sexta-feira, 15 de abril de 2011

DIREITO DO AMBIENTE

DIREITO DO AMBIENTE *

Sumário

I - Direito do Ambiente e Direito ao Ambiente
A. Diferenciação
B. Relevância prática

II - Direito ao Ambiente. Sua conformação
A. Previsão constitucional
B. Direito fundamental e garantia
C. Impossibilidade de afirmação do direito ao ambiente por via de acção. Refutação da tese
Conclusão

III - Prática Judiciária
A. Coordenadas histórico-políticas
B. Análise da situação actual
- Politização das questões
- Recurso preferencial aos tribunais administrativos
- Relevância do direito do ambiente no âmbito de outros direitos

IV - Conteúdo do direito
A. O interesse ambiental. Protecção jurídica
B. Decisão política e decisão jurisdicional

V - Operacionalidade do Conceito do Direito. Autonomia. Colisão de direitos. Virtualidades


Nota Introdutória

É comum a referência ao carácter interdisciplinar do direito do ambiente, cuja compreensão abarca ramos do direito muito diferenciados.
Sem negar tal facto, julgo conveniente, todavia, uma clarificação, tendo essencialmente em vista termos civilísticos e, mais concretamente, a necessidade da afirmação de um direito ao ambiente com conteúdo autónomo e positivo.
O que corresponderá, em parte, e por outro lado, a uma tentativa de emancipação do direito do ambiente em relação à política do ambiente.
Porei particularmente em destaque a imprescindibilidade de tal cisão para uma correcta operacionalidade do próprio conceito de direito. Nomeadamente, potenciando a intervenção do poder judicial na resolução dos dissídios conexos com o ambiente.
Cuidarei, ainda, de dilucidar os critérios e os valores a que a decisão jurisdicional se deve ater para que não se gere conflito com eventual decisão política que incida sobre a mesma questão.


I) Direito do Ambiente e Direito ao Ambiente

A. Não está no âmbito desta exposição a procura de uma definição para o direito do ambiente nem a tentativa de delimitação do seu objecto (1).
Num plano muito lato, poderemos dizer que a sua essência reside no conjunto de regras e princípios normativos, bem como de decisões, com relevância para o ambiente.
O interesse da preservação de um ambiente com determinadas características, porque convergente com um leque de interesses a ele estranhos, terá uma protecção que se traduzirá num precipitado de actos jurídicos com características díspares.
Falando-se por isso do carácter multifacetado do direito do ambiente, que se espartilha e vai beber em vários ramos do direito, v.g., administrativo, constitucional, penal ou civil(2).
Não podemos, porém, deixar de constatar a existência de um interesse na preservação do ambiente com um conteúdo próprio, a erigir em valor digno de protecção jurídica autónoma.
Assim, parece legítimo admitir um verdadeiro direito ao ambiente que terá por objecto o conjunto de valores ambientais reconhecidamente consagrados (3).

B. A enunciação atrás ensaiada não tem relevância meramente teórica, já que a consideração de um direito ao ambiente com conteúdo autónomo e próprio é imprescindível à maximização da sua operacionalidade no plano jurisdicional(4)
Na verdade, só esta possibilitará ao juiz uma valoração directa do interesse ambiental a proteger no caso concreto.
Se, pelo contrário, se negar esse conteúdo positivo, a actividade daquele não passará da constatação da existência ou não, in casu, de norma que proteja esse interesse.
É esta última a perspectiva, infelizmente dominante, que entende ser lícita uma actividade, logo que devidamente licenciada, mesmo que se demonstre ofender gravemente o ambiente (5)(6)(7)(8).
Se, pelo contrário, se entender que o direito ao ambiente tem um conteúdo próprio positivo, será sempre legítimo ao juiz apreciar e valorar a se o interesse ambiental que lhe corresponde, cotejando-o com outros direitos que com ele conflituem.
Desse modo, o licenciamento de uma actividade deixará de ser determinante, passando a factor que, entre outros, contribuirá para a verdadeira decisão: a ponderação relativa dos interesses subjacentes aos direitos em colisão (9).
A análise que se segue visará o aprofundamento da problemática enunciada, com referência à legislação e à realidade portuguesa.


