração seria uma auto-incriminação (invocação da 5ª emenda). No seu entender, esta possibilidade de incriminação justificava a não declaração dos rendimentos.

O Supremo decidiu que não havia razão para a invocação da 5ª emenda, já que esta não autorizava que o contribuinte não pagasse impostos sobre os seus rendimentos apenas porque estes eram resultado de uma actividade ilícita. Assim, não se vislumbrava nenhuma razão que justificasse que uma actividade comercial ilícita ficasse isenta do pagamento de impostos que têm que ser pagos no desempenho de actividades legais.

Idem: o caso James v. United States (1961)
Em 1961, o Supremo Tribunal Federal dos EUA foi novamente chamado a pronunciar-se sobre este assunto, no caso James v. United States, 366 U.S. 213.

Neste caso, o contribuinte tinha desviado, de forma fraudulenta, uma larga quantia monetária, não tendo declarado os rendimentos que obteve através desse desvio; o tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre se as quantias obtidas desta forma estavam, ou não, sujeitas a tributação e se James deveria ser condenado por evasão fiscal.

Neste caso, o tribunal decidiu que os rendimentos obtidos por James estavam sujeitos a tributação: para o justificar, referiu a diferença entre o Tax Act de 1913 e a sua versão de 1916 (enquanto no primeiro caso, os rendimentos previstos eram rendimentos provenientes de actividades lícitas, com a emenda de 1916, deixou de fazer-se qualquer referência à (i)licitude dos rendimentos). Tal indicava que o Congresso não pretendia tratar os contribuintes que obtém rendimentos de fontes ilícitas de forma mais favorável. Foi afirmado ainda o carácter moralmente neutro dos imposto: “Moral turpitude is not a touchstone of taxability. The question, rather, is whether the taxpayer in fact received a statutory gain, profit or benefit”.

A situação nas Comunidades: introdução
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias foi já, por diversas vezes, chamado a pronunciar-se, através de questões prejudiciais submetidas pelos tribunais dos Estados membros, sobre a admissibilidade, ou não, da tributação de ganhos ilícitos, mais propriamente, em casos de impostos de consumo (IVA).

As decisões do TJ não foram sempre no mesmo sentido, explicando-se tal situação pela, já referida, opção pela divisão entre ganhos provenientes de ilicitudes relativas e ganhos provenientes de ilicitudes absolutas.

De seguida serão analisados os casos que consideramos mais interessantes, todos eles relacionados com o tráfico de droga: o Caso 269/86 (Mol), o caso 289/86 (Happy Family) e o caso C-158/98 (Coffeeshop Siberië).

Idem: o caso Mol[7]
No caso 269/86 (Mol), colocava-se a questão de se saber se as transacções ilegais de mercadorias que não são susceptíveis de ser colocadas no comércio, nem integradas no circuito económico poderiam estar sujeitas a IVA, tendo em conta as “directivas relativas à harmonização das legislações dos Estados membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios”.

O Sr. Mol era traficante de anfetaminas, produto que não faz parte do “circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes”. Contudo, a administração fiscal neerlandesa entendeu que o comércio de anfetaminas estava sujeito ao imposto sobre o valor de negócios. W. Mol entendeu que não, já que estas transacções, pelo seu carácter ilegal, não estavam sujeitas a este imposto.

O TJ observou que o maior problema que se apresentava neste caso era o da tributação das transmissões de bens, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo. Estando os produtos em causa sujeitos a uma proibição total de importação e comercialização na Comunidade, a sua comercialização apenas poderia dar lugar a medidas repressivas, estando impedida à constituição de uma dívida fiscal em matéria de imposto sobre o volume de negócios.

Para o TJ, apesar de, à primeira vista, o Princípio da Neutralidade se opor a esta distinção, tal não poderia ser tido em conta em relação à transacção de produtos como os estupefacientes, já que nesse sector não há concorrência possível entre um sector económico lícito e um sector económico ilícito. Afastava-se, desta forma, a tributação de IVA na transacção ilegal de anfetaminas (e similares) no interior de um Estado membro.

Idem: o caso Happy Family[8]
No caso 289/86 (Happy Family), foi dada mais uma vez uma resposta negativa quanto à possibilidade dos impostos de consumo que incidem sobre as mercadorias, incidirem sobre operações de tráfico de droga.

A Happy Family era uma associação social e cultural que geria um centro de juventude. Entre outras coisas, permitia aos seus visitantes a compra de haxixe. As autoridades fiscais entenderam que nestas transacções deveria ser cobrado IVA, já que apesar da existência de uma proibição relativa ao comércio deste produto, a investigação deste crime assume uma relevância secundária.

A situação era diferente da ocorrida no caso “Mol”, já que aqui estávamos perante um produto à base de cânhamo (um estupefaciente considerado menos prejudicial à saúde do que as anfetaminas), ao qual as autoridades não conferiam uma baixa prioridade à investigação destes casos.

O TJ entendeu que as duas situações se podiam equiparar. Continuávamos perante um ilícito absoluto, independentemente do facto de as autoridades do Estado membro, “no âmbito de uma política de repressão selectiva”, não actuarem penalmente contra o pequeno comércio retalhista destes estupefacientes. Desta forma, foi igualmente afastada neste caso a tributação de IVA sobre produtos ilícitos.

Idem: o caso Coffeeshop “Siberië”[9]
Neste acórdão, de 29 de Junho de 1999, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (processo C-158/98), pronunciou-se sobre a legalidade da tributação de IVA num caso de aluguer de uma mesa para venda de estupefacientes.

A Coffeeshop Siberië é um estabelecimento sito em Amesterdão, no qual se vendem e se consomem drogas leves, de forma legal, à luz da legislação holandesa. Contudo, esta empresa alugou uma mesa, de forma ilegal, a um traficante de haxixe, dirigindo para este traficante alguns dos seus clientes.

Não tendo a Siberië pago o IVA sobre o aluguer da mesa, a administração fiscal emitiu-lhe uma liquidação adicional. A Siberië recorreu da decisão, tendo em conta as prévias decisões do TJ neste domínio. Contudo, foi considerado pelo tribunal de recurso que a situação era diferente (nomeadamente, da do caso Happy Family), já que, aqui, estávamos perante o aluguer de uma mesa (apesar do fim deste aluguer) que, por si, não é objecto de uma proibição legal. Assim, apesar de este acto dever ser reprimido (cumplicidade na prossecução de um acto ilegal), a sua qualificação penal não obsta a que se esteja perante uma prestação de serviços, na acepção da regulamentação comunitária.

O TJ, em análise de questão prejudicial, decidiu que a locação em causa constituía, por regra, uma actividade económica; o facto de as actividades exercidas no objecto de locação serem penalmente repreensíveis, podendo tornar a locação ilícita é irrelevante. Tal não altera o carácter económico da locação, não impedido a concorrência neste sector. Proibir esta tributação seria violar o princípio da neutralidade fiscal.

Decidia bem o Tribunal Neerlandês, admitindo-se, pela primeira vez, a tributação de ganhos ilícitos respeitantes a operações relacionadas com estupefacientes.

Idem: apreciação crítica
A actuação do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias não nos parece ser a mais correcta. Na realidade, parece que a actuação deste órgão jurisdicional se pauta por uma certa incoerência. Como foi anteriormente referido, não considerámos necessária a divisão entre ilicitudes criminais relativas e ilicitudes criminais absolutas.

Considerando o Princípio da Neutralidade Fiscal como um dos pilares básicos do sistema tributário europeu, parece-nos que a decisão tomada no caso Coffeeshop Siberië é a mais acertada, devendo optar-se por uma decisão semelhante nos outros dois casos, sob pena de se tratar de forma diferente várias situações equivalentes.

Esta incoerência nota-se especialmente ao analisar os dois últimos casos. De facto, ao contrapor o caso 289/86 (Happy Family) e o caso C-158/98 (Coffeeshop Siberië), não conseguimos vislumbrar nenhuma diferença que seja suficientemente relevante. Parece-nos extremamente discutível a necessidade de tratamento diferenciado destes dois casos, já que, em ambos, se tem em conta uma conduta vedada (que acaba por ser a mesma). Será que existe, em termos fiscais, alguma diferença em relação ao IVA incidir sobre operações de tráfico de droga ou operações através das quais se permite ou colabora com o tráfico de droga?

Na nossa opinião, a resposta a esta pergunta tem que ser negativa. Criar graus de ilicitude e tributar ou não tributar de acordo com esses graus, além de não parecer ter qualquer razão de ser, vem a criar uma incerteza sobre o que pode ou não ser objecto de tributação, algo que não consideramos aceitável. Esperemos que, de futuro, o TJ altere a sua posição, de forma a acabar com esta desnecessária distinção.
V - Conclusão
A tributação dos rendimentos provenientes de actos ilícitos é um traço comum aos diversos sistemas fiscais desenvolvidos, não havendo razão que justifique a não tributação destes rendimentos.

A forma como esta tributação é feita no ordenamento jurídico português necessita, contudo, de um maior desenvolvimento. O art. 10.º da Lei Geral Tributária não é suficiente para regular esta matéria e a inexistência de uma categoria residual no CIRS, tal como proposta pela Comissão Silva Lopes não ajuda a resolver os problemas que possam surgir neste domínio. A isto se junta a existência de normas no CIRS e no CIRC, que parecem contrariar a tributação de rendimentos provenientes de actos ilícitos, contrariando o preceito da LGT. Torna-se, desta forma, necessária uma verdadeira clarificação desta situação ao invés da quase inércia do legislador nacional.

A concretização legal necessário não deverá, no entanto, receber as teses que diferenciam os rendimentos provenientes de ilícitos criminais relativos e de ilícitos criminais absolutos. Como foi demonstrado, não há, na nossa opinião, qualquer razão que justifique esta alteração.

A não tributação de ganhos obtidos de forma ilícita ou a sua divisão, excluindo da tributação uma grande “fatia” dos rendimentos ilegais, não parecem constituir a solução mais correcta. Esperemos que esta seja também a opinião do legislador.


Lisboa, 23 de Maio de 2007
Pedro Malaquias

VI - Bibliografia
Para a elaboração deste estudo foram consultadas as seguintes obras:
· António Lima Guerreiro, Lei geral tributária: anotada, 2000.
Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues, Jorge Lopes de Sousa, Lei geral tributária: comentada e anotada, 2003.
Diogo Leite de Campos, Problemas Fundamentais do Direito Tributário, 1999.
José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2006.
· Nuno Sá Gomes, Notas sobre o problema da legitimidade e natureza da tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios in Comemoração do XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, II, 1983.
· Rui Correia de Sousa, Lei geral tributária anotada e comentada e legislação complementar, 2000.
Rui Duarte Morais, Sobre o IRS, 2006.
Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 2002.

Foram, igualmente, consultados os seguintes artigos:
Paulo Marques, “Ilicitude e Imposto: um subsídio para a moralidade tributária”, Revista de Doutrina Tributária, 1º Trimestre de 2002.
Saldanha Sanches, “O conceito de rendimento no IRS”, Fiscalidade, 7-8, 2001, 34-61.
Saldanha Sanches, “O contencioso tributário como contencioso de plena jurisdição”, Fiscalidade, 7-8, 2001, 63-71.
[1] SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, (2002)
[2] António LIMA GUERREIRO, Lei geral tributária: anotada, (2000).
[3] PAULO MARQUES, “Ilicitude e Imposto: um subsídio para a moralidade tributária”, Revista de Doutrina Tributária, 1º Trimestre de 2002, (2002).

[4] Nuno SÁ GOMES, “Notas sobre o problema da legitimidade e natureza da tributação das actividades ilícitas e dos impostos proibitivos, sancionatórios e confiscatórios”, Comemoração do XX Aniversário do Centro de Estudos Fiscais, II, (1983).
[5] No mesmo sentido, Diogo LEITE de CAMPOS, BENJAMIM Silva RODRIGUES e Jorge LOPES de SOUSA, “Lei Geral Tributária: comentada e anotada”, (2003).
[6] Cf. LEITE de CAMPOS, “Problemas Fundamentais do Direito Tributário”, (1999); RUI Duarte MORAIS, “Sobre o IRS”, (2006).
[7] http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61986J0269:PT:HTML
[8] http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61986J0289:PT:HTML
[9] http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61998J0158:PT:HTML

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