terça-feira, 13 de março de 2012

Conferência: "A Reforma da Acção Executiva - A Discussão

Conferência: "A Reforma da Acção Executiva - A Discussão
pública da Proposta de Lei"Faculdade de Direito da Universidade de
CoimbraDia 29 de Junho de 2001
Intervenção do Prof. Doutor Lebre de Freitas
(Professor Universitário e Advogado)
ASPECTOS DUMA
APRECIAÇÃO GERAL DO ANTEPROJECTO
DE REFORMA DO PROCESSO EXECUTIVO
No direito processual civil vigente entre nós, de acordo com a tradição
dos países latinos, à excepção da França, o juiz guarda a direcção formal do
processo executivo. A jurisdicionalização deste processo é tida como uma
aquisição democrática: o juiz é nele o guardião dos direitos individuais, o
garante poderá dizer-se da própria garantia da norma jurídica, visto que é
a garantia da norma jurídica, na perspectiva subjectiva de quem ela tutela,
que está fundamentalmente em causa no processo executivo.
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Em outro extremo, encontramos a Suécia. Aí, é um serviço
administrativo (o Serviço Público de Cobrança Forçada) que é encarregado
da execução e só em caso de litígio é que se recorre ao juiz. Os actos
executivos praticam-se, pois, fora do tribunal, tendo o serviço administrativo
que os pratica acesso a grandes bases de dados que fornecem toda a
informação útil sobre o devedor, tornando mais fácil a penhora.
Outros países há que, não conhecendo um sistema tão radical, tão-
-pouco têm o sistema tradicional de direcção do processo pelo juiz. É o caso
da França, da Bélgica, do Luxemburgo, da Holanda, da Grécia ou da Escócia.
Ao huissier, na designação francesa, cabe, nomeadamente, efectuar a penhora
de bens móveis e de créditos e vender os primeiros. Contratado pelo
exequente, é, porém, de nomeação oficial e considerado um funcionário
público. Solicita informações ao executado, recorre ao Ministério Público
quando carece de informações que, por si, não consegue obter (entre elas, as
relativas às contas bancárias e à entidade empregadora do executado),
desencadeia a hasta pública quando o executado não vende, num prazo curto
de que dispõe para o efeito, os bens móveis penhorados e é responsável, não
só perante o exequente, mas também perante o executado e terceiros.
Puro funcionário judicial é o Gerichtsvollzieher alemão e austríaco.
Distingue-o do huissier ser pago pelos cofres do Estado, embora os custos da
sua actuação venham a ser imputados nas custas. Como o huissier, actua com
grande independência do juiz. A este cabe um controlo prévio quando o título
não é uma sentença, mediante a apreciação da fórmula executiva, que vai
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permitir a execução do título em que é aposta. Depois, tendencialmente, só
intervém em caso de litígio.
O anteprojecto em discussão optou também pela desjurisdicionalização
do processo executivo, sem o desjudicializar: o Ministério da Justiça ouviu os
intervenientes no colóquio efectuado em Fevereiro na Faculdade de Direito
de Lisboa e propõe-se manter o cordão umbilical estabelecido entre o
tribunal, onde a acção executiva nasce, e o solicitador de execução
(denominação, diga-se, não muito feliz do nosso parente do huissier francês),
nos casos em que, sendo o título executivo um documento particular sem
assinatura reconhecida, os actos executivos não são entregues ao oficial de
execução (parente, este, do Gerichtsvollzieher alemão). A opção é boa, mas
há que ver se a intenção afirmada foi inteiramente respeitada e não serão
mesmo atribuídos nenhuns poderes jurisdicionais ao oficial público de
execução, em ofensa ao princípio da reserva da jurisdição.
Há que analisar, a este respeito, os seguintes pontos de regime:
a) Juízo sobre a suficiência do título e a ocorrência de excepções, de que
decorrem penhoras sem prévio despacho judicial, recusas de execução por
manifesta insuficiência do título e a conclusão do processo ao juiz quando
se suspeite de outro fundamento de indeferimento ou de um fundamento de
aperfeiçoamento. Constituindo o início da execução o ponto crítico mais
sensível do projecto, impõe-se, quando o título for particular sem
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reconhecimento presencial, a citação prévia do devedor (salvo ocorrendo
circunstâncias equivalentes às que justificariam o arresto, caso em que o
juiz deve poder dispensar a citação), ou, no mínimo, a manutenção do
despacho liminar.
b) Ao agente de execução cabe apreciar a prova documental da exigibilidade
da obrigação. O ponto suscita algumas dúvidas, embora, por se tratar de
um juízo provisório, seja admissível a solução.
c) É inaceitável que esteja só nas mãos do exequente a liquidação da
obrigação, quando o título seja uma escritura pública, podendo
eventualmente (embora dificilmente) consistir em mais do que um cálculo
aritmético. Ao juiz (e não ao oficial de execução) deve ser atribuído o
poder de previamente a controlar.
d) Ao agente de execução cabe colher informações junto do executado sobre
o respectivo património, ficando o executado sujeito a sanções penais em
caso de falsa declaração ou falta de declaração. À primeira vista, dir-se-ia
que só o juiz poderia ordená-lo. Mas talvez a solução não repugne se o
estatuto do agente de execução com ela se compatibilizar.
e) Perante o agente da execução é feita a prova documental de que bens
penhorados não são do executado (desaparecendo o art. 832). Fora, talvez,
casos extremos, só o juiz deve poder ordenar o levantamento da penhora.
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f) A notificação do terceiro devedor do executado é feita com a cominação de
o crédito se ter por reconhecido, sem precedência de ordem ou controlo
judicial. Não repugna. Tudo depende dos cuidados a pôr na notificação,
que tem de ser pessoal.
g) Ao agente de execução cabe a decisão sobre a modalidade da venda.
Embora apareça estabelecida esta regra, vê-se que a opção que lhe cabe
tomar é só entre a venda em estabelecimento de leilão e a venda em
depósito público (conforme a natureza do bem a vender) e entre a venda
por negociação particular e a venda em estabelecimento de leilão (quando
falha a venda em depósito público). Convém, para que tal seja inequívoco,
deixar claro que assim é, em vez de formular uma regra geral que depois se
verifica que não o é.
h) Ao agente de execução cabe a decisão sobre o preço da venda, observados
os critérios legais. Havendo reclamação para o juiz, embora se trate dum
ponto na prática muito sensível, a solução não me repugna.
i) Cabe-lhe também a decisão de prosseguir com a execução, quando haja
sido feito registo provisório da penhora. É preferível estabelecer que a
execução há-de prosseguir em princípio; havendo dúvidas quanto a ser
melhor suspendê-la, o processo irá ao juiz para decidir.
j) Ao agente de execução cabe decidir sobre a urgência da venda. Entendo
que deve ser o juiz a tomar esta decisão.
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l) O silêncio do terceiro devedor do executado continua a dar lugar a que se
tenha por acertado o crédito para o efeito da execução. Questionar-se-á se
esta cominação deve jogar quando não é o juiz quem manda notificar. Não
me repugna (independentemente de achar violento o regime legal já
vigente). Mas há que assegurar que a advertência seja claramente feita,
observando-se o regime da realização da citação.
Especialmente sensível é, no anteprojecto, a solução fundamental que
conduzirá, se for adoptada, à inversão da ordem dos actos iniciais da
execução, em generalização do esquema hoje vigente no processo sumário:
após investigação dos bens do executado, é feita a penhora e só depois é o
executado, ao mesmo tempo que os credores conhecidos e o cônjuge, citado
para os actos subsequentes, podendo então opor-se à execução e à penhora.
Este esquema é seguido, quer a execução tenha na sua base uma sentença,
quer se funde em título extrajudicial, e qualquer que seja o valor da dívida
exequenda. É uma opção arriscada e que, a meu ver, deve ser atenuada
quando o título executivo seja um documento particular sem assinatura
reconhecida. A constatação de que Portugal é o país europeu mais generoso
na concessão de exequibilidade aos documentos de dívida deve levar o
legislador a ser mais prudente.
Importantes alterações são propostas no que concerne à realização da
penhora. Por um lado, ela far-se-á, em certos casos, com muito maior
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simplicidade e eficácia, como é o caso da de veículo automóvel: deixando,
como a de todo qualquer outro bem sujeito a registo, de exigir a iniciativa do
exequente para a efectivação do registo, que passa a ter lugar mediante
comunicação do tribunal, constitutiva do próprio acto de penhora, dá lugar à
sucessiva imobilização do veículo, que deixa de ser necessariamente
apreendido, segundo modelo próximo do do direito francês, que viemos a
sabê-lo no colóquio na FDL por sua vez segue o modelo canadiano. Por
outro lado, é privilegiada a penhora de direitos e, entre eles, a do depósito
bancário, postulando este significativa cedência do direito ao sigilo bancário;
o próprio exequente deve assim observar uma ordem nas penhoras a efectuar,
tido em consideração o respectivo objecto; dado que a execução se destina a
satisfazer o direito do credor e este está naturalmente interessado em
penhorar os bens que mais rapidamente permitem a satisfação do seu crédito,
essa ordem não pode ser rígida, o que o anteprojecto acautela ao permitir que
ela não seja respeitada quando o desaconselhe o caso concreto.
Muito importantes são também as alterações propostas em sede de
reclamação de créditos. Os privilégios creditórios sabemo-lo não
deixaram de aumentar desde o Código Civil de 1967 e a prioridade que lhes é
concedida compromete, com frequência, gravemente a satisfação do direito
do credor exequente. Em vez da via da sua supressão, o anteprojecto segue
outra, que por mim tinha sido preconizada: por um lado, o privilégio
creditório geral não é admitido quando seja penhorado um veículo automóvel
ou rendimento só parcialmente penhorável, além dos casos em que incida
sobre dinheiro, moeda ou depósito bancário ou haja lugar a adjudicação de
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direito de crédito ou a consignação de rendimentos; por outro lado, é
garantida ao exequente, em concurso com o credor com privilégio geral,
determinada percentagem do produto resultante da alienação do bem
penhorado. Suprimida a citação edital, o credor desconhecido não deixa de
poder reclamar o seu crédito, mas a garantia da satisfação do exequente é
substancialmente acrescida.
Tímido é, porém, o anteprojecto quando deixa incólumes o regime do
direito de retenção (que só deveria prevalecer sobre a hipoteca quando com
registo a ela anterior), o da penhora fiscal (que deveria ser equiparada à da
penhora de direito civil) e o da adjudicação do direito de crédito (que deveria
poder ser feita a título de dação em função do cumprimento).
A simplificação da oposição do executado à execução, em termos
semelhantes aos da simplificação, operada em 1995-1996, da oposição do
executado à penhora, vai pôr em causa a tese da formação, nela, de caso
julgado, proporcionando forte argumento a quem entende admissível a acção
de restituição do indevido posterior ao termo da execução. Nomeadamente, o
encurtamento dos prazos e a exigência da imediata proposição da prova
(aliás, um tanto, incompreensível, visto que, após a contestação da oposição,
se seguem os termos do processo sumário), já sem falar na proposta limitação
(que não deve manter-se) do direito ao recurso, dificilmente permitirão que se
continue a defender a formação de caso julgado no procedimento de oposição
do executado. Além do mais, quando o título executivo não é uma decisão
judicial e, sobretudo, quando é um documento particular sem assinatura
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reconhecida, dever-se-ia dar ao devedor meio de defesa não menos
garantístico do que o da acção declarativa com processo comum, pois, de
outro modo, estar-se-á criando injustificada desigualdade entre o devedor
demandado na acção declarativa e o que é directamente demandado na acção
executiva: a existência do título executivo há-de permitir o acesso imediato
do credor à execução, mas ao devedor não há-de, por isso, ser negada a
possibilidade de se defender como poderia fazer na acção declarativa.
Muitos outros pontos gostaria de aflorar, mas o tempo já gasto leva-me
a ter de concluir. Faço-o com três últimas observações.
A primeira é que, de modo geral, a reforma que se projecta é positiva e
deve ser apoiada, sem prejuízo de o anteprojecto apresentado à discussão
pública carecer de vários aperfeiçoamentos e correcções.
A segunda é que há que adequar a lei substantiva a várias das
alterações preconizadas para a lei de processo.
A terceira é de ordem formal. A reforma que se projecta é importante,
mas não é tão radical que justifique o abandono da actual sistematização do
processo executivo. Entendeu o Ministério da Justiça que a penhora,
constituindo acto anterior à citação do executado, havia de ser regulada antes
da oposição e que a fixação da ordem de precedências para a penhora deve
levar a uma ordem paralela no tratamento das formas da penhora. Sem negar
que a opção tem alguma lógica, sobretudo se não se arrepiar caminho quanto
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à regra absoluta da citação ulterior do executado, várias razões são alinháveis
no sentido de contrariar a opção feita.
Em primeiro lugar, a alteração geral da ordenação dos artigos do
Código de Processo Civil respeitantes à execução não se justifica quando a
maioria dos preceitos se mantém, ou tem apenas pequenas e muitas vezes
injustificadas alterações formais.
Em segundo lugar, é de notar que, no anteprojecto apresentado, a
citação do executado, que precede a oposição, é tratada antes da matéria da
penhora (art. 828) e depois dela (art. 870); a rejeição da execução (art. 882) e
o aperfeiçoamento do requerimento inicial (art. 883) aparecem depois da
penhora, embora antes dela se diga que tais questões podem logo ser
levantadas (art. 818); a substituição da penhora e a caução que o executado
pode prestar depois de se opor vêm tratadas antes da penhora (arts. 824-3 e
828-3). É inconsequente.
Em terceiro lugar, trata-se primeiro da penhora de direitos, depois da
de móveis e, enfim, da de imóveis. Mas, paradoxalmente, é esta última que
serve de paradigma da penhora e é para o seu regime que subsidiariamente se
remete ao tratar das formas de penhora anteriores a ela.
Em quarto lugar, as diligências subsequentes ao requerimento inicial
(arts. 819-829, salvo o art. 828) são, na realidade, diligências preparatórias da
penhora e, por isso, deviam ser tratadas, como hoje, depois do objecto desta
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(arts. 830 e ss). Aliás, há disposições sobre o objecto (art. 829, pelo menos,
que devia estar com o tratamento dos casos de comunhão e penhorabilidade
subsidiária; eventualmente, art. 825) no capítulo das diligências subsequentes
ao requerimento.
Em quinto lugar, a execução hipotecária aparece no capítulo da
execução, quando o seu lugar é nos processos especiais (onde, aliás, se
continua a tratar da execução de alimentos e de formas processuais mistas de
declaração e de execução). Há que a colocar junto da expurgação de
hipotecas.
Estas e outras considerações levam-me a desejar que o Ministério
retome a ideia que esteve subjacente à reforma de 1995-1996, de acordo com
a qual, uma vez que não se está criando um código novo, mas alterando
artigos do código actual, sem prejuízo de outros serem introduzidos e de
alguns serem suprimidos, é preferível manter, tanto quanto possível, a
ordenação vigente, só alterada quando tal seja inevitável. Tive ocasião de
contrapor ao anteprojecto do Ministério outro em que a sistematização actual
era mantida, sem que tal em nada prejudicasse as alterações de fundo
preconizadas. Espero que se veja que esta orientação é preferível.

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