II) O Direito ao Ambiente. Sua Conformação

A. Dispõe o artigo 66.o, n.o 1, da Constituição da República Portuguesa que "todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender".
No n.o 2 do mesmo artigo, enunciam-se programaticamente as tarefas do Estado com vista a assegurar esse direito.
O artigo 2.o da Lei de Bases do Ambiente - Lei n.o 11/87, de 7 de Abril -é uma cópia quase integral daquele preceito.
O transcrito artigo 66.o integra-se no Título III da Parte I da Constituição, referente aos direitos económicos, sociais e culturais.
Vem, no entanto, sendo entendido que o direito nele conferido, enquanto dirigido à titularidade individual, é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (10) (11).
Tal nota é deveras importante, já que, como previsto no artigo 17.o do mesmo diploma, o regime destes últimos aplica-se aos direitos fundamentais de natureza análoga, sendo uma das suas características o serem directamente aplicáveis e vincularem entidades públicas e privadas ¬ cfr. artigo 18.o

B. Impõe-se uma articulação desta tutela constitucional do direito ao ambiente com o direito de acção popular conferido pelo artigo 52.o, n.o 3 (12).
Na verdade, o alcance dos direitos conferidos pelo artigo 66.o e pelo artigo 52.o é diverso.
Aquele refere-se ao direito ao ambiente enquanto directamente reportável à esfera jurídica individual.
Cinde-se em duas vertentes, enquanto lhe correspondem: obrigações de conteúdo positivo ¬ direito a que o Estado crie e assegure as condições para o seu exercício (direito subjectivo público); ou de conteúdo negativo (por parte do Estado ou dos particulares) ¬ deveres de abstenção (efeito horizontal ou efeito externo dos direitos fundamentais) (13).
O direito de acção popular prende-se já com uma questão de legitimidade.
Garante a qualquer indivíduo a possibilidade de agir em defesa de valores ambientais, a que correspondem interesses difusos (14), independentemente de qualquer afectação directa da sua esfera individual.
No fundo, dilata o conceito de interesse em agir, legitimando a qualquer um o recurso a uma acção para defesa de bens ambientais que, por sua natureza, não são apropriáveis individualmente.
É este seu carácter instrumental que permite classificá-lo como garantia, por contraposição aos direitos fundamentais stricto sensu, como o direito ao ambiente, com o alcance já definido.

C. O direito de acção popular carece de legislação que estabeleça os moldes em que deve ser exercido (15). Como, de resto, se estatuiu no próprio texto do artigo 52.o, n.º 3 ¬ "nos casos e termos previstos na lei" (16).
Por isso se falando em inconstitucionalidade por omissão (17) (18).
Estaria, assim, e para já, coarctada a possibilidade de recurso a acção que visasse a defesa de valores ambientais não directamente conexionados com a esfera jurídica individual.
Tal conclusão não tem em consideração um aspecto importante.
Com a alteração do artigo 52.o, n.º 3, a que se procedeu na revisão de 1989, a protecção dos valores ambientais foi incluída, a título exemplificativo, no elenco daqueles que usufruem da tutela do direito de acção popular.
Em Abril de 1987, tinham sido publicadas as Leis n.º 11/87 (Lei de Bases do Ambiente) e n.º 10/87 (Lei das Associações de Defesa do Ambiente).
Inúmeras disposições destas duas leis pressupõem a possibilidade de recurso à via de acção para defesa de valores puramente ambientais ¬ confrontem-se, nomeadamente, os artigos 40.o, n.º 5, 41.o, n.º 1, e 45.o, n.º 3, da Lei n.º 11/87, 7.o, n.º 1, a), e 13.o da Lei n.º 10/87.
Se constatarmos que o teor daquele artigo 52.o, n.o 3, não pressupõe uma legislação unitária sobre o modus como se há-de concretizar o direito de acção concedido, não me parece forçado o entendimento de que, para já, e enquanto não for publicada lei que defina os termos dessa genérica acção popular, se veja naqueles preceitos das Leis n.º 10 e 11/87 o quid legislativo suficiente para despoletar a virtualidade contida nesse direito.
Doutro modo, custoso será reconhecer que muitos dos preceitos das duas referidas leis são pura letra morta (19).
Poderei, pois, concluir pela existência de um direito subjectivo ao ambiente que, quer corresponda a um interesse imediato da pessoa quer encarne um seu interesse não próprio e individual, por difuso (na fruição necessariamente comum), é reconhecido e efectivamente tutelado pela nossa ordem jurídica.


