segunda-feira, 4 de maio de 2009

CASO PRATICO PROC CIVIL 61

14, 75 valores RP

Caso Prático nº 61

G. propõe acção de divórcio contra H., pedindo que seja decretado divórcio com culpa exclusiva de H., com fundamento na violação do dever de fidelidade. H. contesta e pede também o divórcio, com culpa exclusiva de G., alegando que foi G. quem cometeu adultério. Quid iuris?












Petição Inicial

Como descrito acima, G formulou um pedido de divórcio com culpa exclusiva do cônjuge contra H (pedido), com fundamento na violação do dever de fidelidade (causa de pedir), pretensão esta que encontra base legal no Livro de Direito da Família, consagrado no Código Civil Português. Pese embora esteja em vigor a Lei 61/2008 de 31 de Outubro, nova lei que alterou o regime do divórcio e que levaria a uma resolução diversa, a análise deste caso prático terá como pano de fundo o Código Civil com a última alteração de 2007 (DL 324/2007, de 28-09), cujo art.1779º prevê, como fundamento de um pedido de divórcio, a violação culposa de deveres conjugais, de entre os quais o dever de fidelidade (art.1672º C.C).

Estamos, então, perante uma acção declarativa constitutiva, de acordo com o art.4º, nº2, al.c), uma vez que há a extinção de uma situação jurídica, que se consubstancia no estado civil de casado, com processo especial regulado nos arts.1407º e 1408º (art.460º, nº2, primeira parte). Esta forma de processo tem, como particularidades, o seguinte:

Tentativa de conciliação, depois de apresentada a petição inicial (art.467º, nº1, al.e)), onde o juiz tentará a conciliação do casal ou, caso não seja possível, a obtenção de acordo para divórcio ou separação por mútuo consentimento (art.1407º, nº1);
Acordo quanto aos alimentos, à regulação do poder paternal (agora responsabilidade parental) dos filhos e à utilização da casa de morada de família, havendo sido frustrada a tentativa referida em 2. (art.1408º, nº2);
Possibilidade de contestação, que seguirá os termos do processo ordinário (art.1408º).

Sendo uma acção sobre o estado das pessoas, rege o disposto no nº1 do art.312º quanto ao valor da causa: valor da alçada da relação mais 0,01€.

Contestação

Em resposta, H. formula uma pretensão com o mesmo teor da de G., requerendo, então, uma acção de divórcio com culpa exclusiva, em consequência de adultério cometido por G. Poderá fazê-lo seguindo o disposto nos arts.486º e ss. Podemos identificar aqui um pedido autónomo e independente do primeiro, que traduz uma pretensão material autónoma, o que nos leva a concluir pela existência de um pedido reconvencional, nos termos do art.501º. Assim, de acordo com o Prof. Teixeira de Sousa, estamos perante uma cumulação objectiva sucessiva, já que ao objecto inicial da acção é cumulado, por iniciativa de uma das partes, um outro objecto. Neste caso, a iniciativa partiu do réu, parte passiva, sob a forma de pedido reconvencional.

A questão que se levanta em primeiro lugar é a de saber se podemos considerar que, na reconvenção, pode haver uma impugnação tácita dos factos alegados pelo autor na petição inicial em geral e neste caso em particular. Isto porque, e é importante frisar, o pedido reconvencional tem carácter facultativo e não está dependente da formulação de uma defesa por impugnação ou por excepção. Segundo António Machado e Paulo Alves Pimenta, “o réu pode reconvir ainda que não se defenda do pedido anterior.

De acordo com o art.490º, nº1, o réu deve tomar uma posição definida sobre os factos articulados na petição. Nas palavras do Professor Remédio Marques, “o réu deve tomar uma posição clara, frontal e concludente”, sob pena de os factos serem admitidos por acordo (nº2, primeira parte). No entanto, na segunda parte deste nº2, são identificadas três excepções:

Oposição com a defesa considerada no seu conjunto;
Inadmissibilidade de confissão, como é o caso dos direitos indisponíveis (art.354º C.C.);
Prova por documento escrito.

Assim, mesmo perante a apresentação de reconvenção, o réu terá o ónus de impugnação dos factos alegados pelo autor, salvas as excepções. Se não o fizer, serão admitidos por acordo e o autor ficará dispensado de prova uma vez que nunca chegou a haver factos controvertidos.

No entanto, a questão suscitada tem um interesse prático evidente se se admitir a possibilidade de uma impugnação tácita, implícita no teor do pedido reconvencional apresentado pelo réu, em resposta à pretensão do autor, tudo resultando da interpretação da defesa apresentada. No caso em concreto, poderia haver algumas dúvidas interpretativas no que diz respeito à culpa. Isto porque esta, no que tange à acção de divórcio, tanto pode ser exclusiva como conjunta (art.1787º, nº1 C.C.), resultando daí diferentes consequências jurídicas para os ex-cônjuges, nomeadamente no que toca à casa de morada de família e à pensão de alimentos. Ora, tendo o réu o ónus da impugnação e nada dizendo, poderia haver uma admissão de culpa por parte de H., o que conduziria ou à atribuição de culpa exclusiva ou, então, a uma distribuição de culpas pelos sujeitos processuais, mesmo tendo este formulado a reconvenção, alegando que G. teria, também, cometido adultério.

Esta solução seria de admitir se H. não requeresse o divórcio também com base em culpa exclusiva do autor, “alegando que foi G. quem cometeu adultério”. Daqui resulta uma clara contradição com o pedido formulado pelo autor na petição inicial, o que nos leva a concluir pela negação dos factos articulados, seguida da apresentação de um novo pedido na contestação. Decisivo é o disposto no art.490º, nº2, segunda parte, no que diz respeito à primeira excepção formulada. Havendo, então, esta oposição dos factos com a defesa considerada no seu conjunto, não se terão por admitidos por acordo. Assim, podemos defender a possibilidade de uma impugnação tácita, quando tal resulte inequivocamente da contraposição dos factos articulados na petição e do pedido reconvencional do autor, que terá de seguir o predisposto no art.467º, nº1, al. c) e d) (art.501º).

Dito isto, torna-se necessário aferir os requisitos da reconvenção se têm por verificados. Antes, porém, importa tecer uma breve consideração no que diz respeito ao valor da causa. Fora referido acima que este se afere nos termos do art.312º, no que toca ao pedido do autor. Agora, havendo reconvenção, opera o nº2 do art.308º, segundo o qual o valor do pedido formulado pelo réu só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, nos termos do disposto no nº4 de artigo 447º - A. Não restam dúvidas de que o pedido reconvencional é igual ao formulado pelo autor, sendo que o valor não se soma.

Partindo, então, agora, para as condições de admissibilidade da reconvenção, podemos elencar três, para além dos pressupostos gerais (art.501ºe art.467º (art.193º)):

Materiais ou objectivas - conexão com o objecto do processo – art.274º, nº2;
Processuais:
a. Competência absoluta do tribunal – art.98º;
b. Forma do processo – art.274º, nº3.
Procedimentais – exclusão no processo sumaríssimo (art.794º,nº1).

No que concerne aos requisitos materiais, podemos verificar que o nosso caso prático preenche a alínea c) do art.274º, nº2, uma vez que o efeito jurídico que o réu pretende obter, divórcio com culpa exclusiva do cônjuge, é o mesmo do do autor. Passando para os processuais, como o pedido é igual, a questão da competência absoluta não levanta quaisquer problemas, respeitando-se o disposto no art.98º, nº1. Já a forma de processo apresenta, apenas, uma particularidade. Como referido acima, estamos perante uma forma de processo especial que segue os termos do processo ordinário se houver contestação (art.1407º e 1408º,1). De acordo com o Prof. Remédio Marques, esta hipótese prevista no art.1408º é possível uma vez que é no seguimento de um articulado que a forma de processo muda, não em consequência da própria acção em si mesma. No entanto, e no seguimento da resolução em aula prática do Dr. Rui Pinto, é possível a defesa de que não há aqui uma mudança de formas de processo. O processo especial mantém-se, o que não levanta problemas no que toca a este requisito, seguindo, apenas, algumas particularidades do processo ordinário. Finalmente, o requisito procedimental também não suscita problemas, em virtude de não se estar perante uma forma de processo comum sumaríssimo.

Haveria possibilidade de réplica, nos termos do art.502º, nº1.

Uma última questão se coloca com pertinência. De acordo com o regime, não já em vigor, do divórcio, a culpa pode ser distribuída por ambos sujeitos processuais se o juiz concluir que não há fundamento para o divórcio com culpa exclusiva de apenas um dos cônjuges. Agora, poderá o juiz fazer proceder os dois pedidos? Ou procedendo o do autor, terá de improceder o do réu, ou vice-versa? É que, apesar de o pedido ser igual, em termos substantivos os efeitos são diferentes e não é irrelevante se a culpa exclusiva é determinada a favor de G. ou de H. O mesmo se dizendo em relação à culpa exclusiva ou culpa conjunta. O Direito Material apresenta consequências distintas para ambas as situações e que, por integrarem uma das áreas mais sensíveis do Direito, merecem uma atenção particular.

No seguimento da resolução em aula prática, podemos, então, concluir que, na possibilidade de repartição de culpa, o juiz não poderá fazer proceder os dois pedidos, dando prioridade à procedência do pedido do autor. O juiz, em respeito pelo princípio da oficiosidade, terá de considerar todos os factos que estão no processo para efeitos do pedido do autor. Tendo ambos os pedidos fundamento, prevalecerá o de G.


Nota breve sobre a Lei 61/2008, 31-10

Havendo sido excluída a culpa do regime do divórcio português, a resolução desta hipótese teria contornos diferentes. Ou a violação dos deveres conjugais se consideraria como fundamento para o divórcio com base na ruptura de vida em comum, preenchendo a alínea c) do novo art.1781º ou, então, ambos os pedidos, fundados na culpa exclusiva, improcederiam.














Bibliografia

SOUSA, Miguel Teixeira de, O Objecto do Processo Civil, Ano Lectivo de 2003/2004, Sebenta

SOUSA, Miguel Teixeira de, Introdução ao Processo Civil, Lex

MARQUES, J. P. Remédio, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007

FREITAS, Lebre de, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2000

MACHADO, António Montalvão e PIMENTA, Paulo José Reis Alves, O Novo Processo Civil, Almedina, 10ª edição, 2008

Anexo 1 - Tabelas




Divórcio com culpa exclusiva – Violação de dever de fidelidade
Artigos relevantes
Petição Inicial Contestação
Art.1779º C.C.
Art.467º, nº1, al.e) + art.193º
Art.4º, nº2, al.c)
Art.1407º e 1408º (art.460º, nº2)
Art.312º Art.486º
Art.487º + art.490º, nºs 1 e 2
Art.501º + art.467, nº1, c) e d) (art.193º)
Art.312º + art.308º, nº2
Art.274º
Art.98º
Outros:
Art.296º,nº2
Art.489º
Art.502, nº1, segunda parte



Reconvenção
Pressupostos Artigo Consequência
Materiais / Objectivos 274º, nº2 Falta de conexão
Excepção dilatória inominada
Art.493º, nº2 + Art.288º, nº1, al.e)
Absolvição da instância reconvencional
Processuais 1 Competência absoluta do tribunal – art.98º
2 Forma de processo – art.274º, nº3 3 Art.494º, al.a) + art.288+, nº1, al.a)
4 Art.493º, nº2 + art.288º, nº1, al.e) – Excepção dilatória inominada
Procedimental Processo sumaríssimo – art.794º, nº1 Art.493º, nº2 + art.288, nº1, al.e) – Excepção dilatória inominada





Reconvenção vs Excepção Peremptória
Pedido autónomo Pedido intrinsecamente dependente
---------------- Valor da causa – art.308º
Dedução em momento posterior Preclusão – 489º, nº2




Anexo 2 – Acórdãos



Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 08B1380



Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
DIVÓRCIO LITIGIOSO
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
 
Nº do Documento: SJ200805270013802
Data do Acordão: 27-05-2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
 
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA REVISTA.
 
Sumário : No artº 1792º do CC não se visam senão os danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento, que não, outrossim, os com fonte na violação dos deveres conjugais invocada como causa do divórcio, estes a ressarcir segundo as regras gerais da responsabilidade civil, de divórcio litigioso, sim em acção declarativa de condenação, com processo comum.
 
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. a) A 05-07-22 (cfr. carimbo aposto a fls. 3 e art. 267º nº 1 do CPC), AA intentou contra BB, acção declarativa, constitutiva, com processo especial, impetrando, como ressuma de fls. 3 a 5, a dissolução do casamento de ambos, por divórcio, com culpa exclusiva da demandada, alegando, em súmula, factos que, no seu entender, além da separação de facto, consubstanciam violação, grave e reiterada, comprometedora da possibilidade da vida em comum, por banda daquela, dos deveres conjugais de respeito, cooperação e assistência.

b) Frustrada a tentativa de conciliação, contestou a ré, como decorre de fls. 32 a 44, concluindo no sentido da justeza de:
1. Improcedência da acção.
2. Procedência da deduzida reconvenção, a bondade desta repousante na separação de facto e na violação, grave e reiterada, por AA, dos deveres conjugais de respeito, cooperação, coabitação e assistência, comprometedora do supracitado, com consequente decreto do divórcio, com culpa exclusiva do reconvindo e efeitos reportados a Outono/Novembro de 2002.
3. A condenação do autor a pagar-lhe 10.000 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, resultantes do comportamento daquele (art.s 70º e 483º do CC.) e da dissolução do casamento (art. 1792º do CC.).

c) Na réplica oferecida, para além de ter invocado a prescrição dos "factos ocorridos há mais de um ano" bateu-se AA pela improcedência da reconvenção e do formulado pedido indemnizatório.
d) Treplicou BB, sustentando o demérito da defesa exceptiva e como na contestação terminando.
e) No despacho saneador, quanto ao demais tabelar, foi relegado para final o conhecimento da predita excepção peremptória.
f) Seleccionada a matéria de facto considerada como assente e organizada a base instrutória, observado o demais de lei, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, tendo vindo a ser prolatada sentença que:

1. Julgou:
a') A "acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência" absolveu a Ré "do pedido de divórcio contra si deduzido".
b') A "reconvenção parcialmente procedente, por, provada, e em consequência:
Decretou "o divórcio entre o Autor AA e a Ré BB, declarando dissolvido o casamento entre ambos celebrado no dia 12.12.1981, melhor descrito na certidão de fls. 11.", "sem culpa de qualquer dos cônjuges pela dissolução."
c') Improcedente o pedido de indemnização, dele, consequentemente absolvendo AA."

g) Sem êxito apelou a ré/reconvinte, já que o TRC, por acórdão de 07-11-27, confirmou a decisão impugnada.
h) É de tal acórdão que, ainda irresignada, traz revista BB, a qual, nas suas alegações, tirou as seguintes,
CONCLUSÕES:


Nenhum facto provado milita contra a tese da ora recorrente (ré - reconvinte);

A matéria fáctica, dada por assente no Quesito 25º da Base Instrutória, demonstra, à saciedade, que o Autor violou o dever de coabitação;

Com efeito, vem provado que, entre Setembro e Outubro de 2002, o recorrido instalou-se!... numa casa de seus pais;

A violação do dever de coabitação, provado nos autos, traz consigo, inevitavelmente, a violação do dever de cooperação (artigos 1672º e 1674º, do Código Civil);

Ainda com referência à violação do dever de coabitação, plenamente assente, no referente à actuação do recorrido, aos documentos juntos, e presunção, não se pode ignorar o estatuído no artigo 1780º, alínea a) do Código Civil, que imporia ao autor o ónus de provar que a Ré - Reconvinte deu, em síntese, causa ao comportamento, pelo, mesmo assumido, ao abandonar o lar conjugal;

Ora, tal não resulta dos autos, dada a ausência de alegação, por banda do Autor, quer na P.I., quer na Réplica, pois não invocou quaisquer factos, passíveis de destruírem os fundamentos, em apreço, alegados pela Ré, no pedido reconvencional;

Não deixa de chocar, o senso jurídico - comum, que a recorrente tivesse de provar por que deixou o Autor de habitar na casa comum, quando ele próprio não provou, na acção, a culpa da ora recorrente, por tal facto;

E a violação dos deveres conjugais continuou, depois da separação de facto, artigos 1675º, nºs 1 e 2 do Código Civil;

Assim, deve ser decretada a culpa exclusiva, ou pelo menos, maior culpa do recorrido, nos termos do artigo 1787º do Código Civil;
10ª
Deve decretar-se o efeito retroactivo da presente acção de divórcio, a Outubro de 2002, nos termos do artigo 1789º do Código Civil;
11ª
Deve arbitrar-se indemnização, a favor da ora recorrente, e a expensas do recorrido, no montante de 10.000,00 €, ou noutro que se julgue mais ajustado à situação do caso concreto;
12ª
NORMAS VIOLADAS : - Artigos 1672º, 1674º, 1787º, 1789º, 1780º, alínea a), 349º, 351º e 1675º, nºs 1 e 2, todos do Código Civil".
PELO QUE se impõe, dando-se provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido.
i) Não foi a revista contra-alegada.
j) Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Não sendo caso para fazer jogar o disposto nos art.s 722º, nº 2 e 729º nº 3 do CPC, a factualidade que como definitivamente fixada se tem é a que vem dada como assente pelas instâncias, a saber:
"A) O Autor AA e a Ré BB celebraram entre si casamento católico, no dia 12 de Dezembro de 1981, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, da freguesia de S. José, da cidade de Viseu, sem convenção antenupcial (al. A).
B) De tal casamento nasceu a filha CC no dia 7 de Março de 1983, em Pendilhe, Vila Nova de Paiva (al. B).
C) A partir de data indeterminada entre Setembro e Outubro de 2002 o Autor instalou-se numa casa de seus pais, sita na localidade de Pendilhe, Vila Nova de Paiva, onde passou a viver (ques. 25º).
D) Pelo menos desde o início da separação referida em C) o Autor e a Ré não vivem na mesma casa, não dormem na mesma cama, não tomam refeições juntos, sendo que tão pouco a Ré lava a roupa e confecciona as refeições do Autor (ques.s 1º, 2º, 7º e 8º).
E) Pelo menos desde o início da separação referida em C) o Autor não contribuiu designadamente com dinheiro para o sustento da Ré, para o sustento e educação da filha do casal nem para as despesas correntes da casa de morada de família, o que tudo passou a ser feito a expensas únicas da Ré (ques.s 19º, 19º-A e 20º).

III. O DIREITO:
1. a) A violação dos deveres conjugais (art. 1672º do CC) só é causa de divórcio se for culposa (art. 1779º nº 1 do CC).
Incumbe ao autor provar que a violação dos deveres conjugais foi culposa (art. 342º nº 1 do CC) - cfr. Assento nº 5/94, de 26-1-94, in DR. I-A, de 24-3-94, hoje com o valor assinalado pelo art.17º nº 2 do DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, bem como, entre outros autores: Abel Delgado, in "O Divórcio", 2ª Edição, pp. 83 e 84, e Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in "Curso de Direito da Família", 2ª Edição, pp. 617 e segs.
Intentada acção de divórcio com o fundamento a que se reporta o art. 1781º a) - cfr. art. 1782º nº 1 -, ambos do CC, é à parte interessada na declaração de culpa do outro cônjuge que cumpre alegar e provar que o abandono do lar conjugal foi culposo (art.1782º nº 2 do CC) - vide, v.g., acórdão do STJ, de 23-9-99 (revista nº 455/99, in "Sumários" - Edição Anual -, pág. 273.
A saída de casa de um dos cônjuges, sem mais, por si só, não é susceptível de um juízo de censura em que se traduz a culpa.
Não é suficiente o abandono, exigindo-se, ainda, que seja culposo.
"A saída do lar conjugal é um facto neutro, quando são desconhecidas as condições em que ocorreu e a sua finalidade" (acórdão deste Tribunal, de 16-5-2000 (revista nº 287/00-6ª), in "Sumários"- Edição Anual -, pág. 166).
b) Visto o provado (cfr. II. C) e D) ), atento o dissecado em a) que antecede, censura, flagrantemente, não merece a não procedência da acção com fundamento na violação culposa do dever conjugal de coabitação, como assinalado no acórdão impugnado, cuja fundamentação, quanto à questão, acompanhamos (art. 713º nº 5, "ex vi" do art. 726º, ambos do CPC), na esteira do em 1ª instância decidido.
Nem do provado resulta violação culposa dos deveres conjugais de cooperação (art. 1674º do CC) e (ou) assistência (art. 1675º nº 1 do CC), por parte de AA, não olvidado o disposto no nº 2 do último normativo à colação chamado, ao réu cabendo o ónus da prova da culpa da separação, como facto impeditivo ou extintivo do direito a alimentos (art.s 342º nº 2 e 1675º nº 2 do CC).

Na verdade:
Há que não obliterar que a obrigação de alimentos entre cônjuges está sujeita ao princípio geral do art. 2004º do CC, desconhecendo-se, "in casu", como recordado na sentença apelada, com toda a pertinência, "a situação social e económica do autor", o elenco dos factos provados nada nos dizendo sobre a possibilidade do ora recorrido prestar alimentos à reconvinte.
Nem habilita o acervo dos factos provados que se conclua no sentido pretendido pela recorrente quanto à culpa no divórcio decretado com o fundamento vertido no art. 1781º a) do CC.
Ignorando-se o circunstancialismo que rodeou a saída de AA do lar conjugal, sopesado o exposto em III. 1. a), há-de convir-se, o apurado nada consente, com acerto, declarar no concernente ao referido no nº 1 do art. 1787º do CC.

2. Arrimo no art. 1789º nº 2 do CC ( preceito que consigna excepção que vale apenas no âmbito das relações patrimoniais) não encontra a pretensão vazada na conclusão 10ª das alegações, já que, desde logo, não se provou, reafirma-se, que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante de AA, à ré/reconvinte cabendo fazer a prova de factos hábeis à sustentação de tal conclusão.

3. Do naufrágio do pedido indemnizatório (conclusão 11ª):
No art. 1792º do CC tão só se visam os danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento, que não, outrossim, os filiados na violação dos deveres conjugais invocada como causa do divórcio, estes a ressarcir segundo as regras gerais da responsabilidade civil, não no processo especial de divórcio litigioso, antes em acção declarativa de condenação, com processo comum.
Cabida não sendo, como vimos, a declaração do autor/ reconvindo como único ou principal culpado no divórcio, mais não seria necessário aduzir, face ao plasmado no art. 1792º do CC, em ordem à evidenciação da bondade da ditada "decadenza" da pretensão em apreço, a qual, sempre se acrescentará, jamais poderia lograr justo acolhimento, parcial que fosse, sopesada a não prova, por BB, que de tal tinha o ónus (art. 342º nº 1 do CC), da factualidade carreada em prol da demonstração do mérito, do bem fundado, do pedido indemnizatório (cfr. respostas aos nºs 27º a 29º da base instrutória, todas elas negativas).

IV. CONCLUSÃO:
Falecendo, em absoluto, o levado às conclusões da alegação, em abono do provimento do recurso, sem necessidade de considerandos outros, nega-se a revista, confirmando-se, consequentemente, o acórdão impugnado.
Custas pela recorrente (art. 446º nºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 27 de Maio de 2008

Pereira da Silva (relator)
Rodrigues dos Santos
João Bernardo
















Acórdãos STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 02B1290



Nº Convencional: JSTJ000163
Relator: ARAÚJO DE BARROS
Descritores: DIVÓRCIO
DEVER DE RESPEITO
CULPA
ÓNUS DA PROVA
 
Nº do Documento: SJ200205160012907
Data do Acordão: 16-05-2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4593/01
Data: 06-11-2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
 
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ART342 N1 ART672 ART779 N1.
Jurisprudência Nacional: AC STJ PROC813/97 IS DE 1997/05/20.
ASS STJ 5/94 IN PROC84339 DE 1994/01/26 IN DR IS DE 1994/03/24.
 
Sumário : I - O dever de respeito é um dever residual que só é autonomamente violado por comportamentos que não constituam, em si mesmos, violação de outros direitos.
II - É um dever simultaneamente negativo e positivo - como negativo, não ofender a integridade física ou moral (nesta, compreendem-se todos os bens ou valores da personalidade) do outro nem se conduzir na vida de forma indigna e que o faça desmerecer no conceito Público; - como positivo, respeitar a personalidade do outro.
III - A culpa é elemento qualificativo da violação do dever conjugal e os factos que a demonstram integram a causa de pedir, tendo de ser provados pelo autor.
IV - Age com culpa o cônjuge que, não respeitando a liberdade do outro, procura impôr-lhe adoptar religião ou culto que este não aceita e o injuria e destrói objectos seus por não ter obtido a adesão que queria impor.
 
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A, intentou, no Tribunal de Família e de Menores de Lisboa, acção especial de divórcio litigioso contra seu marido B, pedindo que fosse, entre eles, decretado o divórcio com culpa exclusiva do réu, por reiterada violação dos deveres conjugais de respeito e cooperação.

Alegou, para tanto, que o réu tendo sido membro da Igreja Maná e sendo presentemente membro das "Testemunhas de Jeová" vive fanaticamente as suas convicções religiosas impondo-as permanentemente à autora e aos amigos desta.

Frustada a tentativa de conciliação o réu contestou que a autora fosse católica praticante e que tivesse exercido qualquer pressão irreverente sobre ela, ou sobre terceiros, com vista a obter a sua adesão à doutrina em que acredita.

Preparado o processo para julgamento a ele se procedeu com respeito pelo formalismo legal, merecendo a base instrutória as respostas que constam de fls. 48 e vº.

Foi, depois, proferida sentença que, julgando a acção improcedente, por não provada, absolveu o réu do pedido.

Inconformada, apelou a autora, sem êxito embora, uma vez que o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 6 de Novembro de 2001, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.
Interpôs, então, a autora recurso de revista, pugnando, nas alegações apresentadas, pela decretação do divórcio, com a declaração do réu como culpado, com a inerente revogação do acórdão em crise.

Em contra-alegações veio o recorrido sustentar a improcedência do recurso.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Nas alegações da revista formulou a recorrente as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor, que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. Dos factos apurados na sentença da 1ª instância - de entre os quais: que, sendo a autora crente da Igreja católica e o réu da Igreja Maná, passava este grande parte do tempo, quer em casa, quer no carro, quer estivesse sozinho, quer na companhia da autora, a ler livros e a ouvir cassetes da referida Igreja; que o réu disse que a autora era uma brecha por onde o diabo entrava; que o réu danificou objectos existentes na casa de morada de família que considerava demoníacos; que o réu tenta converter a autora às suas convicções religiosas - decorre a demonstração da impossibilidade da vida em comum, imputável ao réu apelado pois que a sua conduta consubstancia violação reiterada do dever de respeito e da integridade moral da autora apelante.

2. Nem pelo facto de a conduta do réu recorrido lhe ser ditada pelo que julgará ser um seu "imperativo de consciência" e de militância religiosa, nem por isso essa conduta poderá ter-se por justificada ou dirimente da sua ilicitude conjugal.

3. A liberdade religiosa e o direito ao culto têm que ser exercitados em termos que não limitem ou ponham em causa os correlativos direitos, também de personalidade e fundamentais, de terceiros, nomeadamente do parceiro conjugal.
4. Por tudo isso que a conduta do réu se traduz em violações graves, com ofensas que se situam a níveis estruturantes da própria personalidade, vendo-se, por elas, a cônjuge mulher remetida para um plano de clara inferioridade, denegando-se-lhe a sua própria auto-determinação.

5. Ocorre, pois, o fundamento de divórcio do art. 1779º do C.Civil, que deve ser decretado, declarando-se o réu recorrido único culpado, com as mais consequências da lei.
Encontra-se definitivamente assente pelas instâncias a seguinte factualidade:

a) - os aqui autora e réu contraíram entre si casamento no dia 25/12/1971, sem convenção antenupcial;
b) - o réu, tendo pertencido à Igreja Maná passava grande parte do seu tempo livre a ler livros da referida Igreja e a ouvir as respectivas cassettes, tanto em casa como no carro, quer estivesse sózinho, quer estivesse na companhia da autora;
c) - numa ocasião o réu disse que a autora era uma brecha por onde o diabo entrava;
d) - o réu danificou objectos existentes na casa de morada de família que considerava demoníacos;
e) - a determinada altura o réu começou a queixar-se de que tinha mensagens e ruídos a persegui-lo, tendo deixado de comer e dormir;
f) - o réu esteve internado no Hospital de Santa Maria;
g) - a autora é crente da Igreja Católica;
h) - o réu tenta converter a autora às suas convicções religiosas.

O casamento, baseado nos princípios da igualdade dos cônjuges e da direcção conjunta da família (art. 1671º, nº 2, do C.Civil (1)), vincula-os pessoal e reciprocamente pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (art. 1672º).
Sendo que "qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometer a possibilidade de vida em comum" (art. 1779º, n.º 1).
Daqui se infere, naturalmente, que o êxito do pedido de divórcio com fundamento no art. 1779º, nº 1, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: ter existido violação, posterior à celebração do casamento, de um ou mais dos deveres conjugais estabelecidos pelo art. 1672º; que essa violação haja sido culposa; que a violação seja grave ou reiterada; e que o facto violador comprometa a possibilidade de vida em comum. (2)
Invocou a recorrente, como fundamento do pedido de divórcio, a violação pelo marido dos deveres de respeito e de cooperação.

O dever de cooperação - diz o art. 1674º - "importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram".

Todavia, dos factos tidos como provados na acção - aliás a própria recorrente deixa de aludir à violação de tal dever nas alegações de recurso - nada resulta que permita qualificar o comportamento do réu como violador do dever de cooperação, já que indemonstrado está que ele haja omitido o socorro ou auxílio devidos à autora ou que tenha tomado sozinho decisões de direcção acerca de questões de responsabilidade da vida conjugal ou familiar.

Analisaremos, por isso, e tão só o problema da violação do dever de respeito, sem deixar de ter em conta os requisitos que, para além da violação, hão-de concomitantemente ocorrer.

Ora, o dever de respeito, que o art. 1672º enuncia em primeiro lugar, é sem dúvida, um dever residual que só é autonomamente violado por comportamentos que não constituam, em si mesmos, violação de outro dos direitos ali mencionados, e que "abrange de modo especial a integridade física e moral do outro cônjuge". (3)

Pode afirmar-se que o dever de respeito é um dever ao mesmo tempo negativo e positivo. "Como dever negativo ele é, em primeiro lugar, o dever que incumbe a cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na integridade moral todos os bens ou valores da personalidade ... a honra, a consideração social, o amor próprio, a sensibilidade e ainda a susceptibilidade pessoal. Mas o dever de respeito como dever de non facere é ainda, em segundo lugar, o dever de cada um dos cônjuges não se conduzir na vida de forma indigna, desonrosa e que o faça desmerecer no conceito público" Só que "o dever de respeito é ainda um dever positivo. Não o dever de cada um dos cônjuges amar o outro, pois a lei não impõe nem pode impor sentimentos. Mas o cônjuge que não fala ao autor, que não mostra o mínimo interesse pela família que constituiu, que não mantém pelo outro qualquer comunhão espiritual, não respeita a personalidade do outro cônjuge e infringe o correspondente dever". (4)
Retomando, agora, a matéria de facto relevante para a decisão a proferir, temos que: o réu, tendo pertencido à Igreja Maná passava grande parte do seu tempo livre a ler livros da referida Igreja e a ouvir as respectivas cassettes, tanto em casa como no carro, quer estivesse sozinho, quer estivesse na companhia da autora; numa ocasião o réu disse que a autora era uma brecha por onde o diabo entrava; o réu danificou objectos existentes na casa de morada de família que considerava demoníacos; a determinada altura o réu começou a queixar-se de que tinha mensagens e ruídos a persegui-lo, tendo deixado de comer e dormir; o réu esteve internado no Hospital de Santa Maria; a autora é crente da Igreja Católica; o réu tenta converter a autora às suas convicções religiosas.

Perante estes factos concluiu o acórdão recorrido - aliás por remissão para os fundamentos da sentença da 1ª instância - que existiu por parte do réu violação do dever conjugal de respeito devido à recorrente e se mostra razoavelmente demonstrada a impossibilidade de vida em comum entre os cônjuges.
Apenas não teve como assente - e nisso se baseou essencialmente a decisão de não decretar o divórcio - a imputação culposa dos factos ao réu, afirmando como não demonstrada a censurabilidade do respectivo comportamento.

Recorrente e recorrido conformaram-se com o entendimento do acórdão na parte em que considerou verificadas a violação do dever de respeito e a impossibilidade de continuação da vida em comum. Divergem, porém, quanto à qualificação da conduta do recorrido, uma vez que, ao contrário do que foi decidido (decisão a que o réu inteiramente adere) a recorrente pretende ter sido culposa.

Está, assim, em causa no âmbito do recurso, tão só determinar se o réu, ao praticar os factos que praticou, ao adoptar os comportamentos que tomou, agiu ou não culposamente.

E isto, porque, "depois de assente a violação do dever conjugal, é que se deve discutir o problema da culpa ou juízo de censura ético-jurídica, face às concretas circunstâncias da acção ou omissão". (5)

Donde, importa, antes de mais, constatar que o fundamento do divórcio requerido nos termos do art. 1779º, nº 1, não é a mera ruptura do casamento - caso em que bastaria para que o divórcio fosse decretado a simples verificação da impossibilidade de vida em comum - mas a violação, culposa, dos deveres conjugais.

Por isso, "para além da constatação de que o cônjuge demandado violou objectivamente um ou vários deveres conjugais, impõe-se ao juiz que indague se tal comportamento se assume como reprovável, como etico-juridicamente censurável, perante as circunstâncias concretas em que agiu, posto que o tenha feito com a necessária capacidade de entender e de querer (imputabilidade). Assim, numa primeira abordagem, a culpa aparece-nos como elemento qualificativo da violação do dever conjugal, cuja verificação será essencial para a procedência do pedido de divórcio, ou, por outras palavras, os factos demonstrativos de tal culpa, estarão necessariamente integrados na causa de pedir da acção de divórcio intentado ao abrigo do preceito em análise. (6)

Ora, "dita a lei no artigo 1779º, para o caso especial da violação das obrigações conjugais, como fundamento do divórcio, uma regra cuja estatuição se não contenta com a mera violação destas obrigações, exigindo expressa e deliberadamente a violação culposa. Sendo assim, a culpa do infractor um elemento constitutivo do direito (à dissolução do matrimónio) conferido ao autor, a este incumbirá, segundo o princípio geral consignado no art. 342º, nº 1, a prova de que o demandado agiu culposamente". (7)
Foi esta, aliás, sempre a orientação tendencial do Supremo Tribunal de Justiça (8), que culminou com a prolação do Assento nº 5/94, de 26 de Janeiro (9) no sentido de que "no âmbito e para os efeitos do nº 1 do art. 1779º do Código Civil, o autor tem o ónus da prova da culpa do cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação", sendo indubitável que a jurisprudência assim uniformizada se deve entender aplicável à violação de qualquer outro dever conjugal.

Desta forma, para que o tribunal possa determinar se a violação do dever conjugal infringido pelo réu foi ou não culposa (e note-se que, hoje em dia, do vocábulo culposamente utilizado na redacção do nº 1 do art. 1779º tem que se concluir que a culpa no comportamento abrange não só o dolo mas também a mera culpa - negligência (10)), está o autor obrigado a alegar - trazer ao processo - as circunstâncias ou dados de facto que permitam ao juiz formar uma convicção positiva sobre a culpa do réu em harmonia com as regras da experiência.

É que "para prova da culpa, haverá que atender não só às circunstâncias intrínsecas que são pormenores, detalhes ou particularidades dos factos, como às circunstâncias extrínsecas que são outros factos concomitantes com os essenciais" (11).
"A culpa decorre de um juízo de censurabilidade da conduta do cônjuge ofensor, feito pelo tribunal de harmonia com o que pode ser deduzido dos correspondentes factos" (12), o que pode concretizar-se com o sentido de que, por exemplo, "a ofensa grave à integridade física ou moral do outro cônjuge implica a reprovabilidade do comportamento do cônjuge ofensor e, pelo menos, que este agiu com a consciência de que tal comportamento era ofensivo da dignidade do outro". (13)

In casu, e não obstante admitirmos como correctas as considerações tecidas na sentença da 1ª instância (para que o acórdão recorrido remeteu) quanto à origem da conduta do réu, designadamente de ele se ter limitado "a agir de acordo com os ensinamentos da doutrina em que acredita, não estando em causa a autenticidade das suas convicções" (fls. 57 vº) e de "o seu comportamento em relação à aqui autora, e a terceiros, corresponder a um imperativo de consciência, a um estado de missão" (fls. 58), já não podemos sufragar o entendimento de que o réu, por tais motivos, não pode ser censurado por praticar a doutrina em que verdadeiramente crê.

Sabendo-se, como toda a gente sabe - e o réu também - que o direito de liberdade de consciência, de religião e de culto, constitucionalmente consagrado, é inviolável (art. 41º da Constituição (14)) também é notório que a prática de qualquer religião ou culto terá sempre como limite a liberdade de religião ou de culto (ou não culto) de todos os demais.

É certo que grande parte das seitas (a que o juízo histórico e social não atribui a natureza de religião) que a esmo pululam no mundo actual impõe, muitas vezes, aos fiéis aderentes - e procura, aliás, impor a toda a gente - fanatismos e fundamentalismos de diversa ordem, quantas vezes com finalidades inconfessáveis pelos dirigentes que os ditam e realmente incompreensíveis por quem não as conhece.

Todavia, se qualquer comportamento socialmente desviante - e na medida em que contende com os direitos absolutos de terceiros (vida, honra, bom nome, direito ao culto - ou não culto - direito de expressão e liberdade de pensamento) pudesse ser considerado insusceptível de censura ético-jurídica apenas porque de acordo com as convicções mais profundas do crente (fanático) estavam necessariamente afastados de qualquer condenação os mais hediondos crimes que têm sido praticados contra a Humanidade ao abrigo de princípios religiosos, esotéricos e até políticos e filosóficos quando de origem religiosa (citaremos, a título de exemplo, e porque ainda vivos na memória da presente geração, os casos de justiça divina ou guerra santa ocorridos no Kosovo, em Nova York ou na Palestina).
Como acontece em toda a sociedade que se diz e quer civilizada, as normas de conduta aprovadas pela autoridade legitimamente constituída sobrelevam os preceitos e ensinamentos prescritos por qualquer minoria de intolerantes, sejam eles ditados em nome de Maná (será aquele pão que caiu do céu ?) Jeová ou mesmo Satanás.

Assim, todo aquele que, embora imbuído do espírito de missão que lhe foi inculcado, não obstante convicto de que a sua salvação depende da adopção de determinados comportamentos, praticar actos que manifestamente não pode ignorar serem proibidos ou reprovados pelas leis da sociedade em que (mesmo que o não queira) está integrado, há-de ser alvo de um juízo de reprovabilidade, qualificando-se sempre (mesmo a título de negligência) como culposa a sua actuação.

Donde, há que concluir - assim o determinam as regras da experiência e as circunstâncias envolventes - que o réu, ao praticar os factos violadores do dever de respeito para com a autora (injúrias, destruição de objectos do casal, ofensa da integridade moral do cônjuge pela limitação da sua auto-determinação e livre expressão de pensamento) que o recorrido agiu com culpa.
Pelo que, em consequência, verificados se mostram todos os requisitos necessários à decretação do divórcio, e por causa exclusivamente imputável ao réu, que assim terá que ser considerado como único culpado pela dissolução do casamento.

Nestes termos decide-se:

a) - julgar procedente o recurso de revista interposto pela autora A;
b) - revogar o acórdão recorrido e, em consequência, julgando procedente a acção, decretar o divórcio entre a autora e o réu B, considerando este como cônjuge único culpado pela dissolução do matrimónio;
c) - condenar o recorrido nas custas da revista, bem como a suportar as devidas na 1ª e 2ª instâncias.

Lisboa, 16 de Maio de 2002.
Araújo de Barros,
Oliveira Barros,
Diogo Fernandes.
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(1) Diploma a que pertencerão as normas adiante indicadas sem outra referência.
(2) Cfr. Eduardo dos Santos, in "Direito da Família", Coimbra, 1985, pag. 399; Ac. STJ de 28/03/95, no Proc. 86651 da 2ª secção (relator Miranda Gusmão).
(3) Antunes Varela, in "Direito da Família", Lisboa, 1987, pag. 348.
(4) Pereira Coelho, in "Curso de Direito da Família", vol. I, 2ª edição, Coimbra, 2001, pags. 353 e 354.
(5) Ac. STJ de 20/05/97, no Proc. 813/97 da 1ª secção (relator Machado Soares).
(6) Carlos Matias, "Da culpa e inexigibilidade de vida em comum no divórcio", in Temas de Direito da Família, Coimbra, 1984, pag. 76.
(7) Antunes Varela, ob. cit., pag. 476. No mesmo sentido, Pereira Coelho, ob. cit., pag. 617 a 623; Carlos Matias, estudo e local citados.
(8) Ac. STJ de 20/01/94, no Proc. 084339, da 2ª secção (Relator Raul Mateus), segundo o qual "sendo a culpa facto constitutivo do direito potestativo invocado daqui decorrem duas consequências: por um lado, é aqui afastada a presunção de culpa que, nos termos do artigo 799 n. 1 do Código Civil é de regra no domínio da responsabilidade contratual; por outro lado, é ao demandante que, nos quadros do artigo 342 n. 1 do mesmo Código, incumbe a prova da culpa do demandado na violação dos deveres conjugais".
(9) In DR IS-A, de 24/03/90 (BMJ nº 433, pag. 80).
(10) Cfr. Pereira Coelho, ob. cit., pag. 622.
(11) Ac. STJ de 29/09/98, no Proc. 809/98, da 1ª secção (relator Ribeiro Coelho).
(12) Ac. STJ de 10/12/96, no Proc. 349/96 da 1ª secção (relator Silva Paixão).
(13) Ac. STJ de 03/11/94, no Proc. 85566, da 2ª secção (relator Mário Cancela).
(14) 4.ª Revisão Constitucional - Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro.



O adultério continua a ser fundamento para um cônjuge requerer o divórcio?
O que se pretende com o projecto de lei aprovado é eliminar a violação de deveres conjugais como fundamento necessário para o pedido de divórcio. No actual regime, para um cônjuge requerer o divórcio sem o consentimento do outro é indispensável que este invoque a violação culposa de deveres conjugais por parte desse cônjuge. A inovação do regime aprovado reside exactamente no facto de ser suficiente a invocação da ruptura definitiva da vida em comum para o cônjuge iniciar o processo de divórcio. Assim, os deveres conjugais (respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência) já não são fundamento para o pedido de divórcio. Contudo os factos em que se objectiva a ruptura definitiva podem resultar da quebra das regras de solidariedade da “plena comunhão de vida (entre os quais aqueles deveres conjugais). Mas são os factos objectivos, e não as suas razões, que o juiz aprecia.

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