III) Prática Judiciária

A. Já vimos quais os interesses que correspondem ao direito tutelado - protecção do ambiente a se e da realização de cada um através do ambiente.
Essa tutela assume, como visto, duas vertentes estruturais: uma positiva, porque plasmada numa exigência de que o Estado proteja tais interesses ¬ direito subjectivo público; outra negativa, consistente na possibilidade de impor a outrem, particular ou Estado, que se abstenha de os ofender.
Acontece que esta última tem sido por sistema ignorada.
A tal fenómeno não é alheio o facto de as concepções democráticas da organização sócio-política da sociedade moderna terem evoluído mais no sentido da garantia formal da participação na eleição dos governantes do que no da partilha do poder através de uma colaboração na tomada de decisões (20).
Assim, foram criadas as condições para que qualquer cidadão reaja instintivamente a uma ofensa a um seu direito mediante o apelo à intervenção do poder político-administrativo (21). Sem cuidar (ou sequer se lembrar) de que o poder institucionalmente fadado para dirimir conflitos de direitos é o judicial.

B. Tal atitude, a que os próprios juristas não escapam, tem-se manifestado de diversas maneiras no tratamento jurisdicional da problemática ambiental.
Por um lado, o poder judicial, nas poucas vezes em que é instado para julgar questões que passem pela consideração de bens ambientais, remete por sistema para os órgãos políticos a sua definição e avaliação (22).
Esta autêntica denegação de justiça é um pouco o contraponto da vantagem que se costuma assacar às instâncias judiciais relativamente às políticas, quando se afirma que os tribunais nunca se podem quedar por um non liquet, sendo obrigados a decidir.
Por outro lado, são os tribunais administrativos os preferencialmente impetrados com os diferendos conexos com o ambiente(23). E, as mais das vezes, em reacção a acto da administração que visou proteger valores ambientais (24).
É, aliás, corrente a afirmação de que o direito do ambiente tem muito mais de comum com o direito administrativo do que com qualquer outro ramo do direito, tendo vindo a ser o seu estudo e cultivo feudo dos administrativistas (25).
Por fim, quando o interesse ambiental é afirmado numa vertente positiva, é-o por referência a problemas conexos com o direito de propriedade ou com os direitos de personalidade, como frontispício que vai reforçar o valor desses direitos (26). Ou como factor delimitativo da extensão de outros direitos, cujas virtualidades de exercício restringe ¬ v.g., direito de propriedade ou direito ao trabalho (27).


IV) Direito ao Ambiente Definido pela Positiva

A. Já examinei a questão da admissibilidade ou não de um direito ao ambiente com conteúdo próprio, tendo concluído que não só é possível como está consagrado na nossa Constituição ¬ quer um direito subjectivo individual ao ambiente que directamente afecta cada um quer um direito mais genérico e difuso à preservação do bem ambiente.
Essa análise a nível de estrutura não poderá, todavia, ser desligada de uma indagação sobre a existência ou não, em concreto, de ofensa a um bem ambiental e sobre os limites a partir dos quais este adquire um valor juridicamente relevante.
Na verdade, o direito ao ambiente, tal como o direito à vida, não é nada, enquanto desligado dos juízos de valor de conteúdo sociológico que o hão--de conformar(28).
Sendo certo que o direito à vida não se resume ao morrer ou viver, o direito à liberdade, ao tê-la ou não a ter, e o direito ao ambiente, à subsistência ou não do que nos rodeia.
Nenhum deles há-de ser definido em absoluto mas tão só enquanto o interesse que lhe subjaz vier a preponderar ou não sobre outros que com ele conflituem.
Exemplificando: para viver, é necessário comer; não parece, porém, que o roubar para comer seja o exercício do direito constitucional à vida.
Do mesmo modo, o direito ao ambiente não se consubstancia numa exigência de inalterabilidade daquilo que nos rodeia.
Ele há-de ser condicionado e moldar-se àquele mínimo a partir do qual se venha a entender não ser admissível a modificação do meio em que vivemos para realização de outros interesses.
Limite a ser traçado na lei e, complementarmente, construído pelo julgador do caso concreto, em actividade de interpretação dos valores fundamentais consagrados na sociedade(29).
E só para lá dele será legítima a intervenção do poder político, stricto sensu.

B. O que nos relança para a vexata quaestio de saber onde pára a competência do juiz e começa a do político(30).
A fronteira a delinear é profundamente maleável, evolutiva e difusa.
Não deve porém tal facto impelir o juiz a abster-se de julgar(31), pois a ele incumbe assegurar o respeito pelos princípios éticos fundamentais da sociedade.
Sendo certo que, só depois de assegurada a realização desses valores, é legítimo ao poder político constituído (executivo e administração) pronunciar-se.
É na referida fronteira que se separam os campos onde se devem mover as motivações da decisão política e da decisão jurisdicional ¬ esta mais vinculada e menos dinâmica do que a política, mas com tendência para afirmação de valores mais perenes.
Quanto à sua natureza, a actividade do julgador é de cariz essencialmente interpretativo(32) (dos referidos princípios éticos fundamentais) enquanto a do político é de feição mais programática e, como tal, inovadora(33).
À luz desta diferenciação, no acórdão do STJ de 17.01.95 já aludido, não se poderia pura e simplesmente afirmar que a definição das zonas da Reserva Ecológica Nacional compete ao poder político e, como tal, denegar pronúncia sobre a questão.
Mais correcto teria sido encarar o bem ambiental a preservar, verificar se ele correspondia a um interesse com relevo suficiente (atendendo, essencialmente, à sua natureza e ao grau de sacrifício que para ele resulta da ofensa concreta) para merecer a tutela jurídica que se pretende com a consagração do direito ao ambiente, e, em caso afirmativo, cotejá-lo com o direito em cujo exercício se iria praticar o acto lesivo.
Só se se entendesse não ser ele digno dessa tutela do direito, atitude que no caso concreto se poderia compreender, seria legítimo remeter a decisão para instâncias políticas (a decisão política de criação de uma reserva ecológica, actividade muito mais discricionária do que a decisão jurisdicional de afirmação de um interesse carecente da protecção daquele direito).
O que importa é, em suma, não esvaziar o conceito de direito ao ambiente, remetendo para instâncias não jurisdicionais a tarefa de o definir e avaliar, atitude que mais não representa do que uma negação da verdadeira essência do poder judicial.


V) A Operacionalidade do Conceito

A posição defendida de consideração de um direito ao ambiente com conteúdo próprio e autónomo, favorecerá a operacionalidade do tratamento das questões ambientais que, ao menos num plano funcional, poderão ser facilmente equacionadas.
Assim, e dentro de um conceito clássico civilístico de ilicitude, cumpre destrinçar entre o desrespeito por norma que protege interesse e a violação directa do direito (cfr., no que respeita à responsabilidade civil por actos ilícitos, o artigo 483.o, n.o 1, do C. Civil).
Pelo que já deixei exposto, a maior dificuldade provirá da segunda vertente, mais concretamente da violação ilícita do direito ao ambiente.
A qual tem sido por sistema ignorada, fazendo-se coincidir o conteúdo do direito com os limites definidos pelas normas que protegem o interesse ambiental(34).
No entanto, a partir do momento em que se der àquele um valor autónomo, os litígios ambientais conexos com as relações inter partes serão equacionados em termos de colisão de direitos (direitos ao ambiente, de propriedade, à liberdade, ao trabalho, etc.), conforme ao previsto no artigo 335.o do C. Civil:
"1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior".
Sendo os critérios fundamentais a ter em conta os do grau do sacrifício e da natureza dos direitos colidentes.
É curioso anotar que, precisamente por não se vir dando ao direito ao ambiente um conteúdo autónomo, casos houve em que o interesse ambiental funcionou como factor limitativo do exercício de outro direito, que desse modo ajudou a conformar restritivamente(35).
Poderei concluir, assim, que o direito ao ambiente tem, se devidamente enquadrado, virtualidades imensas no campo do direito privado.
E mesmo as suas especialidades podem contribuir para uma concepção civilística dos litígios mais enriquecida e dinâmica(36).




Sem comentários: