terça-feira, 5 de maio de 2009

FASES PROC CIVIL - A PROVA

17,50 valores









A PROVA








Ana Rita Martins (16 491)

Catarina Pinho (16 552)

Duarte Amaral da Cruz

Luís Teixeira (15 446)





Índice

1. Parte geral da prova
1.1. Noções introdutórias
1.2. Objecto da prova
1.3. Classificações doutrinais da prova
1.4. Admissibilidade dos meios de prova
1.5. Ónus da prova (situações especiais)
1.6. Direito probatório material e direito probatório formal (distinção e princípios)
1.7. Procedimento probatório

2. Meios de prova
2.1. Prova pericial
2.1.1. Noção e valoração
2.1.2. Comentário jurisprudencial
2.2. Prova por inspecção judicial
2.2.1. Noção e valoração
2.2.2. Comentário jurisprudencial
2.3. Prova testemunhal
2.3.1. Noção e valoração
2.3.2. Comentário jurisprudencial
2.4. Prova por confissão
2.4.1. Noção e valoração
2.4.2. Comentário jurisprudencial
2.5. Prova documental
2.5.1. Noção e valoração
2.5.2. Comentário jurisprudencial

3. Conclusão

4. Anexos
4.1. Anexo 1 – prova documental
4.2. Anexo 2 – prova pericial
4.2. Anexo 3 – prova por inspecção judicial
4.3. Anexo 4 – prova testemunhal
4.4. Anexo 5 – prova por confissão

5. Bibliografia

















1. Parte geral da prova

1.1. Noções introdutórias
A noção de prova está presente em todas as manifestações da vida humana e transcende o campo do Direito. É dos assuntos da dogmática processual, aquele que exige do aplicador e do estudioso maior volume de noções de outras áreas do conhecimento. A interdisciplinaridade, aqui, não é apenas um desejo académico: sem observar essa característica, não há como interpretar e aplicar correctamente as regras do direito probatório. Qualquer decisão humana, qualquer que seja o ambiente em que tenha sido proferida, é, resultado de um convencimento produzido a partir do exame de diversas circunstâncias (de facto ou não); é baseada em diversos elementos de prova.
No processo jurisdicional, o objectivo principal é a efectivação de um determinado resultado prático favorável a quem tenha razão, que seja produto de uma decisão judicial que se baseie nos factos suscitados no processo (normalmente pelas partes, mas que, em algumas situações, podem ter sido suscitados pelo próprio magistrado), e postos sob o crivo contraditório.
O fenómeno jurídico não prescinde da averiguação da ocorrência dos factos, sobre os quais incide o enunciado normativo, dando-lhe eficácia jurídica. “A arte do processo não é essencialmente outra coisa senão a arte de administrar as provas”, como afirmou BENTHAM, em pensamento clássico. A fase da instrução é a fase processual que traduz a sequência de actos processuais destinados a trazer ao processo os meios de prova que aí serão produzidos, assumidos e valorados pelo tribunal.
Pelo que é, também, uma actividade processual destinada a formar a convicção do tribunal sobre a realidade dos factos controvertidos. A instrução destina-se, assim em sentido amplo, a desenvolver actividades respeitantes à fixação dos meios de prova – o que abarca os actos de proposição (oferecimento da prova) e de admissão – e à produção de provas e respectiva apreciação. As provas visam demonstrar a realidade dos factos articulados pelas partes (art. 341.º CC) e dos factos instrumentais que resultem da instrução e julgamento da causa.
Dado que a demonstração da realidade dos factos nunca pode aspirar à certeza absoluta – a verdade acerca dos acontecimentos do mundo externo e do mundo psíquico é sempre contingente e é “filtrada” pela consciência do próprio sujeito -, a prova visa apenas formar no espírito do juiz um estado de convicção de que determinado facto respeitante a uma ocorrência alegada pela parte terá provável e razoavelmente acontecido.
A prova visa assim criar no espírito do julgador a convicção psicológica (certeza subjectiva) da realidade de um facto assente na certeza relativa do mesmo. Pelo contrário, nos procedimentos cautelares, as alegações de facto são justificadamente aceitáveis como fundamento da decisão a proferir nesse procedimento cautelar quando haja apenas a mera probabilidade séria da sua existência, com a sua prova sumária (art. 387.º, nº1, CPC).
A prova, cuja actividade probatória persuasiva ocorre numa acção, visa apenas demonstrar a verdade processual; ela nunca pode aspirar à verdade fenomenológica, à reconstituição tal e qual dos factos. Não deve confundir-se esta actividade com os próprios meios de prova, ou seja, com os elementos objectivos ou os meios através dos quais é possível obter essa certeza subjectiva ou convicção (o depoimento da testemunha objecto de vídeo gravação, o relatório pericial, o documento escrito).
Os meios de prova revelam, assim, o objecto mediato da prova, isto é, os próprios factos. Atende-se, porém, que a produção dos meios de prova se realiza, essencialmente, na audiência final de discussão e julgamento. A actividade probatória desenvolvida na acção estende-se para além da fase da instrução; nesta fase, os meios de prova são trazidos ao processo pelas partes ou ordenados oficiosamente pelo juiz.
Mas, mesmo aqui, a actividade probatória pode ser antecipada para a fase dos articulados: de acordo com o artigo 523.º do CPC, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes. Outrossim, há provas que não são produzidas na fase da instrução da causa, nem na da ausência de discussão de julgamento, mas antecipadamente: é o caso da produção antecipada de prova, nos termos do artigo 520.º do CPC. Havendo justificado receio de, por qualquer circunstância, se tornar impossível ou muito difícil de obter o meio de prova necessário à parte.
Esta fase processual inicia-se no momento em que a lei prevê a indicação dos meios de prova: se houver audiência preliminar, é nesta audiência que as partes devem indicar os meios de prova e requerer a realização de quaisquer diligências de prova, bem como a gravação da audiência final (artigo 508.º-A, nº2, alínea a), do CPC); se a audiência preliminar for dispensada, a secretaria notifica as partes do despacho saneador e da necessidade de, no prazo de 15 dias a contar dessa notificação, apresentarem o rol de testemunhas, peticionarem a realização de outras actividades probatórias (depoimento de parte), alterarem os requerimentos probatórios que já tenham anteriormente apresentados e solicitarem a gravação da audiência final (art. 512.º nº1, do CPC). Esta fase termina quando se inicia a audiência final (art. 512.º nº2 e art. 508.º-A, nº2, alínea b), do CPC).

1.2. Objecto da prova
A prova tem por objecto os factos (art. 513.º, CPC), ou seja, como já referimos, as ocorrências da vida real, as ocorrências do mundo externo ou do mundo psíquico, bem como a situação ou qualidade de coisas ou pessoas e, outrossim, as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos).
A matéria de direito, ou seja, a indagação, a interpretação e a aplicação das regras de direito aplicáveis não pode ser objecto de prova. A prova pode incidir sobre os factos seleccionados e constantes da base instrutória.
O juiz pode, todavia, fundar a sua decisão nos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa. Além de que o juiz da causa ou o tribunal colectivo podem mandar ampliar oficiosamente a base instrutória da causa, aditando-lhe outros factos instrumentais (art. 650.º nº2, alínea f), do CPC), o mesmo acontecendo com o Tribunal da Relação (art. 712.º nº4, do CPC) e, em termos mais limitados, no Supremo Tribunal de Justiça (art. 729.º nº3, do CPC).
Nestas eventualidades, há factos que são, assim, do conhecimento oficioso do tribunal, em relação aos quais este pode dar como provada a sua existência, sem que haja nos autos qualquer juízo ou afirmação articulada das partes.
Embora sejam as partes que têm o ónus de apresentar o rol de testemunhas e de requerer quaisquer outras provas (arts. 512.º e 793.º nº1, do CPC), este direito das partes não pode ser exercido em relação às provas cujo método de obtenção ou forma de produção são ilícitos. Mas isto não obsta a que, em certos, casos, tais provas possam ser valoradas em processo civil ainda quando o método da sua obtenção seja ilícito.
Certos meios de prova não podem, na verdade, ser utilizados no processo. É o que se verifica, por exemplo, com a apresentação de testemunhas em número superior ao previsto na lei (arts. 632.º nº2 e 3º, 633.º, 789.º, e 796.º nº3, todos do CPC); e com as declarações efectuadas no âmbito de processos de averiguação oficiosa da paternidade ou maternidade, as quais não podem ser utilizadas numa posterior acção de reconhecimento de maternidade ou de paternidade (arts. 1808.º e 1868.º, ambos do Código Civil).
Da mesma forma, não podem ser utilizadas na lide as provas cujos métodos de obtenção são ilícitos, como acontece com as provas que são obtidas através dos métodos previstos no artigo 32.º nº6 da CRP.
Porém, mesmo aí, a ilicitude da obtenção da prova pode ser justificada sempre que a parte, que dela se quer servir, dificilmente poderia comprovar a realidade dos factos de outra forma. É o que parece suceder nas acções de divórcio litigioso, fundadas na violação dos deveres conjugais: o cônjuge autor pode proceder à captação audiovisual (não consentida) dos impropérios (violação do dever conjugal de fidelidade) que cometeu com uma terceira pessoa.
A peça escrita que contém a base instrutória apresenta-se sob a forma de quesitos, que devem ser subordinados a números, nos quais são formuladas perguntas que há-de ser respondido pelos tribunais, de acordo com a convicção que este venha a formar a partir da prova produzida (art. 655.ºCPC). Na redacção dos quesitos, deve procurar-se que os mesmos resultem claros, contendo cada um deles, tendencialmente, um só ponto de facto, começando pelos deduzidos pelo autor, e tendo a precaução de formular apenas um quesito quando o mesmo facto seja afirmado por uma parte e negado pela outra.
O ideal será elaborar os quesitos de maneira simples, para que a resposta correspondente possa apresentar a mesma singeleza e se resuma a: provado ou não provado. Em regra, não se deve colocar o tribunal perante a necessidade, para ser justo, de fazer distinções, reservas ou restrições.
A circunstância de cada quesito conter apenas um ponto de facto contribui em grande medida para garantir a desejada simplicidade. Quanto à ordem pela qual devem ser dispostos os quesitos, impõem-se o respeito pela sequência lógica dos factos, devendo escolher-se sempre “a versão adequada à repartição do respectivo ónus probandi”.
Conforme se adiantou, a base instrutória incide apenas sobre questões de facto. Aliás, o tribunal só pode pronunciar-se sobre tais questões, a ponto de a lei considerar como não escritas as respostas dadas a questões de direito (art. 646.º nº4, CPC). Isto significa que não é permitido formular quesitos sobre a matéria de direito. A base instrutória – como relativa à matéria considerada como assente – é estruturada a partir das alegações feitas pelas partes nos seus articulados.
Os articulados servem para a exposição dos factos e das razões de direito das respectivas pretensões, sucedendo que, inadvertida e frequentemente, as partes tratam indistintamente questões de facto e questões de direito, o que complica ainda mais a tarefa selectiva, pois esta, insista-se, só podem tomar em consideração os pontos de facto. A dificuldade consiste na formulação de um critério, de uma regra, que permita delimitar as questões de facto das de direito.
Atentemos em algumas propostas da doutrina. J. Alberto dos Reis referiu que é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior.
Por seu lado, é questão de direito tudo que respeita à aplicação e interpretação da lei. Castro Mendes sustentou que é matéria de direito tudo o que se relaciona com a existência, validade, ou interpretação das normas jurídicas, demarcando-se, por oposição, a matéria de facto.
Antunes Varela, por seu turno, entende que factos são as ocorrências concretas da vida real, devendo entender-se como tais não só os acontecimentos do mundo exterior (realidade empírico - sensível), como também os eventos do foro interno do sujeito (da sua vida psíquica, sensorial e emocional). Este autor integra ainda na categoria de factos susceptíveis de serem levados à base instrutória as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos.
Finalmente, para Manuel de Andrade, deve ser afastado de quesitação (por constituir matéria de direito) tudo o que envolva noções jurídicas, apenas podendo ser quesitados os factos materiais que interessem àquelas noções. Os esforços desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência têm fornecido importantes pistas para a resolução do problema.
Assim, por exemplo, não devem ser incluídas na base instrutória, por versarem sobre matéria de direito, as questões de saber se há uma “ofensa grave” ou se um dos cônjuges cometeu adultério, em termos de constituir fundamento de divórcio litigioso (art. 1779.º CC), se a dívida for contraída em proveito comum do casal, se há reputação como filho e tratamento como filho ou se há concubinato duradouro, nas acções de investigação de paternidade, se houve simulação de um negócio, se a alteração das circunstâncias básicas do contrato é normal ou anormal, se o objecto ou fim do negócio é contrario à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes, se os benefícios obtidos por um dos contraentes através do contrato são manifestamente excessivos ou injustificados, se havia velocidade exagerada, inadequada ou excessiva.
Deve, porém, ter-se em consideração que, por vezes, na formulação da lei, são empregues conceitos jurídicos que têm também uso na linguagem corrente, nesses casos, é de admitir a inclusão desses termos na base instrutória, valendo como factos, e entendidos os mesmos no seu significado comum (Prof. Anselmo de Castro).
Já não deverá ser assim, todavia, quando o objecto da acção esteja, ainda que só em parte, dependente da determinação do significado exacto daquelas expressões, as quais configurarão uma questão de direito, insusceptível de ser seleccionada.


1.3. Classificações doutrinais da prova
A doutrina costuma distinguir-se as provas pré – constituídas das provas constituendas. As primeiras, as provas pré – constituídas, são as que existem antes de emergir a necessidade da sua apresentação no processo, tais como os documentos ou, como já mencionamos, as provas produzidas antecipadamente em relação ao momento próprio em que deverão ser produzidas, por receio de se tornar impossível ou muito difícil a sua produção no momento normal e tempestivo da instrução (art. 520.º do CPC).
A maioria destas provas pré – constituídas não se constitui na acção pendente, pelo que a sua produção não reclama qualquer actividade preparatória; elas já preexistem e só há que regular a forma e o momento da sua apresentação na causa.
As segundas, as provas constituendas, são as que se formam após ter nascido no processo a necessidade de demonstrar a realidade de facto. É, normalmente, o caso da prova testemunhal, da prova pericial e da prova por inspecção judicial.
Distingue-se, ainda, as provas imediatas (ou directas) das provas mediatas (ou indirectas): as primeiras são colocadas directamente ao 6alcance da percepção do juiz (documentos, depoimento das testemunhas, etc.); as segundas, colocam ao alcance da percepção psicológica do juiz elementos que apenas permitem extrair ilações sobre o facto a provar (maxime, na prova por presunções e no depoimento da testemunha que diz ter visto um documento ou diz ter ouvido uma parte a produzir uma certa afirmação).

1.4. Admissibilidade dos meios de prova
Apesar da existência dos meios de prova, especificamente admitidos na lei portuguesa, segundo o Professor Remédio Marques, pode ser admitido como meio de prova tudo quanto se mostre capaz de testemunhar a existência dos factos essenciais ou instrumentais com interesse para a decisão da causa.
Por exemplo, uma mensagem enviada e recebida através de correio electrónico – cujo conteúdo pode, designadamente, indiciar ou assegurar a realização de um contrato ou de um negócio jurídico unilateral -, com assinatura electrónica avançada é equiparada a um documento particular (art. 26.º nº1 do Decreto – Lei nº7/2004, de 7 de Janeiro); os objectos elaborados pelo homem, susceptíveis de reproduzir ou representar factos, coisas ou pessoas podem ser qualificados como documentos.
Todavia, há casos em que não é livre a admissibilidade dos meios de prova. Desde logo, temos as hipóteses de certos factos só poderem ser provados através de certos meios de prova, maxime, a existência de certas formas legais (escritura pública, documento particular), para os negócios jurídicos, as quais asseguram a sua validade formal (formalidades ad substantiam).
Por outro lado, há factos para cuja prova não se admite o depoimento de testemunhas, como é o caso dos factos para cuja prova só pode ser feita por documentos, ou de factos contrários a outros, constantes em documentos ou complementares destes (arts. 393.º a 395.ºCC).
Quanto ao valor que os meios de prova revestem para a formação da prudente convicção psicológica do juiz, vigora no nosso ordenamento o princípio da livre convicção do julgador (art. 655.ºnº1, 519.º nº2 e 529.º do CPC): quer dizer, os meios de prova são apreciados livremente pelo tribunal, sem qualquer escala de hierarquização ou vinculação para o tribunal. Se o tribunal ficar na dúvida, deverá decidir contra a parte que tem o ónus de provar o facto (art. 516.º CPC).
Não existe entre nós, e de forma geral, um regime de prova tarifada ou prova legal. É certo, porém, que, em alguns meios de prova, a lei não permite que o tribunal aprecie livremente a prova. É o que sucede com a prova por confissão (depoimento de parte): a confissão judicial possui força probatória plena contra o confitente (art. 358.º, nº1, CC), ou seja, só pode ser elidida pela prova do contrário do facto confessado (art. 347.º CC); não basta a mera contraprova, isto é, não é suficiente criar no espírito do julgador a dúvida séria sobre a existência (ou inexistência do facto). É o que se verifica, também, com a prova documental, quanto aos documentos autênticos: estes documentos fazem prova, por si mesmo, acerca da sua proveniência ou paternidade e fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados (art. 371.º, CC).
Donde, a força probatória de tais documentos autênticos somente pode ser elidida mediante a prova em contrário ou através da arguição do incidente da falsidade, excepto quando a falta de autenticidade for manifesta pelos sinais exteriores do documento (art.370.º, nº2 CC).
A mesma força probatória é reconhecida aos documentos autênticos passados em país estrangeiro, em conformidade com as leis respectivas, sendo dispensada a legalização prévia do documento (art. 365.º, nº1 CC). Já, por sua vez, os documentos autenticados fazem prova da sua proveniência, quanto às pessoas que os subscreveram. E o termo de autenticação, lavrado pelo notário fá-los equivaler aos documentos autênticos.
Pelo contrário, há eventualidades em que a prova é pleníssima, ou seja, nem sequer admite prova do contrário (presunção de má fé constante do art. 1260.º nº3, do CPC).

1.5. Ónus da prova (situações especiais)
No quadro da instrução da causa e da actividade de convencimento do julgado acerca da realidade dos factos, coloca-se o problema de saber o que fazer se, chegados ao termo da instrução da causa – e recorde-se que muita actividade instrutória de produção de provas ocorre já na fase da audiência final de discussão e julgamento da matéria de facto -, o tribunal ficar com dúvidas insanáveis sobre a verificação (ou não verificação) de certo facto.
Como deve, nestas eventualidades, o juiz decidir, se não ficar convencido sobre a ocorrência (ou não ocorrência) de um facto ou de vários factos levados à base instrutória? Se o juiz ficar com tais dúvidas, ele, decerto, não pode pronunciar uma decisão de non liquet, nos termos do artigo 8.º, nº1 CC.
Esta questão e a solução que convoca são, em princípio, indiferente ao facto de o sistema processual civil ser mais ou menos marcado pelo princípio do inquisitório ou do dispositivo na fase da instrução – na verdade, entre nós, há esse hibridismo, pois, como vimos, além dos factos alegados pelas partes, o tribunal pode investigar a ocorrência de factos instrumentais e tomar em conta todas as provas produzidas que resultem desta actividade probatória (principio da aquisição processual).
A solução não é, seguramente, a de nada decidir ou abster-se de julgar (non liquet), quando se fica com dúvidas insanáveis acerca da verificação ou não verificação de factos. A solução é, pelo contrário, decidir contra a parte a quem incumbe o ónus da prova.
Daí que o ónus da prova implique a questão de saber a quem compete a prova dos factos controvertidos. Ora, segundo o artigo 342.º nº1 CC, a quem invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. Por exemplo, se o autor afirma que financiou a aquisição da habitação por parte do réu, emprestando-lhe 100 000 Euros, cabe-lhe convencer o tribunal que entregou efectivamente tais quantias ao réu e que este se obrigou a devolvê-las em certo prazo e em determinadas condições.
Na dúvida insanável sobre a ocorrência de tais factos, o juiz decidirá contra o autor e absolverá o réu no pedido. À contraparte incumbe, por sua vez, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado (art. 342.º nº2 CC).
Numa outra formulação, dir-se-á que cada parte deverá alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção, ou seja, cada parte tem ónus de demonstrar a existência de todos os pressupostos das normas que favorecem e legitimam legalmente a sua pretensão, sem prejuízo de o julgador poder usar alguma flexibilidade, atendendo à maior ou menor verosimilhança dos factos alegados.
No exemplo há pouco referido, ao réu cabe provar os factos impeditivos (o facto de ter celebrado o contrato de mútuo numa situação de incapacidade acidental, pois se encontrava alcoolizado), modificativos (o facto de a entidade administrativa competente ter suspendido os seguros de crédito, o que inviabiliza temporariamente a actividade económica do réu, o que, do ponto de vista jurídico, pode implicar a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato de mútuo, conduzindo à modificação do mesmo segundo juízos de equidade: art. 437.º nº1 CC), ou extintivos do direito de crédito do autor (o facto de o réu ter pago tempestivamente todas as prestações de reembolso do capital e dos juros respeitantes ao contrato de mútuo).
Outro exemplo. O autor peticiona a anulação de um acto de alienação de um automóvel, bem comum do casal, que ambos utilizavam nas deslocações para o emprego, feito pelo réu, seu cônjuge, a outra pessoa (que também deve ser parte), sem o seu consentimento (arts. 1687.º nº1 e 1682.º nº3, alínea a), do CC).
De acordo com o artigo 342.º CC, cumpre-lhe alegar e provar o facto que integra a sua qualidade de cônjuge, o facto de esse automóvel ser um bem comum, que era utilizado por ambos em deslocações para o emprego, e que foi vendido ao terceiro sem o seu consentimento. Ao cônjuge réu caberá alegar e provar, se puder e quiser, a prestação de consentimento do autor, seu cônjuge, para a prática do acto (facto extintivo da pretensão de anulação do negócio), o facto do suprimento judicial do consentimento que já obtivera (facto extintivo), a anulabilidade do casamento que celebrara com o autor, com má fé deste último (facto impeditivo), o decurso do prazo de que o autor dispunha para anular o negócio (facto extintivo), maxime, uma vez que o autor já tivesse conhecimento deste facto há mais de 6 meses, nos termos do artigo 1687.º nº2 CC.
Surpreendem-se, porém, eventualidades em que, por razões pragmáticas, se previu a inversão do ónus da prova. Já vimos, há pouco, uma delas: o caso das acções susceptíveis de ser propostas dentro de certo prazo, a contar do conhecimento de um facto. Nestas hipóteses, cabe ao réu a demonstração do facto de que o autor teve conhecimento do facto há mais tempo do que o previsto no prazo legal (de caducidade).
Se a lei presume certo facto contra o réu, não é o autor, a quem o facto aproveita, que tem de provar a sua existência; é, antes, o réu, a quem o facto prejudica, que tem de provar a sua inexistência. Atente-se nos casos de presunção de culpa, previstos em vários locais (art. 493.º nº1 CC); os casos em que se presume a boa fé ou a má fé (art. 1260.º nº2 CC); nos casos em que a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova do onerado (numa acção de indemnização, fundada na responsabilidade civil por factos ilícitos).
De igual sorte, nas acções de reivindicação em que o autor alega a posse, cabe ao réu ilidir a presunção da titularidade do direito de fundo, ou seja, o correspondente direito real que decorre dessa posse (art. 1268.º, nº1 CC).
1.6. Direito probatório material e direito probatório formal (distinção e princípios)
Pertencem ao direito probatório material os pontos relativos ao ónus da prova, à admissibilidade dos meios de prova e à força probatória de cada um deles. Como sabemos, são levados à base instrutória os factos relevantes para a decisão da causa que se mostrem controvertidos, necessitando por isso de ser provados para efeito da sua utilização na fundamentação da sentença (arts. 653.º nº2 e 659.º CPC).
Ora, levanta-se aqui o problema do ónus da prova, ou seja, a questão de saber a quem compete a prova desses factos controvertidos. A isso responde o artigo 342.ºCC, estabelecendo o critério geral da repartição do ónus da prova entre as partes. Significa isto que cada uma das partes deve procurar os factos susceptíveis de fundamentar a respectiva pretensão. Nessa medida, o artigo 516.º CPC, prescreve que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova, o problema se resolve contra a parte a quem o facto aproveita, até porque um non liquet acerca dos factos não desonera o juiz de decidir.
É importante, contudo, notar que o tribunal pode vir a dar como provado um facto sem que a parte a quem cabia essa prova o tenha, efectivamente, logrado. É que, por um lado, o artigo 515.ºCPC, consagra o princípio da aquisição processual, que impõe ao tribunal o dever de tomar em consideração todas as provas produzidas no processo, independentemente da parte de que provenham.
Por outro lado, o tribunal, no uso da faculdade concedida pelo artigo 265.º nº3, CPC, pode ordenar oficiosamente as diligências probatórias que permitam o apuramento da verdade. Há, porém, algumas situações em que a lei consagra desvios àquele critério geral.
É o que acontece nos casos previstos no artigo 343.º CC, (acções de simples apreciação negativa, acções que devam ser propostas dentro de certo prazo e acções baseadas em direito sujeito a condição e termo), e nos casos referidos no artigo 344.º CC (inversão do ónus da prova. Quanto aos meios de prova a admitir, vigora tendencialmente, o princípio da prova livre, segundo o qual podem ser usados todos os meios legais adequados à demonstração da realidade dos factos (presunções; prova documental; confissão; prova documental; prova pericial; prova por inspecção judicial e prova testemunhal.
No que respeita à força vinculativa destes meios de prova, pode dizer-se que, regra geral, eles são apreciados livremente pelo tribunal, como se alcança do artigo 358.º nº3 e 4º CC (confissão extrajudicial e judicial não escrita), artigos 366.º/371.º/376.º CC (para os documentos), artigo 389.ºCC (prova pericial), do artigo 391.º CC (para a inspecção judicial) e do artigo 396.º CC (para o depoimento testemunhal).
Pertencem ao direito probatório formal as normas que disciplinam a utilização dos meios de prova em juízo, indicando o modo de requerer as provas, de as produzir e de as valorar. Antes de analisarmos cada um desses meios de prova, importa mencionar os princípios que presidem esta actividade processual.
O primeiro, é o princípio do inquisitório, nos termos do qual o tribunal pode realizar ou ordenar oficiosamente as diligências que entenda necessárias para a descoberta da verdade (art. 265.º nº3 CPC), tendo porém, em conta os limites impostos pelo princípio do dispositivo quanto à matéria de facto (art. 664.º CPC).
Outro importante princípio é o da cooperação, consagrado nos artigos 266.º e 519.º CPC, segundo o qual todas as pessoas, partes ou não, devem prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for solicitado, submetendo-se às inspecções, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados. A recusa de colaboração é sancionada (art. 519.ºCPC) e, se ela provier da parte, além da sanção, o tribunal apreciará livremente tal conduta para efeitos probatórios, podendo mesmo condenar essa parte como litigante de má fé (art. 456.ºCPC).
Igualmente relevante é o princípio da audiência contraditória, previsto no artigo 517.º CPC, procurando garantir a ambas as partes o acompanhamento dos actos instrutórios e probatórios.
O último princípio, fixado no artigo 522.º do CPC, é do valor extraprocessual das provas. De acordo com este preceito, algumas provas produzidas num processo podem vir a ser utilizadas noutro processo contra a mesma parte. É o que acontece com os depoimentos de parte (art. 552.º e seguintes, CPC) ou testemunhais (art. 616.ºCPC), e com os arbitramentos (art. 568.ºCPC). para que as provas sejam reconhecidas noutro processo, a lei exige que tenham sido produzidas com audiência contraditória da parte, entendendo-se que não é necessário que a parte contrária haja efectivamente intervindo, participado, ou assistido, bastando que tenha tido a oportunidade disso, ou seja, que tenha sido notificada para esse fim.
Um outro princípio muito importante da actividade instrutória ocorrida na audiência final é o princípio da imediação. Segundo este princípio, o julgador deve ter, por um lado, um contacto mais próximo e directo possível com as pessoas ou com as coisas que servem de meios de prova; e, por outro, as pessoas (testemunhas, as partes e os peritos) devem situar-se na relação mais directa possível com os factos a provar, uma vez que são os veículos ou os instrumentos entre o julgador e a fonte da prova (a pessoa ou a coisa).
Só este contacto directo permite captar um acervo de sinais significativos sobre a realidade dos factos (mímica da testemunha ou da parte, as reacções da assistência, o tom de voz, o titubear, o rubor da face, a frieza do depoimento, entre outros). Isto significa que os actos de produção das provas constituendas tenham lugar perante o tribunal (tribunal de juiz singular ou perante o tribunal colectivo, nos casos em que, mesmo nas acções ordinárias, este se constitui para julgar matéria de facto) – exceptuados os casos em que a produção de prova seja antecipada, seja reduzido a escrito fora da audiência final (art. 624.º CPC), ou tenha que ter em tribunal diferente e os depoimentos não sejam prestados por teleconferência.
E quer isto também dizer que o tribunal deve recorrer à fonte de prova que tenha estado mais perto dos factos cuja veracidade ou inveracidade é susceptível de ser demonstrada.
Aquele contacto directo (o mais directo possível com as pessoas e as coisas que servem de fontes da prova: princípio da imediação) postula dois outros princípios: o princípio da oralidade e do princípio da concentração.
O princípio da oralidade traduz a ideia de que a produção de prova testemunhal e de depoimento de parte (e, igualmente, os esclarecimentos verbais sobre o relatório pericial que os peritos possam ser suscitados a prestar na audiência final), é efectuada oralmente, perante o tribunal que irá julgar a matéria de facto. O facto de esses depoimentos serem gravados (ou registados em outros suportes audiovisuais) não desvirtua a ideia de oralidade de tais depoimentos.
O princípio da concentração postula a ideia de acordo com a qual a actividade instrutória, a discussão da matéria de facto e o julgamento da matéria de facto devem ser, do ponto de vista temporal, o mais concentrados possível (art. 655.º nº2 CPC), sem que haja hiatos temporais significativos entre tais actos: estes devem por conseguinte, ser praticados com o menor intervalo de tempo entre si.

1.7. Procedimento probatório
No quadro do direito probatório formal interessa referir a sequência geral de actos processuais destinados a permitir a utilização dos diversos meios de prova. Este é o procedimento probatório.
Coisa diferente é, o valor dos diferentes meios de prova (prova plena, ónus da contraprova e da prova do contrário, prova pleníssima).
Em primeiro lugar, temos o ciclo processual do oferecimento das provas: cura-se do acto pelo qual uma das partes requer ao juiz a admissão ou a produção de determinado meio de prova. Requer-se a admissão se esse meio de prova for pré – constituído; e requer-se a produção se esse meio de prova for constituendo. No CPC é o art. 512.º que se refere a este ciclo processual, sem prejuízo da existência de outras disposições que referem este ciclo (arts. 576.º e 577.º quanto à prova pericial; art. 552.º nº2, quanto ao depoimento de parte, CPC).
Em segundo lugar, a este oferecimento há-de seguir-se a decisão sobre a admissão ou recusa do meio de prova. Veja-se, por exemplo, como expressões deste ciclo processual, o artigo 578.ºCPC, sobre a admissão da prova pericial; o artigo 554.º nº2, CPC, sobre a (não) admissão do depoimento de parte sobre factos criminosos ou torpes em que a parte seja arguida; e o artigo 637.º nº2CPC, sobre a decisão de admitir a depor uma testemunha impugnada pela contraparte.
Em terceiro lugar, uma vez admitido o meio de prova, caberá proceder à produção desse meio de prova, especialmente nas provas constituendas. Esta produção de prova inclui diferentes momentos processuais, consoante o tipo de meio de prova cuja produção é efectuada.
Por exemplo, na prova pericial, a parte requerente indicará logo o respectivo objecto, enunciando as questões de facto (os quesitos especificamente dirigidos aos peritos) que pretende ver esclarecidas (art. 577.ºCPC); poderá haver a ampliação ou restrição das questões de facto propostas pela parte contrária; ao que se segue a decisão do juiz sobre a fixação do objecto da perícia (art. 578.º nº2CPC); definido o objecto da perícia e designado o dia e o local do começo da diligência, a perícia é realizada (art. 582.ºCPC); após o resultado da perícia é apresentado um relatório, no qual os peritos se pronunciam fundamentadamente sobre o objecto da perícia (art. 586.º nº1CPC); podendo seguir-se reclamações contra o relatório pericial (art. 587.ºCPC); e pedidos de esclarecimento ou aditamentos, se as reclamações forem atendidas (art. 587.º nº3 e 4º CPC); e, finalmente, eventuais esclarecimentos orais dos peritos na própria audiência final de discussão e julgamento (art. 588.º CPC).


2. Meios de prova
Os meios de prova podem ser indicados ou requeridos na petição inicial (art. 467.º n 2, do CPC), e, por qualquer analogia, em qualquer outro articulado; caso isso não aconteça, esses meios devem ser apresentados ou requeridos na audiência preliminar, salvo se alguma das partes requerer, com motivos justificados, a sua apresentação ulterior (art. 508.º-A, nº2, alínea a), do CPC); se essa audiência não se realizar, os meios de prova devem ser apresentados ou requeridos nos 15 dias subsequentes à notificação do despacho saneador (art. 512.º, nº1, do CPC). Neste mesmo prazo, as partes podem alterar os requerimentos probatórios que hajam feito nos articulados (art. 512.º, nº1, segunda parte, do CPC).
Depois deste prazo, o rol de testemunhas ainda pode ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data de realização da audiência final (art. 512.º-A, nº1, do CPC), sendo a parte contrária notificada para usar, se quiser, de igual faculdade no prazo de 5 dias (art. 512.º-A, nº1 in fine, do CPC). A apresentação das novas testemunhas incumbe às partes (art.512.º-A, nº2, do CPC), isto é, o tribunal não procede à sua notificação


2.1. Prova pericial

2.1.1. Noção e valoração
A prova pericial consiste na percepção de factos através do parecer de uma pessoa especialmente qualificada num certo domínio técnico ou científico, que é o perito (art. 338.º, CC). A prova pericial é utilizada quando seja necessário recorrer a regras de experiência que não são conhecidas do tribunal ou quando os factos relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial (art. 338.º, CC; art. 612.º, nº1, do CPC).
A perícia é requisitada a estabelecimento, laboratório ou serviço judicial apropriado (como os serviços médico-legais), ou, quando tal não seja possível ou conveniente, é realizada por um único perito, nomeado pelo juiz de entre as pessoas de reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa (art. 568.º, nº 1 e 3, CPC).
Todavia, a perícia é efectuada por mais de um perito, até ao número de três, quando o juiz o determinar, por entender que ela reveste especial complexidade ou exige conhecimento de matérias distintas (art. 569.º nº1, alínea a), CPC), ou quando alguma das partes o requerer (art. 569.º, nº1, alínea b), e nº3, CPC).
Neste ultimo caso, se não houver acordo das partes sobre os peritos a nomear ou se o juiz se recusar a nomear algum perito por falta da sua idoneidade ou competência, cada parte escolhe um perito e o juiz nomeia o terceiro (art. 569.º nº2, CPC).
Se houver pluralidade de partes, prevalece a designação da maioria; se não se chegar a formar a maioria, a nomeação devolve-se ao juiz (art. 569.º, nº4, CPC). Aos peritos é aplicável o regime dos impedimentos e suspeições que vigora para os juízes (art. 571.º nº1).
Além disso, podem pedir escusa da intervenção como peritos, todos aqueles a quem seja inexigível o desempenho da tarefa por motivos pessoais (art. 571.º, nº3, CPC), assim como os titulares dos órgãos de soberania ou dos órgãos equivalentes das Regiões Autónomas, os magistrados do Ministério Público em efectividade de funções e os agentes diplomáticos de países estrangeiros (art. 571.º, nº2, CPC).

Quando a perícia for ordenada oficiosamente pelo tribunal, o juiz indica, no próprio despacho que a determina, o seu objecto (art. 579.º, CPC). Se ela for requerida por uma das partes, cabe-lhe indicar o objecto e enunciar as dúvidas que pretende ver esclarecidas através da diligência (art. 577.º nº1, CPC). Se o juiz entender que a diligência não é impertinente ou dilatória, ouve a parte contrária, que pode aceitar o seu objecto ou sugerir a sua ampliação ou restrição (art. 578.º, nº1, CPC). O juiz, no despacho em que ordena a diligência, fixa o seu objecto, podendo restringi-lo ou ampliá-lo relativamente às propostas das partes (art. 578.º, nº2, CPC). As partes podem fazer ao perito as observações que entenderem e devem-no esclarecer sempre que solicitadas (art. 582.º, nº4, CPC). Os peritos podem socorrer-se de todos os meios necessários ao bom desempenho da sua função, podendo solicitar, para tanto, a realização de diligências, a prestação de esclarecimentos e o fornecimento de quaisquer elementos constantes no processo (art. 587.º, nº3, CPC).
Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando as razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado (art. 589.º, nº1, CPC).
O tribunal também pode ordenar a realização da segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade. Esta segunda perícia – que, em regra, é colegial – recai sobre os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta (art. 589.º, nº3, CPC). Esta segunda perícia não invalida a primeira, pois que ambas são livremente apreciadas pelo tribunal (art. 591.º CPC e art. 391.º CC).



2.1.2. Comentário jurisprudencial
• Ver anexo 2
Como veremos, de seguida, o labor jurisprudencial, tem julgado estas matérias, um pouco na esteira de pensamento, seguida pelo Professor Remédio Marques, segundo o qual, o valor probatório da prova pericial está sujeito à livre apreciação do julgador (art. 389.º CC). O juiz querendo responder num sentido diferente, deverá naturalmente analisar criticamente as restantes provas (art. 653.º, nº2 CPC) e mostrar, até certo ponto, que as razões invocadas pelos peritos para lograr determinadas respostas não são convincentes à luz do quadro mais geral de certas provas, que terão inculcado na mente do julgador uma diferente convicção.
No acórdão do Supremo Tribunal de Lisboa, que data de 17 – 04 – 2008, processo nº 08P677, estamos perante um caso, em que é valorado uma perícia psiquiátrica. Face ao regime vigente, se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos, inerente à prova pericial, nada terá que dizer. Se o não acatar, e dele divergir, terá que fundamentar a sua divergência (cf. Ac. do STJ de 07-11-2007, Proc. n.º 3986/07 - 3.ª). Num caso, como no sub judicio, em que a convicção do julgador não divergiu da perícia, a qual, de harmonia com o art. 157.º do CPP, se revela idoneamente válida e segura na produção factual da conclusão a que chegou – a da imputabilidade do arguido –, não havia necessidade de realização de nova perícia e, por conseguinte, inexistia insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que consubstanciasse o vício constante da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
Não resultando da fundamentação da decisão em matéria de facto que a convicção do tribunal não tenha assentado numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento, ou que tenha contrariado as regras legais e da experiência, a circunstância de esse modo de valoração da prova e o juízo desta resultante não coincidirem com a perspectiva do recorrente não traduz omissão de pronúncia, não integrando qualquer nulidade.
Com efeito, e, como bem assinala o Digno Procurador-Geral Adjunto e seu douto Parecer, “no caso, as qualidades especiais do agente, atinentes ao seu carácter, violento e reflectido (bem retratado no modo de execução do crime e suas causas, bem como no que resulta dos factos provados sob o nºs 48, 49 e 50, são particularmente desvaliosas sobre interesses societários e muito relevantes, fundamentando a agravação da culpa e com ela, a agravação da pena.”
As exigências de prevenção especial na determinação da medida concreta da pena são valoradas e entrecruzam-se com a situação resultante da doença do arguido, juridico-penalmente acolhida pelo acórdão recorrido ao confirmar integralmente o acórdão do tribunal colectivo, que ordenou, ao abrigo do art. 104º nº 1 do Cód. Penal, o internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena.
Na verdade, face à reintegração do agente na sociedade, como uma das finalidades da pena, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, como resulta do art. 104º nº 1 do Apenas.
Como teve ocasião de referir o tribunal da 1ª instância, o arguido “padece e já padecia ao tempo dos factos de anomalia psíquica grave – perturbação depressiva na linha de uma doença bipolar.” E, citando o relatório pericial do Instituto de Medicina legal, o arguido «apresenta um grau de perigosidade social elevado. Esta perigosidade está relacionada com características da sua personalidade ou maneira de ser e não responde ao tratamento com psicofármacos».
Neste contexto, cremos ser patente que o regime dos estabelecimentos prisionais comuns será prejudicial ao arguido, podendo ainda este perturbar seriamente esse regime.”
Tal internamento é uma forma de cumprimento da pena, em que a perigosidade criminal surge verdadeiramente para fazer face a um perigo de carácter penitenciário. Estamos perante um caso em que a prova pericial foi claramente aceite pelo julgador, efectivando-se desta forma o seu valor probatório.

Relativamente a outro acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 – 09 - 2005, processo nº 05A2398, coloca-se em causa, o valor da prova pericial, perante as acções de investigação da paternidade, no que se refere, à prova directa e indirecta do vínculo da filiação (Professor Lopes do Rego).
Nada impede hoje que se considere que o nascimento do investigando é fruto da relação sexual mantida por sua mãe com o investigado no período legal da concepção, mesmo que se não tenha provado a exclusividade dessa relação em tal período.
A absolvição do Réu em processo crime é simples presunção legal ilidível mediante prova em contrário (art. 674-B C.P.C.).
De toda a prova produzida, sabendo-se que a prova pericial é de livre valor dado pelo Tribunal, art. 388 do C. Civil, e a prova por presunção também é valorada livremente pelo Tribunal, arts.349 e 351 do C. Civil, e que os factos não provados no processo-crime têm o se valor neste processo, arts.514°, n°2, e 522, n°1, do c. P. Civil, não se julgando, absolvendo o Réu do pedido, violou-se os preceitos atrás citados.
Portanto, não há dúvidas que foram violadas todos os normativos citados nestas conclusões.
O Réu não deve ser condenado em custas, porque a douta sentença não poderia ser reformada quanto a custas por iniciativa do Meritíssimo Juiz. O Meritíssimo Juiz ao reformar a douta sentença quanto a custas violou os arts.666,n° 1 e 669, n°1, al. b) todos do C. P. Civil.
Não pode haver a mínima dúvida, conforme o Réu pensa ter demonstrado nos termos atrás descritos, que foram violados todos os preceitos citados.
Corridos os vistos cumpre decidir.Na sentença que proferiu o Tribunal de 1ª instância considerou como matéria de facto provada a seguinte:

1. No dia 24 de Janeiro de 1983 nasceu, na freguesia de Santiago, concelho de Tavira, o menor B, que apenas foi registado como filho de C.

2. No entanto, o menor também é filho do ora réu, A.

3. Por virtude da deficiência psíquica desde que nasceu, C sempre residiu na mesma casa em que reside a sua irmã e o réu.

4. C manteve com o réu, pelo menos uma vez, relação sexual de cópula completa.

5. O nascimento de B é fruto da gravidez que sobreveio a C, pela relação sexual de cópula completa mantida com o réu, durante os primeiros cento e vinte dos trezentos que precederam o nascimento do autor.
O Tribunal da Relação tendo de se pronunciar sobre ela entendeu que a afirmação de que o B é filho do Réu é uma "expressão manifestamente conclusiva, nomeadamente quando a acção a julgar é uma acção de investigação de paternidade e se responde, desde logo, que o investigando é filho do investigado...".
Ora na jurisprudência crítica deste Supremo Tribunal nada se impõe dizer de diferente, sendo evidente que se tem que considerar como não escrita essa afirmação (nº2).
Assente, assim, a matéria de facto provada é com ela, e só com ela, que se tem de decidir, e tem que se afirmar que o Réu recorrente carece de razão.
Na verdade este, diz que aquele quesito não é matéria de facto, mas matéria de direito, pois, se sabe que o termo filho é um conceito jurídico, ou se é matéria de facto, foi em excesso ou contradição com os nºs 4 e 5, tendo-se, assim, violado os art. 511 nº 1 e 2 e 653 nº4 C. P. C.
Tal questão está superada pela não consideração da resposta dada ao dito quesito 2º.
Impõe-se acrescentar que nada impede que hoje se considere que o nascimento do então menor é fruto da relação sexual de cópula completa mantida por sua mãe com o réu, durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, mesmo não se tendo provado a exclusividade dessa relação sexual em tal período legal de concepção (cf. art. 1798º C. Civil).Face aos avanços tecnológicos neste campo de investigação biológica da paternidade é esse o entendimento correcto.

Anote-se, aliás, que se imputou a paternidade a um outro indivíduo, de nome B, que logo foi disso excluído pelo exame nele realizado.
E quanto ao outro exame realizado se dirá que ele levou à conclusão de que "a probabilidade de A relativa ao menor B é de 99,9999998%, o que corresponde a paternidade praticamente provada".
A afirmação do Réu recorrente na sua alegação deste recurso de revista de que " a Medicina actualmente, defende a teoria de que uma mulher não fica grávida duma só relação sexual, esporádica, entre duas pessoas, e, especialmente, sem amor," carece, pois, de relevo.

Refere ainda aquele uma existência de caso julgado por sua absolvição em processo-crime, mas é de referir nesta sede que a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário (art. 674-B - C.P.C), e que, no caso "sub judice" nesta acção cível o autor cumpriu o ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito (art. 342 C. Civ).

Em relação a um mesmo ponto de facto constante da matéria instrutória, pode o tribunal julgá-lo provado ou não provado, com base simultaneamente em prova testemunhal e em prova pericial; esta última não prevalece necessariamente sobre a primeira, visto que ambas são objecto de livre apreciação, como iremos comprovar na análise do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07 – 07 – 2005, processo nº 04B814.
Não sendo por lei afastada a prova testemunhal sobre a factualidade constante de certo quesito, e na falta de norma que defina sorte de preeminência da prova pericial sobre aquela, pode o tribunal em livre apreciação dos resultados das duas espécies de prova dar como provado o mesmo quesito.
Na óptica da segunda parte do n.º 2 do artigo 722 do Código de Processo Civil, carece, por conseguinte, de fundamento plausível a impugnação perante o Supremo da factualidade assim dada como provada, a pretexto de que esta se encontrava vinculadamente sujeita a prova pericial. É consequentemente inadmissível o recurso de revista cujo objecto se limita à impugnação da decisão de facto nos termos referidos.
Por último, importa referir, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 – 11- 2004, processo nº 04B3648, face à explanação que é feita dos requisitos e fundamentos da prova pericial. A prova pericial tem por finalidade a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial (art. 388º do C. Civil). Qualquer das partes pode requerer se proceda a segunda perícia no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (nº1 do art. 589º, do CPC).
A expressão adverbial "fundadamente", significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia.
Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.


A prova pericial tem por fim, segundo o art. 388° do Cód. Civil, a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.
Atribui-se, pois, a técnicos especializados a verificação/inspecção de factos não ao alcance directo e imediato do julgador, já que dependem de regras de experiência e de conhecimentos técnico-científicos que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se ser aquele possuidor. Foi isso que sucedeu relativamente à percepção e avaliação do terreno e das obras que os RR levaram a efeito no prédio em causa, tendo os 3 peritos que realizaram a perícia elaborado, de harmonia com o art. 586°, na 1 do Cód. Proc. Civil, o relatório inserto de fls. 315 a 321, no qual se baseou posteriormente o julgador quando dirimiu a matéria de facto, conforme se alcança da fundamentação constante de folhas 363 verso e 364 verso. Nos termos do disposto no nº 1 do art. 589°,do Cód. Proc. Civil, qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. A expressão adverbial "fundadamente", significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia.
Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.
Trata-se da emissão de um segundo juízo pericial a emitir por uma formação mais alargada, que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos (arts 589°, nº 3 e 590° do Cód. Proc. Civil). É, no fundo, como decorre do art. 591º do Cód. Proc. Civil, «uma prova a mais, que servirá ao tribunal para melhor esclarecimento dos factos» ou seja uma prova adicional facultada pela lei às partes.
Na hipótese vertente, essa prova adicional não chegou a ser produzida porque inviabilizada por despacho judicial adrede proferido.
Ora - tal como a Relação bem salienta e reconhece - essa segunda perícia foi requerida pela parte interessada com indicação dos motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira (Artº 589°, n° 1 do Cód. Proc. Civil) "e essa discordância surge bem explícita no requerimento que, em tempo, os ora agravados apresentaram e se encontra junto de fls. 339 e 340"(sic).
E isto porque - escreve-se no acórdão em análise - "não será de descartar a hipótese de o resultado a que chegariam os peritos na segunda perícia, no que toca ao valor das obras e do terreno, poder eventualmente vir a ser distinto do disposto no nº 1 do artº 589º do CPC "qualquer das partes resultado da anterior e inclusivamente aquele merecer melhor crédito (art°s 591º do Cód. Proc. Civil e 389° do, Cód. Civil), designadamente por se ancorar em maior números de peritos e apresentar melhor fundamentação".
E mais: "Nada garante, pois, que o Juiz que presidiu ao julgamento, caso dispusesse também desse meio probatório e sendo o resultado dele diferente, não viesse a basear-se no mesmo e respondesse de forma diferente aos diversos pontos da base instrutória" (ainda sic).
Contra, pois, o que sustentam os recorrentes, o requerimento da diligência mostrava-se "fundado", no sentido de "fundamentado" com vista ao eventual apuramento de resultados diferentes da primeira perícia, o que o Tribunal de
2ª instância reconheceu “ex-professo”.
Não é assim, agora, o caso de um deferimento meramente liminar ou tabelar, mas de um deferimento baseado em motivação suficiente para a eventual inversão do juízo pericial primitivamente emitido, versus a dirimenda matéria substantiva. Termos em que a não realização da segunda perícia seria susceptível de ter influenciado a decisão da causa, o que constitui nulidade (art.° 201º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), que inquina os termos subsequentes, com excepção da produção da prova testemunhal que se encontra gravada (art° 201º, n.° 2 do Cód. Proc. Civil), ou melhor, apenas afectará as respostas dadas aos vários pontos da base instrutória e a sentença.


2.2. Prova por inspecção judicial

2.2.1. Noção e valoração
Este meio de prova tem por fim a percepção directa dos factos pelo próprio tribunal (390º C. Civil): o juiz percepciona directamente, através dos seus sentidos, pessoas ou coisas. Por exemplo, no caso do nosso acórdão 07A979 o juiz desloca-se ao local onde o autor diz que o réu invadiu uma faixa do seu prédio e aí percepciona directamente a existência de obras recentes, retirada de marcos, de redes, etc.
O juiz através da prova por inspecção judicial não se limita normalmente a extrair ilações que o levem a concluir sobre a realidade dos factos controvertidos ou que careçam de prova; pelo contrário, a observação de coisas ou pessoas levá-lo-á normalmente a concluir sobre a realidade de um facto probatório (seja para o considerar provado, seja para o considerar não provado ou provado com restrições).
A iniciativa deste meio de prova, embora caiba às partes e ao próprio tribunal (artigo 612º/1CPC), só tem lugar quando o tribunal o julgue conveniente. É claro que, embora se trate de um poder discricionário do próprio juiz (art. 156º/4 CPC), a recusa em realizar a inspecção judicial deverá ser fundamentada, pois a omissão da fundamentação pode gerar uma nulidade processual (art. 201ºCPC): quando essa omissão possa influir na decisão ou na decisão do pleito. As partes, ou inclusivamente os terceiros têm o dever de cooperar com o tribunal, faltando o acesso às coisas ou predispondo-se a ser observados pelo tribunal. A recusa deverá ser apreciada livremente pelo tribunal, sem prejuízo da inversão do ónus da prova se a coisa a inspeccionar estiver na disponibilidade fáctica ou na disponibilidade jurídica da parte; se a recusa provier de terceiro, será este condenado em multa, sem prejuízo dos meios coercivos que forem possíveis (519º/2 e 3 do CPC).
Quanto ao procedimento probatório, uma vez designada a inspecção judicial, terá de se notificar as partes do dia e hora a que ela deve ter lugar, as quais devem (e não apenas “podem”, como sugere escrito no 613º do CPC, prestar esclarecimentos, assim como a chamar a atenção do juiz para os factos que reputem de interesse para a resolução da causa.
Quanto ao valor probatório, o resultado da inspecção judicial é apreciado livremente pelo juiz (391º Código Civil) e circunscreve a sua relevância ao processo onde foi efectuada, estando vedado neste caso, o seu valor extraprocessual (522ºCPC).

2.2.2. Comentário jurisprudencial
• Ver anexo 3
Acórdão 07A979:
Referente ao nosso acórdão, decidiu a Relação que não podia basear a sua convicção e alterar a quase totalidade das respostas aos quesitos com base numa presunção que, para além de enfermar de erro nos seus pressupostos, colide com outros meios de prova constantes dos autos, nomeadamente a prova por inspecção judicial, que (por se tratar de um meio de prova directa, na medida em que é o Tribunal a observar ele próprio os factos a provar), tem muitíssimo mais força do que as presunções judiciais, sob pena de violação das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico e de ilogismo; Contudo, a prova por presunção judicial tem como limites o respeito pela factualidade provada e não pode eliminar o ónus da prova nem modificar o resultado da respectiva repartição entre as partes, devendo o seu uso (prova por presunção) ser objecto de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao raciocínio efectuado, como é o caso dos autos;
O acórdão recorrido procedeu à alteração da decisão da matéria de facto, não com base na prova produzida e constante dos autos, mas com base na presunção de que a parcela de terreno teria de pertencer aos réus, pelo facto de se ter entendido (mal) que os autores não fizeram a prova da posse de tal parcela; Encontrando-se a parcela de terreno em litígio física e materialmente ligada ao prédio urbano dos autores, os réus, que deduziram reconvenção invocando a posse e a aquisição da mesma por usucapião, teriam de provar actos materiais de posse sobre tal parcela conducentes à usucapião, não sendo suficiente nem lhes bastando a falta de prova da posse dos autores. Ao proceder à alteração da quase totalidade da matéria constante da base instrutória em consonância com a presunção de que a parcela de terreno teria de pertencer aos réus, pelo facto de se ter entendido que os autores não fizeram prova da posse sobre a mesma, o acórdão recorrido violou os regras do ónus da prova estabelecidas nos art.ºs 341º e 342º do Cód. Civil e o disposto nos art.ºs 653º, n.º 2, e 659º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.
Entendendo que nem os autores nem os réus fizeram prova sobre a posse do terreno em litígio, a Relação deveria ter julgado também improcedente o pedido reconvencional (relegando a questão para uma eventual acção de demarcação ou outra), ou então deveria ter julgado improcedentes ambas as apelações, mantendo a decisão da 1ª instância, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito; O acórdão recorrido procedeu à alteração da decisão da matéria de facto de forma incompreensível, não tomando em devida conta e consideração a matéria quesitada, conforme resulta das respostas dadas aos n.ºs 3º, 4º, 5º, 6º e 15º da base instrutória, cujas respostas divergem da matéria quesitada;
O acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art.ºs 341º, 342º, 349º, 351º, 390º, 391º, 1263º, 1287º, 1296º e 1316º do Cód. Civil, e nos art.ºs 264º, 612º, 615º, 646º, n.º 4, 653º, n.º 2, 659º, n.ºs 2 e 3, 664º e 712º do Cód. Proc. Civil.
Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido, quer na parte em que procedeu à alteração da decisão da matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito, devendo ser substituído por outro que julgue a reconvenção improcedente ou que mantenha a decisão da 1ª instância, com as legais consequências, decidindo-se, sempre como última alternativa, que os réus são donos apenas da parcela a nascente da casa dos autores, correspondente ao triângulo isósceles referido na sentença da 1ª instância; ou, caso assim se não entenda, que o acórdão recorrido seja anulado.
A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a alteração da decisão sobre a matéria de facto feita no acórdão recorrido, e que pretendem seja revogada, por um lado por ter sido feita com base em presunção de que a parcela de terreno em litígio teria de pertencer aos réus por ter entendido que os autores não provaram a prática de actos de posse sobre a mesma parcela, e por outro por ter considerado provada matéria de facto não articulada.
Como é sabido, face ao disposto no art.º 729º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido (aqui, a Relação), o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, sem poder alterar a decisão proferida por aquele Tribunal quanto à matéria de facto, salvo o caso excepcional previsto no art.º 722º, n.º 2, do mesmo Código, ou seja, salvo havendo ofensa de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Com tem sido entendido, porém, no que a presunções judiciais respeita, não podem as Relações, com fundamento nelas, alterar as respostas aos quesitos, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.
Podem as Relações, no uso da sua competência em matéria de facto, recorrer a presunções judiciais, instituto previsto nos art.ºs 349º e 351º do Cód. Civil, inclusive para com base nelas desenvolverem a matéria de facto fixada na 1ª instância declarando provado algum facto por ilação de algum outro facto dado por provado, ou para reforçarem a fundamentação da decisão recorrida, mas não lhes é lícito, por essa forma, dar como provado o que nas respostas ao questionário ou à base instrutória foi considerado não provado ou por outra forma contrariar as respostas sobre a base instrutória, isto é, não podem, somente com base em presunções judiciais, ilididas na 1ª instância mediante prova testemunhal, alterar as respostas, positivas ou negativas, aos pontos da base instrutória, que só podem ser alteradas quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 712º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.
É lícito à Relação, com efeito, tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não altere os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica destes.
E o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, embora não possa recorrer a presunções judiciais, - pois que o Tribunal, ao afirmar um facto desconhecido porventura por não ter sido incluído na base instrutória, por meio de ilações, com base em juízos de probabilidade, em regras de experiência, em princípios de lógica, está a fazer um julgamento em matéria de facto -, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado (art.º 664º do Cód. Proc. Civil).
Neste sentido são numerosos os acórdãos proferidos sobre tal questão, caso dos acórdãos deste Supremo de 5/7/84, 3/11/92, 9/3/95, 26/9/95, 31/10/95, 20/1/98, 9/7/98, 7/7/99, 20/6/00, 19/3/02, 2/10/03, 15/2/05 e 7/11/06, facilmente detectáveis na Internet.
Ora, analisando o acórdão recorrido, constata-se que este, ao alterar a decisão sobre a matéria de facto, se baseou essencialmente na prova documental e testemunhal produzida que livre e pormenorizadamente analisou no uso dos seus poderes de apuramento da matéria de facto, pelo que não ocorrem as circunstâncias em que os recorrentes se baseiam para obterem alteração da matéria de facto fixada pela Relação.

Em conclusão, retiramos que as Relações não podem, com fundamento em presunções judiciais, alterar as respostas aos quesitos ou aos pontos da base instrutória, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.
Podem a Relações tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não alterem os factos provados, antes neles se baseando e forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica daqueles.
O STJ, embora não possa recorrer a presunções judiciais, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado.

Acórdão 04B3540:
“A prova por inspecção tem por fim a percepção directa de factos pelo tribunal” (390ºCC).
Através dela, por sua iniciativa ou a requerimento das partes, o tribunal “sempre que julgue conveniente”, confronta-se, sem intermediário, com fontes de prova indiciária (pessoal ou real), assim se esclarecendo sobre a realidade de factos duradouros, normalmente instrumentais que interessem à decisão da causa.
Tratando-se de coisas móveis facilmente deslocáveis ou de pessoas não impossibilitadas de se deslocar, a inspecção terá lugar no tribunal e, sempre que possível, na audiência de discussão e julgamento. Mas se assim não for, inclusivamente por se tratar de coisas imóveis, o tribunal pode deslocar-se ao local em que a fonte de prova se encontre, incumbindo à parte que tiver requerido a diligência fornecer ao tribunal os meios adequados para o efeito, salvo se gozar de isenção ou de dispensa de custas.
Tal como no acto da inspecção pericial, as partes notificadas podem estar presentes no de inspecção judicial aí devendo prestar ao tribunal os esclarecimentos de que ele careça e podendo fazer as observações que reptem de interesse para a finalidade da diligência. O resultado da diligência fica a constar em auto, que conterá todos os elementos úteis para a prova dos factos da causa, isto é, todos os factos instrumentais relevantes para a prova dos factos principais, sem prejuízo de serem tiradas fotografias para junção ao processo ou documentação da parte contrária.
A inspecção tem como limite a ressalva da intimidade da vida privada e familiar e da dignidade humana, bem como o sigilo profissional, de funcionário público ou de Estado.
O resultado da inspecção está sujeito à livre apreciação do julgador (391º CC).
Insusceptível de produzir efeito extraprocessual, que o art. 522 reserva aos “depoimentos e arbitramentos”, circunscreve ao processo a sua relevância e eficácia.
No acórdão 04B3540 começa o recorrente por invocar a nulidade da sentença invocando o vício do art. 668°, n° 1, alínea d), do C.Proc.Civil - omissão de pronúncia - porquanto, por um lado, tendo sido requerida prova por inspecção judicial, tal requerimento nunca obteve qualquer despacho por parte do M.mo. Juiz, e, por outro lado, tendo o M.mo. Juiz determinado por despacho a audição do agente que elaborou o auto, por ser importante para a descoberta da verdade material, o mesmo não compareceu na audiência de julgamento, e prescindiu-se da sua audição, sem qualquer justificação.
Prescreve o art. 668º, nº 1, do C.Proc.Civil (aplicável aos acórdãos das Relações exarados em sede de apelação por força do disposto no art. 716º, nº 1, do mencionado Código) que é nula a sentença:
a) quando não contenha a assinatura do juiz;
b) quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão;
d) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Esta enumeração dos casos que determinam a nulidade da sentença (do acórdão) é taxativa e não abrange as demais nulidades do processo que são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso - uma invalidade mais ou menos extensa.

Ora, as irregularidades apontadas pelo recorrente - falta de despacho a ordenar (ou indeferir) a prova por inspecção judicial requerida e dispensa da audiência do agente que elaborou o auto do acidente depois de ter sido determinada a sua comparência no julgamento por ser importante para a descoberta da verdade material - situam-se justamente neste leque das nulidades processuais, constituindo, aliás, nulidades secundárias submetidas à regra geral do art. 201º do C.Proc.Civil. Tais nulidades - a existirem - só podiam ter sido invocadas pelo interessado na prática do acto, no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (arts. 201º, nº 1, 203º, nº 1 e 205º, nº 1, do C.Proc.Civil e art. 6º, nº 1, al. b), do Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), devendo ter sido arguidas, em princípio, no tribunal onde foram cometidas e nele julgadas.
A enumeração pelo artigo 668º, nº 1, do C.Proc.Civil dos casos de nulidade da sentença (aplicável aos acórdãos das Relações exarados em sede de apelação por força do disposto no art. 716º, nº 1, do mesmo Código) é taxativa, não abrangendo qualquer outra nulidade processual a que a lei faça corresponder uma invalidade mais ou menos extensa.

Conclusão:
Na prova judiciária, o juiz é o destinatário das provas.
Todas as provas se destinam a produzir efeitos na mente do juiz, formando através do raciocínio, o juízo positivo ou negativo da existência dos factos aos quais a decisão aplicará o correspondente direito.
A prova como resultado final, consiste na convicção ou tem como função a sua formação na mente do juiz da veracidade dos factos. A convicção do julgador como função ou finalidade da prova corresponde a uma concepção subjectivista de uma realidade objectiva, os factos. A convicção do juiz reduz a prova a um acto de fé; à crença subjectiva do juiz da existência dos factos, que a lei transforma num juízo de certeza com validade apenas no caso concreto.
Em todos os tempos a ideia de justiça como objecto do Direito está sempre presente e ancorada no pressuposto da verdade, ou seja, na incidência das normas jurídicas sobre a realidade.
No que é preciso assentar é na necessidade de garantia dos factos, a necessidade de buscar a verdade dos factos como pressuposto da tutela jurisdicional efectiva dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico. De nada adiantará à lei atribuir aos cidadãos inúmeros direitos, se não lhe confere a possibilidade concreta de demonstrar ser titular desses direitos, se lhe impõe uma investigação rápida e incompleta, impedindo o cidadão de obter a tutela dos direitos pela impossibilidade de demonstrar a ocorrência dos factos dos quais eles se originam.



2.3. Prova testemunhal
2.3.1. Noção e valoração
Das regras gerais sobre a prova testemunhal (arts. 392º a 396º, CC) resulta uma admissibilidade genérica da sua produção por via de uma interpretação a contrario sensu do art. 392º, CC . A prova testemunhal traduz-se numa declaração, num depoimento de uma testemunha acerca de matéria controvertida, relativamente a um ou vários factos. A sua força probatória é apreciada livremente pelo tribunal (art. 396º, CC), numa zona de livre decisão em que também lhe incumbe fazer a distinção entre matéria de facto assente e carecida de prova (511º, CPC).
A testemunha é uma pessoa que, ainda que não seja parte no processo, é chamada ao tribunal de modo a que lhe preste informações sobre factos controvertidos e carecidos de prova.
A doutrina costuma distinguir entre as provas pré-constituídas e as provas constituendas. Entre as primeiras, que existiam mesmo antes da pendência do processo e subsequente necessidade de apresentação em juízo, contam-se os documentos e as provas produzidas antecipadamente em relação ao momento próprio em que deverão ser produzidas (520º, CPC). Por outro lado, a prova constituenda não será mais do que aquela cuja formação só ganha necessidade após ser suscitada no processo. Essas seriam a prova testemunhal, bem como as provas periciais e prova por inspecção judicial.
Ainda cumpre operar a distinção entre prova imediata ou directa e prova mediata ou indirecta. A primeira é colocada directamente ao alcance da percepção do juiz, demonstrando-se o próprio objecto da prova. Na segunda o que se coloca ao alcance da percepção do juiz são somente elementos que permitem extrair ilações sobre o facto a provar, seja por presunções legais ou por dedução. Também o depoimento de testemunha pode ter carácter indirecto .
A selecção da matéria de facto relevante para fazer prova deve ser feita em audiência preliminar (508º-A, 1, e)), a menos que, quando revista excepcional simplicidade, o juiz possa dispensar audiência preliminar (508º-B, 1, b)). Da audiência preliminar devem constar os meios de prova propostos pelas partes, decidindo o juiz quanto à sua admissibilidade no processo (508-A, 2) .
O rol de testemunhas pode ser apresentado conjuntamente com a petição inicial (art. 467.º nº2CPC), na audiência preliminar (art. 508.º-A, nº2, alínea a), CPC), ou, se ela não se realizar, nos 15 dias subsequentes à notificação do despacho saneador (art. 512.º, nº1, CPC). As testemunhas são designadas no rol pelos seus nomes, profissões, moradas e por outras circunstâncias necessárias à sua identificação (art. 619.º CPC). O rol de testemunhas pode ser alterado ou aditado até 20 dias antes da data da realização da audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade no prazo de 5 dias (art. 512.º-A,nº1CPC). A parte pode desistir a todo o tempo da inquirição da testemunha (art. 619.º,nº2CPC) e pode proceder à sua substituição se ela não se apresentar a depor (art. 629.º nº1 e 2º, CPC). O número das testemunhas que podem ser utilizadas num processo ordinário encontra-se duplamente limitado: existe um limite máximo para o número total de testemunhas (art. 632.ºCPC), e um outro para o número de testemunhas que podem ser chamadas a depor sobre cada facto controvertido (art.633.ºCPC). Assim, cada parte não pode oferecer mais de 20 testemunhas para prova dos fundamentos da acção ou da defesa, excepto se houver dedução de pedido reconvencional: neste caso, cada uma delas pode oferecer mais 20 testemunhas para a prova da fundamentação daquele pedido e da defesa contra ele. Os nomes das testemunhas que ultrapassem estes máximos legais consideram-se não escritos. Dentro destes limites globais, a parte não pode indicar mais de 5 testemunhas para a prova de cada facto, embora não se contem, para esse efeito, as que tenham declarado nada saber sobre ele.
A testemunha tem de possuir capacidade natural para depor (art. 616.ºCPC), não estar afectada por qualquer impedimento (art.617.ºCPC) e não deve revelar, quanto a ela, uma recusa legítima a depor (art. 618.ºCPC). Estas últimas situações originam inabilidades legais para depor (Professor Lourenço Martins). Têm capacidade para depor como testemunhas todos aqueles que, não estando interditos por anomalia psíquica, tiveram aptidão física e mental para depor sobre os factos que constituem o objecto da prova (art. 616.ºCPC). Portanto, os interditos por anomalia psíquica (art. 138.º,nº1,CC) nunca possuem capacidade para depor, mas os interditos por outra causa (ou seja, por surdez – mudez ou cegueira) e os outros incapazes (isto é, os menores e inabilitados) não estão impossibilitados de depor, desde que para tal possuam a necessária aptidão física e mental. Assim, por exemplo, um invisual não pode depor sobre um facto cujo conhecimento dependa da visão, mas não está incapacitado de depor sobre um facto cuja percepção exija a audição. Incumbe ao juiz verificar a capacidade natural da pessoa arrolada como testemunha para depor sobre o facto (art. 616.º nº2, CPC). As partes estão legalmente impedidas de depor como testemunhas (arts. 617.º e 552.º, CPC). Num plano mais geral, a recusa a depor como testemunha pode ter por fundamento quer uma relação de parentesco, de afinidade, de casamento ou de união de facto com uma das partes da causa (art. 618.º,nº1CPC), quer um segredo profissional, de funcionário público ou de Estado. Aquele primeiro fundamento origina uma inabilidade relativa, pois que aquelas pessoas podem recusar-se a depor, mas não estão obrigadas a fazê-lo (art. 618.º,nº2, CPC); este último cria uma inabilidade absoluta, dado que, enquanto a pessoa não for eventualmente dispensada do segredo, ela não pode desvendar (art. 135.º a 137.º, do CPP).
Quando, no decurso da acção, haja razões para presumir que determinada pessoa, que não foi oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, o juiz deve ordenar a sua notificação para depor (art. 645.º nº1, CC). Essa pessoa pode mesmo ser alguém que seja inábil para depor, desde que essa inabilidade seja relativa (STJ – 28/11/1995, CJ/S 95/3, 126).

2.3.1 Comentário jurisprudencial
• Ver anexo 4
Do artigo 393º, CC constam os casos excepcionais em relação à admissibilidade da prova testemunhal. Como se pode ver numa análise ao acórdão do STJ nº 08S724, de 08/10/2008, a prova testemunhal pode e deve ser dispensada pelo juiz quando o facto ficar plenamente provado por outro meio com força probatória plena (nº2, in fine, do 393º). Contudo, e quanto a vícios da vontade, ainda que haja documento com força probatória, a doutrina tem entendido que não se deve impedir a prova testemunhal, quando se vise provar que houve dolo, erro, coacção ou simulação .
Resulta do disposto nos artigos 392.º e 393.º, do Código Civil, a proibição de conferir à prova testemunhal, em relação à qual vigora o princípio da livre apreciação (artigos 396.º do Código Civil e 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), qualquer valor quando incida sobre factos que só possam ser demonstrados por outros meios de prova ou que se achem evidenciados por meios de prova dotados de força probatória plena, casos subtraídos ao referido princípio da liberdade de julgamento, devendo ter-se por não escritas, no momento da elaboração da sentença, as respostas dadas em ofensa das regras da prova vinculada (artigos 615.º, n.º 2 e 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
O momento próprio para impugnar os fundamentos e sentido da decisão da matéria de facto é o da apresentação da alegação do recurso da sentença (artigos 712.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 690.º-A, alíneas a) e b), ambos do Código de Processo Civil).
Por isso, não é de qualificar como questão nova a, suscitada na apelação, inadmissibilidade do depoimento de uma testemunha.
Não tendo sido posta em causa a autoria da ré empregadora, quanto às «folhas de férias» referentes a Janeiro e Fevereiro de 2003, por ela preenchidas e enviadas à ré seguradora, tais «folhas de férias» fazem prova plena quanto ao nelas declarado em relação às retribuições auferidas pelo sinistrado nesses meses.
Deve o Supremo Tribunal de Justiça declarar provados tais factos, ainda que os mesmos não tenham sido incluídos na matéria de facto assente, seja na condensação, seja na sentença, seja, ainda, no acórdão da Relação.
No contrato de seguro de prémio variável, no momento da celebração as partes acordam, apenas, sobre o tipo de risco, as condições da sua prestação e outras circunstâncias que relevam para a avaliação do risco, acordando ainda, conforme resulta do artigo 4.º, alínea b), da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho por Conta de Outrem (constante da Norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro de 1999, publicada no Diário da República n.º 279, II Série, de 30 de Novembro de 1999, como Regulamento n.º 27/99), em remeter para as «folhas de férias» respeitantes a cada mês a definição e concretização seja do número de trabalhadores abrangidos pelo seguro, seja do valor das respectivas retribuições.
Na referida modalidade de contrato de seguro, a indicação dos valores dos salários não faz parte dos elementos da sua formação, mas sim da sua execução.
Assim, a responsabilidade da ré seguradora encontra-se limitada à retribuição que lhe foi comunicada pela ré empregadora, através do envio da «folha de férias» e com respeito ao mês em que ocorreu o acidente, sendo, para tanto, irrelevante, que as rés (empregadora e seguradora) tenham acordado, na celebração do contrato, e de forma genérica, que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões, se os valores a eles respeitantes não constavam da mencionada «folha de férias».
Tendo o Tribunal da Relação do Porto confirmado a decisão da 1.ª instância, a apelante veio pedir revista do respectivo acórdão, tendo formulado, a terminar a respectiva alegação, as conclusões assim redigidas:
O depoimento da testemunha DD, ao vir negar um documento escrito e assinado por si próprio, era de inadmissível valoração, não podendo, nessa medida, fazer qualquer tipo de prova contra tal documento (pedido de cotação de seguro). Tal questão, de proibição da valoração do seu depoimento, só em sede de recurso poderia ser levantada, pois que só com a sentença e com a fundamentação das respostas aos quesitos se sabe que valoração foi feita ao depoimento de tal testemunha.
A proibição de valoração de um depoimento a que se refere o Art. 394.° CC ou a inadmissibilidade legal de alguém depor como testemunha prevista nos Arts. 616.° e 617.° CPC são questões absolutamente distintas, sendo que a que foi invocada pela recorrente foi a primeira, a qual, por isso, deveria ter sido conhecida pelo Tribunal da Relação.
Ao não o fazer, violou o Acórdão em crise o estatuído no Art. 394.° do Cód. Civil e não conheceu de matéria de que deveria ter conhecido, o que, nos termos do estatuído no Art. 668.º, n.º 1, d), [do Código de Processo Civil], constitui nulidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
O acórdão da Relação, depois de analisar o registo das provas oralmente produzidas em audiência, concluiu ter sido correcta a apreciação de tais provas pela decisão da 1.ª instância, e, em “nota final”, considerou: “a recorrente alega que o depoimento da testemunha DD «é legalmente inadmissível, nos termos do artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil». Acontece que esta é uma questão nova, dado que não foi suscitada, no momento próprio, ao tribunal da 1.ª instância para sobre ela se pronunciar”. E, prosseguindo: “como tal não pode este tribunal de recurso dela conhecer, uma vez que, como é sabido, «os recursos são meios para obter o reexame de questões submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre»”. O artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil dispõe que “[é] inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer posteriores”.
Trata-se de um disposição de direito material probatório, que se apresenta como corolário do preceituado nos artigos 392.º e 393.º do mesmo Código: no primeiro consigna-se a admissibilidade da prova por testemunhas em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada; no segundo, estatui-se, por um lado, que não é admitida prova testemunhal se a declaração negocial, houver, por disposição de lei ou estipulação das partes, de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito (n.º 1), e, por outro lado, que não é admitida prova por testemunhas, quando facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena (n.º 2), consentindo-se, porém, que a prova por testemunhas possa servir para a simples interpretação de documentos (n.º 3). Em rigor, o que resulta destes preceitos é a proibição de conferir à prova testemunhal, em relação à qual vigora o princípio da livre apreciação (artigos 396.º do Código Civil e 655, n.º 1, do CPC), qualquer valor quando incida sobre factos que só possam ser demonstrados por outros meios de prova ou que se achem evidenciados por meios de prova dotados de força probatória plena, casos subtraídos ao referido princípio da liberdade do julgamento, devendo ter-se por não escritas, no momento da elaboração da sentença, as respostas dadas em ofensa das regras da prova vinculada (artigos 615.º, n.º 2 e 646.º, n.º 4, do CPC).
A decisão proferida sobre a matéria de facto é susceptível de reclamação “contra a deficiência, obscuridade ou contradição ou contra a falta da sua motivação” (artigo 653.º, n.º 4, do CPC), mas não quanto ao sentido decisório e respectivos fundamentos, aspectos em relação aos quais a discordância das partes não tem que ser submetida ao tribunal que a proferiu, para ali ser apreciada, pois, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, aqui se compreendendo a matéria de facto, e, por outro lado, a respectiva decisão pode ser alterada pela Relação, designadamente, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto em causa e/ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas [artigo 712.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC], o que significa que o momento próprio para impugnar os fundamentos e sentido da decisão da matéria de facto é o da apresentação da alegação do recurso da sentença, como, de resto, resulta, claramente, da disciplina contida no artigo 690.º-A, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, que contempla o modo de impugnação da matéria de facto, mesmo que a impugnação não envolva a reapreciação de provas gravadas.
Dito isto, tendo sido alegada pela recorrente a inadmissibilidade do depoimento de uma testemunha, por ofender o disposto no artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil, não se afigura correcto o juízo segundo o qual se trata de questão nova, por não ter sido suscitada perante o tribunal da 1.ª instância.
Não estava, por conseguinte, o tribunal de recurso impedido de sobre ela se pronunciar e, abstendo-se de o fazer com base naquele juízo, olvidou o disposto nos referidos preceitos do Código de Processo Civil, o que configura violação de lei de processo, sindicável por este Supremo Tribunal, em conformidade com o disposto no já referido artigo 722.º, n.º 1. A recorrente persevera, no recurso de revista, em solicitar a alteração da decisão sobre a matéria de facto, maxime no que ao quesito 2.º da base instrutória diz respeito, devendo “dar-se como provado que nem na folha de férias ou retribuições de Janeiro nem na de Fevereiro de 2003 foram declarados e como tal transferidos, quaisquer prémios ou comissões como integrando a retribuição” do Autor. Aduz, em síntese, que ocorreu manifesto erro na apreciação das provas, com ofensa de disposição expressa da lei que exige certa espécie de prova – a documental – para que se desse como provada qual a retribuição declarada e transferida para a recorrente (artigos 426.º do Código Comercial e 364.º do Código Civil) e que, dada a extensa prova documental existente nos autos, a resposta àquele quesito não pode deixar de ser alterada no sentido proposto.
Na base instrutória, perguntava-se:
“1.º - Na celebração do contrato de seguro, as Rés acordaram que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões de vendas?”;
“2.º - Tendo o contrato de seguro sido celebrado em 1.1.03, a folha de férias apresentada em 15.2.03 e seguintes incluíam a declaração de tais prémios e comissões?”.
Ao quesito 1.º o tribunal respondeu: “Provado”; e ao 2.º: “Provado apenas que, tendo o contrato sido celebrado em 1/01/03, as folhas de férias da Ré empregadora referentes aos meses de Abril, Julho, Outubro e Dezembro de 2003 incluíam a declaração de tais prémios e comissões”. Esta resposta ao quesito 2.º significa que não se provou que a folha de férias apresentada em 15 de Fevereiro de 2003 e a do mês de Março do mesmo ano incluíam a declaração de prémios e comissões. Deste modo, o tribunal, limitando-se a responder ao que se perguntava, restringiu o âmbito dos factos demonstrados, neles não abarcando a menção, nas folhas desses dois meses, da componente variável da retribuição. Com efeito, não seria curial que, na resposta se afirmasse, como pretende a recorrente, que nem na folha de férias ou retribuições de Janeiro nem na de Fevereiro de 2003 foram declarados quaisquer prémios ou comissões como integrando a retribuição do Autor, pois se fosse este o teor da pronúncia do tribunal estaria a declarar provados factos não contemplados no texto do quesito, ou seja, a afirmar que se demonstrara uma realidade cuja averiguação aquele texto não prosseguia, não sendo lícito – por não se inserir no mero âmbito de uma resposta restritiva ou, mesmo, explicativa (esta compreendendo, apenas, factos instrumentais) –, quando, num quesito se interroga sobre a existência de um facto essencial para a decisão, responder com a afirmação de que se provou o facto contrário, também, essencial para decisão final.
Acresce que, no caso concreto, outro motivo se apresenta para não alterar aquela resposta, motivo esse que se prende com as regras que presidem à actividade de selecção dos factos relevantes para a decisão da causa. Assim, ao proceder a essa actividade de condensação, o juiz deve seleccionar a matéria de facto que deva considera-se assente e fixar a base instrutória, nesta incluindo a que deva considerar-se controvertida [artigos 508.º-A, n.º 1, alínea e) e 511.º, n.º 1, do CPC].
No juízo sobre a matéria de facto assente, há-de ter-se em atenção, entre outros, os factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, e se, porventura, tais factos forem levados à base instrutória, o tribunal não deve responder aos atinentes quesitos, pois que se o fizer, como já se referiu, as respostas têm-se por não escritas (artigo 643.º, n.º 4, do CPC).
Por outro lado, ainda que, na condensação, se haja omitido a inclusão nos factos assentes de factos plenamente provados por documentos, a sentença deve, na fundamentação, tomá-los em consideração (artigo 659.º, n.º 3, do CPC). No caso que nos ocupa foram juntos aos autos cópias de “folhas de férias”, enviadas pela Ré empregadora à Ré seguradora, mencionando as retribuições auferidas pelo sinistrado nos meses de Janeiro de Fevereiro de 2003 (fls. 71 e 72), cuja autoria, imputada à Ré empregadora, não foi posta em causa. Deles consta, apenas, o valor de € 1.361,47, nas colunas sob as referências “Ord. Base” e “Total”, nenhum outro valor se mencionando, designadamente na coluna “Outros Abonos”.
Tais documentos fazem prova plena de que foi aquele o valor declarado à seguradora pela empregadora, não admitindo prova por testemunhas (artigos 376.º, n.º 1 e 393.º, n.º 2, do Código Civil). Assim, os factos (valores declarados), porque plenamente provados, não podiam ser levados à base instrutória e se o fossem, qualquer eventual resposta haveria de ser considerada não escrita. Nesta perspectiva, não há, portanto, que alterar a resposta ao quesito 2.º, cujo teor não contende com o vertido naqueles documentos, nos pontos enunciados.
Mas os referidos factos, porque eventualmente relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, deveriam ter sido considerados provados e incluídos na matéria de facto assente, seja na condensação, seja na sentença, seja, ainda, no acórdão da Relação. O facto de tal não ter acontecido não impede este Supremo Tribunal de os declarar, agora, provados, em consonância com as regras de direito material probatório acima referidas, uma vez que o problema foi suscitado pela recorrente (artigos 729.º, n.º 2 e 722.º, n.º 2, do CPC).
Também não será admissível a prova testemunhal quando, de acordo com o nº1 do 393º, CC, por disposição de lei a prova haja de ser reduzida a escrito. Esse será o caso em análise no acórdão nº 07B4692, de 09/10/2008, também ele do STJ. Exige o DL 522/85 de 31/12, no seu art. 20º, que a existência do contrato de seguro se prove mediante a apresentação das respectivas actas e apólice, pelo que não será susceptível de ser provada por qualquer outra forma que não seja a escrita. As seguradoras podem demonstrar o cumprimento do ónus de envio do aviso de recepção da carta registada comunicando a suspensão da garantia decorrente do seguro por meio de prova testemunhal. O co-devedor solidário não tem legitimidade para pedir a condenação do outro devedor, dado que a existência deste não mitiga a sua obrigação de prestar, ao contrário do que sucede do lado activo, em que um maior número de devedores reforça a garantia patrimonial do crédito. Numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica, não é possível adoptar um conceito de dignidade humana, de origem metafísica, segundo o qual o ser humano tem uma essência espiritual presente desde o momento da concepção.
O artº 66º nº 1 do C. Civil, ao atribuir a personalidade jurídica, apenas ao nascido com vida, não é incompatível com o artº 24º nº 1 da Constituição, quando diz que a vida humana é inviolável, uma vez que o preceito constitucional, neste caso, está a proteger a vida uterina ainda não integrada numa pessoa. Assim, não há lugar à reparação por perda do direito à vida de um feto que faleceu em consequência de acidente de viação. VI – É equilibrado atribuir € 100,000,00 de indemnização pelo dano patrimonial futuro a um lesado que tinha 20 anos e ficou incapaz de desenvolver a actividade donde obtinha um rendimento diário de € 25. Não se justifica baixar uma indemnização por danos não patrimoniais de € 30.000,00, sendo € 20.000,00 pelo sofrimento físico derivado das lesões e pelas suas sequelas permanentes e € 10.000 pela perda do filho ainda não nascido. As indemnizações calculadas com base na equidade têm de ser entendidas, salvo expressa menção em contrário, como actualizadas, pelo que vencem juros a partir da primeira decisão condenatória.


2.4. Prova por confissão

2.4.1. Noção e valoração
O depoimento de parte pode ser ordenado oficiosamente pelo tribunal (art. 552.º, nº1, CPC), mas também pode ser requerido por qualquer das partes ou compartes (art. 552.º nº2 e 553.º nº3, CPC), caso em que estas devem indicar, de forma discriminada, os factos sobre os quais ele deve recair, ou ainda, nessas mesmas condições, pela parte acessória (arts. 332.º e 339.º, CPC). Se, durante o depoimento, a parte reconhecer a realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, esse reconhecimento vale como declaração confessória, mais concretamente como confissão judicial provocada (art. 356.º nº2, CPC). Como essa declaração é sempre reduzida a escrito (art. 563.º nº1, CPC), aquela confissão judicial possui força probatória plena contra o confidente (art. 358.º nº1, CC), isto é, só pode ser ilidida pela prova do contrário do facto confessado (art. 347.º, CC).
Os factos sobre os quais a parte pode ser chamada a depor devem ser factos pessoais ou factos de que o depoente deva ter conhecimento (art. 554-º nº1, CPC), excluindo os que sejam criminosos ou torpes. O depoimento só pode recair sobre factos que sejam desfavoráveis à parte, porque só nessa hipótese se pode originar uma confissão (art. 352.º CC). Esta confissão não faz prova se for declarada insuficiente por lei ou se recair sobre um facto cujo reconhecimento ou investigação a lei proíba (art. 354.º, alínea a), CC), se incidir sobre factos relativos a direitos indisponíveis ou se o facto confessado for impossível ou notoriamente inexistente (art. 354.º, alínea c), CC).
O depoimento de parte só pode ser exigido de pessoa que tenha capacidade judiciária (arts. 553.º, 353.º e 9.º, nº2, CPC). Pode requerer-se o depoimento de inabilitados e de representantes de incapazes, pessoas colectivas ou sociedades, mas o seu depoimento só tem valor de confissão nos precisos termos em que aqueles possam obrigar-se e estes possam vincular os seus representantes (art. 553.º nº2, CPC). A confissão só é eficaz quando for feita por pessoa com poder de disposição sobre o direito a que se refere o facto confessado. Por isso, a confissão realizada por um substituto processual não é oponível ao substituído (art. 353.º nº3, CC) e a eficácia da confissão feita por um litisconsorte depende da natureza do litisconsórcio: - se for voluntário (art. 27.ºCPC), a confissão é eficaz, mas o seu direito restringe-se ao interesse do confitente, o que demonstra que esse preceito se refere verdadeiramente ao litisconsórcio simples (não unitário), segundo o Professor Miguel Teixeira de Sousa; - se o litisconsórcio for necessário (arts. 28.º e 28.º-A, CPC), a confissão nunca é eficaz (art. 353.º nº2, 2ªparte, CC), o que, no entanto, deve ser entendido como abrangendo apenas os casos de litisconsórcio unitário (posição diversa do Professor Lebre de Freitas).
O interveniente acessório pode ser chamado a depor (art. 337.º, nº3, CPC), mas o seu depoimento, porque provém de uma pessoa que não pode dispor do direito ou da coisa litigiosa, não pode conduzir a qualquer confissão (art. 353.º nº1, CC). Por isso, o seu depoimento é apreciado livremente pelo tribunal, que deverá considerar na sua ponderação as circunstâncias e a posição na causa de quem o presta e de quem o requereu (art. 555.º CPC).
Antes de começar o depoimento, o juiz deve dar cumprimento ao disposto no artigo 559.º, isto é, alertar o depoente para o significado moral do juramento a prestar, e incitá-lo a depor com verdade, advertindo-o para as sanções aplicáveis às falsas declarações, exigindo, de seguida, que o depoente preste juramento, segundo a fórmula constante do nº2 do mesmo preceito, sendo que a recusa a prestar juramento implica recusa a depor (art. 559.º nº3, CPC), atitude que será livremente apreciada pelo tribunal para efeitos probatórios (art. 357.º nº2, CPC). O interrogatório, feito pelo juiz, incidirá sobre os factos que constituem o objecto do depoimento (art. 560.º CPC). Além disso, o depoente só pode ser interrogado sobre factos pessoais ou de que deva ter conhecimento (art.554.º nº1, CPC). O depoente deve responder às perguntas de forma clara, podendo, para o efeito, consultar documentos ou apontamentos de datas ou factos, mas não pode trazer o depoimento escrito (art. 561.ºCPC). Os advogados das partes assistem ao depoimento e podem pedir directamente esclarecimentos ao depoente (art. 562.º nº1, CPC).



2.4.2. Comentário jurisprudencial
• Ver anexo 5
No que se refere ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 – 10 – 2006, processo nº 06A2717, temos um caso em que o princípio da indivisibilidade da confissão é aplicável à prova documental. Estando expressamente impugnado o teor de um facto alegado pelo autor na petição inicial, não pode o mesmo ser julgado admitido por acordo.
O princípio da indivisibilidade da confissão é aplicável à prova documental.
Por isso, não podem ser dados por provados factos favoráveis ao autor constantes de uma conta-corrente elaborada e apresentada pela ré, se a mesma contiver outros factos favoráveis à ré e que o autor não aceitou e que modificam ou extinguem os efeitos dos primeiros factos. Resulta do disposto no art. 722º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, que no recurso de revista, o recorrente pode alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível recurso, nos termos do nº 2 do art. 754º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.
Por seu lado, o nº 2 do referido art. 722º acrescenta que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Pretende o recorrente que a decisão recorrida violou a força probatória que os arts. 352º , 355º, nºs 1 e 2, 356º, 358º, nº 1 e 361º, todos do Cód. Civil - a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem - fixam, no tocante ao meio de prova confissão. Além disso, pretende, ainda o recorrente que a mesma decisão em apreço ainda violou a força probatória documental prevista no art. 376º do mesmo código.
Assim, segundo o recorrente, os fundamentos do recurso aqui em causa estão previstos na parte final do mencionado nº 2 do art. 722º.
Tal como referiu o douto acórdão em recurso, a recorrida não confessou na sua contestação o teor do facto do quesito 7º como pretende o recorrente.
O citado quesito tem a redacção seguinte:
" Durante o tempo em que o A. utilizou a viatura, fez com ela serviços a pedido e no interesse da Ré que ascenderam a Escudos: 2.274.173$00, consoante docs. Este quesito mereceu da 1ª instância - fls. 222, verso - a resposta: "provado, apenas, que, entre 8-1-2001 e 15-3-2001, o A. facturou, em nome da ré, prestação de serviços no valor de, pelo menos, escudos (PTE) 2.270.173$00". O facto do mencionado quesito 7º fora alegado nos arts. 41º e 42º da petição inicial que têm a redacção seguinte:
Acresce que enquanto o A. teve a posse e fruição da identificada viatura efectuou diversos serviços de transporte a pedido da R. e no interesse desta." Serviços esses que ascenderam a 2.274.173$00."
Perante esta alegação, a recorrida na sua contestação, a fls. 75, depois de referir que "relativamente aos serviços de transporte, diga-se que os mesmos foram integralmente pagos", impugna expressamente o teor do art. 42º da petição inicial, ou seja, não admite que o autor tenha efectuado a pedido e no interesse da ré aquele montante de transportes.
Logo, bem andou o Senhor Juiz da 1ª instância ao fazer incluir aquela alegação do autor na base instrutória, por não estar aquela admitida por acordo tácito ou expresso - arts. 490º do Cód. de Proc. Civil.
Daí que, tal como bem entendeu o acórdão recorrido, não esteja confessado o teor daquele quesito, e, por isso, não haja que alterar a decisão daquela matéria de facto com base na alegada confissão.
Por outro lado, o recorrente ainda pretende a alteração da mesma matéria de facto com base no valor do documento de fls. 161 a 164 junto pela ré.
O documento aqui em causa consiste num " extracto existente na contabilidade da Empresa-A referente ao autor-reconvinte, à data de Abril de 2001".
Nesse extracto constam as seis primeiras das sete facturas que o autor juntou como fundamento do montante que figura no citado quesito 7º.
Poderá, assim, nos termos do art. 376º citado configurar uma prova plena documental, como pretende o recorrente ?
Ora, art. 376º nº 1 prescreve que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
E o seu nº 2 acrescenta: os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
O art. 360º, integrado na secção que trata a prova por confissão, prescreve que se a declaração confessatória, judicial ou extra-judicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão. Trata-se assim do princípio da indivisibilidade da confissão que exige a aceitação da mesma na sua integralidade, salvo provando-se a inexactidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessatória.
Aplicando esta regra à prova documental aqui em causa, vemos que do citado extracto contabilístico ou conta-corrente constam variados movimentos contabilísticos favoráveis à ré e o saldo final ali constante é largamente favorável à mesma.
Desta forma, a aceitar-se a declaração da ré ali constante do valor das seis das sete facturas do autor, haveria que aceitar os demais movimentos cujo saldo seria favorável à ré, pelo que seria de improceder o pedido do autor aqui em causa.
Por outras palavras, diremos que o teor do documento só seria aceitável no seu todo e não apenas na parte em que é favorável ao autor e tendo o autor rejeitado o que ali lhe é desfavorável, não podia ter sido admitida como provada a parte favorável àquele.
Sobra, desta forma, também este fundamento do recurso e com ele toda a revisto.
Em relação ao acórdão datado de 09 – 10 – 2007, processo nº 07A2114, do Supremo Tribunal de Justiça, estamos diante de um caso em concreto, onde se refere a força probatória de determinada prova por confissão.
Se nos embargos a uma execução para pagamento de quantia certa fundada em documento particular assinado pelo devedor se provar que a causa da confissão de dívida nele expressa foi certo contrato de compra e venda dum imóvel cujo preço não se encontra integralmente pago, a dívida assim confessada subsiste – devendo os embargos, consequentemente, improceder – mesmo que em acção anterior envol¬vendo as mesmas partes tenha sido decidido com trânsito em julgado atribuir força probatória plena contra o confitente à confissão dos vendedores no sentido de que já tinham recebido a totalidade do preço.
Quando exista um começo de prova escrita, e como complemento desta, é admissí¬vel, não contrariando o disposto no artigo 394º do Código Civil, a prova testemunhal que tenha por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
Alegaram como causa de pedir que a quantia exigida era parte do preço da venda que, em 9.5.91 fizeram aos réus de um imóvel, sendo que, embora na escritura tivessem declarado que já tinham recebido a totalidade do preço, isso não correspondia à verdade, como resultava da declaração de dívida subscrita pelos réus, na qual estes se confessam devedores da quantia de 3.000.000$00.
A acção procedeu em parte nas instâncias; todavia, por acórdão 2.6.99, o STJ revogou a sentença e o acórdão da Relação, julgou a acção inteiramente improcedente e absolveu os réus do pedido.
Nesse acórdão o STJ acolheu o argumento das instâncias de que a escritura pública de compra e venda de 9.5.91, constituindo prova plena de que os autores, ali vendedores, haviam declarado ter recebido a totalidade do preço, não constituía igual prova de que essa declaração fosse verdadeira. Mas, avançando com um outro argumento que as instâncias não tinham ponderado, considerou que aquela declaração integrava uma confissão extrajudicial do recebimento do preço, inserida em documento com força probatória plena, estando vedado o recurso à prova testemunhal e à prova por presunções judiciais para infirmar a sua veracidade.
E como a força probatória dessa declaração confessória fora afastada com base em depoimentos de testemunhas, deu como não escritas as respostas aos correspondentes quesitos, assim ficando a subsistir tão-somente a confissão do recebimento.
“É certo que nos autos se encontra um documento, o de fls. 12, que os autores ofere¬ceram como princípio de prova escrita dos factos agora censurados, (…). No julgamento procurou-se indagar se tal documento (que não está datado nem especifica qual a causa da dívida que nele se diz existir) diz respeito aos factos controvertidos entre as partes e o que resultou do julgamento é que tal relacionação não foi alcan¬çada. Por isso, por um lado, este documento não integra os fundamentos das respostas dadas aos quesitos cinco a sete; e, por outro, o Tribunal Colectivo respondeu negativamente aos quesitos sexto, nono e décimo primeiro a vigésimo, e com restri¬ções aos quesitos sétimo, oitavo e décimo. Quer isto dizer que não existe princípio de prova escrita que permita abertura à possibilidade de se provar por testemunhas facto contrário ao adquirido por confissão. E não pode este Tribunal substituir-se às instâncias no julgamento da matéria de facto em ordem a estabelecer relação entre o documento de fls. 12 e os factos censurados no texto deste acórdão, modificando as respostas negativas ou restritivas que o Tribunal Colectivo deu aos apontados que-sitos; não pode este Tribunal apreciar o meio de prova que é o docu¬mento particu¬lar de fls. 12 para dele, por presunção ou ilação, estabelecer a realidade de qualquer facto”.
Confrontado com esta decisão do STJ o ali autor CC instaurou em 6.10.00 execução contra os ali réus AA e mulher BB, apresentando como título executivo o documento que naquela acção constituíra fls 12 e que é a declaração transcrita no ponto 1) da matéria de facto do presente processo, desta forma visando obter a cobrança da quantia por ele titulada.
Os executados deduziram embargos, suscitando a excepção do caso julgado.
O saneador-sentença de fls. 102 a 107, confirmado pelo acórdão da Relação de fls 180 a 183, deu-lhes razão, considerando procedente a excepção arguida.
Mas o STJ, por acórdão de 25.11.04 (fls 246 a 256) revogou a decisão convergente das instâncias e ordenou o prosseguimento dos embargos.
Neste acórdão ponderou-se designadamente que:
Apesar de haver identidade de sujeitos da acção declarativa 48/96 e da acção executiva e embargos conexos, não existe identidade de causa de pedir e de pedido ( Na página 8 do acórdão afirma-se:
“Decorre do exposto que os sujeitos da acção declarativa que culminou com o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e os sujeitos da acção executiva e dos embargos conexos, no plano da sua qualidade jurídica, são, na realidade, os mesmos.
Todavia, a causa de pedir e o pedido formulados nos embargos de executado e na acção declarativa que culminou com o acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 2 de Junho de 1999 não são idênticos.
Os pedidos formulados na referida acção declarativa e na acção executiva em causa também não são idênticos, porque na primeira o que se visou foi obter uma decisão condenatória na decorrência de um juízo de apreciação de factos e de normas jurídicas, e, na última, num quadro de mera efectivação de um direito violado, a pretensão formulada foi a de citação para pagamento de 3.000.000$00 e juros ou nomeação de bens à penhora.”);
Na acção declarativa 48/96 o STJ concluiu, por um lado, não ter sido alcançada no julgamento a relacionação entre o documento agora dado à execução e os factos controvertidos e, por outro, inexistir o princípio de prova escrita que permitiria a prova por via testemunhal de factos contrários aos resultantes da confissão operada na escritura e não poder substituir-se às instâncias no estabelecimento da relação entre o documento e os factos que censura no acórdão;
Nessa acção o STJ absolveu os ora recorridos do pedido com o fundamento único de a confissão da recepção da totalidade do preço constante da escritura de 9.5.91 fazer prova plena contra os confitentes e de o referido documento (título executivo nestes autos) não ter relacionação com os factos controvertidos pelas partes, inexistindo, por isso, prova escrita que possibilitasse a admissibilidade da prova testemunhal para infirmar a prova derivada da confissão;
Não foi, pois, decidido na referida acção declarativa nº 48/96 que aquele docu¬mento não tinha eficácia probatória por estar desvalorizado pelo conteúdo contrário da escritura pública que fazia prova plena;
Nessa decisão não foi declarado que os ali réus pagaram aos ali autores todo o preço declarado na escritura de compra e venda, mas apenas que os meios de prova utilizados, ou seja, a prova testemunhal, não podia, só por si, no caso em exame, infirmar o facto confessado naquela escritura de que ocorrera o pagamento integral;
O caso julgado em causa não envolve a declaração judicial de que os ali réus hajam pago aos ali autores a totalidade do preço relativo ao mencionado contrato de compra e venda;
Nos embargos discute-se a existência ou inexistência da relação subjacente à declaração de reconhecimento de um direito de crédito consubstanciado em documento susceptível de constituir título executivo em termos de poder implicar a con¬trovérsia já suscitada na acção declarativa sobre se os embargantes pagaram ao embargado e ao cônjuge metade ou todo o preço relativo ao contrato de compra e venda do prédio;
Não está ainda apurada, contudo, a factualidade tendente à demonstração pelos embargantes da inexistência da relação jurídica subjacente à confissão de dívida;
Daí que a afirmação contida no acórdão de 2.6.99 - a de que não existe princípio de prova escrita que permita demonstrar através de testemunhas facto contrário ao adquirido por confissão - não tenha aplicação aqui, pois agora provou-se que a declaração de dívida integrada no título executivo respeita a parte do preço da compra e venda formalizada na escritura de 9.5.91, existindo, portanto, o tal princípio de prova escrita que na acção declarativa falhou.
Constituindo entendimento praticamente unânime na doutrina e jurisprudência - consoante já se pôs em relevo neste recurso ao afastar-se a pretensão dos recorrentes no sentido do julgamento ampliado da revista - o de que a prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares é admissível quando haja um começo ou princípio de prova escrita e como complemento desta, não há senão que reafirmar novamente a justeza da decisão recorrida de julgar os embargos improcedentes.
É que, insiste-se, constituindo o documento dado à execução, sem qualquer dúvida, um princípio de prova escrita, a prova testemunhal era admissível, sendo certo que se provou que o preço devido pelos embargantes, na qua¬lidade de compradores, ao embargado e sua mulher, na qualidade de vendedores, relativo à compra e venda titulada pela escritura de 9.5.91 não está pago na totalidade, faltando pagar, precisamente, a parte titulada pelo documento executado.


2.5. Prova documental

2.5.1. Noção e valoração
O artigo 362º CC, define o documento como “qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto”. Esta ampla definição abrange, não só os documentos escritos, como aqueles que não o são.
Elementos da definição legal de documento são:
1) a autoria humana
2) um conteúdo representativo
3) um nexo teleológico entre um e outro

O elemento teleológico do conceito de documento em geral não vai além da vontade de que ele tenha um conteúdo representativo, sendo irrelevante que o seu autor queira que ele tenha eficácia (jurídica) probatória.
Entre os documentos, têm tradicionalmente maior importância os documentos escritos, isto é, aqueles que incorporam declarações de ciência ou de vontade.
Distinguem-se entre autênticos e particulares (363º/1 CC), havendo ainda a distinguir, entre estes, os assinados (373º CC) e os não assinados que não é costume assinar (380º CC a 382º CC). São equiparados aos documentos escritos particulares os documentos electrónicos susceptíveis de representação como declaração escrita (3º/1 do DL 290-D/99).
Constituem documentos não escritos as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas de facto ou coisas (368º CC), assim como os documentos electrónicos não susceptíveis de representação como declaração escrita (3º/3 do DL 290-D/99).
As cópias de documentos escritos e electrónicos têm, quando expedidas ou atestadas por entidade competente, o valor dos documentos escritos (383º CC a 387º CC e art. 4º do DL 290-D/99) e, fora disso, o valor das reproduções mecânicas.



Documentos escritos



Documentos não escritos

Documentos escritos
• Documentos Autênticos
Dizem-se autênticos os documentos escritos que provêm de oficial público provido de fé pública, dentro do círculo de actividades que lhes é atribuído, ou duma autoridade pública que os exare, com as formalidades legais, nos limites da sua competência (art. 363º /2 CC).
O documento autêntico faz prova plena dos factos (declarações e outros) que nele são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público documentador, bem como dos que nele são atestados como objecto da sua percepção directa, mas não daqueles que constituem objecto de declarações de ciência perante ele produzidas ou constantes de documentos que lhe sejam apresentados, nem tão-pouco dos que sejam objecto de apreciação em juízos pessoais seus (371º/1 CC).
• Documentos particulares
São particulares os documentos escritos que não reunam os requisitos de origem respeitantes aos documentos autênticos (363º/2 CC, in fine).
Uma vez estabelecida a veracidade da subscrição do documento particular pessoa a quem é atribuído, dela resulta a veracidade do respectivo conteúdo: o documento particular faz prova plena das declarações atribuídas ao seu autor (376/1 CC)

• Documentos electrónicos
É equiparado ao documento particular o documento electrónico cujo conteúdo seja susceptível de apresentação como declaração escrita (3º/1 do DL 290-D/99, de 2 de Agosto).
Uma vez que lhe seja aposta uma assinatura digital, mediante utilização da chave privada cuja correspondente chave pública conste de certificado válido, emitido por entidade certificadora credenciada (7º/4 do DL 290-D/99), ambas criadas ou obtidas pelo utilizador (art. 8º do mesmo DL), o documento electrónico é equipardo no seu valor, ao documento particular assinado e goza da presunção de que a aposição da assinatura foi do respectivo titular ou seu representante, de que foi feita com a intenção de subscrever o documento e de que este não sofreu alteração posterior (art. 7º/1 DL). Estas presunções são ilidíveis.

• Cópias
Cada vez mais se recorre à cópia. No caso do documento autêntico, a menos que constitua um documento avulso que, uma vez formado, é entegue ao particular (procuração, testamento cerrado, autorização licença, etc.), a cópia é mesmo o único meio que este tem para provar a sua celebração: designadamente, o notário e o conservador guardam nos seus livros os documentos originais, dos quais emitem certidões ou fotocópias para os particulares.
Quanto aos documentos particulares, quem os detém tenderá a conservá-los, deles extraindo fotocópia para apresentação extrajudicial ou em juízo. No caso do documento electrónico, dele são impressos tantos exemplares quantos os necessários. Muito importante também é hoje a reprodução por telecópia.


Documentos não escritos
Sobre os documentos não escritos rege o art. 368º CC: “As reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão”. Expressamente sujeitos a este regime estão os documentos electrónicos cujo conteúdo não seja susceptível de representação como declaração escrita (art. 3º/3 do DL 210-D/99).
A sua força probatória está inteiramente dependente da não impugnação da sua veracidade.


2.5.2. Comentário jurisprudencial
• Ver anexo 1
Processo 07A1291
Importa ter em conta que estamos perante um acórdão em que se observa a importância da prova documental.
Observe-se desde já o sumário do acórdão em causa: “O art. 787º, nº 1 do Cód. Civil permite ao devedor exigir ao credor a passagem de documento de quitação comprovativo do pagamento, mas, só por si, não preenche a proibição de prova testemunhal prevista no art. 393º, nº1 do mesmo código.”, desta forma tal como o artigo em questão refere, o documento escrito é importante, mas a sua inexistência não afasta a prova testemunhal.
Quanto à matéria de facto que a Relação deu como provada, importa ter em conta:
I. “O A. dedica-se à actividade industrial de construção civil, designadamente, construção e reparação de edifícios.
II. O que faz com carácter habitual e fim lucrativo. (A).
III. E no exercício de tal actividade celebrou com a Ré um contrato de empreitada.(B).
IV. IO contrato de empreitada referido em (B) tinha por objecto obras que visavam a adaptação de um celeiro a habitação, sito no
lugar de .., Revelhe, nomeadamente:
1. Deitar uma placa de piso e uma de tecto;
2. Deitar um telhado;
3.Fazer divisões: uma cozinha uma casa de banho dois quartos e uma sala;
4. Efectuar caixa de ar;
5. Colocar tijoleira na casa de banho e cozinha;
6. Pintar os interiores e exteriores;
7. Rebocar e arear;
8. Trabalhos de electricista e picheleiro; (1º)
V. O preço do custo da obra foi de 3.850.000$00, ou seja, 19.203,71 euros, preço esse previamente acordado entre A. e R., a pagar no decurso da obra e até ao seu termo (2º).
VI. No decurso da obra, a Ré pediu e exigiu ao A. que efectuasse diversos extras, nomeadamente:
- construção de uma varanda em betão armado e ferro, bem como umas escadas com dezanove degraus
- construção de uma lareira em grosso na cozinha.(3º)
VII. O A. já por diversas vezes instou a R. para lhe efectuar o pagamento da divida. (7º).
VIII. O contrato de empreitada mencionado em (3) consistia na adaptação de um celeiro a habitação.(8º).
IX. O autor em Dezembro de 2002 abandonou a obra em causa, sem a ter concluído e sem qualquer justificação para tal (12).
X. A R. por conta do preço da obra, entregou ao A. seis pagamentos, sendo dois de e 2.500,00 cada um; três pagamentos de € 1.500,00, no montante global de € 10.500,00 (13º).
XI. O contrato de empreitada incluía a colocação de aros de madeira nas portas e destas e incluía a colocação de piso no quarto principal da habitação ( 15 e 16).
XII. E incluía a colocação de caixilharia em alumínio – portas e janelas exteriores (17 ).
XIII. E incluía a colocação de piso na varanda e na escada exterior ( 18).
XIV. E incluía a obra de electricidade (19).
XV. E incluía a pintutra de interiores e exteriores (20).
XVI. A habitação da R. foi concluída em finais de Junho de 2003. (21º)
XVII. A R. para concluir a casa de habitação teve que dispensar as seguintes quantias:
a) obra de carpintaria num total de 1.500,00 euros;
b) obra em alumínio num total de 3.528,35 euros;
c) granito que ascendeu ao total de 769,92 euros;
d) obra de electricidade no total de 1.617,85 euros.(22º)
XVIII. A ré despendeu a quantia global de € 7.416,12.
XIX. A Ré teve de procurar outros profissionais para acabarem a obra.(25º).”

A relação veio a entende que de facto estava provado que R tinha pago ao empreiteiro, através de prova testemunhal e documentos. Como fundamento desta alteração, a relação indicou a prova testemunhal.
Daqui resulta que a quitação, em geral, não está submetida a qualquer forma especial e pode ser provada por qualquer meio da prova, nos termos do 219ºCC.
Porém o 393º/1 impede a produção da prova testemunhal para prova de declaração negocial que por disposição da lei, ou estipulação das provas houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provado por escrito.
Concordamos, com a decisão da Relação.


3. Conclusão
Para demonstrar a existência dum direito subjectivo, há que provar o facto de que ele deriva; se a prova não existe, o direito, não podendo ser reconhecido por terceiros, perde praticamente o seu valor, tudo se passando como se ele próprio não existisse; a prova, sem a qual não há certeza de que o facto se verificou, condiciona assim o valor prático do direito subjectivo, sendo íntima a ligação entre ela e o direito (Francesco Carnelutti). Esta constatação aponta para a natureza substantiva do meio de prova, cuja função não se limita ao processo jurisdicional: também nos procedimentos administrativos, designadamente perante um serviço de registo ou de notariado, e mesmo entre particulares, a demonstração do direito subjectivo se faz através de prova – prevalentemente por documentos, mas também por confissão ou testemunhas. Desta natureza substantiva da figura do meio de prova, que importante corrente doutrinária contesta, resulta a inserção no Código Civil, além das que distribuem o ónus da prova, das normas que estabelecem o quadro geral dos meios de prova e das que regulam a sua admissibilidade e força probatória.
Relativamente, à corrente que contesta o carácter substantivo do meio de prova, o autor italiano Giuseppe Chiovenda, opina, no sentido de que, explícita ou implicitamente, partem os autores que defendem a natureza processual da prova duma concepção publicista da função do processo civil, dirigido, não à tutela dos direitos subjectivos privados, mas à actuação do direito objectivo; as consequências concretas da norma de conduta de direito civil são tiradas em tribunal, cabendo às normas de direito processual regular, directa ou indirectamente, a actividade necessária à formulação e actuação dessas consequências; entre estas normas processuais estão todas as respeitantes à prova, só ao juiz cabendo aplicá-las, porque só ele pode conferir certeza à valoração jurídica dos factos, pronunciando-se para tanto sobre a eficácia dos meios destinados à sua prova; desprovida desta certeza, a valoração extrajudicial do direito subjectivo mais não é do que uma antecipação, fáctica e não jurídica, da presumida eficácia processual futura dos meios de prova, cuja exclusiva função é constituírem fundamento da sentença.
Em termos ideias, a prova dever ser apresentação, reprodução ou demonstração perfeita e fidedigna do facto provado, isto é, “ verdade dos factos”. A verdade, neste caso, é a adequação da coisa ao intelecto (aquela adequa-se a este, preenchendo-o); logo podemos concluir, que, provas são os meios pelos quais a inteligência busca firmar a sua adesão ao objecto, ou seja, segundo alguns autores, “o processo nada mais é do que a arte de administrar as provas: quem não pode provar é como quem nada tem; aquilo que não é provado é como se não existisse;” (Professor Mendes de Almeida Júnior). Provar significa fornecer, no processo, o conhecimento de qualquer facto, de modo a adquirir, para si, e para gerar na outra parte a convicção da subsistência ou verdade do mesmo facto; desta síntese, retiramos dois momentos da prova, o “fornecimento da prova pelo interessado e a apreensão pela parte contrária”; porque o objectivo da parte que alega determinadas provas será a criação de uma suposta “convicção de verdade” sobre determinados factos.


4. Anexos
4.1. Anexo 1 – prova documental
Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 06A2717

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: CONFISSÃO
INDIVISIBILIDADE
PROVA DOCUMENTAL

Nº do Documento: SJ200610240027176
Data do Acordão: 24-10-2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.

Sumário : I. Estando expressamente impugnado o teor de um facto alegado pelo autor na petição inicial, não pode o mesmo ser julgado admitido por acordo.
II. O princípio da indivisibilidade da confissão é aplicável à prova documental.
III. Por isso, não podem ser dados por provados factos favoráveis ao autor constantes de uma conta-corrente elaborada e apresentada pela ré, se a mesma contiver outros factos favoráveis à ré e que o autor não aceitou e que modificam ou extinguem os efeitos dos primeiros factos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA" instaurou, na 11ª Vara Cível de Lisboa contra Empresa-A, LDA, a presente ACÇÃO DECLARATIVA CONDENATÓRIA com a forma de processo ORDINÁRIO, formulando o pedido de condenação da ré a pagar ao autor:
a) A quantia de 5.800.000$00, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento;
b) A quantia de 496.049$00, acrescida dos juros de mora que a BRISA vier a cobrar ao A. e cujo montante se relega para execução de sentença;
c) A quantia de 2.274.173$00, acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal de 12% que se liquidam em 26 de Novembro de 2001 em 171.965$00 e vincendos, à mesma taxa, desde 26 de Novembro de 2001 até integral pagamento.
Para tanto, alega que:
- A. e Ré, em 2-5-2000, celebraram um contrato promessa no qual a ré prometeu vender um veículo automóvel, de marca IVECO, modelo 190 36P, com a matrícula LH, com o semi-reboque L 139935;
- O preço da prometida venda foi estipulado em 6.000.000$00...
- ...Que seria pago em 24 prestações mensais e sucessivas no valor de 290.000$00 cada uma;
- Pelo referido contrato, o A. entrou na posse do veículo a partir do momento da assinatura do contrato-promessa;
- Foi estipulado que o A. prestava serviço em regime de exclusividade para a ré;
- E desta forma, a ré, promitente vendedora, deduzia na facturação dos serviços prestados pelo A. as prestações mensais, referentes ao contrato-promessa;
- O A. ficou responsável pela manutenção da viatura;
- O pagamento da primeira prestação foi efectuado no dia 2-6-2000;
- O A. no cumprimento do contrato-promessa pagou as prestações mensais até à 10ª, não tendo a ré entregue ao A. o recibo referente à última prestação em 2-3-2001;
- Em meados de Março de 2001, o A. ficou doente, não podendo ir trabalhar durante alguns dias;
- Durante o período em que o A. esteve doente, a ré utilizou o identificado veículo, sem nunca disso ter dado conhecimento ao A., nem tão pouco lhe ter pedido autorização;
- O veículo circulou no interesse da ré, ao serviço da firma ECS, com a carga nº 6460 tendo feito pelo menos o trajecto Pontes-Porto, onde descarregou viaturas automóveis na PRISMAUTO;
- O A. entregou à ré um sinal no valor de 2.900.000$00;
- O mandatário do A. em 2-4-2001 interpelou a ré para que procedesse ao pagamento da quantia de 5.800.000$00;
- Em resposta, a ré veio confirmar que o veículo estava a ser utilizado no seu interesse por outro motorista;
- Argumentando que tinha sido o A. a rescindir o contrato-promessa, o que é manifestamente falso;
- O A. deixou dentro da viatura diversos objectos pessoais, entre eles o dispositivo de Via Verde, que se encontrava activo;
- A ré enviou-lhe posteriormente alguns dos seus objectos pessoais, não tendo contudo enviado o referido dispositivo;
- O A., com espanto, deparou-se com a factura da BRISA, em que esta lhe reclama o pagamento de portagens após a data em que o mesmo deixou de usufruir a posse do veículo;
- No período compreendido entre 28 de Março e 4 de Junho de 2001 a ré no seu exclusivo interesse havia utilizado abusivamente o identificador de Via Verde propriedade do A, tendo tal utilização ascendido ao montante de 247.770$00;
- Debalde o A. enviou à ré carta a reclamar o pagamento de tal quantia, pois a ré não se limitou sequer a responder, e continuou a utilizar o dispositivo Via Verde no seu exclusivo interesse, tendo no período compreendido entre 5 de Junho e 1 de Agosto de 2001 a ré utilizado o dispositivo Via Verde no montante de 248.279$00;
- O A. enquanto teve a posse e fruição da identificada viatura efectuou diversos serviços de transporte a pedido da ré e no interesse desta que ascenderam a 2.274.173$00;
- Devidamente notificada pelo mandatário da A. em 2-4-2001 para proceder ao pagamento dessa quantia igualmente a ré se recusou a fazê-lo.
Contestou a ré, invocando que:
- É certo que a ré prometeu vender ao A. o veículo pesado matrícula LH L.139935, nos termos e condições do contrato-promessa junto a petição inicial;
- Porém, o A. no dia 15 de Março de 2001 deslocou-se às instalações e sede da ré, na Estrada de Algeruz-Pontes-Setúbal;
- Nesse local e data declarou que não lhe era possível continuar a cumprir o que estava previsto no contrato-promessa;
- E devolveu o veículo e a respectiva documentação à ré;
- Veículo que aliás estava na altura fisicamente numa oficina por necessitar duma reparação;
- Em 15-3-2001, o A. tinha em dívida uma renda e meia: a que se vencia em 2-3-2001 (referente ao mês de Fevereiro de 2001) e metade da correspondente ao mês de Março de 2001, pois o A. utilizou o veículo durante 15 dias desse mês;
- Nos termos da cláusula sétima do contrato promessa se o segundo outorgante (o A.) deixasse de pagar alguma das prestações mensais, a primeira outorgante (a ré) poderia exigir a entrega imediata do veículo, além do pagamento do que estivesse em dívida, acrescido de juros de mora;
- Esta cláusula sétima - e a entrega do veículo aí estipulada - prevê a rescisão do contrato-promessa por incumprimento do promitente-comprador e é uma alternativa (conferida ao promitente-vendedor) à aplicação da cláusula quarta que prevê a execução do contrato, ainda que com vencimento imediato de rendas;
- A ré não entregou ao A. o recibo referente à 10ª prestação (mês de Fevereiro de 2001) porque o A. não a pagou;
- Quanto à doença do A., em primeiro lugar, o acto de entrega do veículo, corporizada na entrega dos respectivos documentos, deu-se no dia 15 de Março e o A. adoeceu em 19 de Março;
- Após 15-3-2001, como consequência da rescisão do contrato-promessa e entrega do veículo, a ré entendeu ser seu direito utilizá-lo;
- Os objectos pessoais a que alude, com excepção do dispositivo de Via Verde, foram levantados pelo próprio A. que se deslocou para o efeito à sede e instalações da ré na Estrada de Algeruz, Pontes, Setúbal, onde estava o veículo e as respectivas chaves;
- Relativamente ao dispositivo da Via Verde, o mesmo não podia ser removido de imediato;
- A ré aceita que o valor dos débitos de Via Verde a partir de 15 de Março de 2001 é da sua responsabilidade;
- Por isso mesmo escreveu ao A. em 5-11-2001 pondo à sua disposição tal valor, desde que o A. emitisse uma nota de débito à ré acompanhada de extractos da Brisa, o que o A. não o fez, tendo o dispositivo da Via Verde já sido entretanto substituído;
- Relativamente aos serviços de transporte, os mesmos foram integralmente pagos;
- E foram-no através de compensação com as rendas devidas pelo A. até à data de 15-3-2001 e com outras despesas da responsabilidade deste (designadamente, seguros gasóleo, multas e manutenção do veículo prometido vender), tal como se previa no contrato-promessa (cláusulas oitava e décima);
- Apuradas as contas, verifica-se que é a ré que tem sobre a A. um saldo credor de 707.426$00;
Em reconvenção, alega que:
- Nos termos da cláusula oitava do contrato-promessa, o A. seria responsável pela boa manutenção do veículo prometido vender e por todas as outras despesas inerentes a tal manutenção incluindo seguros e multas referentes ao dito veículo;
- Por outro lado, e nos termos da cláusula décima desse mesmo contrato a ré teria direito de deduzir na facturação dos serviços prestados pelo A. quer as despesas que a ré pudesse vir a ter de pagar, quer as prestações em dívida à data do vencimento das facturas em causa;
- Na data de 15-3-2001, a ré tinha sobre o A. um saldo credor de 707.426$00;
- Este saldo resulta da diferença entre o valor dos serviços de transporte facturados pelo A. à ré e o valor das rendas em dívida mais as despesas suportadas pela ré referentes ao veículo prometido vender (gasóleo, portagens, seguros, imposto de selo, multas e reparações) mais adiantamentos de fundos ao A. feitos pela ré...;
- ...Declarando a ré-reconvinte pretender operar a compensação com os valores que sejam devidos ao A. reconvindo.
Conclui, peticionando:
a) a improcedência da acção por não provada, com excepção da parte referente ao valor dos débitos da Via Verde que vier a ser dado como provado.
b) a procedência porque provada a reconvenção, condenando-se o A. reconvindo a pagar à ré reconvinte a quantia de 707.426$00.
Respondeu o A., alegando que:
- A viatura foi entregue pelo A. nas instalações da ré apenas para ser reparada, pois a mesma necessitava de travões e era habitual a ré pagar as reparações e depois deduzir no valor a pagar ao A;
- A aplicação da cláusula 7ª do contrato promessa de venda do veículo necessitava de uma prévia notificação escrita ao A, notificação essa que nunca aconteceu;
- O A. nunca afirmou que pretendia rescindir o contrato-promessa;
- O A., por outro lado, também nunca recebeu da ré a carta junta como Doc. 1 à contestação;
- O A. não pode emitir as notas de débito reclamadas em virtude de ter cessado a sua actividade;
- Nunca a ré apresentou quaisquer justificativos relativos às despesas referidas;
- O reconvindo aceita que era responsável pela boa manutenção do veículo prometido vender, bem como por multas e seguros do mesmo;
- Bem como que a reconvinte teria direito a deduzir na facturação as despesas que pagasse com a manutenção da viatura;
- Todavia não aceita que a reconvinte lhe debitasse todas e quaisquer despesas;
- E muito menos aceita o reconvindo que a reconvinte não apresente justificativos das despesas que afirma ter suportado referentes ao veículo dos autos;
- Nada disse, por isso, à reconvinte.
Conclui como na petição inicial, pedindo que as excepções deduzidas e o pedido reconvencional formulado pela ré sejam considerados improcedentes por não provados.
Saneado o processo, elaboradas a matéria assente e base instrutória, após audiência de discussão e julgamento, foi decidida a matéria de facto e proferida sentença que julgou o pedido do autor parcialmente procedente e improcedente o pedido reconvencional.
Desta apelou o autor tendo nas suas alegações defendido a alteração da decisão da matéria de facto com a consequente alteração da decisão de direito, recurso que foi julgado improcedente.
Ainda inconformado, veio o autor interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado as conclusões seguintes:
- O que o recorrente pretende eleger como objecto de análise aos mui doutos conselheiros do ilustre Supremo Tribunal de Justiça é a força probatória da confissão de determinado facto e do documento junto aos autos em 9-12-2003, os quais não forma considerados pelo Tribunal de 1ª instância e pelo tribunal a quo, não obstante a lei fixar força probatória plena;
- No caso de existir ofensa de uma disposição expressa de lei que fixe a força probatória de determinado meio de prova, é possível ao STJ apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa;
- Verifica-se, pois, que o tribunal a quo violou a lei substantiva (fundamento específico), descurando as normas referentes à confissão judicial e à força probatória de documento particular, o que motivou um erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, por omissão de aplicação do imperativo probatório previsto no art. 358º, nº 1 e nº 2, do Cód. Civil;
- A recorrida aceitou e confessou que os trabalhos foram efectuados a seu pedido e no seu interesse;
- A recorrida não impugnou que o recorrente tivesse efectivamente realizado tais serviços a seu pedido e no seu interesse, apenas que teria havido uma compensação de créditos com outras dívidas - as quais não logrou provar existirem;
- Para invocar a compensação, a recorrida teria de se considerar devedora dos montantes constantes das facturas de fls. 57 a 63;
- A recorrida inseriu o valor das facturas de fls. 57 a 63 numa conta corrente que juntou aos autos em 9 de Dezembro de 2003;
- A recorrida não logrou provar que tinha um crédito sobre o recorrente e que lhe era legítimo efectuar a compensação, pelo que, nessa medida, o crédito surge por saldar;
- As declarações efectuadas nos arts. 30º e 31º da contestação constituem confissão, a que deve ser dada força probatória plena, nos termos do art. 358º do Cód. Civil;
- A inserção das facturas peticionadas na conta corrente junta em 9-12-2003 constitui confissão, por documento, que detém força probatória plena, por imposição dos artigos 358º e 376º do Cód. Civil;
- Se o tribunal a quo tivesse aplicado estas normas, seria obrigado a dar como provado que os serviços prestados à recorrida foram a seu pedido e no seu interesse;
- Estes elementos factuais - assentes na força probatória da confissão e dos documentos juntos aos autos - que demonstram, sem margem para dúvidas, que os serviços prestados pelo recorrente foram a pedido e no interesse da recorrida e que a recorrida tem obrigação de pagar ao recorrente;
- Resulta, ainda, do contrato outorgado e da relação jurídica existente entre o recorrente e a recorrida que os serviços prestados por aquele eram no interesse e a pedido desta;
- Razão pela qual deve o tribunal ad quem considerar como provado, na sua integralidade, o quesito 7º da Base Instrutória, o que motivará a condenação da recorrida no pedido deduzido na al. c) da petição inicial.

Contra-alegou a recorrida defendendo a improcedência do recurso e no caso de tal não se verificar, pedindo a ampliação do objecto do recurso, nos termos do art. 684º-A do Cód. de Proc. Civil, a fim de ser conhecida da confissão pelo recorrente da dívida objecto do pedido reconvencional.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido - arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões do aqui recorrente se vê que este levanta, para conhecer neste recurso, da seguinte questão:
A decisão dada na 1ª instância ao quesito 7º da base instrutória deve ser alterada para totalmente provado, por tal matéria estar confessada pela recorrida e resultar tal dos documentos juntos aos autos ?

Diga-se, num breve aparte, que o recorrente no corpo das suas alegações, ainda refere que o acórdão em recurso é nulo nos termos da al. d) do nº 1 do art. 668º do Cód. de Proc. Civil, defendendo que a mesma nulidade seja suprida com o reenvio do processo à 2ª instância, de acordo com o disposto no art. 731º, nº 2 do mesmo código.
Porém, aquele não fez incluir tal pretensão nas conclusões daquelas alegações pelo que sendo, como dissemos, balizado o âmbito dos recursos pelo teor daquelas conclusões - nº 3 do art. 684º do Cód. de Proc. Civil -, não será aqui considerada tal pretensão.

A matéria de facto dada por provada nas instâncias é seguinte:
I - Autor (segundo outorgante) e a ré (primeira outorgante) apuseram a sua assinatura, sob a data de "Alverca do Ribatejo, 2 de Maio de 2000" no Doc 1 junto com a petição inicial, de fls. 11 a 14, autodenominado de contrato-promessa.
II- Nele, através da cláusula primeira, consta que a primeira outorgante - a aqui ré, Empresa-A, LDA - promete vender ao segundo outorgante - o aqui A., Sr. AA - que, por sua vez, se compromete a comprar o veículo (...) matrícula LH - L/139935 Marca IVECO modelo 190 36P pelo preço de Escudos: 6.000.000$00, a que acresce o IVA em rigor.
III- Conforme a cláusula terceira:
O preço será pago pelo segundo outorgante [o ora A.] em 24 prestações mensais e sucessivas, com vencimento no último dia do mês a que respeita, iniciando-se em 2-6-2000. O montante de cada prestação é de 290.000$00
IV- O A., a partir da assinatura aludida no item I- supra, passou a utilizar o veículo referido no item II- supra.
V- Nos termos da cláusula nona, consta que a primeira outorgante (ora ré) obriga-se a solicitar serviços de transporte, através do veículo objecto desta promessa, ao segundo outorgante [aqui A.], que, por sua vez, se compromete a prestar tais serviços à primeira outorgante [aqui ré] em regime de exclusividade.
VI - E resulta da cláusula décima que:
No caso de vir a ser exigido à primeira outorgante (a aqui ré) o pagamento de alguma despesas e/ou multa decorrente da utilização do veículo pelo segundo outorgante [o aqui A.], terá direito de deduzir na facturação dos serviços prestados pelo segundo outorgante [aqui A.] a que alude a cláusula nona os momentos dessas despesas ou multas.
A primeira outorgante [aqui ré] terá ainda direito a deduzir na facturação dos serviços prestados pelo segundo outorgante [aqui A.] as prestações mensais que estiverem em dívida à data do vencimento das facturas em causa.
VII- Durante o tempo em que o veículo estiver na posse do segundo outorgante [aqui A.], este é responsável pela boa manutenção do mesmo e por todas as despesas incluindo seguros (responsabilidade civil e danos próprios) e multas referente(s) ao dito veículo - destaca a cláusula oitava do mencionado contrato-promessa.
VIII- O pagamento da primeira prestação, referente ao pagamento do veículo, foi efectuado no dia 2-6-2000.
IX- O mandatário do A., com data de 2-4-2001 [Doc 12, a fls. 34 e 35], enviou à ora ré a missiva de fls. 34 e 35, sendo recebida, como resulta de fls. 36.
X- O A. deixou dentro da viatura o dispositivo de Via Verde, que se encontrava activo, mas não foi entregue pela ré.
XI- A ré utilizou tal dispositivo entre o dia 28-3-2001 e 8-8-2001, tendo a Brisa facturado ao A. a quantia de escudos: 469.049$00, conforme fls. 38 a 56.
XII- O A. entregou à ré as mensalidades até à 10ª, conforme Doc 2 a 10, de fls. 15 a 32.
XIII- Após, meados do mês de Março de 2001, a ré cedeu o uso e gozo do veículo ao transportador ECS.
XIV- ...Sem, nunca, ter dado conhecimento nem pedido autorização ao A.
XV- Entre 8-1-2001 e 15-3-2001, o A. facturou, em nome da ré, prestação de serviços no valor de, pelo menos, Escudos [PTE]: 2.270.173$00.
XVI- O A., no dia 15 de Março de 2001, deslocou-se às instalações da ré, na zona de Setúbal...
XVII- ...E, nesse local e data, declarou que não lhe era possível continuar a cumprir o que estava previsto no contrato-promessa.
XVIII- ...E deixou o veículo e a respectiva documentação no Departamento de Tráfego da empresa ré.
XIX- Sob a data de 5-11-2001, a ré dirigiu comunicação ao ora A., onde garante a este responsabilizar-se "por todos os custos a pagar à Brisa e pagar-lhe a importância aludida no item XI- supra, exigindo, porém, ao A. que "faça uma nota de débito à Empresa-A acompanhada dos extractos da Brisa".

Vejamos agora a questão acima mencionada como objecto deste recurso.
O art. 26º do LOFTJ - Lei nº 3/99 de 13/01 - estabelece a regra de que o Supremo Tribunal de Justiça ( STJ ) apenas conhece de questões direito e não de facto.
Tal como ensina o Conselheiro F. Amâncio Ferreira - no seu Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed., pág. 236 e segs. -, aquele Tribunal não controla a matéria de facto nem revoga por erro no seu apuramento; compete-lhe antes fiscalizar a aplicação do direito aos factos seleccionados pelos tribunais de primeira e segunda instâncias ( arts. 722º, nº 2, 729º, nºs. 1 e 2 e 755º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil ). Daí dizer-se que o STJ é um tribunal de revista e não um tribunal de 3ª instância ( art. 210º, nº 5 da CRP ).
Resulta do disposto no art. 722º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, que no recurso de revista, o recorrente pode alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível recurso, nos termos do nº 2 do art. 754º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.
Por seu lado, o nº 2 do referido art. 722º acrescenta que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Pretende o recorrente que a decisão recorrida violou a força probatória que os arts. 352º , 355º, nºs 1 e 2, 356º, 358º, nº 1 e 361º, todos do Cód. Civil - a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem - fixam, no tocante ao meio de prova confissão. Além disso, pretende, ainda o recorrente que a mesma decisão em apreço ainda violou a força probatória documental prevista no art. 376º do mesmo código.
Assim, segundo o recorrente, os fundamentos do recurso aqui em causa estão previstos na parte final do mencionado nº 2 do art. 722º.
Tal como referiu o douto acórdão em recurso, a recorrida não confessou na sua contestação o teor do facto do quesito 7º como pretende o recorrente.
O citado quesito tem a redacção seguinte:
" Durante o tempo em que o A. utilizou a viatura, fez com ela serviços a pedido e no interesse da Ré que ascenderam a Escudos: 2.274.173$00, consoante docs. 17 a 23, de fls. 57 a 63 ?..."
Este quesito mereceu da 1ª instância - fls. 222, verso - a resposta: "provado, apenas, que, entre 8-1-2001 e 15-3-2001, o A. facturou, em nome da ré, prestação de serviços no valor de, pelo menos, escudos (PTE) 2.270.173$00".
O facto do mencionado quesito 7º fora alegado nos arts. 41º e 42º da petição inicial que têm a redacção seguinte:
"41º Acresce que enquanto o A. teve a posse e fruição da identificada viatura efectuou diversos serviços de transporte a pedido da R. e no interesse desta."
"42º Serviços esses que ascenderam a 2.274.173$00."
Perante esta alegação, a recorrida na sua contestação, a fls. 75, depois de referir que "relativamente aos serviços de transporte, diga-se que os mesmos foram integralmente pagos", impugna expressamente o teor do art. 42º da petição inicial, ou seja, não admite que o autor tenha efectuado a pedido e no interesse da ré aquele montante de transportes.
Logo, bem andou o Senhor Juiz da 1ª instância ao fazer incluir aquela alegação do autor na base instrutória, por não estar aquela admitida por acordo tácito ou expresso - arts. 490º do Cód. de Proc. Civil.
Daí que, tal como bem entendeu o acórdão recorrido, não esteja confessado o teor daquele quesito, e, por isso, não haja que alterar a decisão daquela matéria de facto com base na alegada confissão.
Por outro lado, o recorrente ainda pretende a alteração da mesma matéria de facto com base no valor do documento de fls. 161 a 164 junto pela ré.
O documento aqui em causa consiste num " extracto existente na contabilidade da Empresa-A referente ao autor-reconvinte, à data de Abril de 2001".
Nesse extracto constam as seis primeiras das sete facturas que o autor juntou como fundamento do montante que figura no citado quesito 7º.
Poderá, assim, nos termos do art. 376º citado configurar uma prova plena documental, como pretende o recorrente ?
Ora, art. 376º nº 1 prescreve que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
E o seu nº 2 acrescenta: os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
O art. 360º, integrado na secção que trata a prova por confissão, prescreve que se a declaração confessatória, judicial ou extra-judicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão. Trata-se assim do princípio da indivisibilidade da confissão que exige a aceitação da mesma na sua integralidade, salvo provando-se a inexactidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessatória.
Aplicando esta regra à prova documental aqui em causa, vemos que do citado extracto contabilístico ou conta-corrente constam variados movimentos contabilísticos favoráveis à ré e o saldo final ali constante é largamente favorável à mesma.
Desta forma, a aceitar-se a declaração da ré ali constante do valor das seis das sete facturas do autor, haveria que aceitar os demais movimentos cujo saldo seria favorável à ré, pelo que seria de improceder o pedido do autor aqui em causa.
Por outras, palavras diremos que o teor do documento só seria aceitável no seu todo e não apenas na parte em que é favorável ao autor e tendo o autor rejeitado o que ali lhe é desfavorável, não podia ter sido admitida como provada a parte favorável àquele.
Soçobra, desta forma, também este fundamento do recurso e com ele toda a revista.

Pelo exposto, nega-se a revista pedida e, por isso, se confirma a douta decisão em recurso.
Custas pelo autor.

Lisboa, 24 de Outubro de 2006

João Camilo (Relator)
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos.

Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 08B1914

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
INADMISSIBILIDADE
COMPROPRIEDADE
USUCAPIÃO

Nº do Documento: SJ20081009019142
Data do Acordão: 09-10-2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA

Sumário :
1. A regra do art. 394º n.º 1 do CC não tem um alcance absoluto: dela devem ressalvar-se algumas hipóteses em que a prova testemunhal é admissível não obstante ter por objecto convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento.
2. Assim sucede quando, em consequência das circunstâncias do caso concreto, for verosímil que tal convenção tenha sido feita.
3. A inadmissibilidade da prova por testemunhas, tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos, também não tem aplicação à prova de vícios da vontade: se as declarações documentadas tiverem sido viciadas por erro, dolo ou coacção, estes vícios podem provar-se por testemunhas.
4. A inadmissibilidade da prova testemunhal não vale ainda quando em causa está a interpretação do contexto do documento, ou seja, do sentido e alcance atribuídos ao texto do documento.
5. O estado de facto criado pela divisão em parcelas e autonomização destas, operada pelos comproprietários de um prédio rústico, pode converter-se em estado de direito pelo funcionamento das regras da usucapião.
6. Tal significa que na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em fracções, ocupando cada um sua fracção, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias.
7. A base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

AA e mulher BB intentaram, na Vara Mista de Coimbra, contra CC, DD e EE, acção com processo ordinário, que qualificaram como “acção negatória, de defesa do seu direito de propriedade, adquirido por usucapião”.
Alegaram, em síntese, ser os legítimos e exclusivos donos de uma parcela delimitada de terreno, abrangida pela inscrição matricial sob o art. 2106 da freguesia de Cernache e descrita sob o n.º 3896 na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, que se encontra ainda inscrita fiscalmente, no seu todo, em nome dele, demandante, de AS e de AG, na fracção de 1/3 para cada um deles.
O seu invocado direito de propriedade sobre essa parcela, designada por “Olival” (dita parcela “A”) resulta de terem adquirido a posse, em termos de direito de propriedade plena e exclusiva, com os correspondentes actos de usufruição, desde o ano de 1977 até inícios de Março de 2006, na sequência de uma divisão e partilha verbal dos bens que integravam a herança de JB e mulher VG, entre os respectivos herdeiros.
Esse acordo apenas por erro formal não foi integralmente respeitado na escritura de partilhas correspondente, celebrada em 13 de Dezembro de 1977; mas, detectado o erro, os interessados em causa, entre os quais o antecessor dos ora réus, o dito AG, comprometeram-se a respeitá-lo, como o AG sempre o fez enquanto vivo foi, no sentido de a este caberem efectivamente as outras duas parcelas desse mesmo terreno (ditas parcelas “B” e “C”).
Acresce que, por força de um outro acordo quase contemporâneo do primeiro, vertido numa outra escritura de partilhas celebrada em 22 de Dezembro de 1977, os autores ficaram titulares em exclusivo da quota do AS na parcela ajuizada (a “A”).
Contudo, a partir de Março de 2006 começou a ser afirmado pelos réus que também eram comproprietários da dita parcela, vindo inclusivamente a inscrever registralmente a fracção de 1/3 dela na descrição predial correspondente.
Em consonância com o alegado, pedem os autores que
a) seja reconhecido o seu direito de propriedade plena e exclusiva, adquirido por usucapião, sobre a parcela delimitada de terreno em causa, denominada o Olival;
b) se declare a inexistência, na esfera jurídica dos réus, de um qualquer direito sobre a referida parcela de terreno;
c) se condenem os réus a absterem-se de consumar todo e qualquer acto que se traduza na violação do direito de propriedade plena e exclusiva dos autores sobre a indicada parcela de terreno.
Em contestação, os réus sustentaram, em síntese, que o prédio inscrito na matriz sob o art. 2106º é apenas composto pela parcela que os autores designam pela letra “A”, pertencendo-lhes 1/3 enquanto herdeiros de MRG, que fora herdeira testamentária por parte do AG antes referido, em conformidade com o que havia sido adjudicado na escritura de partilhas de 13 de Dezembro de 1977.
Só em Março de 2005, após advertência das Finanças para “legalização” de todos os seus prédios, tomaram conhecimento deste seu direito de propriedade sobre 1/3 do prédio, pelo que a antecedente actuação dos autores, ao longo do tempo, não o foi em termos de proprietários plenos e exclusivos, antes se aproveitaram da tolerância dos titulares do direito.
Assim, enquanto “detentores precários” que eram, não podiam os autores adquirir, para si, por usucapião, também não o podendo fazer enquanto “comproprietários”, pois que, por definição, cada comproprietário é possuidor em nome alheio relativamente ao que excede a sua quota.
Concluem pugnando pela improcedência da acção e a consequente absolvição do pedido.
Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente.
Inconformados, interpuseram os réus recurso de apelação.
Sem êxito, porém, pois a Relação de Coimbra, em acórdão oportunamente proferido, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Desse acórdão trazem agora os réus, a este Supremo Tribunal, o presente recurso de revista.
E, no remate das alegações que produziram, formularam as seguintes conclusões:
1ª - O acórdão recorrido fundou o seu entendimento – de que os autores adquiriram a parcela em causa por usucapião – além do mais, num mero acordo verbal prévio à escritura de partilhas de 13.12.77, pelo qual os intervenientes estabeleceram que a aludida parcela de terreno ficaria a pertencer, em exclusivo, aos demandantes;
2ª - Não teve, assim, em conta as excepções ao princípio da livre admissibilidade dos meios de prova, estabelecidas nos arts. 393º/2 e 394º/1 do Cód. Civil, e não defendeu a autoridade e a estabilidade da prova documental contra a falibilidade da prova testemunhal;
3ª - A ponderação dos interesses em jogo postula uma interpretação dos arts. 351º, 393º/2 e 394º/1 que não ponha em causa a ratio desses preceitos, nem chegue ao ponto de sobrepor à certeza da prova documental a fragilidade e a falibilidade da prova testemunhal;
4ª - Qualquer outro pensamento legislativo não tem, na letra dos mencionados preceitos, um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expresso, pelo que não pode ser compreendido entre os seus possíveis sentidos (art. 9º do CC).
5ª - Os recorrentes comprovaram a existência, a seu favor, de registo sobre a parcela em questão, além do mais confessado, admitido e reconhecido pelos recorridos nos arts. 112º e 113º da petição inicial;
6ª - Não fora os documentos autênticos que possuíam, nunca os recorrentes teriam obtido, como obtiveram, registo a seu favor de 1/3 da parcela em causa;
7ª - Os autores não possuíram, em termos de propriedade plena e exclusiva, a totalidade da dita parcela – apenas se aproveitaram da tolerância dos recorrentes, que desconheciam, até Março de 2005, ser os reais proprietários de 1/3 dela;
8ª - Assim, os autores/recorridos são meros comproprietários da aludida parcela, sendo certo que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à que detém;
9ª - Sendo possuidor em nome alheio relativamente ao que excede a sua quota, não pode o comproprietário adquirir por usucapião, não podendo, por isso, os autores, ter adquirido a mencionada parcela por essa forma de aquisição originária;
10ª - O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 9º, 351º, 393º/2, 394º/2, 1253º e 1290º, todos do CC.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre agora conhecer e decidir do mérito do recurso.
2.

São os seguintes os FACTOS PROVADOS:
I – Na matriz rústica da freguesia de Cernache encontra-se inscrito, na 1ª Repartição de Finanças de Coimbra, o prédio rústico, com 5.308 m2, sito nas ..., em Orelhudo, constituído por “terreno de cultura com 4 laranjeiras, 1 nogueira, 24 oliveiras e 9 tanchoeiras, confrontando do norte com casas de habitação do próprio, do nascente com CC, do sul com MGN e do poente com AG”, com o art. 2106, em nome de AS, AA e AG, em 1/3 para cada um dos três referidos, encontrando-se o mesmo registado na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 3896 [al. A) dos Factos Assentes];
II – Na escritura de partilhas por óbito de JB (15.10.1972) e mulher VG (30.01.1977), a quem o dito prédio pertencia, outorgada em 13.12.1977 no Cartório Notarial de Condeixa-a-Nova, ficou a pertencer a dita fracção de 1/3 a cada um dos 3 ditos titulares inscritos, da aí verba n.º 1 [al. B)];
III – Por óbito de JMC(23.05.1970), com doação da sua viúva, JS, foi lavrada escritura de partilhas, no mesmo Cartório Notarial de Condeixa-a-Nova, em 22.12.1977, entre os filhos AS, AA e MMS, onde a aí verba n.º 7, com a inscrição matricial 120, foi adjudicada ao AS[al. C) ];
IV – Além dos outorgantes referidos no n.º II, também interveio nessa escritura, como herdeira outorgante, MMS [al.D)];
V – Nessa dita escritura do n.º II, também foi adjudicada ao AG a aí verba n.º 19, que é a inscrição matricial urbana 751 [al.E)];
VI – Os réus são sucessores e herdeiros do AG [al.F)];
VII – A fls. 16 encontra-se uma planta topográfica, onde se encontra assinalado o prédio referido no n.º I, estando aí assinaladas 3 parcelas de terreno, com as letras “A”, “B” e “C” [al. G)];
VIII – Em 20.03.2006, a Ex.ma mandatária do ora réu EE comunicou ao autor pretender a desocupação do “barracão” sito na parte norte da inscrição matricial 2106 referida [al.H)];
IX – O prédio referido no n.º I era composto pelas 3 parcelas referidas em VII, perfeitamente delimitadas, separadas entre si e autónomas, desde antes de Dezembro de 1977 (resposta ao quesito 1º da Base Instrutória);
X – E isso, em virtude das estradas que o atravessavam parcialmente, nos sentidos norte-sul e poente-nascente (resposta ao quesito 2º);
XI – Tendo a parcela, a poente da estrada, no sentido norte-sul, a área de 4.704,542 m2 (117,10 a norte, 39,80 a nascente, 121 a sul e 41,10 a poente) (quesito 3º);
XII – Sendo conhecida como “Olival” (resposta ao quesito 4º);
XIII – A parcela “B”, a nascente da dita estrada, onde existe uma nogueira, fica a sul da casa dos réus, que é a inscrição aludida no n.º V (resposta ao quesito 5º);
XIV – Na parcela “C”, a nascente da mesma dita estrada, está construída parte da casa de AEM(resposta ao quesito 6º);
XV – Na sequência da escritura de partilhas aludida no n.º II, a dita parcela “B” tem sido fruída como logradouro da inscrição 751 referenciada (resposta ao quesito 8º);
XVI – Em Fevereiro ou Março/77, os quatro outorgantes referidos nos n.os I, II e IV procederam à divisão e partilha verbal dos bens dos ditos JB e mulher (resposta ao quesito 10º);
XVII – E, relativamente à inscrição 2106, o AG ficou com as parcelas “B” e “C”, correspondentes a 1/8 (resposta ao quesito 11º);
XVIII – Por ser a inscrição 751 aludida no n.º V o bem mais valioso dos ditos JB e mulher (resposta ao quesito 12º);
XIX – O AA ficou com a metade da parcela “A”, sita a sul, correspondente a 3,5/8 (resposta ao quesito 13º);
XX – E o AS ficou com a outra metade dessa parcela “A”, sita a norte, correspondente a 3,5/8 (resposta ao quesito 14º);
XXI – Tendo o Notário que lavrou a escritura aludida no n.º II incorrido em lapso, ao fazer constar “1/3” a cada um desses três, em vez dos 1/8, 3,5/8, 3,5/8, respectivamente (resposta ao quesito 15º);
XXII – Tendo os outorgantes dessa escritura logo detectado o erro, afirmando o AS que não assinava essa escritura (resposta ao quesito 16º);
XXIII – Tendo ele sido convencido, pelo irmão AA a assinar, convencendo-o de que o AG respeitaria a divisão e partilha verbal referida (resposta ao quesito 17º);
XXIV – E, logo após, sugeriu o AA ao AS ficar aquele com toda a parcela “A”, e o AS com a inscrição 120 referida no n.º III (resposta ao quesito 18º);
XXV – Que havia sido combinado ficar metade para cada um dos dois irmãos (resposta ao quesito 19º);
XXVI – O que o AS aceitou, de imediato (resposta ao quesito 20º);
XXVII – Tendo ambos obtido o acordo da mãe JJ e da irmã Maria, estas referidas no n.º III (resposta ao quesito 21º);
XXVIII – Que em nada ficavam prejudicadas (resposta ao quesito 22º);
XXIX – Tendo, a partir da escritura referida no n.º III, os autores AA e mulher passado a usar, gozar e fruir toda a parcela “A”, como se fossem os seus únicos e exclusivos proprietários (resposta ao quesito 23º);
XXX – Semeando cereais, plantando batatas, colhendo as produções, incluindo a azeitona e o pasto e roçando o mato, sem prejuízo de que a parte mais a sul/poente dessa parcela é pedregosa e imprópria para qualquer aproveitamento agrícola ( resposta ao quesito 24º);
XXXI – De forma contínua e repetida (resposta ao quesito 25º);
XXXII – À luz do dia e publicamente (resposta ao quesito 26º);
XXXIII – De boa fé (resposta ao quesito 27º);
XXXIV – Com conhecimento dos outorgantes da escritura de 22.12.1977, dos donos dos prédios vizinhos e de todas as pessoas do círculo social onde se situa esse prédio (resposta ao quesito 28º);
XXXV – Com intenção ou vontade de agir como titulares da propriedade plena e exclusiva, ignorando estarem a lesar o direito de outrem (resposta ao quesito 29º);
XXXVI – Em 1991, a D.ª PE pediu aos autores para a deixarem colocar um autocarro na parte norte do olival, para uma sua sobrinha lá poder habitar (resposta ao quesito 30º);
XXXVII – Não tendo os autores acedido (resposta ao quesito 31º);
XXXVIII – Em 1996, AEM pediu aos autores para o deixarem ocupar um barracão na parte norte do olival (resposta ao quesito 32º);
XXXIX – Tendo os autores, com exclusão de outrem, consentido nisso (resposta ao quesito 33º);
XL – Se o AS trabalhou nessa propriedade, foi para ajudar o irmão autor, como este o ajudava no amanho e cultivo dos prédios daquele (resposta ao quesito 34º);
XLI – Só em inícios de Março/2006, é que o réu EE pediu ao autor para avisar o EM referido, para este desocupar o barracão (resposta ao quesito 35º);
XLII – Só depois disso é que ocorreu também o referido no n.º VIII (resposta ao quesito 36º);
XLIII – Só em Março/2005 foram os réus advertidos, pelas Finanças, de que teriam que legalizar todos os seus prédios, mencionando o art. matricial 2106º (resposta ao quesito 37º);
XLIV – Só após a busca e obtenção de documentos tiveram eles conhecimento de figurarem como comproprietários, na fracção de 1/3, do terreno em causa, o AG aludido no n.º VI (resposta ao quesito 38º).
3.

São as conclusões da alegação dos recorrentes que definem o âmbito do recurso: o tribunal ad quem, para além das questões de conhecimento oficioso, só pode conhecer das que são suscitadas nessas conclusões.
As conclusões acima transcritas, enunciadas pelos recorrentes como suporte do presente recurso de revista, são praticamente a cópia daquelas que os mesmos recorrentes elaboraram a rematar a peça alegatória apresentada à Relação, como fundamento do recurso de apelação.
3.1. A questão principal é a relacionada com o desrespeito – que os recorrentes imputam ao acórdão recorrido – pelas restrições ao princípio da livre admissibilidade dos meios de prova, estatuídas nos arts. 393º/2 e 394º/1 do CC(1), e que conduziu à solução adoptada, de reconhecimento da aquisição por usucapião, pelos recorridos, da parcela aqui em causa.
E esse desrespeito concretizou-se, segundo os recorrentes, em ter sido dado valimento a um prévio acordo verbal (obviamente provado por testemunhas), que teria sido celebrado, antes da escritura de partilhas de 13.12.77, mas que contraria o que desta consta, ou seja, a atribuição do prédio em questão, na proporção de 1/3 para cada, ao ora autor, a um irmão deste e a uma outra pessoa, de quem a mãe e esposa dos recorrentes foi herdeira e desta são herdeiros os próprios recorrentes (e, por via disso, donos daquela fracção, que receberam por herança desta última).
Esse acordo verbal e as incidências que a ele conduziram estão traduzidos nos n.os XVI a XXXV da apurada matéria de facto.
Terão os recorrentes razão?
De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 393º, “não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documentos ou por outro meio com força probatória plena”.
E o n.º 1 do art. 394º textua:
É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneos dele, quer sejam posteriores.
Ora, parece evidente, analisado o primeiro de tais normativos à luz da sua superfície verbal, que ele não logra aplicação ao caso em análise.
Na verdade, como refere o acórdão sob censura, “o acordo verbal em causa (...) não se mostra provado por qualquer documento ou outro meio com força probatória plena. Sendo um acordo verbal, obviamente não constava de documento”.
No que concerne ao art. 394º, n.º 1 convém, antes de mais, assinalar – como o faz também o acórdão recorrido, abonado na lição dos Profs. PIRES DE LIMA/A. VARELA (2), que este normativo se aplica apenas às convenções contrárias aos documentos na parte em que estes não têm força probatória plena e às convenções adicionais ou acessórias, como lhes chama o art. 221º.
A regra do art. 394º tem por fundamento os perigos da prova testemunhal de convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos e a circunstância de ter sido possível ao interessado munir-se de uma prova escrita dessas convenções.
Embora não refira expressamente excepções à regra que formula, certo é que – como assinala o Prof. VAZ SERRA – tal não significa que esta tenha um alcance absoluto, pois, à semelhança do que sucede, v.g., nos Códigos francês e italiano, dela devem ressalvar-se algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível não obstante ter por objecto convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento.
Segundo este autor (3), “parece razoável que a prova testemunhal seja admitida quando, em consequência das circunstâncias do caso concreto, for verosímil que a convenção tenha sido feita”. Efectivamente, se as circunstâncias do caso tornam verosímil a convenção, a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra do preceito visa afastar, já que o tribunal, para considerar provada a convenção, não se vale apenas dos depoimentos das testemunhas, mas também das circunstâncias objectivas que tornam verosímil a convenção; ou seja, a convicção do tribunal está já, nesta hipótese, parcialmente formada com apoio nessas circunstâncias, limitando-se a prova testemunhal a completar essa convicção, a esclarecer o significado de tais circunstâncias.
Pondera igualmente MÁRIO DE BRITO, valendo-se outrossim do entendimento daquele ilustre Professor – um dos mais profícuos obreiros do Código – que “(a) inadmissibilidade da prova por testemunhas, tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos, não tem aplicação à prova de vícios da vontade. É que tais vícios não são convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento. Assim, se as declarações documentadas tiverem sido viciadas, v.g., por erro, dolo ou coacção, estes vícios podem provar-se por testemunhas” (4). Vale dizer que – e é exuberante a doutrina e a jurisprudência deste Supremo Tribunal neste sentido (5) – fazendo embora o documento autêntico prova plena dos factos que refere como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, bem como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371º/1), nada obsta a que se ataquem as declarações dele constantes, seja por falsidade seja por vícios de vontade. A prova plena respeita à materialidade das afirmações atestadas, mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações nele emitidas.
Finalmente, a inadmissibilidade da prova testemunhal não vale quando em causa está a interpretação do contexto do documento (art. 393º/3), ou seja, do sentido e alcance atribuídos ao texto do documento.
À luz destes princípios, entendemos que não sofreu atropelo a norma do invocado n.º 1 do art. 394º.
Desde logo porque, como acentua a própria sentença da 1ª instância, “o que os autores intentaram foi, no domínio da livre admissibilidade da prova, provar factos que se prendiam com a interpretação do contexto do documento” – a escritura pública de 13.12.77 – “e, em particular, com as circunstâncias que, embora extrínsecas ao documento, relevam para a interpretação do seu conteúdo, mormente da vontade real das partes, ainda que perante declarações negociais imperfeitamente expressas”.
Repare-se que, do contexto do documento não se alcança se o prédio em causa, aí referido como inscrito na matriz sob o art. 2106, abrangia três parcelas de terreno, perfeitamente delimitadas e separadas entre si (sendo uma delas, a parcela A, denominada Olival) tal como alegado vem na p.i., ou, se ao invés, e como se sustenta na contestação, o dito prédio é apenas composto pela parcela A, tal como definida pelos autores (e esta, e só esta, é que foi dividida em três partes iguais) – não fazendo as designadas parcelas B e C parte integrante do mesmo. E despiciendo se torna enfatizar a importância que o apuramento deste elemento fáctico tem para a sorte da demanda.
Por outro lado, também as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil que o acordo invocado pelos autores haja sido celebrado.
Desde logo, os réus não afirmam que o seu alegado antecessor AG – falecido em 18.10.86, nove anos após a escritura de partilhas – ou, posteriormente, a sua única e universal herdeira, MRG – mãe e esposa daqueles – tenham exercido actos de posse sobre o prédio em causa, onde, alegadamente, eram comproprietários de 1/3 – que, um ou outro, tenham exercido, em conjunto com o autor e com o irmão deste, «todos os direitos que pertencem ao proprietário singular», ou que, em separado destes, hajam participado «nas vantagens e encargos da coisa, em proporção» da sua quota (art. 1405º/1).
E não deixa de ser bizarro que, atenta a ligação familiar com a pessoa de quem dizem ter herdado a mencionada fracção, vivessem os réus na ignorância de que esta era titular, como alegam, do dito terço, só disso vindo a saber em Março de 2005, e por intermédio da Repartição de Finanças!
Estes factos conferem verosimilhança à tese dos autores – da existência do acordo por eles aludido, e formatado nos moldes por eles indicados – e legitimam, a nosso ver, avocando de novo a lição de VAZ SERRA, o recurso à prova testemunhal para esclarecer o significado deste equívoco procedimento.
A tudo isto pode ainda aduzir-se o invocado lapso notarial na elaboração da escritura, o que, significando a viciação, por erro, das declarações negociais, igualmente suportaria a prova, por testemunhas, desse erro.
Vale, pois, concluir de tudo quanto se deixou evidenciado, que não sofreu entorse a doutrina emergente dos arts. 351º (que não se vê a que título vem invocado), 393º/2 e 394º/1, não valendo aos recorrentes o apelo ao art. 9º, pois, como lucidamente se deixou exarado em parecer da PGR (6)., à determinação do sentido prevalente das normas não basta a sua análise literal – embora se reconheça ser esta o ponto de partida da tarefa interpretativa – impondo-se que o resultado da interpretação literal seja testado pela chamada «interpretação lógica», pela verificação do fim das normas, do seu enquadramento sistemático e político e da sua história.
E justamente a verificação das situações reguladas, a indagação do interesse que se quis proteger e o âmbito ou amplitude de tal protecção são tarefas que se incluem na verificação do fim das normas.
Qualquer norma jurídica faz parte de um sistema jurídico global e é à luz dele que deve ser entendida.

3.2. A outra questão que cumpre a este Tribunal enfrentar é a da (im)possibilidade de os autores, ora recorridos, enquanto meros comproprietários e, por isso, possuidores em nome alheio relativamente ao que excede a sua quota, adquirirem, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela em causa.
Mas, tal como entenderam as instâncias, também aqui claudica a argumentação dos recorrentes.
Da matéria de facto que vem dada como assente – e que, em função do que ficou referido no n.º anterior, cabe a este Tribunal aceitar – colhe-se que o prédio referido em I, inscrito no art. matricial 2106 da freguesia de Cernache, era composto, desde antes de Dezembro de 1977, por três parcelas, perfeitamente delimitadas, separadas entre si e autónomas, por força das estradas que atravessavam o prédio, sendo a maior (aqui referenciada pela letra A) conhecida como «Olival». E, no acordo que efectuaram, previamente à escritura de partilhas de 13.12.77, o prédio foi partilhado ficando a parcela A para o autor e seu irmão AS(metade para cada) e as parcelas aqui identificadas pelas letras B e C para o AG.
Porém, a partir da escritura de partilhas de 22.12.77, por óbito de Joaquim Matias Caçador, pai do autor, os demandantes, aqui recorridos, por via do acordo celebrado com o irmão António, passaram a fruir toda a parcela A como se fossem os seus únicos e exclusivos proprietários, semeando cereais, plantando batatas, colhendo a azeitona e o pasto e roçando o mato, fazendo-o de forma contínua e repetida, à luz do dia (ou seja, à vista de todos), com conhecimento dos outorgantes da dita escritura, dos donos dos prédios vizinhos e de todas as pessoas do círculo social onde se situa esse prédio, com intenção ou vontade de agir como titulares da propriedade plena e exclusiva e ignorando estarem a lesar o direito de outrem.
Não foi, pois, como comproprietários, sim como proprietários exclusivos, que possuíram aquela parcela, da qual – tal como se intui do apurado complexo fáctico – o AG, afinal, tendo em conta a autonomização das parcelas, nunca foi, em bom rigor, nem nunca se arrogou comproprietário, provado que está que, na escritura de partilhas de 13.12.77 (por óbito do seu tio, JB), só lhe ficaram a pertencer as parcelas B e C do prédio inscrito no art. matricial 2106 da freguesia de Cernache, e nenhum direito (de compropriedade ou outro) obteve sobre a parcela A – pelo menos, nos moldes em que os recorrentes o configuram – nenhum direito podendo, por isso, transmitir aos seus sucessores.
Vale dizer que a partir da subsequente escritura de partilhas de 22.12.77, o estado de facto criado pela divisão feita pelos comproprietários não pode deixar de relevar. E esse poder de facto sobre a parcela A, exercido a partir de então, em exclusividade, pelos autores, não pode haver-se como mera posse precária ou detenção.
São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no art. 1253º. Característica comum a todos eles é que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente.
E o certo é que – repete-se – a partir daquela data, os autores “passaram a usar, gozar e fruir toda a parcela A como se fossem os seus únicos e exclusivos proprietários” (n.º XXIX da matéria de facto), isto é, com animus possidendi, com a intenção de agir como titulares do direito correspondente aos actos realizados, como titulares do direito de propriedade sobre a dita parcela.
E este estado de facto acima aludido, criado pela divisão do prédio e pela autonomização das suas parcelas, converteu-se, sem dúvida, em estado de direito, pelo funcionamento das regras da usucapião, cujos fundamentos se mostram inequivocamente provados, como flui da matéria de facto acima enunciada e explicitada nos n.os XX a XXV do rol factual que vem dado como assente.
A materialização, há quase 30 anos (relativamente a Março de 2006 – cfr. n.os VIII e XLI dos factos provados), de uma parcela determinada, que os autores passaram a possuir, como se sua fosse, privando-se do uso e fruição sobre a totalidade do prédio e limitando-o à fracção que lhe ficou atribuída, sem qualquer interferência (que se saiba) do AG, que, por seu turno, ficou, também em exclusividade, com as parcelas B e C, constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse de cada um – posse que cada um passou a exercer em nome próprio sobre a respectiva fracção ou fracções (7). .
Poder-se-ia questionar se a aquisição por usucapião, com a consequência de os autores, por força do disposto no art. 1288º, se considerarem proprietários da questionada parcela A desde a data do início da posse, não se depararia com um obstáculo intransponível, decorrente do disposto no n.º 2 do art. 1406º.
Nos termos deste normativo, o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.
E uma das formas por que pode dar-se a inversão do título da posse (da posse como comproprietário para posse como proprietário singular) é “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía” (art. 1265º).
Mas, tal exigência – a de que tenha ocorrido a inversão do título de posse – não tem aqui aplicação, face ao que se deixou referido. Estando, na verdade, provado que, desde finais de Dezembro de 1977, os autores actuaram como proprietários exclusivos da fracção A, exerceram, desde então, sobre ela, a posse correspondente ao direito de propriedade, e nunca a posse própria de comproprietários de um prédio comum. No mesmo sentido já se pronunciou este Supremo Tribunal(8).
Pode, assim, afoitamente concluir-se, tal como – a avaliar pelo respectivo sumário – se fez noutro aresto, igualmente deste Tribunal(9) , que, “na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em fracções, ocupando cada um daqueles uma delas, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem invasão de parcelas alheias”.

3.3. Sustentam ainda os recorrentes que comprovaram a existência, a seu favor, de registo sobre a parcela em questão.
Tal afirmação suscita-nos três observações.
A primeira é a de que se trata de questão nova, não suscitada perante a Relação. E, como é sabido, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. Tal postularia que nada se dissesse sobre a questão.
Sempre se farão, porém, a propósito, mais duas considerações.
Uma, a de que não vemos comprovada documentalmente, como seria mister, aquela afirmação dos recorrentes – e o registo prova-se por documento.
Outra, a de que, como ensina o Prof. OLIVEIRA ASCENSÃO, a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. E esta vale por si, como resulta do art. 5º/2.a) do Cód. Reg. Predial: as vicissitudes registrais não contendem nem abalam os efeitos da usucapião. “Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes, mas nada pode contra a usucapião”(10).
4.

Improcedendo, assim, as conclusões dos recorrentes, nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 09 de Outubro de 2008

Santos Bernardino (relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

___________________________________

(1) Pertencem ao Cód. Civil as normas subsequentemente citadas sem menção do diploma respectivo.
(2) Cfr. Cód. Civil Anotado, 1º vol., 1ª ed., pág. 258.
(3)Na Rev. Leg. Jur., ano 103º, pág. 13.
(4) Cód. Civil Anotado, vol. 1º, pág. 537.
(5) Cfr. o recente acórdão desta 2ª Sec., de 23.09.2008, na revista 1711/08 (que também subscrevemos como adjunto) e a recensão aí efectuada. Está disponível em www.dgsi.pt, Proc. 08B1711.
(6) Publicado no DR – II Série, de 23.11.93, fls. 12.351
(7) Cfr., neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 01.02.2005, Proc. 04A4652, in www.dgsi.pt
(8) No Acórdão de 29.01.2008 (Proc. 07B2373), disponível em www.dgsi.pt.
(9) Referimo-nos ao Acórdão de 04.02.93 (Proc. 082710), de que apenas se acha transcrito o sumário, que acima reproduzimos, em www.dgsi.pt.
(10) Autor cit., Direito Civil – Reais, 5ª ed. revista e ampliada, Coimbra Editora 1993, pág. 382.


4.2. Anexo 2 – prova pericial
Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 08P677

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
DIREITO AO RECURSO
FINS DAS PENAS
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ANOMALIA PSÍQUICA
INTERNAMENTO DE IMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO DESTINADO

Nº do Documento: SJ20080417006773
Data do Acordão: 17-04-2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO

Sumário :
I - Face ao regime vigente, se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos, inerente à prova pericial, nada terá que dizer. Se o não acatar, e dele divergir, terá que fundamentar a sua divergência (cf. Ac. do STJ de 07-11-2007, Proc. n.º 3986/07 - 3.ª).
II - Num caso, como no sub judicio, em que a convicção do julgador não divergiu da perícia, a qual, de harmonia com o art. 157.º do CPP, se revela idoneamente válida e segura na produção factual da conclusão a que chegou – a da imputabilidade do arguido –, não havia necessidade de realização de nova perícia e, por conseguinte, inexistia insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que consubstanciasse o vício constante da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
III - Não resultando da fundamentação da decisão em matéria de facto que a convicção do tribunal não tenha assentado numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento, ou que tenha contrariado as regras legais e da experiência, a circunstância de esse modo de valoração da prova e o juízo desta resultante não coincidirem com a perspectiva do recorrente não traduz omissão de pronúncia, não integrando qualquer nulidade.
IV - O art. 32.º da CRP não confere a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, assegura, sim, o direito ao recurso nos termos processuais admitidos pela lei ordinária.
V - O modelo de prevenção acolhido pelo CP – porque de protecção de bens jurídicos – determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
VI - A velhíssima ideia da imposição da pena «no grau médio», sempre que faltassem circunstâncias agravantes e atenuantes, tinha de ser abandonada (e foi-o efectivamente) logo que os Códigos Penais começaram a conter critérios gerais da medida da pena, tendo-se compreendido que não é previamente dado ao juiz, antes da consideração da culpa e da prevenção, qualquer «ponto», médio ou outro, da moldura penal, donde aquele deva «partir» (cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do crime, § 278, págs. 210-211.)
VII - As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
VIII - As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano. Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.
IX - O internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena é uma forma de cumprimento desta, em que a perigosidade criminal surge verdadeiramente para fazer face a um perigo de carácter penitenciário – cf. Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª ed., pág. 418, nota 4, e Maria João Antunes, in O Internamento de Imputáveis em Estabelecimentos destinados a Inimputáveis (Os arts. 103.º, 104.º e 105.º do Código Penal), separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra.
X - Ponderando que:
- o Tribunal da Relação, considerando o acórdão da 1.ª instância, pronunciou-se sobre a medida da pena, tendo em conta a natureza do crime, a pena abstractamente aplicável, os fins das penas, as circunstâncias determinantes da medida concreta da pena, de harmonia com o art. 71.º do CP, e o entendimento da jurisprudência, encontrando-se legalmente correcta a determinação da medida concreta da pena, a qual, na ponderação fáctico-legal, de harmonia com os arts. 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, n.ºs 1 e 2, do CP, atenta a moldura legal abstractamente aplicável (12 a 25 anos de prisão), não se mostra desproporcionada;
- no caso, as qualidades especiais do agente, atinentes ao seu carácter, violento e reflectido, bem retratado no modo de execução do crime e suas causas [«Na noite de 21.7.2006 ocorreu uma discussão entre o arguido e o AS, por motivos relacionados com dinheiro; (…) No dia 22.7.2006, pelas 9h00m, momento em que já decidira matar o seu filho AS, o arguido saiu do seu quarto e colocou uma cafeteira cheia com 2,5 litros de água a aquecer no fogão da cozinha; Seguidamente, de uma gaveta dos móveis da cozinha retirou uma faca de cozinha com 33 cm de comprimento, sendo de 21,5 cm o comprimento da lâmina e 4 cm a sua largura máxima, com dois gumes, um em toda a extensão da lâmina e outro no terço distal com 6 cm de comprimento; Quando a água ferveu, o arguido retirou a cafeteira do fogão, dirigiu-se ao quarto onde o seu filho se encontrava a dormir, com a cafeteira numa mão e a faca de cozinha na outra e despejou na cara e no tronco do seu filho a água a ferver. O AS despertou com as dores causadas pela água a ferver e dirigiu-se à casa de banho da residência, a fim de se molhar com água fria. O arguido, entretanto, pousou a cafeteira no quarto e seguiu o seu filho até à casa de banho, empunhando a faca de que se munira. Vendo o AS que o arguido se encontrava com uma faca na mão, disse-lhe: “pai, não”. Então, o arguido espetou a faca no corpo do filho e fez-lhe um corte na face antero-lateral do hipocôndrio direito, eviscerando o intestino. Depois espetou a faca por duas vezes na região supra púbica do seu filho, exteriorizando o epiploon. Espetouainda a faca na face anterior do terço inferior do hemitórax esquerdo, no epigastro e no flanco esquerdo do corpo do seu filho. Durante esses actos, o AS esbracejou no sentido de evitar ser atingido, do que resultaram cortes no braço esquerdo e na mão esquerda, causados pela faca que o arguido manejava. A fim de evitar a oposição física do AS, o arguido desferiu-lhe murros no queixo e no braço esquerdo e pontapés na perna direita. Na sequência dos golpes sofridos, o AS caiu, tendo ficado em decúbito ventral no chão da casa de banho. O arguido desferiu ainda com a faca um golpe na região infraescapular direita, um golpe na região infraescapular esquerda, três golpes ao longo do dorso e um golpe na nádega direita do seu filho»], bem como no que resulta de outros factos provados [«Casou-se com uma prima em 1.° grau aos 22 anos, tendo tido dois filhos; No início o relacionamento conjugal decorria sem incidentes, mas rapidamente começaram a surgir dissenções, o que contribuiu para o surgimento de violência doméstica, revelando-se o arguido um indivíduo autoritário e egocêntrico; Este quadro agravou-se substancialmente com a morte do pai ocorrida há cerca de 20 anos, reforçando-se então os comportamentos negativos, de agressividade, perseguição, grandeza e também ciúmes; Ocorreram, inclusive, episódios de agressão à própria mãe»], são particularmente desvaliosas sobre interesses societários e muito relevantes, fundamentando a agravação da culpa e com ela, a agravação da pena;
- as exigências de prevenção especial na determinação da medida concreta da pena são valoradas e entrecruzam-se com a situação resultante da doença do arguido, jurídico-penalmente acolhida pelo acórdão recorrido ao confirmar integralmente o acórdão do tribunal colectivo, que ordenou, ao abrigo do art. 104.º, n.º 1, do CP, o internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, pois que aquele «padece e já padecia ao tempo dos factos de anomalia psíquica grave – perturbação depressiva na linha de uma doença bipolar», e «apresenta um grau de perigosidade social elevado. Esta perigosidade está relacionada com características da sua personalidade ou maneira de ser e não responde ao tratamento com psicofármacos», sendo por isso patente que o regime dos estabelecimentos prisionais comuns será prejudicial ao arguido, podendo ainda este perturbar seriamente esse regime;
não merece provimento o recurso do acórdão da Relação confirmativo do acórdão da 1.ª instância que, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. a), c), d) e i), do CP, condenou o arguido na pena de 20 anos de prisão, ordenando, ao abrigo do art. 104.º do CP, o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
_
Nos autos de processo comum com o nº 884/06.9 POLSB da 1.ª Vara Criminal de Lisboa (2ª secção) o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, filho de L. da S. P. e de G. R. N. da S., nascido a 30.9.1953, natural da freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, casado, aposentado, residente na Rua ………, lote …, …° D, Lisboa, actualmente detido no EP de Lisboa, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts 131 e 132 nºs 1 e 2 als a), c), d) e i) do Cód. Penal.
_
Realizou-se a instrução a requerimento do arguido, vindo oportunamente a ser proferida decisão instrutória a fls. 303 e segs. que o pronunciou nos termos constantes da acusação.
_
O demandante BB, representado pela sua mãe CC, deduziu contra o arguido pedido de indemnização civil.
_
Submetido a julgamento, o tribunal colectivo, proferiu acórdão em 29 de Junho de 2007, onde em sede de questão prévia rejeitou o pedido de arbitramento de reparação provisória requerido pelo demandante ao abrigo do artº 403º e segs do Cód. Proc. Civil, e, decidiu:

“a) condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio qualificado P. e P. pelos arts. 131 e 132 nºs 1 e 2 ais. a) e i) do Cód. Penal. na pena de 20 (vinte) anos de prisão.
b) ordenar. ao abrigo do artº 104 n° 1 do Cód. Penal, o internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena.
c) julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil, condenando-se o arguido/demandado AA a pagar ao demandante BB a importância global de €170.000.00 (cento e setenta mil euros );
d) condenar o arguido nas custas do processo relativas à parte criminal (…)
e) condenar o arguido/demandado e o demandante nas custas referentes ao pedido civil na proporção do respectivo decaimento, devendo observar-se o disposto no art. 14 al. c) do CCJ;
f) declarar perdidas a favor do Estado, ao abrigo do art. 109 n° 1 do Cód. Penal, a cafeteira e a faca de cozinha apreendidas a fis. 13;
g) ordenar que por ora o arguido recolha ao estabelecimento prisional na situação em que se encontra, deixando-se, desde já, consignado que, descontado o tempo de prisão preventiva sofrido ao abrigo do art. 80 n° 1 do Cód. Penal, se tem por iniciado o cumprimento da pena de prisão fixada em a) no dia 22.7.2006;
h) ordenar o envio de boletim ao Registo Criminal. Notifique. “
_
Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por seu douto acórdão de 5 de Dezembro de 2007, negou provimento ao recurso, acordando “em confirmar integralmente o Acórdão recorrido.”
_
Ainda inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:

1 - O recorrente foi condenado pela prática, de um Crime de Homicídio Qualificado, previsto e punível, pelos artigos 131° e 132° n.s 1 e 2 als a) e i) do Código Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão.
2 - Foi ordenado, ao abrigo no artigo 104° n. 1 do Código Penal, o internamento deste num estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da Pena.
3 - Foi ainda condenado no pagamento do pedido de indemnização civil, no valor de 170.000€ (cento e setenta mil euros).
4 - Não se conformando com a o acórdão da 1ª instância apresentou recurso, vindo o mesmo a ser julgado improcedente,
5 - Continua o recorrente a não se conformar com a douta decisão, uma vez que entende que deveriam de ter sido aplicados os artigos 127º e 412° do CPP e em consequência ter sido alterado o acórdão da 1ª instância na parte em que o considerou imputável.
6 - O que o recorrente contesta e que sempre contestou é a perícia realizada pelo INML, que concluiu pela sua imputabilidade, pois entende que deveria de ter sido considerado inimputável,
7 - Alegou durante o processo e a audiência de julgamento que sofria de doença bipolar e que deveria de ser considerado inimputável, pelo que juntou aos autos urna nova perícia e levou o perito à audiência de julgamento para que o Tribunal pudesse averiguar todas as questões que pretendesse.
S - O recorrente entende que a perícia por si junta aos autos, juntamente com o depoimento do perito era suficiente para que tivessem sido levantadas sérias dúvidas sobre as conclusões da perícia realizada pelo Instituto de Medicina Legal e que levasse o Tribunal a quo a solicitar urna nova perícia, ou a optar pelas conclusões dessa perícia,
9 - Corno consta do acórdão da 1ª Instância, os dois pareceres são concordantes, num aspecto importante - "o arguido AA tem perturbações de ordem psiquiátrica, padecendo de doença bipolar. Divergem, contudo, quanto à conclusão em termos de imputabilidade"
10 - O perito, Dr. DD, ouvido na qualidade de Consultor Técnico, nos termos do disposto no artigo 155º do CPP, foi questionado quanto aos seus motivos de discordância com o relatório pericial apresentado pelo Instituto de Medicina Legal, bem corno relativamente às sua conclusões,
11 - Perante tal depoimento, que entendemos ser bastante explicito e credível, estamos em crer que levantou ao homem médio, sérias dúvidas quanto ao resultado da perícia do INML,
12 - É certo que a perícia realizado pelo INML, se presume subtraída à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 163º n. 1 do CPP, mas também é verdade que a sua opinião pode divergir do juízo contido no parecer dos peritos, podendo este decidir de outra forma, desde que fundamente tal divergência.
13 - Também é certo que a perícia apresentada pelo recorrente não tem formalmente o mesmo valor que a perícia apresentada pelo INML, mas tal facto não implica que a livre apreciação da prova por parte do julgador, não tenha limites.
14 - O Processo Penal é baseado na certeza e quem nos garante que pelo facto de se dizer na perícia do INML que o recorrente é imputável, que na realidade ele não o é.
15 - Entendemos que a perícia apresentada pelo recorrente, juntamente com o depoimento do perito que a realizou, é suficientemente para se levantarem sérias dúvidas quanto ás conclusões existentes na primeira,
16 - O perito apresentado pelo recorrente explicou de forma clara e credível a sua discordância, referiu que os motivos apontados pelo Perito do INML, para considerar o arguido imputável, não são obstáculos este ser considerado inimputável,
"O que é dito se bem me recordo, não tenho aqui presente, de cor, o que é dito é que o arguido se lembraria correctamente de todos os factos, os relataria pormenorizadamente e de acordo com a realidade, que se referia aos acontecimento com que me lembro a expressão mas penso que com frieza ou com ausência de emoção do comportamento e de pressupostos destes, chegou-se na perícia médico-legal a uma conclusão de que o arguido, seria, deveria ser considerado imputável e vá na minha opinião tais afirmações ou tais constatações, se bem que eu até concordo com elas, pelas entrevistas que fiz com o doente, ele de facto tem uma memória adequada e precisa dos acontecimentos, tem de facto aquilo que nós chamamos uma certa frieza afectiva, também nós utilizamos o termo embotamento, ou seja, uma ausência de afectos e de emocionalidade quando se refere aos acontecimentos, agora eu atribuo esse facto, este facto à determinação causada pela doença que o doente sofre e não por, enfim, por qualquer ausência de culpabilidade ou aspectos de carácter moral, ou .. , é essa a divergência, além disso ... "
17 - O perito apresentado pelo recorrente, concluiu que este deveria de ter sido considerado inimputável.
18 - Também a psiquiatra que acompanha o recorrente no Estabelecimento Prisional de Lisboa, a Dra EE, que prestou depoimento em audiência de julgamento, considera que o recorrente deveria de ter sido considerado inimputável.
19 - É certo que em termos de valoração da prova, funciona o disposto no artigo 127º do CPP, ou seja a livre apreciação da prova,
20 - E também é certo que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo Tribunal instância, mas não é obrigatório que assim seja, existindo casos de excepção.
21 - Da fundamentação da decisão de facto resulta que a convicção do tribunal não se baseou numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento, sendo tais factos baseados exclusivamente na perícia realizada pelo INML, sem atender ao depoimento credível e isento de um psiquiatra que exerce funções no Hospital Prisional há mais de 18 anos e da psiquiatra que segue o recorrente, desde que este se encontra detido no EPL.
22 - Entendemos que o homem médio fica com dúvida séria, honesta e com força suficiente para se tomar um obstáculo intelectual à aceitação de tal perícia, havendo assim lugar á aplicação do princípio "in dubio pro reo".
23 - Foi assim violado o Princípio da Livre Apreciação da Prova, previsto no artigo 127a do CPP, o artigo 1630 e o Princípio do In dubio pro reo, previsto no artigo 32º da CRP
24 - Entendemos que perante as dúvidas que foram levantada, que o Tribunal a quo, teria que ter tomado uma de duas atitudes, ou solicitava a realização de uma nova perícia, para que com certeza decidisse da imputabilidade ou não do recorrente, ou optava pelas conclusões apresentadas pelo perito presente em Tribunal.
25 - Não temos dúvidas que a averiguação da inimputabilidade de um individuo é extremamente complicado e que são os psiquiatras que têm mais aptidão nesta matéria, uma vez que têm mais conhecimentos nesta área, razão pela qual entendemos que o Tribunal a quo deveria de ter solicitado a realização de uma nova perícia.
26 - Violou assim o Tribunal a quo os artigos 158º, 163º e 410º nº 2 al a) do CPP
27 - Há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando se verifica uma lacuna no apuramento desta matéria que impede a decisão de direito ou quando se puder concluir que sem ela não é possível chegar-se à conclusão de direito encontrada.
28 - Entendemos assim que o processo deverá ser reenviado para julgamento, para que se realiza uma nova perícia e assim se apure sem dúvidas a questão a inimputabilidade do recorrente, e tal obrigação decorre do artigo 340° do CPP.
29 - Mesmo que assim não se entenda, e que considerem não julgar procedentes nenhumas das alegações anteriormente referidas, sempre se dirá que a medida da pena concretamente aplicado ao recorrente é excessiva,
30 - O Tribunal a quo também não ponderou de forma criteriosa, quer a culpa, quer as exigências de reprovação e de prevenção (prevenção geral ligada à defesa da sociedade e à contenção da criminalidade e prevenção especial positiva ligada à reintegração social do agente) - cfr. Artigo 40° n.s 1 e 2 do Código Penal - bem como as demais exigências do artigo 71° n° 2 do Código Penal, na determinação concreta da pena fixada ao recorrente.
31 - Ora, o Tribunal a quo ao ter imputado ao recorrente um grau de ilicitude elevado, não teve em conta que, como foi referido em julgamento o recorrente sofre de uma perturbação bipolar.
32 - Como foi referido em julgamento, esta doença do foro psiquiátrico provoca frieza e falta de emoção:
Mandatária do arguido - "O Sr. Dr. falou a pouco na frieza e na falta, portanto, de emoção do arguido, no seu entender isso é relevante, é um dos sintomas da patologia que ele sofre?
Consultor Técnico - Dr. DD - "Sim, penso que é das coisas que mais me impressionou nas entrevistas que fiz com ele."
Mandatária do arguido - "A falta de capacidade que o arguido tem de se emocionar?
Consultor Técnico - Dr. DD - "Sim."
Mandatária do arguido - "Isso revela, portanto, é uma característica?
Consultor Técnico - Dr. DD - "É uma característica que não me parece que tenha a ver com as circunstâncias da prisão ou dos factos cometidos, tem a ver na minha opinião com a deterioração que é própria deste tipo de doentes, ao longo de várias décadas, embora, os tratamentos sejam relativamente mais eficazes do que eram há 20 ou 30 anos, assiste-se sempre a uma deterioração da personalidade no sentido de uma perda de capacidade de se emocionar e perda da ressonância afectiva e de contactos afectivos é das coisas que mais sobressai."
33 - Ao ter aplicado uma pena tão severa não teve em conta as necessidades de prevenção especial positiva das penas, deixando ao recorrente pouco espaço de resposta à sua reintegração social, que conta actualmente com 53 anos de idade.
34 - Por outro lado, considera-se que para aferir o grau de ilicitude dos factos, o mesmo terá de ser efectuado em função dos meios utilizados pelo agente,
35 - Desta conjugação resulta que o grau de ilicitude dos factos terá de ser considerado diminuto e não elevado, se tivermos em conta a deterioração da personalidade do recorrente, motivada por 30 anos de doença psiquiátrica.
36 - O douto acórdão deveria ter ponderado favoravelmente e não o fez, o modo de execução dos factos e as atenuações especiais que não aplicou.
37 - É ainda importante assinalar que o Tribunal a quo não teve em conta o fim de prevenção especial das penas, dificultando a reinserção social do recorrente e que as penas quando são excessivas, deixam de realizar os seus fins, sendo certo que o combate à criminalidade impõe outros meios alternativos que não passam pela aplicação de penas de prisão tão elevadas.
38 - O douto acórdão ao condenar o recorrente numa pena excessiva e consequentemente desadequada, violou os artigos 131 e 132º do C. Penal - os artigos 71º e 72º do Código Penal, dado que não foram ponderadas de forma criteriosa: o grau de ilicitude do agente, as exigências de prevenção, quer penal, quer especial, a primeira foi muito valorizada sendo certo que o mesmo fim seria assegurado com uma medida de pena menos severa e a segunda não foi sequer ponderada;
39 - Nestes termos, considerando que o douto acórdão deverá ser revogado e / ou modificado no que respeita à medida da pena aplicada uma vez que a mesma é excessiva e desajustada.
Nestes termos, nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequências ser alterado no sentido acima descrito, fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA.
_
Respondeu o Dig.mo Procurador-Geral Adjunto à motivação do recurso, concluindo:

“4.1 – Como resulta do simples confronto de ambas as peças processuais (fls. 517/542 e fls 698/713) a motivação do recurso ora interposto para o STJ constitui mera e praticamente integral reprodução, quase sempre "ipsis verbis", daquela que foi também a motivação do recurso antes interposto, para este Tribunal da Relação, da decisão proferida na 1. a Instância. Não se mostra esgrimido o menor argumento que, por qualquer forma, questione os fundamentos que sustentaram o veredicto desta Relação, continuando antes a reportar-se tão só àqueles que haviam estado na base da decisão proferida na 1ª Instância.
4.2 - Por outro lado, nos termos do estatuído no art. 434.° do CPP, o recurso interposto para o ST J só pode visar o reexame de matéria de direito, posto que sem prejuízo da apreciação, oficiosa, dos vícios do art. 410.°, n. 2. Quanto a estes vícios, porém, sendo tal apreciação, por oficiosa, apenas do critério do Supremo Tribunal, quando considere que há motivos para deles conhecer, a invocação destes não pode constituir fundamento de recurso;
4.3 - Pelo que o presente recurso é manifestamente improcedente, sendo por isso de rejeitar liminarmente, como determina o art. 420.°, n. 1 do CPP.
4.4 - De todo o modo e caso porventura assim se não entenda, sempre se dirá que:
4.4.1 - Não é sequer questionável que, em sede probatória, o princípio invocado (in dubio pro reo) impõe que o "non liquet' tenha sempre de ser valorado a favor do arguido. Só que isso é apenas quando esse "non liquet' existe! E "in casu", nem as instâncias recorridas chegaram a qualquer estado de dúvida que justificasse o funcionamento do aludido princípio, nem à dúvida anunciada pelo recorrente se pode, para tal efeito, atribuir a mínima relevância.
4.4.2 - De resto, o Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação deste princípio quando da decisão recorrida resultar que o tribunal «a quo» ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando essa hipótese, como manifestamente sucede "in casu", resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do disposto no art. 127.° do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ, enquanto tribunal de revista.
4.4.3 - Atentos os critérios legais ao caso convocáveis (art.s 40.°, 70.° e 71.° do Código Penal), e tendo em conta a moldura abstracta da pena aplicável (prisão de 12 a 25 anos), bem como todas as circunstâncias a ponderar e atender (designadamente as enunciadas no Acórdão sob censura), temos por certo que a fixação da sua medida concreta em 20 anos de prisão, a pecar seria por defeito, que nunca por excesso.
4.4.4 - O douto Acórdão recorrido é, nesta hipótese, de confirmar nos seus precisos termos.
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Vossas Excelências, porém, apreciarão e decidirão como for de JUSTICA”
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Neste Supremo, o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente.
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Cumprida a legalidade dos vistos, seguiu o processo para conferência, uma vez que não foi requerida audiência.
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Deram as instâncias como assente a seguinte matéria de facto.

1. O arguido morava com o seu filho FF, de 27 anos de idade, na residência sita na Rua ……., lote 7, 30 D, em Lisboa.
2. Na noite de 21.7.2006 ocorreu uma discussão entre o arguido e o FF, por motivos relacionados com dinheiro.
3. Nessa noite, o arguido, à semelhança do que já sucedera noutras ocasiões, não tomou a medicação a que está sujeito para tratamento de doença afectiva com sintomas depressivos, da qual faziam parte os fármacos Efexor, Diplexil, Zyprexa e Zolpiden.
4. No dia 22.7.2006, pelas 9hOOm, momento em que já decidira matar o seu filho FF, o arguido saiu do seu quarto e colocou uma cafeteira cheia com 2,5 litros de água a aquecer no fogão da cozinha.
5. Seguidamente, de uma gaveta dos móveis da cozinha retirou uma faca de cozinha com 33 cm de comprimento, sendo de 21,5 cm o comprimento da lâmina e 4 cm a sua largura máxima, com dois gumes, um em toda a extensão da lâmina e outro no terço distal com 6 cm de comprimento.
6. Quando a água ferveu, o arguido retirou a cafeteira do fogão, dirigiu-se ao quarto onde o seu filho se encontrava a dormir, com a cafeteira numa mão e a faca de cozinha na outra e despejou na cara e no tronco do seu filho a água a ferver.
7. O FF despertou com as dores causadas pela água a ferver e dirigiu-se à casa de banho da residência, a fim de se molhar com água fria.
8. O arguido, entretanto, pousou a cafeteira no quarto e seguiu o seu filho até à casa de banho, empunhando a faca de que se munira.
9. Vendo o FF que o arguido se encontrava com uma faca na mão, disse-lhe: "pai, não ".
10. Então, o arguido espetou a faca no corpo do filho e fez-lhe um corte na face antero-lateral do hipocôndrio direito, eviscerando o intestino.
11. Depois espetou a faca por duas vezes na região supra púbica do seu filho, exteriorizando o epiploon.
12. Espetou ainda a faca na face anterior do terço inferior do hemitórax esquerdo, no epigastro e no flanco esquerdo do corpo do seu filho.
13. Durante esses actos, o FF esbracejou no sentido de evitar ser atingido, do que resultaram cortes no braço esquerdo e na mão esquerda, causados pela faca que o arguido manejava.
14. A fim de evitar a oposição física do FF, o arguido desferiu-lhe murros no queixo e no braço esquerdo e pontapés na perna direita.
15. Na sequência dos golpes sofridos, o FF caiu, tendo ficado em decúbito ventral no chão da casa de banho.
16. O arguido desferiu ainda com a faca um golpe na região infraescapular direita, um golpe na região infraescapular esquerda, três golpes ao longo do dorso e um golpe na nádega direita do seu filho.
17. A descrita conduta do arguido provocou no FF:
a) - ferida corto-perfurante no dorso, na região infraescapular direita, à direita da linha média, situada 17 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro direito e 6,5 cm para a direita da linha média, oblíqua para baixo e para a direita, com 3,3 cm de comprimento e 1,6 cm de diastase dos bordos, provocado de trás para a frente, de baixo para cima e da direita para a esquerda (I);
b) - ferida corto-perfurante no dorso, na região infraescapular esquerda, situada 18,5 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro esquerdo e 5,5 cm para a esquerda da linha média, horizontal, com 2,5 cm de comprimento e 3,4 cm de diastase dos bordos, provocado de trás para a frente (II);
c) - ferida corto-perfurante no epigastro, situada 36 cm abaixo do plano horizontal que passa pelos bordos superiores dos ombros, junto à linha média e à direita da linha média, oblíqua para baixo e para a direita, com 8,5 cm de comprimento e 3,4 cm de diastase dos bordos, provocado de frente para trás (VIII);
d) - ferida corto-perfurante no flanco esquerdo, situada 40,5 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro esquerdo e 12,5 cm para a esquerda da linha média, oblíqua para baixo e para a esquerda, com 3 cm de comprimento e 1,5 cm de diastase dos bordos, com bordo superior irregular, tendo a extremidade do bordo superior duas escoriações em V, com 3 cm no ramo superior e 0,5 cm no ramo inferior, provocado de frente para trás e da esquerda para a direita (IX);
e) - ferida corto-perfurante no hipocôndrio direito, nas faces anterior e lateral, mais ou menos horizontal, com 18,5 cm de comprimento, com diastase dos bordos e exteriorização de ansas intestinais, provocado de frente para trás e da direita para a esquerda (X);
f) - ferida corto-perfurante à direita da linha médio-abdominal, situada 6 cm abaixo da cicatriz umbilical, oblíqua para baixo e para a direita, com 3 cm de comprimento, provocado de frente para trás, da direita para a esquerda e de cima para baixo (XI);
g) - ferida corto-perfurante à direita da linha médio¬abdominal, situada 7 cm abaixo da cicatriz umbilical, mais ou menos horizontal, com 2 cm de comprimento, com extremidade direita em cauda de andorinha, provocado de frente para trás, da direita para a esquerda e de cima para baixo (XII);
h) - ferida corto-perfurante no terço inferior do hemitórax esquerdo, situada 29,5 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro esquerdo e 5,5cm para a esquerda da linha médio-esternal, horizontal, com 5,5 cm de comprimento e 2 cm de diastase dos bordos, com escoriação linear na extremidade superior (VII);
i) - equimose roxa entre a extremidade interna da ferida referenciada como VII e a extremidade superior da ferida referenciada como VIII, com eixo maior oblíquo para baixo e para a direita, com 6,5 cm de comprimento e 1 cm de largura média;
j) - queimaduras do 2° grau na região parietal esquerda numa área com 3,5 cm de diâmetro médio, na região frontal anterior (junto à implantação do cabelo), em ambos as bossas frontais, na helix do pavilhão auricular direito, na região temporal anterior esquerda, na região zigomática-malar esquerda, no lábio superior (à esquerda da linha média), no ombro direito, na face anterior do tórax (em áreas irregulares com diâmetros médios variando entre 2 cm e 10 cm), no terço superior da face posterior do braço direito, na face anterior do cotovelo e antebraço direito, na palma da mão direita, no 1° e 5° dedos da mão direita, no terço superior da face anterior do braço esquerdo e no 1° dedo da mão esquerda, lesões que interessam cerca de 7% da área corpórea total;
1) - três feridas cortantes na região dorsal, na linha média e na região dorso lombar: a mais à esquerda inicia-se 9 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro esquerdo e 2 cm para a esquerda da linha média, terminando 8 cm para a direita da extremidade superior do sulco longitudinal posterior, vertical nos dois terços e semilunar na metade inferior, com abertura para a direita, com 54 cm de comprimento rectificado e 3,5 cm de diastase máxima dos bordos (III), a do meio inicia-se cerca de 14 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro esquerdo e termina 6 cm acima da extremidade inferior da acima descrita, com o terço distal semilunar com abertura para a direita, com 40 cm de comprimento e 1,5 cm de diastase dos bordos (IV), a mais à direita inicia-se 8 cm abaixo do plano horizontal que passa no bordo superior do ombro direito e termina 3 cm para a direita da extremidade distal da ferida acima descrita, e referendada como IV, com a mesma direcção que as anteriormente descritas, com 48 cm de comprimento e 3,5 cm de diastase dos bordos (V);
m) - ferida cortante na região glútea direita, mais ou menos na linha média, horizontal, com 20 cm de comprimento (VI).
18. O FF apresentava ainda:
a) - ferida cortante no terço superior da face posterior do braço esquerdo, oblíqua para baixo e para a esquerda, com 2,5 cm de comprimento;
b) - ferida cortante no terço médio da face posterior do antebraço, oblíqua para baixo e para a esquerda, com 3,5 cm de comprimento;
c) - ferida cortante no terço inferior da face posterior do antebraço esquerdo, semilunar, com abertura para baixo, com 2,3 cm de comprimento;
d) - ferida cortante na última falange do 2° dedo da mão esquerda, na face palmar, com 0,5 cm de comprimento;
e) - feridas cortantes na última falange dos 3° e 4° dedos da mão esquerda, na face palmar, horizontais, com 1,7 cm de comprimento médio cada uma.
19. Estes ferimentos resultaram da oposição física do Alexandre Silva à conduta do arguido descrita em 13.
20. O FF apresentava igualmente:
a) - ferida contusa na região mentoniana, na linha média, horizontal, com 2,3 cm de comprimento;
b) - equimose roxa no cotovelo esquerdo, na face posterior, com 0,6 cm de diâmetro médio;
e) - duas escoriações no terço superior da face anterior da coxa direita, lineares e verticais, com 3 cm de comprimento cada uma.
21. Estes ferimentos resultaram dos murros e dos pontapés referidos em 14.
22. As lesões descritas provocaram no hábito interno do corpo do FF:
a) - ferida corto-perfurante, transfixiva no 6° espaço intercostal posterior direito, 6 cm para a direita da coluna vertebral, com 4 cm de comprimento, com infiltração sanguínea dos músculos perifocais (1);
b) - ferida corto-perfurante, transfixiva, do pulmão direito, com início na face posterior do lobo inferior terminando na face anterior do lobo superior, na porção anterior e inferior, com secção do brônquio lobar inferior, definindo um trajecto em túnel de frente para trás, de baixo para cima e da direita para a esquerda (II);
c) - ferida corto-perfurante, do 2° espaço intercostal direito, junto ao esterno, com 0,5 cm de comprimento (1);
d) - ferida corto-perfurante, transfixiva no 7° espaço intercostal posterior esquerdo, com 4 cm de comprimento, com infiltração sanguínea dos músculos perifocais (II
e) - cavidades pleurais com escasso sangue líquido;
f) - atelectasia do pulmão direito;
g) - hemorragias subendocárdicas;
h) - ferida corto-perfurante, transfixiva, da parede abdominal (VIII);
i) - duas feridas corto-perfurantes, transfixivas, no estômago: uma no antro interessando a face anterior e outra no corpo interessando as faces anterior e posterior (VIII);
j) - ferida corto-perfurante, transfixiva da parede abdominal, no flanco esquerdo (IX);
1) - ferida corto-perfurante, transfixiva do grande epiploon (IX);
m) - ferida corto-perfurante, transfixiva, no cólon ascendente, junto ao ângulo hepático (X);
n) - ferida corto-perfurante, transfixiva, no mesentério (X);
o) - ferida corto-perfurante, transfixiva na parede abdominal, subjacente às feridas referenciadas como XI e XII, confluentes;
p) - ferida corto-perfurante, transfixiva, no grande epiploon (XI e XII);
q) - ferida corto-perfurante, transfixiva, no cólon sigmoideu (X e XII);
r) - ferida corto-perfurante do músculo psoas ilíaco direito, no terço distal (XI e XII);
s) - hemoperitoneu, com cerca de 250 cc. de coágulos sanguíneos e 375 cc. de sangue líquido;
t) - ferida corto-perfurante, transfixiva, da parede abdominal, com um trajecto em túnel, unindo as feridas referenciadas como VII e VIII, com um trajecto confluente, oblíquo para baixo e para a direita, com 6,5 cm de comprimento, com infiltração sanguínea perifocal (VII);
u) - escassa infiltração sanguínea nos tecidos subjacentes às feridas cortantes referidas em 17. 1) em).
23. As lesões traumáticas torácicas e abdominais descritas em 22 de a) a s) causaram a morte de FF, sendo que quer as lesões traumáticas torácicas, quer as lesões traumáticas abdominais eram, isoladamente, capazes de causar essa morte.
24. O arguido, após o sucedido, dirigiu-se à cozinha, ali deixando a cafeteira e lavando a faca que utilizara para matar o seu filho, faca que voltou a colocar numa gaveta de um móvel da cozinha.
25. O arguido sabia que estava a desferir golpes no corpo de FF, seu filho e que assim lhe causava ferimentos que lhe provocariam a morte, o que fez após ter despejado no corpo deste água a ferver.
26. Praticou estes actos depois de neles ter reflectido durante toda a noite na sequência da discussão referida em 2.
27. O arguido quis praticar os factos descritos com intenção de matar o seu filho.
28. Sabia que a sua conduta era criminalmente punida.
29. O falecido FF era pai do demandante BB, que nascera em 29.9.2005.
30. Vivia maritalmente com a mãe do demandante, CC.
31. O falecido era um pai extremoso, manifestando carinho e dedicação ao filho e à sua companheira e proporcionando-lhes todo o conforto e apoio emocional necessários na sua vivência familiar.
32. Para além do apoio emocional, proporcionava ao filho ajuda económica, suportando a maioria das despesas da família, designadamente com a alimentação, a assistência médica e o lazer do menor.
33. O falecido FF era pessoa bem constituída, saudável, dinâmica e com gosto de viver.
34. Era uma pessoa estimada e conceituada no seu meio social.
35. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais para a Câmara Municipal de Lisboa, onde auferia a quantia de €635,76 mensais.
36. Para além desta actividade, efectuava serviços como ajudante de electricista, no que auferia importâncias não determinadas.
37. Com o filho despendia quantias varláveis, mas nunca inferiores a €250,00 mensais, adquirindo-lhe roupas, brinquedos, alimentação e suportando as suas despesas de saúde.
38. Este, em virtude dos factos dos autos, viu-se privado da companhia, apoio e sustento do pai com 10 meses de idade.
39. O falecido dedicava grande parte do seu tempo ao filho, a quem muito amava e lhe dava alegria.
40. O arguido, filho único, é proveniente de uma família de baixo estatuto sócio-económico, sendo o seu pai sub-chefe da PSP e a mãe empregada doméstica.
41. A nível da escolarização, o arguido fez o 1° ciclo sem problemas, o que se alterou com a passagem para o 2° ciclo, com o surgimento de sentimentos de revolta e a ocorrência de comportamentos desadequados na escola, perturbando o normal funcionamento das aulas.
42. Mais tarde, aos 21 anos de idade, voltou à escola nocturna, terminando o 11° ano.
43. Aos 14 anos de idade desvinculara-se da escola, tendo começado a trabalhar, inicialmente, numa oficina de automóveis.
44. Com cerca de 20 anos de idade começou a trabalhar na Câmara Municipal de Lisboa como fiel de armazém, depois de ter sido considerado inapto para o serviço militar.
45. Reformou-se por volta dos 48 anos de idade, devido aos problemas do foro de saúde mental que evidenciava.
46. Tem acompanhamento psiquiátrico ambulatório desde os 20 anos de idade.
47. Casou-se com uma prima em 1° grau aos 22 anos, tendo tido dois filhos.
48. No início o relacionamento conjugal decorria sem incidentes, mas rapidamente começaram a surgir dissenções, o que contribuiu para o surgimento de violência doméstica, revelando-se o arguido um indivíduo autoritário e egocêntrico.
49. Este quadro agravou-se substancialmente com a morte do pai ocorrida há cerca de 20 anos, reforçando-se então os comportamentos negativos, de agressividade, perseguição, grandeza e também ciúmes.
50. Ocorreram, inclusive, episódios de agressão à própria mãe.
51. Fez também três tentativas de suicídio, sendo um indivíduo que se automedicava ou utilizava a medicação prescrita da forma que entendia ser a mais indicada para si naquele momento.
52. Nas actividades de lazer, os livros, bem como a leitura dos mesmos, ocupavam um espaço importante na sua vida, despendendo elevadas somas sobretudo com as colecções que realizava.
53. Interessava-se principalmente por livros de direito e de política.
54. Ingeria álcool habitualmente, o que se transformava num problema devido à medicação que tomava.
55. Em Setembro de 2005, a mulher e a mãe do arguido abandonaram a casa de morada de família, devido às agressões e discussões graves que ocorriam com frequência, tendo omitido o local para onde foram residir.
56. Durante o ano de 2004, o arguido já havia colocado fora de casa os seus dois filhos.
57. No ano de 2005, o arguido registou três internamentos no Hospital Júlio de Matos, sendo também seguido do ponto de vista médico (em regime ambulatório), por este serviço.
58. Depois de ter ficado a viver sozinho na casa de morada de família, em virtude do afastamento dos familiares próximos, o arguido começou a evidenciar dificuldades em gerir a sua vida autonomamente, tendo entrado num processo de degradação também física.
59. Por isso, a sua mulher decidiu prestar-lhe alguns apoios/cuidados.
60. Entretanto, alguns meses antes do sucedido o FF foi viver para casa do pai.
61. A relação entre os dois mostrava-se difícil, sendo assinaladas questões relativas a dinheiro e alguma semelhança temperamental, que os fazia entrarem em choque.
62. Presentemente no Estabelecimento Prisional de Lisboa, depois de uma fase complexa em termos de saúde física e mental, num quadro de grande dependência de cuidados de terceiros, a situação do arguido mostra-se controlada.
63. Neste estabelecimento prisional recebeu apenas uma visita do pai da companheira do filho, daí resultando um quadro de isolamento relativamente a possíveis apoios do exterior.
64. O arguido sofre de perturbação depressiva na linha de uma doença bipolar.
65. Confessou a prática dos factos.
66. Por sentença proferida em 19.6.2006 foi condenado pela prática, em Junho de 2004, de crime de detenção de armas proibidas, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €5,00, o que perfaz a multa global de €600,00 (proc. comum n° 795/04.2 POLSB do 6° Juízo Criminal de Lisboa/2a secção).
67. Por sentença proferida em 17.11.2006 foi condenado pela prática, em 1.8.2004, de crime de condução perigosa de veículo rodoviário, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de €3,00, o que perfaz a multa global de €450,00, com 100 dias de prisão subsidiária (proc. sumaríssimo nº 93/05.4 SILSB do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa - 2° Juízo/1Q secção).
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FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
a) o arguido ao não tomar, nessa noite, a medicação indicada em 3 fê-lo com o propósito de acordar cedo e de não estar sobre o efeito dessa medicação a fim de matar o seu filho FF;
b) o arguido ao despejar água a ferver no corpo do falecido o fez apenas para lhe causar dor;
c) o falecido tinha entretanto arranjado emprego na TAP;
d) o falecido efectuava serviços de auxiliar de talho;
e) o falecido coabitava com o seu filho desde que ele nasceu. Não se provou qualquer outro facto com interesse para a decisão da causa.
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Cumpre apreciar e decidir:

Desde logo cumpre dizer - conforme Acórdão deste Supremo Tribunal, de 09-11-2006 Proc. n. 4056/06 – 5ª Secção - que o Supremo só conhece dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, por sua própria iniciativa, e nunca como fundamento de recurso interposto pelo recorrente, que, para o efeito, sempre terá de se dirigir à Relação.
Esta é a solução que está em sintonia com a filosofia do processo penal emergente da reforma de 1998 que, significativamente, alterou a redacção da al. d) do citado art. 432., fazendo-lhe acrescer a expressão antes inexistente "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito", filosofia que, bem vistas as coisas, visa limitar o acesso ao Supremo Tribunal, sob pena do sistema vigente comprometer irremediavelmente a dignidade deste como tribunal de revista que é.
Com tal inovação, o legislador claramente pretendeu dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores e garantir o desejável duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Esta posição nada tem de contraditório, já que a invocação expressa dos vícios da matéria de facto, se bem que algumas das vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, leva sempre ancorada a pretensão de reavaliação da matéria de facto, que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado.
Como decidiu o Acórdão de 8-11-2006, deste Supremo Tribunal, in Proc. n. 3102/06- desta 3ª Secção, os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; São anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.
O tribunal vocacionado para o reexame da matéria de facto é o da Relação, a quem cabe, em última instância, decidir a matéria de facto - arts. 427º e 428º do CPP.
A reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto não alterou esse entendimento.

Os vícios constantes do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, têm de resultar do texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum.
Não se verifica a existência de qualquer um desses vícios, uma vez que a decisão de facto é bastante para a decisão de direito, inexiste insanável contradição entre a fundamentação e entre esta e a decisão, e dela não é perceptível de forma evidente, qualquer erro, que contrarie as regras da lógica e da experiência comum, detectável por qualquer pessoa do povo medianamente instruída que processe à leitura da decisão.


O recorrente contesta a perícia realizada pelo INML, que concluiu pela sua imputabilidade, pois entende que deveria de ter sido considerado inimputável, e que a perícia por si junta aos autos, juntamente com o depoimento do perito, era suficiente para que tivessem sido levantadas sérias dúvidas sobre as conclusões da perícia realizada pelo Instituto de Medicina Legal e que levasse o Tribunal a quo a solicitar uma nova perícia, ou a optar pelas conclusões dessa perícia, pois que perante as dúvidas que foram levantadas, o Tribunal a quo, teria que ter tomado uma de duas atitudes, ou solicitava a realização de uma nova perícia, para que com certeza decidisse da imputabilidade ou não do recorrente, ou optava pelas conclusões apresentadas pelo perito presente em Tribunal.
Daí que o recorrente considere ter sido violado o Princípio da Livre Apreciação da Prova, previsto no artigo 127º do CPP, o artigo 163º e o Princípio do In dubio pro reo, previsto no artigo 32º da CRP e, ainda, o disposto nos artºs 158, e 410º n. 2 al a) do CPP
Pretende em suma que o processo seja reenviado para julgamento, para que se realize uma nova perícia e assim se apure sem dúvidas a questão a inimputabilidade do recorrente, e que tal obrigação decorre do artigo 340° do CPP.

Analisando:

O recorrente ao não se conformar com a decisão, questiona matéria de facto sobre a questão da imputabilidade, pondo em causa o juízo de valoração da prova efectuado pelo tribunal.
O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2ª instância, mas dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa e não indiscriminadamente todas as provas produzidas em audiência.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.° do CPP.

O Processo Penal fundamenta-se e, é conduzido, de harmonia com as exigências legais da produção e exame de provas legalmente válidas, com vista à determinação da existência de infracção, identificação do seu agente e definição da sua responsabilidade criminal.
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. - artº 125º do CPP
A actividade probatória consiste na produção, exame e ponderação dos elementos legalmente possíveis a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.

Como se sabe, no sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que conforme artº 127º o CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
O artigo 127º do CPP estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e natureza completamente diferente: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar, (o caso dos documentos autênticos); outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente uma outra, eminentemente subjectiva, que resulta da livre convicção do julgador.
Porém não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo e valoração do julgador com o mero arbítrio: a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva, e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo.

O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (artº 163º nº 1 do CPP)
Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. (nº 2 do preceito).
Como refere o recorrente: “É certo que a perícia realizado pelo INML, se presume subtraída à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 163º n. 1 do CPP, mas também é verdade que a sua opinião pode divergir do juízo contido no parecer dos peritos, podendo este decidir de outra forma, desde que fundamente tal divergência. “ (conclusão 12)
Mas, como reconhece na conclusão 13ª: “Também é certo que a perícia apresentada pelo recorrente não tem formalmente o mesmo valor que a perícia apresentada pelo INML (…)
Na verdade, como se disse no acórdão recorrido:
“Compulsados os Autos, constata-se que o ora recorrente foi submetido, oportunamente, a uma Perícia às Faculdades Mentais e a uma Perícia de Personalidade, nos termos dos artigos 159° e 160° do CPP, as quais foram efectuadas, assim, por um médico psiquiatra e uma psicóloga do Instituto Nacional de Medicina Legal.
E que, com a Contestação, o recorrente veio aos Autos juntar um Relatório Médico elaborado, a seu pedido, por um médico psiquiatra, o qual veio a ser ouvido em Audiência de Julgamento como consultor técnico, nos termos do artigo 155º nº3 do CPP.
O recorrente funda a sua impugnação da perícia realizada pelo INML no parecer elaborado por este médico psiquiatra} bem como no teor do depoimento da testemunha de defesa, Ligia Tavares, também médica psiquiatra.
Esgrimindo com a diferente apreciação sobre a questão da imputabilidade, entre a perícia médica elaborada pelo INML e o Relatório Médico e o depoimento da testemunha indicada, o recorrente assenta a sua argumentação na errada apreciação e valoração da prova produzida em Audiência de Julgamento.
Esquece, porém, o recorrente que, na sistematização da disciplina sobre a prova pericial, o Relatório Médico por si junto aos Autos não consubstancia uma perícia, não estando por isso sujeito à regra estabelecida no artigo 163° do CPP, mas antes se configura apenas e tão só como um parecer, a ser apreciado e valorado nos termos do artigo 127° do CPP.
Ou seja, não é a qualidade processual de consultor técnico atribuída em Audiência de Julgamento ao médico psiquiatra indicado pelo recorrente que determina a natureza de prova pericial ao documento por si elaborado. Antes, a qualificação deste meio de prova advém, “in casu" da observância do disposto nos artigos 159° e 160° do CPP.
Nesta medida, forçoso é considerar-se que, sem embargo do teor científico das conclusões médicas do parecer apresentado, a prova constante daquele Relatório Médico tem de ser apreciada em função de critérios distintos da prova obtida através da perícia efectuada pelo INML.
O mesmo ocorre, aliás, no tocante ao teor da prova testemunhal trazida aos Autos pela médica psiquiatra, que acompanha o recorrente no EPL, pois que atento o disposto no artigo 130° nº 2 al b) do CPP, do depoimento desta testemunha apenas se pode validamente considerar a matéria relativa ao acompanhamento médico a que tem procedido, e não a sua opinião, por muito respeitada que seja, sobre uma questão técnica objecto de uma perícia.
Assim sendo, ao apreciar a questão da imputabilidade o Tribunal “a quo" procedeu correctamente na medida em que apreciando livremente, nos termos do art. 127° do CPP, o teor do Relatório Médico junto aos Autos, e tomando em consideração a Perícia efectuada pelo INML, aderiu aos fundamentos desta última por entender que as considerações expendidas no referido Relatório não eram suficientes para a contraditarem.
Acresce, ainda, que a decisão recorrida louvando-se na Perícia do INML demonstra cabal e adequadamente a sua adesão à conclusão médico-legal da imputabilidade do recorrente para a prática dos factos.”

Face ao regime vigente, se o julgador acatar o juízo técnico, científico ou artístico dos peritos, inerente à prova pericial, nada terá que dizer. Se o não acatar, e dele divergir, terá que fundamentar a sua divergência. (v. Ac. deste Supremo e, desta Secção, de 07-11-2007, in Proc. n.º 3986/07 )
Ora, no caso sub judicio, a convicção do julgador, não divergiu da perícia, a qual de harmonia com o artº 157ºdo CPP, se revela idoneamente válida e segura na produção factual do resultado que concluiu, a imputabilidade do arguido.
Não havia assim necessidade de realização de nova perícia, e, por conseguinte inexistia insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que consubstanciasse o vício constante da alínea a) do nº 2 do CPP.
“Deste modo se conclui carecerem de fundamento legal as considerações expendidas pelo recorrente quanto “às fundadas dúvidas" das conclusões médico-legais.”, como bem salienta o acórdão da Relação.

Na verdade, poderá ainda acrescentar-se, que não se colocaram quaisquer dúvidas sérias ao julgador, para que devesse accionar-se o princípio in dubio pro reo
Por outro lado, a violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual, fica afastado o princípio do in dubio pro reo, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355º nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artº 32º nº 1 da Constituição da República.
Como salienta o acórdão da Relação, “da análise do Acórdão recorrido, maxime da motivação da decisão de facto, não se vislumbra qualquer preterição do aludido princípio, uma vez que, como se demonstrou já a prova da imputabilidade do recorrente foi claramente estabelecida pelo meio de prova adequado. Apreciado e valorado de acordo com os preceitos legais atinentes.”
Da fundamentação da decisão em matéria de facto não resulta que a convicção do tribunal não assentou numa valoração lógica, racional e objectiva de toda a prova que apreciou em audiência de julgamento, ou contrariou as regras legais e da experiência.

A discordância do recorrente no modo de valoração da prova, e no juízo resultante dessa mesma valoração, não traduz omissão de pronúncia ao não coincidir com a perspectiva do recorrente sobre os termos e consequências da valoração dessa mesma prova, pelo que não integra qualquer nulidade, uma vez que o tribunal se orientou na valoração das provas de harmonia com os critérios legais.
O artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, não confere a obrigatoriedade de um terceiro grau de jurisdição, assegura sim, o direito ao recurso nos termos processuais admitidos pela lei ordinária.

Entende o recorrente que a medida da pena concretamente aplicada é excessiva, porque o Tribunal a quo não ponderou de forma criteriosa, quer a culpa, quer as exigências de reprovação e de prevenção (prevenção geral ligada à defesa da sociedade e à contenção da criminalidade e prevenção especial positiva ligada à reintegração social do agente) - cfr. Art. 40° n.s 1 e 2 do Código Penal - bem como as demais exigências do artigo 71 ° n. ° 2 do Código Penal, na determinação concreta da pena fixada ao recorrente.
Porém, não tem razão.

Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. (Figueiredo Dias in Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo e desta Secção in Proc. n.º 2555/06)

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – citado artº 40º nº 1 do C.Penal.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa nº 2 do artº 40º
O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Na lição de Figueiredo Dias ( Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
Ensina o mesmo Professor –As Consequências Jurídicas do Crime, §55 que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’”
Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta –idem, ibidem § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”
Ou, e, em síntese: “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.

É no âmbito do exposto, que este Supremo Tribunal vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.
Como resulta, por exemplo, do Ac. deste Supremo e desta 3ª Secção, de 15-11-2006, Proc. n.º 3135/06, o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
A velhíssima ideia – sufragada pela doutrina oitocentista espanhola face ao artº 74º do seu CP de 1848 – da imposição da pena “no grau médio”, sempre que faltassem circunstâncias agravantes e atenuantes, tinha de ser abandonada (e foi-o) efectivamente) logo que os Códigos Penais começaram a conter critérios gerais da medida da pena, tendo-se compreendido que não é previamente dado ao juiz, antes da consideração da culpa e da prevenção, qualquer “ponto”, médio ou outro, da moldura penal, donde aquele deva “partir”. (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do crime, § 278, p. 210 e 211.)

O n ° 2 do artigo 71º do Código Penal, estabelece, que:
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência:
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

A Relação, considerando o acórdão da 1ª instância, pronunciou-se sobre a medida da pena, tendo em conta, a natureza do crime, pena abstractamente aplicável, fins das penas, as circunstâncias determinantes da medida concreta da pena, de harmonia com o artº 71º do C.Penal, e o entendimento da jurisprudência,
Refere, nomeadamente, o acórdão da Relação:
“O crime praticado pelo recorrente, homicídio qualificado pelas circunstâncias de ter sido praticado na pessoa de um seu filho – al. a) do n °2 do artigo 132° do C. Penal - e com frieza de ânimo, e reflexão sobre os meios empregues - ai. i) do mesmo normativo - é punido com uma pena de prisão de 12 a 25 anos.
Esta moldura penal não se mostra alterada pela recente revisão da lei penal.
É sabido que, de acordo com o estipulado no artigo 71 ° do Código Penal, a medida concreta da pena a aplicar a um Arguido deve ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, bem como todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo do crime, deponham a favor ou contra o agente.
(…)
Ao proceder à determinação da medida concreta da pena que veio a aplicar ao recorrente, o Tribunal “a quo" teve expressamente em consideração as seguintes circunstâncias (. . .) as exigências de prevenção de futuros crimes; o dolo directo e intenso; o elevado grau de ilicitude dos factos; a máxima gravidade das suas consequências, traduzida na morte de uma pessoa; o seu modo de execução, com utilização de faca e caracterizado por um alto grau de violência; a modesta condição sócio-económica do arguido; as condenações já sofridas pelo arguido, ambas em pena de multa por crimes de detenção de arma proibida e de condução perigosa de veículo rodoviário; e a confissão dos factos (pouco relevante).
Da ponderação das quais entendeu que: o facto cometido pelo arguido merece uma muito significativa reprovação ética, até porque estamos perante um pai que não hesitou em tirar a vida ao seu filho, entendemos que a pena concreta a aplicar-lhe se deverá situar um pouco acima do ponto intermédio da moldura penal, concretizando-se em 20 anos de prisão."
Do exposto resulta que o Acórdão em apreço procedeu a uma correcta apreciação de todas as circunstâncias determinantes na fixação da medida da pena, mormente as de prevenção geral e especial.
Pois que, através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitariamente sentida de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objectivo de reinserção social do a delinquente e, deste modo, à realização dos fins das penas no caso concreto (artigo 40°, nº 1 do C. Penal).
Sendo que, a consideração da culpa do a agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela eminente dignidade da pessoa humana, sendo a culpa entendida como um ''princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (artigo 40°, nº 2 do C. Penal).
Assim, entende-se que pena fixada ao recorrente obedece aos parâmetros legais uma vez que tomou em devida consideração todas as circunstâncias atinentes aos factos e à sua personalidade, neles vertida.
Pelo que, julgando-se que a pena fixada se mostra justa, adequada e correctamente fixada, tendo em atenção os fins de prevenção geral e especial que lhe são legalmente estabelecidos, se conclui pela improcedência do alegado.”

Concorda-se com a fundamentação explanada, por se mostrar legalmente correcta na determinação da medida concreta da pena, a qual, na ponderação fáctico-legal, de harmonia com os citados artºs 40º nºs1 e 2 , e 71º nºs 1 e 2 , tendo em conta a moldura legal abstractamente aplicável (12 a 25 anos de prisão) não se mostra desproporcionada.
Com efeito, e, como bem assinala o Digmo Procurador-Geral Adjunto e seu douto Parecer, “no caso, as qualidades especiais do agente, atinentes ao seu carácter, violento e reflectido (bem retratado no modo de execução do crime e suas causas, bem como no que resulta dos factos provados sob o nºs 48, 49 e 50, são particularmente desvaliosas sobre interesses societários e muito relevantes, fundamentando a agravação da culpa e com ela, a agravação da pena.”
As exigências de prevenção especial na determinação da medida concreta da pena são valoradas e entrecruzam-se com a situação resultante da doença do arguido, juridico-penalmente acolhida pelo acórdão recorrido ao confirmar integralmente o acórdão do tribunal colectivo, que ordenou, ao abrigo do artº 104º nº 1 do Cód. Penal, o internamento do arguido em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena,
Na verdade, face à reintegração do agente na sociedade, como uma das finalidades da pena, o tribunal ordena o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente à duração da pena, quando o agente não for declarado inimputável e for condenado em prisão, mas se mostrar que, por virtude de anomalia psíquica de que sofria já ao tempo do crime, o regime dos estabelecimentos comuns lhe será prejudicial, ou que ele perturbará seriamente esse regime, como resulta do artº 104º nº 1 do C,Penal.
Como teve ocasião de referir o tribunal da 1ª instância, o arguido “padece e já padecia ao tempo dos factos de anomalia psíquica grave – perturbação depressiva na linha de uma doença bipolar.” E, citando o relatório pericial do Instituto de Medicina legal, o arguido «apresenta um grau de perigosidade social elevado. Esta perigosidade está relacionada com características da sua personalidade ou maneira de ser e não responde ao tratamento com psicofármacos».
Neste contexto, cremos ser patente que o regime dos estabelecimentos prisionais comuns será prejudicial ao arguido, podendo ainda este perturbar seriamente esse regime.”
Tal internamento é uma forma de cumprimento da pena, em que a perigosidade criminal surge verdadeiramente para fazer face a um perigo de carácter penitenciário, (Maia Gonçalves in Código Penal Português anotado e comentado, 18ª ed. P. 418, nota 4, e Maria João Antunes in O internamento de Imputáveis em Estabelecimento destinados a Inimputáveis (Os arts 103º, 104º e 105º do Código Penal), separata do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra.
Do exposto resulta que o recurso não merece provimento.
_
Termos em que, decidindo:

Acordam os deste Supremo - 3ª secção, em negar provimento ao recurso e, confirmam o acórdão recorrido.

Tributam o recorrente em 5 Ucs de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Abril de 2008

Elaborado e revisto pelo relator.

Pires da Graça
Raul Borges


Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 04B814

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LUCAS COELHO
Descritores: PROVA PERICIAL
PROVA TESTEMUNHAL
MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE

Nº do Documento: SJ200507070008142
Data do Acordão: 07-07-2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 844/03
Data: 22-10-2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.

Sumário : I - Não sendo por lei afastada a prova testemunhal sobre a factualidade constante de certo quesito, e na falta de norma que defina sorte de preeminência da prova pericial sobre aquela, pode o tribunal em livre apreciação dos resultados das duas espécies de prova dar como provado o mesmo quesito;

II - Na óptica da segunda parte do n.º 2 do artigo 722 do Código de Processo Civil, carece, por conseguinte, de fundamento plausível a impugnação perante o Supremo da factualidade assim dada como provada, a pretexto de que esta se encontrava vinculadamente sujeita a prova pericial;
III - É consequentemente inadmissível o recurso de revista cujo objecto se limita à impugnação da decisão de facto nos termos referidos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. "A", residente na freguesia de Margaride, concelho de Felgueiras, instaurou no tribunal judicial dessa comarca, em 18 de Setembro de 1995, contra a sociedade B, Lda., com sede na freguesia de Azurém, concelho de Guimarães, acção ordinária fundada na celebração de contrato de prestação de serviço, mediante o qual se obrigou, perante a ré, a providenciar pela elaboração de projecto de construção de edifício em terreno desta na cidade de Felgueiras, que merecesse a aprovação da edilidade, pelo preço de 22.750.000$00, que a ré se obrigou a pagar desde que o projecto fosse aprovado.

O contrato foi reduzido a escrito, que o autor e o sócio gerente da ré C assinaram, houve lugar a adiantamentos ao autor por conta do preço no valor de 5.100$00, entregando este ademais à demandada um cheque caução de 3.000.000$00.

O autor promoveu a elaboração do projecto por terceiros pagando 4.100.000$00, e o mesmo veio a ser aprovado no município de Felgueiras, mas a ré recusa o pagamento do remanescente do preço.

Pede, nos termos expostos, a condenação desta a solver-lhe 17.650.000$00 em dívida, acrescidos de juros legais a contar da citação, e a devolver o cheque caução.

A demandada contestou, arguindo a falsidade da assinatura atribuída ao seu gerente no documento contratual, e deduziu reconvenção pelo facto de o autor não ter conseguido elaborar e fazer aprovar o projecto, pedindo a condenação deste a restituir-lhe a quantia de 1.000.000$000 dos adiantamentos, que retivera para si entregando 4.100.000$00 aos terceiros, com juros legais a contar da notificação da reconvenção.

Prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final em 4 de Outubro de 2002, que, julgando improcedente a reconvenção e procedente a acção, condenou a ré nos pedidos formulados pelo autor, absolvendo este do pedido reconvencional.

Apelou a ré, impugnando inclusive a decisão de facto, sem sucesso, tendo a Relação de Guimarães negado provimento ao recurso, confirmando a sentença.

2. Do acórdão neste sentido proferido, em 22 de Outubro de 2003, interpôs a apelante vencida recurso de revista, formulando na alegação as conclusões que se reproduzem:

2.1. «A questão fulcral que se põe à apreciação deste Mais Alto Tribunal consiste em saber se pode ou não ser anulada a resposta dada ao quesito 7.° (1), que a Relação manteve inalterada;

2.2.«E isto porque vem sendo jurisprudência pacífica de que, embora só a Relação e não o Supremo Tribunal de Justiça tenha competência para anular as respostas do colectivo e ao Supremo não seja lícito, por envolver matéria da facto alheia à sua competência, anular por obscuridade a decisão do tribunal colectivo, pode, no entanto, exercer censura sobre o uso que a Relação faça desse poder, censura, porém, a ser exercida muito discreta e limitadamente, para não invadir o campo de competência exclusiva da Relação, ou seja, quando o exercício do aludido poder por parte da Relação não se contenha nos limites legais e provoque violação da lei, a reclamar, então e só então, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça;

2.3. «Ocorre tal violação da lei se, como no caso aconteceu, a Relação manteve a resposta dada pela 1ª instância ao quesito 7°, quando, em resultado da prova pericial efectuada à assinatura da sócio gerente da ré C, uma instituição tão prestigiada e consagrada como é o Laboratório de Polícia Científica, admitiu que essa assinatura pode não ter sido da autoria de C, mantendo-se tal resposta com base na argumentação de que não constam do processo todos os elementos de prova que serviriam de base à decisão sobre o referido ponto da matéria de facto, que permitam sindicar a convicção do Juiz da 1ª instância, quando é certo que este resolveu a dúvida resultante da conclusão expressa naquele relatório de perícia socorrendo-se do depoimento de uma testemunha por sinal filho do Autor, a quem o facto aproveitava;

2.4. «A Relação podia, com base no disposto nos artigos 516, 653, n.º 2, e 655, n.º 1, todos do Código de Processo Civil anular tal resposta, pelo que, tendo violado tais normativos legais, poderá este Mais Alto Tribunal exercer a tal censura sobre o uso do poder que o tribunal a quo fez dos seus poderes sobre tal matéria.»

Pede neste conspecto a revogação do acórdão recorrido para ser substituído por «outro que anule a resposta dada ao quesito 7.º e se responda ao mesmo negativamente».

Não houve contra-alegação.

3. No primeiro visto do processo foi sugerido não ser de admitir o recurso por versar unicamente sobre matéria de facto - a convicção do Tribunal da Relação face aos elementos de prova.

E, notificadas as partes, nesta perspectiva, respondeu apenas a recorrente, aduzindo em síntese o seguinte.

Nos termos do n.º 2 do artigo 722.º do Código de Processo Civil, o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto de revista havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Assim sucede, segundo a ré recorrente, no caso sub iudicio, quando o tribunal de 1.ª instância deu prevalência ao depoimento da testemunha sobre o resultado da prova pericial.

Ou seja, a prova do facto sobre que incidiram tais meios de prova nunca poderia ser efectuada através da espécie de prova que sobre ele incidiu, a testemunhal, já que a única possível e viável só poderia ser a prova pericial.

Neste sentido cita a recorrente o acórdão deste Supremo Tribunal, de 4 de Dezembro de 1986, «Boletim do Ministério da Justiça», n.º 362, pág. 501, e conclui pela admissibilidade da revista.

4. A revista foi admitida na Relação de Guimarães, mas o despacho respectivo não condiciona, como se sabe, o tribunal ad quem (artigo 687.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).

E a questão a resolver consiste, portanto, em saber se a presente revista é ou não admissível.
II
1. A Relação considerou assente a matéria de facto já dada como provada na 1.ª instância, para que se remete, sem prejuízo de alusões pertinentes.

E, coligidos os necessários elementos de apreciação, tudo ponderado, cumpre decidir.

2. Em face das conclusões da alegação da revista, há momentos transcritas, afigura-se irrecusável a ilação, como se observou no visto, de que a recorrente se limita a impugnar a decisão de facto - como aliás fizera na apelação -, pretendendo que o tribunal de revista altere a resposta ao quesito 7.º (cfr. supra, nota 1) para «não provado».

Confirma-o a resposta à notificação da mesma para se pronunciar sobre a irrecorribilidade.

Aduz nesse sentido a recorrente, por um lado, que o Supremo pode censurar o uso dos poderes de modificabilidade da decisão de facto da Relação - consignados, decerto, no artigo 712.º do Código de Processo Civil -, quando sejam exercidos em violação da lei.

E tal violação ocorreu no caso, por outro lado, devido à circunstância de o tribunal a quo ter mantido inalterada a resposta ao quesito 7.º, conferindo prevalência à prova testemunhal sobre a prova pericial.

Estava por detrás desse quesito a contratualização documental da prestação de serviço, cuja assinatura pelo punho do seu sócio gerente a ré arguira de falsa, considerando esta, bem ou mal, a situação como determinante desde logo no sentido da improcedência da acção (2).. E o exame pericial do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, que incidiu sobre a assinatura, resultara inconcludente. De forma que a 1.ª instância, ponderando em livre apreciação a prova pericial e a prova testemunhal adrede produzida, deu ao quesito a resposta há pouco reproduzida (supra, nota 1), impugnada pela ré quando apelante, e que a Relação recusou alterar por não se verificar nenhuma das hipóteses previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 712.º

No conspecto exposto, que nos aprouve a título de elucidação intercalar, observa contudo a autora da revista que a prova do facto sobre o qual incidiram os mencionados meios probatórios nunca poderia ser efectuada por testemunhas, apresentando-se vinculada e unicamente possível e viável, com respeito a essa factualidade, a prova pericial.

E daí, justamente, no ponto de vista da recorrente, que tenha havido violação de lei integradora das hipóteses delineadas na segunda parte do n.º 2 do artigo 722 do Código de Processo Civil.

3. Salvo o devido respeito, não lhe assiste, porém, qualquer razão.

Vejamos.

3.1. Na tónica do artigo 712.º, que consigna o regime nuclear da modificabilidade da decisão de facto pela Relação, constitui jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal que o não uso por esse tribunal dos poderes de alteração da matéria de facto conferidos pelo aludido artigo - como foi o caso - é insindicável pelo tribunal de revista.

Em sintonia com este entendimento jurisprudencial, veio inclusivamente o Decreto-Lei n.º 375-A/79, de 20 de Setembro, acrescentar ao artigo 712.º o seu n.º 6 - aliás, não aplicável ao presente processo em razão do tempo -, segundo o qual «das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça».

3.2. Por outro lado, nos termos do artigo 729.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, «aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado».

E conforme o n.º 2 do mesmo normativo «a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722.º».

Preceitua efectivamente neste sentido o n.º 2 do último artigo que «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Ora, não existe qualquer lei aqui aplicável no sentido de a factualidade a que concerne o quesito 7.º ser insusceptível de prova testemunhal, ou de estar sujeita vinculadamente a prova pericial, não se conhecendo ademais preceito legal que defina sorte de preeminência desta espécie de prova sobre aquela.

Normativos dessa natureza não podem de resto procurar-se nos artigos 516.º, 653.º. n.º 2, e 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, citados pela recorrente (conclusão 4.ª).

Pois bem. Como se referiu, a recorrente limita-se na alegação a impugnar a decisão de facto das instâncias.

É neste sentido assaz elucidativa a petição com que a recorrente remata aquela peça, requerendo, repete-se, a revogação do acórdão recorrido para ser substituído por «outro que anule a resposta dada ao quesito 7.º e se responda ao mesmo negativamente».

Todavia, semelhante impugnação de modo algum integra as hipóteses, delineadas na segunda parte do n.º 2 do artigo 722, em que a alteração da matéria de facto pode ser objecto do recurso de revista.

4. Tais, por conseguinte, as razões por que não pode o recurso ser admitido.
III
Sendo por todo o exposto inadmissível a presente revista, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em não conhecer do seu objecto, julgando-se findo o recurso.
Custas pela ré recorrente (artigo 446 do Código de Processo Civil).

Lisboa, 7 de Julho de 2005
Lucas Coelho,
Bettencourt de Faria,
Moitinho de Almeida.
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(1) O quesito estava assim redigido : «Dando execução à vontade de autor e ré, foi elaborado e, a final, subscrito pelo autor e pelo sócio gerente da ré, C, um contrato, cujos termos constam do documento junto a folhas 7 (doc. n.º 1) e cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.» E mereceu a resposta «provado, com exclusão de ‘cujo teor se dá por inteiramente reproduzido.’»
(2) Esclareça-se, efectivamente, que, não estando o aludido contrato sujeito a nenhuma forma especial, outros factos se provaram demonstrando o aperfeiçoamento meramente consensual do negócio jurídico.


4.2. Anexo 3 – prova por inspecção judicial
Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 07A979

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: PRESUNÇÕES JUDICIAIS

Nº do Documento: SJ20070524009796
Data do Acordão: 24-05-2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA

Sumário : I – As Relações não podem, com fundamento em presunções judiciais, alterar as respostas aos quesitos ou aos pontos da base instrutória, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.
II – Podem as Relações tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não alterem os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica daqueles.
III – O S.T.J., embora não possa recorrer a presunções judiciais, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 29/1/03, AA e esposa, BB, residentes na Avenida de ......., na freguesia das Marinhas, Esposende, intentaram a presente acção, com processo comum sob a forma sumária, posteriormente rectificada para ordinária, contra CC e marido, DD, residentes no lugar de ........, freguesia de Vila Chã, também de Esposende, pedindo:
A) que se declare que eles AA. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de .........., freguesia de Vila Chã, concelho de Esposende, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º 00096 – Vila Chã;
B) que os RR. sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade deles, AA., sobre o prédio acima identificado;
C) que os RR. sejam condenados a retirar os ferros e a rede de vedação colocada desde o vértice sul-poente do prédio destes, vértice esse situado a cerca de 10 metros para Norte a partir do prolongamento da fachada Nascente da casa de habitação dos A.A., até à varanda existente na parte Norte da casa de habitação dos AA., e que se prolonga para sul, bem como a absterem-se de praticar quaisquer actos que perturbem a posse dos AA;
D) que os RR. sejam condenados a desocuparem imediatamente o logradouro do prédio dos A.A., com a configuração e delimitação constante do sombreado vermelho no croquis junto como doc. n°. 5, repondo-o na situação em que se encontrava anteriormente;
E) que os RR. sejam condenados a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe ou viole o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio acima identificado;
F) que os RR. sejam condenados a pagar-lhes (a eles AA.) a indemnização a liquidar em execução de sentença quanto aos prejuízos e danos materiais e morais sofridos pelos AA. com a conduta dos RR. e até efectiva desocupação.
G) que os RR. sejam condenados a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 50 por cada dia de atraso na entrega e desocupação do logradouro, após o trânsito em julgado da decisão final, a dividir em partes iguais, entre os AA. e o Estado.
Fundamentam estes pedidos alegando, em síntese que são donos, por sucessão e usucapião, de um prédio urbano sito no lugar de ............., freguesia de Vila Chã, deste concelho de Esposende, o qual se compõe de casa de rés-do-chão e dois pavimentos, dependência e logradouro, este com a área de 155 m2, a confrontar do norte com o rego, do sul com o caminho, e do nascente e poente com DD, inscrito na matriz predial urbana no artigo 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ........., de Vila Chã.
Os RR. são, por sua vez, donos de um prédio rústico sito no mesmo lugar, freguesia de Marinhas, o qual é composto de uma leira de lavradio denominada “A Horta”, com a área de 315 m2, e que confronta do norte e nascente com o rego, do sul com a estrada e do poente com AA, inscrito na matriz predial rústica no artigo 5475º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........, das Marinhas.
Os dois prédios são contíguos, confrontando o prédio deles AA. pelo lado nascente com o prédio dos RR..
Estes arrogam-se agora proprietários e pretendem ocupar abusivamente parte do logradouro daquele seu prédio urbano, e, no fim de semana de 22 a 24 de Novembro de 2002, eles RR. ou alguém a seu mando, aproveitando-se da ausência dos AA., procederam à colocação de uma rede de vedação em arame e ferro, desde o vértice sul/poente do prédio de que são donos, vértice esse situado a cerca de 10 metros para norte a partir do prolongamento da fachada nascente da casa de habitação dos AA., até à varanda existente na parte norte desta casa, prolongando-a em cerca de 3 metros para sul, e fizeram ainda diversos buracos na parede norte da mesma casa de habitação deles autores, mais concretamente na parede da sacada, onde fixaram os ferros de suporte da rede de vedação. Ao fazerem os buracos e ao introduzir os ferros partiram a parede em alguns pontos e deixaram abertos os buracos.
Em Dezembro de 2002 os mesmos RR. desnivelaram o terreno, na parte situada a norte e a nascente, da casa de habitação deles, AA., removeram pedras, eliminando sinais evidentes da linha divisória entre os dois prédios, lavraram e plantaram alguns arbustos e legumes, com o propósito e intenção de criarem a ideia de que já possuem o terreno há vários anos.
Contestaram os RR., pela forma como melhor consta de folhas 72 a 89, e deduziram reconvenção, pretendendo ser declarados legítimos donos da referida parcela de terreno.
Na contestação, para além de impugnarem os factos invocados pelos AA., não aceitando as áreas nem as confrontações que constam do registo do prédio destes na Conservatória do Registo Predial, impugnando que este prédio confronte com o seu pelo lado nascente, e que confronte pelo lado norte com o rego de águas bravas ali existente, pois, desse lado, confronta com o prédio deles RR., alegam ainda que colocaram uma rede de vedação no seu terreno, junto ao muro que o veda do terreno dos AA., e que os buracos existentes na parede do prédio dos AA. foram feitos há vários anos pelo inquilino destes, que, abusivamente, aí pôs diversos objectos e ferro velho na ausência deles RR., que, à altura, se encontravam emigrados na Córsega. Mais alegam que o desnivelamento do terreno, em Dezembro de 2002, foi feito por máquina retro-escavadora de uma empresa que estava a realizar o empreendimento de realargamento da estrada que liga Marinhas a Vila Chã, tendo como único objectivo limpar o rego da Ribeira do Peralto do “caulino” aí depositado pela fábrica de exploração de inertes de Vila Chã.
A reconvenção fundamentam-na afirmando que a parcela de terreno em discussão sempre a usaram e fruíram por ser parte integrante do seu prédio, que adquiriram por compra, celebrada em escritura pública, e que registaram a seu favor. Desde tal aquisição – 24/8/84 -, aí cortam ervas, arbustos e amieiros, usufruindo periodicamente do logradouro.
Assim, à vista de toda a gente, de forma pacífica, sempre no aludido terreno podaram e apararam e ainda cortaram arbustos e árvores de fruto, nele semearam erva e cortaram-na para a alimentação dos seus animais domésticos, aí desbastando, aparando ou cortando amieiros e outras espécies arbóreas, na convicção de serem os seus donos e de que não lesam direitos de ninguém, sendo por todos reconhecidos como proprietários do mesmo terreno, pelo que, eles sim, teriam adquirido o seu prédio, incluindo a fracção de terreno em causa, por usucapião.
Replicaram os AA., pela forma como melhor consta de folhas 107 e 108, onde, aceitando que os RR. somente regressaram a Portugal em 1999, impugnam os demais factos que estes alegam, dizendo que apenas nos finais do ano de 2002 é que eles “começaram a mexer” no terreno deles, AA., aproveitando-se da sua ausência e da sua idade avançada. Reclamando sua a propriedade sobre a parcela de terreno em causa, afirmam constituir ela o logradouro do seu prédio urbano, sendo aí que os AA. faziam a roda da azenha, limpavam e lubrificavam o aguilhão da azenha, dela retirando todas as utilidades que proporciona. Assim rebatem o pedido reconvencional.
Realizada uma audiência preliminar em que não foi obtida conciliação, os RR. requereram ainda a intervenção, como parte principal, da Junta de Freguesia de Vila Chã, o que lhes foi indeferido.
Proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias, foi enumerada a matéria de facto desde logo dada por assente e elaborada a base instrutória, do que reclamaram os AA., tendo a sua reclamação, após resposta dos RR., sido oportunamente decidida por despacho que a indeferiu.
Teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto sujeita a instrução, após o que, apresentadas alegações escritas pelos réus, foi proferida sentença que julgou a acção e a reconvenção parcialmente procedentes, declarando os AA. donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de ........., freguesia de Vila Chã, concelho de Esposende, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........ – Vila Chã, a confrontar do Norte com o rego, do Sul com caminho, do Nascente com o caminho e com os Réus, e do Poente igualmente com os Réus;
condenou os RR. a reconhecer o direito de propriedade deles, AA., sobre o prédio acima identificado;
mais condenou os RR. a desocupar imediatamente a parte do logradouro do prédio dos AA., que ocupam, com a configuração e delimitação constante do n.º 7 da matéria de facto, e concretamente na parte constante do sombreado vermelho, no croquis de fls. 37, que fica no interior do triângulo escaleno cujos lados são a fachada da parte urbana do prédio, a margem do Ribeiro do Peralto, e a linha sobre a qual está escrito “8,00”;
condenou ainda os RR. a absterem-se de praticar qualquer acto que perturbe ou viole o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio acima identificado, incluindo a parte do logradouro, com a configuração constante do n.º 7 da facticidade;
finalmente, condenou os RR. a pagarem aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a importância de € 50 por cada dia que prolonguem a ocupação do dito logradouro dos AA., a contar do dia seguinte ao do trânsito em julgado da decisão final do processo;
absolveu os RR. dos restantes pedidos formulados pelos AA.;
condenou os AA., a reconhecer o direito de propriedade dos RR. sobre o prédio rústico inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 5475º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........./.........., da freguesia de Marinhas, com a configuração que, no desenho de folhas 37 dos autos, é dada pelo sombreado verde, acrescida da parte triangular sombreada a vermelho, que imediatamente se lhe segue, sendo a divisória deste prédio com o dos AA. correspondente àquela linha onde está escrito “8,00” e à linha desenhada a caneta azul, que se encontra com aquela sensivelmente ao nível do cunhal Nascente/Norte da casa dos AA..
Apelaram autores e réus, tendo a Relação negado provimento ao recurso interposto pelos autores e concedido provimento ao recurso interposto pelos réus, revogando a sentença ali recorrida no tocante ao reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre a parcela objecto do litígio e demais pedidos dele dependentes, declarando-se os réus donos e legítimos proprietários de tal parcela (ou seja, de todo o terreno que na sentença foi repartido pelos triângulos escaleno e isósceles).
É do acórdão que assim decidiu que vem interposta a presente revista, pelos autores, que, em alegações, formularam as seguintes conclusões:
1ª - O entendimento do acórdão recorrido no sentido de que os actos de despejo de águas ou de restos das obras, de reparação da roda da azenha e de colocação de roupa a secar sobre uma parte de um prédio constituído apenas por pedras, inculto e que não tem qualquer espécie de utilização, não tem significado ou relevância jurídica, contraria a realidade e a experiência da vida, uma vez que tais actos de posse praticados pelos autores são os únicos possíveis sobre uma parcela de terreno com tal natureza;
2ª - O acórdão recorrido padece de vício de interpretação e raciocínio e de erro de julgamento na parte em que se refere à questão da roda da azenha, interpretando mal a expressão “fazer a roda”, pois que interpretou tal expressão como acto de moer, quando a mesma significa reparar, arranjar e consertar a roda da azenha, o que condicionou e condiciona a apreciação da prova produzida;
3ª - Tendo a Relação entendido que não foi feita prova da posse do terreno em litígio, nem pelos autores nem pelos réus, não obstante os únicos actos de posse possíveis sobre o terreno em questão (de pedras e inculto) terem sido praticados apenas pelos autores, actos que a decisão recorrida desvalorizou injustificadamente e contra as regras da experiência da vida e do senso comum, dever-se-ia ter julgado improcedente também o pedido reconvencional, no tocante à questão da parcela em litígio;
4ª - No acórdão recorrido entendeu-se que a parcela de terreno em litígio se encontra fisicamente ligada ao prédio dos réus, sem soluções de continuidade, aproveitando-lhe a posse exercida sobre o prédio a que está ligado, entendimento que não se pode sufragar, por, desde logo, se basear em pressuposto inexacto e errado e que está em contradição com a inspecção judicial de fls. 338, uma vez que a parcela de terreno em litígio está ligada fisicamente quer ao prédio dos réus quer ao prédio dos autores, aplicando-se assim a presunção a que o acórdão se refere tanto aos réus como aos autores (e não apenas aos réus);
5ª - Por outro lado, entre o prédio dos réus e a parcela em litígio existe um desnível ou socalco, o que afecta e afasta, desde logo, a inexistência de soluções de continuidade, conforme resulta assente e provado na inspecção judicial ao local de fls. 338, onde se refere que ”do prédio dos réus para o terreno que os autores reivindicam e que fica junto ao regato, existe um socalco em pedras soltas que tem todo o aspecto de ser muito antigo”, que não foi considerada nem tida em conta no acórdão recorrido;
6ª - Há factos assentes nos autos que invalidam a resposta dada pela Relação ao quesito 15º, uma vez que da inspecção judicial de fls. 338 resulta provado que entre o prédio dos réus e o terreno em litígio existe um socalco ou desnível, o que conflitua com a presunção da inexistência de interrupção ou soluções de continuidade;
7ª - A presunção utilizada no acórdão recorrido vai contra a inspecção judicial, a qual constitui um meio de prova directa, violando assim a hierarquia dos meios de prova;
8ª - Do auto de inspecção de fls. 338 resulta ainda que na versão dos réus a roda da azenha dos autores estava a cerca de dois metros em posição paralela à parede da casa, o que também nem sequer foi considerado no acórdão recorrido;
9ª - Sendo os autores donos da azenha (facto assente e fora de litígio), é sabido e resulta da experiência comum que a mesma precisa de espaço para “fazer a roda”, ou seja, para a arranjar e consertar, espaço que os próprios réus reconhecem no auto de inspecção judicial ser de dois metros paralelamente à parede da casa de habitação dos autores, o que a decisão do acórdão recorrido contraria, desrespeitando o auto de inspecção judicial e as regras da experiência da vida;
10ª - O acórdão recorrido desvalorizou (mal e injustificadamente) a posse dos autores e, uma vez afastada tal posse, presumiu que a parcela em questão teria de pertencer aos réus, por estar ligada ao seu prédio, tendo procedido à alteração da matéria de facto em consonância com tal presunção;
11ª - O raciocínio do acórdão recorrido (que deve valer para os dois lados) encontra-se incorrecto e viciado, uma vez que, tendo os réus deduzido reconvenção, estes, com vista à sua procedência, teriam também de provar a sua posse sobre a parcela em litígio, o que não fizeram (devendo assim presumir-se que tal parcela pertence ao prédio dos autores, ao qual está física e naturalisticamente ligada);
12ª - A Relação não podia basear a sua convicção e alterar a quase totalidade das respostas aos quesitos com base numa presunção que, para além de enfermar de erro nos seus pressupostos, colide com outros meios de prova constantes dos autos, nomeadamente a prova por inspecção judicial, que (por se tratar de um meio de prova directa, na medida em que é o Tribunal a observar ele próprio os factos a provar), tem muitíssimo mais força do que as presunções judiciais, sob pena de violação das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico e de ilogismo;
13ª - A prova por presunção judicial tem como limites o respeito pela factualidade provada e não pode eliminar o ónus da prova nem modificar o resultado da respectiva repartição entre as partes, devendo o seu uso (prova por presunção) ser objecto de censura pelo Supremo Tribunal de Justiça sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao raciocínio efectuado, como é o caso dos autos;
14ª - O acórdão recorrido procedeu à alteração da decisão da matéria de facto, não com base na prova produzida e constante dos autos, mas com base na presunção de que a parcela de terreno teria de pertencer aos réus, pelo facto de se ter entendido (mal) que os autores não fizeram a prova da posse de tal parcela;
15ª - Encontrando-se a parcela de terreno em litígio física e materialmente ligada ao prédio urbano dos autores, os réus, que deduziram reconvenção invocando a posse e a aquisição da mesma por usucapião, teriam de provar actos materiais de posse sobre tal parcela conducentes à usucapião, não sendo suficiente nem lhes bastando a falta de prova da posse dos autores;
16ª - Tendo os réus deduzido reconvenção invocando a aquisição por usucapião da parcela de terreno em questão, teriam de provar os factos constitutivos do seu direito (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), - o que não fizeram -, sendo certo que a falta de prova da posse dos autores não significa que se tenha como provada a posse dos réus ou vice-versa;
17ª - Ao proceder à alteração da quase totalidade da matéria constante da base instrutória em consonância com a presunção de que a parcela de terreno teria de pertencer aos réus, pelo facto de se ter entendido que os autores não fizeram prova da posse sobre a mesma, o acórdão recorrido violou os regras do ónus da prova estabelecidas nos art.ºs 341º e 342º do Cód. Civil e o disposto nos art.ºs 653º, n.º 2, e 659º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil;
18ª - Entendendo que nem os autores nem os réus fizeram prova sobre a posse do terreno em litígio, a Relação deveria ter julgado também improcedente o pedido reconvencional (relegando a questão para uma eventual acção de demarcação ou outra), ou então deveria ter julgado improcedentes ambas as apelações, mantendo a decisão da 1ª instância, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito;
19ª - O acórdão recorrido procedeu à alteração da decisão da matéria de facto de forma incompreensível, não tomando em devida conta e consideração a matéria quesitada, conforme resulta das respostas dadas aos n.ºs 3º, 4º, 5º, 6º e 15º da base instrutória, cujas respostas divergem da matéria quesitada;
20ª - Na resposta dada ao quesito 15º da base instrutória pela Relação foi introduzido o advérbio “sempre” e a expressão “estando a ele ligado sem qualquer interrupção, todo o terreno a Nascente da casa dos autores”, matéria que não foi alegada pelos réus em parte alguma dos seus articulados;
21ª - Tratando-se de matéria não alegada deve a mesma ser eliminada ou considerada não escrita, alterando-se a resposta ao quesito 15º para “provado apenas que os réus cultivaram o prédio de que são donos”;
22ª - Da matéria de facto fixada pela Relação não resulta provado a quem pertence o terreno em litígio, uma vez que das respostas dadas aos quesitos 15º, 16º, 17º e 18º o cultivo feito pelos réus à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, apenas se refere ao prédio de que os réus são donos (art.º rústico 5475º) e não à parcela em litígio;
23ª - O facto de se ter dado como provado que os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, tendo a ele ligado, sem qualquer interrupção, o terreno a Nascente da casa dos autores, apenas confere aos réus o direito de propriedade sobre o seu prédio, mas não sobre a parcela de terreno em litígio que está ligada ao prédio, até porque tal parcela de terreno está também física e materialmente ligada ao prédio dos autores sem qualquer interrupção (a parcela de terreno em litígio está ligada a ambos os prédios, reclamando autores e réus que a mesma faz parte integrante dos seus prédios);
24ª - Era e é necessária prova da prática de actos materiais de posse sobre a parcela de terreno em litígio e não sobre os prédios que lhe estão ligados ou contíguos, quer dos autores, quer dos réus, uma vez que ambos reivindicam a parcela como parte integrante do seu prédio;
25ª - Tendo a Relação dado como provado que os réus apenas cultivam o prédio de que são donos (art.º rústico 5475º de Marinhas), mas não a parcela em litígio, não se verifica o requisito da aquisição por usucapião de tal parcela, por falta do corpus e animus em relação a esta;
26ª - Dos factos dados como provados resulta apenas que os réus são donos do art.º rústico 5475º da freguesia de Marinhas, ao qual está ligado o terreno em questão, mas não que sejam donos deste, uma vez que a usucapião apenas se verifica em relação ao prédio que é possuído ou ocupado, não se estendendo aos terrenos que lhe estão ligados ou contíguos;
27ª - Tendo em conta a matéria de facto fixada pela Relação, resulta que o terreno a Norte da casa dos autores é pertença destes e não dos réus, uma vez que, situando-se uma parte da parcela em litígio a Norte da casa e outra parte a Nascente da casa, apenas foi dado como provado que o prédio dos autores confina pelo Nascente com o prédio dos réus (e não pelo Norte) e que ao prédio dos réus está ligado o terreno a Nascente da casa dos autores (e não a Norte);
28ª - Se o terreno situado a Norte da casa de habitação dos autores integrasse o prédio dos réus, o prédio dos autores teria de confinar, necessária e obrigatoriamente, pelo Norte (e não pelo Nascente), com o prédio dos réus, resultando assim que os autores são donos da parcela de terreno em litígio situada a Norte da casa de habitação (parcela correspondente ao triângulo escaleno) e os réus da parcela situada a Nascente (parcela correspondente ao triângulo isósceles);
29ª - O acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos art.ºs 341º, 342º, 349º, 351º, 390º, 391º, 1263º, 1287º, 1296º e 1316º do Cód. Civil, e nos art.ºs 264º, 612º, 615º, 646º, n.º 4, 653º, n.º 2, 659º, n.ºs 2 e 3, 664º e 712º do Cód. Proc. Civil.
Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido, quer na parte em que procedeu à alteração da decisão da matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito, devendo ser substituído por outro que julgue a reconvenção improcedente ou que mantenha a decisão da 1ª instância, com as legais consequências, decidindo-se, sempre como última alternativa, que os réus são donos apenas da parcela a nascente da casa dos autores, correspondente ao triângulo isósceles referido na sentença da 1ª instância;
ou, caso assim se não entenda, que o acórdão recorrido seja anulado.
Em contra alegações, os réus pugnaram pela confirmação daquele acórdão.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que na 1ª instância foram declarados assentes os factos seguintes:
1.- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 189° urbano e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...../........, da freguesia de Vila Chã, em nome dos autores, o seguinte prédio: “Urbano - lugar da Abelheira - casa de rés-do-chão e dois pavimentos, dependência e logradouro - áreas cob. 85 m2, dep. 32 m2 e logr. 155 m2 - norte, rego - sul, caminho - nascente, caminho e herdeiros de EE - poente, EE" (cfr. folhas 8 a 12).
2.- Os autores adquiriram o referido prédio por sucessão, através de partilha realizada nos autos de inventário obrigatório a que se procedeu por óbito de FF e GG, pais do autor marido (cfr. folhas 13 a 35).
3.- Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 5475° rústico e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ....../......, da freguesia de Marinhas, em nome dos Réus, o seguinte prédio: “Rústico - Lugar de ........ - Leira de lavradio, denominado "A Horta" - 315 m2 – norte e nascente, rego - sul, Estrada - poente, AA".
4.- Os Réus adquiriram o referido prédio por compra a HH, através de escritura de compra e venda realizada em vinte e quatro de Agosto de 1984, no Cartório Notarial de Barcelos (cfr. folhas 38 a 42).
5.- Os prédios descritos em 1. e 3. são contíguos.
6.- O prédio descrito em 1. confronta do Norte com o rego, do Sul com caminho, do Nascente com o caminho e com o prédio dos Réus, referido em 3., e do Poente com um outro prédio dos Réus.
7.- Tomando como referência o desenho de folhas 37 o logradouro do prédio descrito em 1. tinha, na parte Nascente da casa, sensivelmente a forma de um triângulo equilátero, e na parte Norte também praticamente a forma de um triângulo, este escaleno, em que um dos lados coincide com a fachada da parte urbana do prédio, o outro com a margem do ribeiro do Peralto, e o terceiro é uma linha recta que, partindo do canto norte/nascente da casa, se prolonga até ao ribeiro, numa extensão de oito metros, havendo ainda uma outra área de logradouro na parte da frente da casa, como se refere infra em 17.
8.- Os AA. desde há 25 e mais anos que por si e seus antepossuidores têm utilizado e fruído todas as potencialidades do prédio referido em 1., incluindo o logradouro acima descrito, nele vivendo, acedendo à roda da azenha, fazendo muros, limpando-o e colhendo os seus frutos.
9.- À vista de toda a gente.
10.- Ininterruptamente.
11.- Convencidos de estarem a exercer um direito próprio.
12.- O prédio dos RR. tem uma área superior a 315 m2.
13.- No fim de semana de 22 e 24 de Novembro de 2002, os RR., ou alguém a seu mando, procederam à colocação de uma rede de vedação, em arame e ferro, desde o vértice sul/poente do seu prédio, vértice esse situado a cerca de 10 metros para norte a partir do prolongamento da fachada nascente à casa dos AA., prolongando-se em cerca de três metros para sul.
14.- Os Réus, desde que regressaram a Portugal, têm cultivado o terreno situado a norte da casa dos AA., referido em 7.
15.- Os AA. não deram o seu consentimento a que os RR. cultivassem aquele terreno.
16.- Os RR. impedem os AA. de fruir aquele terreno, arrogando-se proprietários daquela parte do logradouro, referido em 7.
17.- O logradouro dos AA., referido em 1., tem uma parte virada para a Estrada Camarária que liga Marinhas a Vila Chã e os AA. cederam algum terreno dela para o alargamento desta estrada.
18.- Os RR. têm utilizado e fruído a parte Norte do logradouro referido em 7., nele aparando, podando, e cortando arbustos e árvores de fruto, semeando erva e cortando-a para alimentação dos seus animais domésticos.
19.- À vista de toda a gente.
20.- Com oposição dos AA.
21.- De forma continuada e ininterrupta.
22.- O prédio dos RR. confronta pelo lado Sul (parte) e Poente com o prédio dos AA.
23.- Os RR. colocaram uma rede de vedação no seu terreno sensivelmente no local onde antigamente existiu um muro que o separava do logradouro dos AA., na parte deste voltada a nascente, com a forma de triângulo equilátero, referida em 7.
24.- Os buracos, na parede Norte da casa dos AA., concretamente na parede da sacada, foram feitos há vários anos pelos inquilinos dos AA.
25.- Uma máquina rectro-escavadora de uma firma que esteve a realizar o empreendimento de realargamento da estrada que liga Marinhas a Vila Chã entrou no prédio dos Réus, e ainda em parte do logradouro do prédio dos AA., e foi até ao ribeiro do Peralto, para o limpar, regressando pelo mesmo caminho.
O acórdão recorrido alterou a decisão da matéria de facto constante daqueles n.ºs 6º a 12º, 14º a 16º, e 18º a 22º. Trata-se da decisão sobre os pontos de facto constantes, respectivamente, dos n.ºs 1º a 7º, 11º a 13º, e 15º a 19º, da base instrutória, que a Relação alterou eliminando os factos sob os n.ºs 7º a 12º, 14º e 22º, por ter substituído para “não provado” as respostas dadas aos pontos 2º a 7º, 11º e 19º da base instrutória.
E, quanto aos demais pontos dessa base acima indicados, substituiu as respectivas respostas pelas de se encontrar provado apenas que o prédio dos autores confina, do lado Sul, com estrada camarária, e do Nascente com prédio dos réus (ponto n.º 1º), que a colocação da vedação referida no ponto 8º (n.º 13º da descrição dos factos dados por assentes em 1ª instância, e inalterado) não teve o prévio consentimento dos autores (ponto n.º 12º), que os réus, com tal vedação, se propõem impedir o acesso dos autores ao terreno situado a Nascente da sua casa (ponto 13º), que os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos, tendo a ele ligado, sem qualquer interrupção, todo o terreno a Nascente da casa dos autores (ponto 15º), que os factos dados por provados acima sob os n.ºs 19º e 21º o são apenas em relação ao prédio mencionado na resposta sobre o ponto 15º (pontos n.º 16º e 18º), e que, também só em relação a esse prédio, os actos nele praticados pelos réus o foram sem oposição de ninguém (ponto n.º 17º).
A primeira questão suscitada pelos recorrentes prende-se com a alteração da decisão sobre a matéria de facto feita no acórdão recorrido, e que pretendem seja revogada, por um lado por ter sido feita com base em presunção de que a parcela de terreno em litígio teria de pertencer aos réus por ter entendido que os autores não provaram a prática de actos de posse sobre a mesma parcela, e por outro por ter considerado provada matéria de facto não articulada.
Como é sabido, face ao disposto no art.º 729º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido (aqui, a Relação), o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, sem poder alterar a decisão proferida por aquele Tribunal quanto à matéria de facto, salvo o caso excepcional previsto no art.º 722º, n.º 2, do mesmo Código, ou seja, salvo havendo ofensa de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Com tem sido entendido, porém, no que a presunções judiciais respeita, não podem as Relações, com fundamento nelas, alterar as respostas aos quesitos, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.
Podem as Relações, no uso da sua competência em matéria de facto, recorrer a presunções judiciais, instituto previsto nos art.ºs 349º e 351º do Cód. Civil, inclusive para com base nelas desenvolverem a matéria de facto fixada na 1ª instância declarando provado algum facto por ilação de algum outro facto dado por provado, ou para reforçarem a fundamentação da decisão recorrida, mas não lhes é lícito, por essa forma, dar como provado o que nas respostas ao questionário ou à base instrutória foi considerado não provado ou por outra forma contrariar as respostas sobre a base instrutória, isto é, não podem, somente com base em presunções judiciais, ilididas na 1ª instância mediante prova testemunhal, alterar as respostas, positivas ou negativas, aos pontos da base instrutória, que só podem ser alteradas quando se verifique alguma das situações previstas no art.º 712º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.
É lícito à Relação, com efeito, tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não altere os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica destes.
E o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, embora não possa recorrer a presunções judiciais, - pois que o Tribunal, ao afirmar um facto desconhecido porventura por não ter sido incluído na base instrutória, por meio de ilações, com base em juízos de probabilidade, em regras de experiência, em princípios de lógica, está a fazer um julgamento em matéria de facto -, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado (art.º 664º do Cód. Proc. Civil).
Neste sentido são numerosos os acórdãos proferidos sobre tal questão, caso dos acórdãos deste Supremo de 5/7/84, 3/11/92, 9/3/95, 26/9/95, 31/10/95, 20/1/98, 9/7/98, 7/7/99, 20/6/00, 19/3/02, 2/10/03, 15/2/05 e 7/11/06, facilmente detectáveis na Internet.
Ora, analisando o acórdão recorrido, constata-se que este, ao alterar a decisão sobre a matéria de facto, se baseou essencialmente na prova documental e testemunhal produzida que livre e pormenorizadamente analisou no uso dos seus poderes de apuramento da matéria de facto, pelo que não ocorrem as circunstâncias em que os recorrentes se baseiam para obterem alteração da matéria de facto fixada pela Relação.
Isto, porém, com uma excepção.
É que, perguntando-se no ponto 15º da base instrutória se “os réus têm utilizado e fruído o logradouro descrito em 2º, melhor assinalado a amarelo com tracejado vermelho no croquis de fls. 91, nele aparando, podando, cortando arbustos e árvores de fruto, semeando erva e cortando-a para alimentação dos seus animais domésticos”, foi dada na 1ª instância resposta sobre esse ponto no sentido de se encontrar provado apenas que “os réus têm utilizado e fruído a parte Norte do logradouro referido no artigo 2º, nele aparando, podando, e cortando arbustos e árvores de fruto, semeando erva e cortando-a para alimentação dos seus animais domésticos”; resposta esta que a Relação alterou para a de se encontrar provado que “os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos, tendo a ele ligado, sem qualquer interrupção, todo o terreno a Nascente da casa dos autores”.
E foi com base nessa ligação que o acórdão recorrido entendeu, por presunção natural, que a posse dos réus foi exercida também sobre a parcela em litígio.
Independentemente do facto de tal resposta, a ser mantida, implicar necessariamente que o dito terreno, se se encontra simplesmente ligado ao prédio dos réus, e portanto não nele integrado, é porque não faz parte dele, certo é que tal facto, consistente em que o dito terreno a Nascente da casa dos autores se encontra ligado sem qualquer interrupção ao prédio dos réus, é facto novo, não articulado em parte alguma nem resultante da instrução e discussão da causa, - de que, aliás, tanto resulta que o dito terreno se encontra ligado ao prédio dos réus como ao dos autores, não se vendo que não o esteja ao destes -, e, em consequência, não sujeito a instrução nem a contraditório, não podendo por isso ser atendido, à luz do disposto no art.º 664º do Cód. Proc. Civil, aplicável no presente recurso face ao disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 2, do mesmo diploma.
Há, assim, que excluir tal facto da resposta sobre o dito ponto 15º, que fica consequentemente reduzida a que se encontra provado apenas que “os réus sempre cultivaram o prédio de que são donos”, só nessa medida se revogando a alteração da matéria de facto feita no acórdão recorrido.
E, sem aquele facto, cai pela base, por falta de pressupostos e por erro de raciocínio, a presunção de prática pelos réus de actos de posse, juridicamente considerada, sobre a parcela de terreno em causa.
Sustentam por outro lado os autores (conclusões 27ª e 28ª das suas alegações) que o terreno a Norte de sua casa lhes pertence e não aos réus, uma vez que, situando-se uma parte da parcela em litígio a Norte da casa e outra parte a Nascente, apenas foi dado por provado que o prédio deles autores confina a Nascente com o prédio dos réus, e não pelo Norte, e que ao prédio dos réus está ligado o terreno a Nascente da casa deles autores; ora, se o terreno a Norte integrasse o prédio dos réus, então o prédio dos autores confinaria, a Norte, com o prédio dos réus.
Não pode, porém, ao menos com este fundamento, ser-lhes reconhecida razão. Isto porque, embora na 1ª instância tenha sido dado por provado que o prédio dos autores confrontava, a Norte, com o rego, e a Nascente com o caminho e com o prédio dos réus, a Relação alterou esse facto para o de que o prédio dos autores confrontava, de Nascente, com prédio dos réus, não derivando daí em que prédio a parcela em causa, quer de Nascente, quer de Norte, se integrava.
Na verdade, se a parcela, na sua parte situada a Nascente da casa dos autores, fizesse parte do prédio destes, tal prédio confinaria, pelo extremo Nascente da parcela, com o dos réus, mas o mesmo se passaria se essa parte da parcela se integrasse no prédio dos réus, confinando então o prédio dos autores, pelo Nascente, com este, pelo extremo Poente da mesma parte da parcela. Já quanto à parte da parcela situada a Norte da casa dos autores, é de aceitar que, se fosse de considerar assente, como fez a 1ª instância, que o prédio destes confinava a Norte com o rego (e não, portanto, com o prédio dos réus), teria de se entender que essa parte da parcela se integrava no prédio dos autores, integrando-se no prédio dos réus se, em vez disso, fosse de considerar assente que o prédio dos autores, a Norte, confinava com o dos réus, obviamente pelo Sul dessa parte da parcela.
Simplesmente, ficou sem se saber, perante a alteração da respectiva resposta ao ponto 1º da base instrutória, feita no acórdão recorrido, qual a confrontação do prédio dos autores a Norte. Assim, ignorando-se se aí confronta com o rego ou com o prédio dos réus, não é possível determinar se a parcela em causa, nessa parte, se integra num ou no outro prédio, não se podendo do facto de só se provar que o prédio dos autores confronta a Nascente com o dos réus, sem se provar que confronte, a Norte, com ele, extrair a conclusão de que a Norte não confronta com ele mas com o rego para se concluir pela integração dessa parte da parcela no prédio dos autores.
Finalmente, não sendo os títulos de aquisição derivada dos seus respectivos prédios suficientes para possibilitarem a determinação de qual deles integra a parcela de terreno em litígio, quer os autores, na petição inicial, quer os réus, no pedido reconvencional, invocam usucapião sobre a dita parcela.
A usucapião, como se sabe, é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, consistente, segundo o disposto no art.º 1287º do Cód. Civil, na aquisição, pelo possuidor, do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, devido à posse do mesmo, mantida por certo lapso de tempo.
A posse referida nesse dispositivo, por sua vez, vem definida no art.º 1251º do mesmo Código como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Acrescentando o art.º 1253º, também do Cód. Civil, que são havidos como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, e os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.
Daqui resulta que a posse se caracteriza por dois elementos: o corpus, constituído pelo exercício do poder de facto sobre a coisa, e o animus, consistente na intenção de agir como titular do direito e que permite distinguir a verdadeira posse da simples detenção.
Ora, perante a alteração da matéria de facto assente feita pela Relação na parte que este Supremo, como se referiu, não pode sindicar, o que se verifica é não ter ficado provada a prática de qualquer acto de posse material, e muito menos da existência do necessário animus de possuidor, nem dos autores, nem dos réus, sobre qualquer parte da dita parcela de terreno.
E, recaindo sobre cada uma das partes o ónus da prova dos factos integrantes do direito que respectivamente se arroga (art.º 342º, n.º 1, do Cód. Civil), conclui-se que nem os autores nem os réus demonstraram a aquisição da parcela de terreno em causa, como respectivamente sustentaram na petição inicial e na contestação-reconvenção.
Donde resulta que quer a acção, no tocante à dita parcela, quer a reconvenção, tenham de ser julgadas improcedentes.
Pelo exposto, acorda-se em conceder em parte a presente revista, revogando-se o acórdão recorrido no tocante ao reconhecimento do direito de propriedade dos réus sobre a parcela de terreno objecto do litígio;
julgando-se a acção parcialmente procedente e declarando-se em consequência os autores donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no lugar de Abelheira, freguesia de Vila Chã, concelho de Esposende, inscrito na matriz predial respectiva sob o art.º 189º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Esposende sob o n.º ........, o qual confronta, a Sul, com estrada camarária, e a Nascente com prédio dos réus, condenando-se por isso os réus a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre esse prédio;
e julgando-se a acção improcedente na parte restante, julgando-se também improcedente a reconvenção, pelo que ficam absolvidos os réus e os autores dos respectivos pedidos contra eles formulados.
Custas, nas instâncias, pelos autores quanto ao pedido inicial, e pelos réus quanto ao pedido reconvencional; custas da presente revista por autores e réus, na proporção de metade para aqueles e de metade para estes.
Lisboa, 24 de Maio de 2007
Relator: Silva Salazar
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida

Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 04B3540

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
COLISÃO DE VEÍCULOS
CULPA EXCLUSIVA

Nº do Documento: SJ200411250035407
Data do Acordão: 25-11-2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5500/03
Data: 16-12-2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.

Sumário : 1. A enumeração pelo artigo 668º, nº 1, do C.Proc.Civil dos casos de nulidade da sentença (aplicável aos acórdãos das Relações exarados em sede de apelação por força do disposto no art. 716º, nº 1, do mesmo Código) é taxativa, não abrangendo qualquer outra nulidade processual a que a lei faça corresponder uma invalidade mais ou menos extensa.
2. Num embate entre um ciclomotor e um veículo automóvel, ocorrido em plena hemifaixa de rodagem do automóvel, numa situação em que o ciclomotor circulava fora da sua mão de trânsito e o automóvel seguia pela mão de trânsito que lhe correspondia, é o condutor do ciclomotor o único culpado do acidente.
2. O disposto no artigo 506º do Cídigo Civil é inaplicável a uma colisão de veículos em que se considerou que a culpa na produção do acidente foi apenas de um deles.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e B instauraram, no Tribunal Judicial da Lourinhã, acção declarativa de condenação com processo sumário contra a "Companhia de Seguros C", pedindo a condenação desta a pagar ao primeiro a quantia de 16.362.515$00 e ao 2° a quantia de 523.807$00, além dos montantes a liquidar em execução de sentença relativos à incapacidade para o trabalho do 1° autor, indemnização que nesta parte deverá ser satisfeita através de renda fixada em função da desvalorização permanente sofrida pelo mesmo.
Alegaram, para tanto, em resumo, que:
- em 22 de Janeiro de 1997 ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes um ciclomotor onde circulavam os autores e um veículo ligeiro de passageiros, cuja responsabilidade por danos causados a terceiros havia sido transferida para a ré, mediante contrato de seguro válido à data do acidente;
- o condutor do ligeiro, circulando com elevada velocidade, não conseguiu descrever uma curva, invadindo a hemifaixa por onde circulava o ciclomotor onde seguiam os autores, não tendo evitado a colisão com este;
- na sequência do embate, o veículo do 1° autor ficou totalmente destruído, tendo os autores sofrido diversos ferimentos, sobretudo o 1º, que lhe determinaram internamentos hospitalares, sujeição a intervenções cirúrgicas, dores e sequelas permanentes, estando incapacitado para trabalhar.
Contestou a ré impugnando a versão do acidente apresentada pelos autores e imputando a responsabilidade pela oclusão do mesmo ao 1° autor, que foi quem invadiu a hemifaixa da esquerda atento o seu sentido de marcha, provocando o embate.
Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos conta ela formulados.
Inconformado, apelou o autor A, sem êxito embora, já que o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 16 de Dezembro de 2003, negando provimento à apelação, confirmou a sentença recorrida.
Interpôs, então, o mesmo autor recurso de revista, pretendendo que seja declarada nula a sentença proferida no tribunal a quo, ou, se assim não se entender, seja a recorrida condenada a pagar-lhe a indemnização devida, nos termos do art. 506° do C. Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
O recorrente findou as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil) que, sem quaisquer alterações, transcrevemos:
1. Da nulidade da sentença, nos termos do disposto no art. 668°, n° 1, alínea d) e art. 201, n° 1, ambos do CPC, está claramente ferida de nulidade, uma vez que tendo sido requerida nos termos do art. 612º, n° 1 do CPC, a prova por inspecção judicial pelo ora recorrente, tal requerimento nunca obteve qualquer despacho por parte do M.mo. Juiz, omissão essa que influiu de forma decisiva na discussão do mérito da causa, geradora da referida nulidade.
2. Por outro lado tendo o M.mo. Juiz, determinando por despacho de fls. 192, a audição do agente que elaborou o auto, nos termos do art. 645°, n° 1, do CPC, por ser importante para a descoberta da verdade material, o mesmo não compareceu na audiência de julgamento, e prescindiu-se da sua audição, sem qualquer justificação, o que não é compreensível, pois, de um momento para o outro deixa de ter importância para a descoberta da verdade.
3. O condutor do veículo automóvel, invadiu a semi-faixa de rodagem contrária, pelo que desrespeitou o preceituado no art. 13° do C. da Estrada, que manda transitar "o mais próximo possível das bermas ou passeios", logo violou uma norma.
4. Caso se entenda não existirem elementos suficientes para estabelecer, de modo concreto, a medida de contribuição de cada um dos veículos para os danos ocorridos, deverá ser aplicada a regra do art. 506° do C. Civil, nos termos deste normativo, a responsabilidade é repartida na proporção de cada um dos veículos tenha contribuído para os danos.
No acórdão recorrido foi tida como fixada a seguinte matéria fáctica:
i) - no dia 22 de Janeiro de 1997, pelas 21.30 horas, os autores circulavam na Estrada Municipal n° 561, que liga a Marteleira ao Toledo, na direcção do Toledo, no veículo ciclomotor de matrícula LNH;
ii) - o ciclomotor de matrícula LNH era propriedade do autor A, que o conduzia, levando atrás de si o 2° autor, D;
iii) - na mesma estrada, mas em sentido contrário, circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula VI, que era conduzido pelo seu proprietário, D;
iv) - o dono do veículo VI transferira para a ré Companhia de Seguros C a responsabilidade civil por danos emergentes da circulação do seu veículo, através de contrato de seguro titulado pela apólice n° 2189146;
v) - o veículo seguro na ré circulava "na sua mão de trânsito";
vi) - quando se encontrava no local onde a via descreve uma curva para a direita, surgiu-lhe, sem que nada o fizesse prever, o veículo do autor, que conduzia "fora da sua mão de trânsito";
vii) - no dia, hora e local referidos, ocorreu o embate entre o ciclomotor de matrícula LNH e o automóvel ligeiro de passageiros de matrícula VI, embate que se deu entre a parte frontal esquerda do veículo seguro na ré e a parte da frente do ciclomotor, a 2,30 metros da berma direita, atento o sentido de marcha do veículo seguro na ré;
viii) - o condutor do veículo seguro na ré nada pôde fazer para evitar o embate;
ix) - o acidente ocorreu numa curva de visibilidade reduzida e havia geada no pavimento;
x) - o embate entre o veículo em que os autores circulavam e o automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula VI, ocorreu junto das estufas de Toledo, perto de uma curva para a esquerda, atento o sentido de marcha dos autores;
xi) - os ocupantes do ciclomotor, ora autores, foram projectados, por via do embate, para fora deste veículo;
xii) - o ciclomotor de matrícula LNH ficou debaixo do veículo automóvel, que só se imobilizou fora da berma esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Toledo-Marteleira;
xiii) - em resultado do acidente, o ciclomotor ficou destruído, tendo os autores sofrido vários ferimentos, pelo que estiveram internados no Hospital Distrital de Torres Vedras, o 1° autor até 1 de Fevereiro de 1997 e o 2° autor até 31 de Janeiro de 1997;
xiv) - ao 1° autor vem sendo prestada pela ré a indemnização provisória de 65.000$00 por mês, fixada nos autos de Arbitramento de Reparação Provisória n° 55/98 deste Tribunal a estes apensados;
xv) - à data do acidente, o 1° autor tinha 38 anos;
xvi) - o 1° autor sofreu, em consequência do acidente, luxação da anca esquerda, fractura dos ramos ílio e ísqueo-púbicos bilaterais e apresentou dores no pé direito;
xvii) - a luxação da anca complicou-se com paralisia do ciático popliteu externo;
xviii) - o 2º autor, em consequência do acidente, sofreu traumatismo do pé e perna direita e região perinial;
xix) - o tempo de doença e de incapacidade para o trabalho, resultante do acidente, não foi determinado nos exames de Março e Maio, tendo a 14 de Outubro sido fixado em trinta dias para o 2° autor e, em 17 de Outubro, em duzentos e doze dias para o 1° autor;
xx) - desde o acidente, o 1° autor está impossibilitado de trabalhar na actividade que até então desempenhava, carecendo de meios para a sua alimentação, vestuário, habitação e lazer, que tem obtido por solidariedade de familiares e amigos, dado que só recentemente passou a receber reparação provisória, arbitrada no processo n° 55/98 deste Tribunal;
xxi) - as lesões sofridas e as complicações delas advenientes trazem o 1° autor em constante ansiedade, o que lhe provoca angústia e diminuição da alegria de viver, diminuindo-o igualmente o facto de não poder obter pelo seu trabalho meios de subsistência;
xxii) - em consequência do acidente, o 1º autor ficou com marcas na cara das escoriações sofridas;
xxiii) - a prótese auditiva custou ao 1º autor 147.000$00;
xxiv) - o 1º autor teve gastos com as deslocações que realizou a hospitais, clínicas e médicos por causa das lesões sofridas, que ainda não satisfez na totalidade e com as despesas com tratamentos e medicamentos e continua a tê-los;
xxv) - as despesas já pagas pelo 1° autor ascendem a 382.025$00;
xxvi) - ao 1º autor foi ainda exigido pelo Hospital de Torres Vedras o pagamento dos encargos hospitalares, dada a recusa da ré a satisfazê-los e que ascendem a 505.490$00;
xxvii) - o 1º autor trabalhava na construção civil, montando armações de ferro e auferia mensalmente cerca de 100.000$00 e ficou impossibilitado de trabalhar desde o acidente;
xxviii) - em resultado do acidente o 1º autor ficou com uma incapacidade parcial permanente de 28,5%;
xxix) - o 1º autor tem permanecido mais de um ano sem qualquer apoio material ou moral da ré, que inclusivamente se vem recusando a custear as despesas do hospital;
xxx) - o 1º autor sofreu dores e ferimentos;
xxxi) - o 2º autor trabalha e trabalhava à data do acidente na construção civil, em armações de ferro, auferindo 800$00 à hora, o que lhe dá uma remuneração média diária de 6.400$00;
xxxii) - em virtude dos ferimentos sofridos devido ao acidente, o 2° autor ficou impossibilitado de trabalhar entre 23/01/97 e 07/03/97, tendo-lhe sido fixada uma incapacidade absoluta para o trabalho profissional de trinta dias, deixando de ganhar 192.000$00;
xxxiii) - o 2º autor realizou tratamentos no Centro de Saúde, tendo efectuado despesas de 12.800$00 em consultas; 3.900$00 em exames radiográficos; 7.967$00 em medicamentos e dispositivos médicos e 7.140$00 em despesas hospitalares, num total de 31.807$00;
xxxiv) - a lesão que sofreu provocou-lhe dores intensas no pé direito e na região perinial, tendo passado quinze dias acamado por não se conseguir levantar, devido às dores e ao incómodo que as lesões provocaram;
xxxv) - a intensidade e a localização das zonas afectadas provocaram ao 2° autor grande apreensão e angústia;
xxxvi) - ainda hoje, quando o tempo muda, sente dores no pé direito;
xxxvii) - o 2º autor é beneficiário da Segurança Social.
São apenas duas as questões suscitadas pelo recorrente, que importa apreciar.
I. A nulidade da sentença proferida na 1ª instância (que o acórdão recorrido julgou inverificada).
II. A culpa na produção do acidente de que advieram as lesões sofridas.
Começa o recorrente por invocar a nulidade da sentença (questão já analisada pelo acórdão recorrido) invocando o vício do art. 668°, n° 1, alínea d), do C.Proc.Civil - omissão de pronúncia - porquanto, por um lado, tendo sido requerida prova por inspecção judicial, tal requerimento nunca obteve qualquer despacho por parte do M.mo. Juiz, e, por outro lado, tendo o M.mo. Juiz determinado por despacho a audição do agente que elaborou o auto, por ser importante para a descoberta da verdade material, o mesmo não compareceu na audiência de julgamento, e prescindiu-se da sua audição, sem qualquer justificação.
Não tem, no entanto, qualquer razão.
Prescreve o art. 668º, nº 1, do C.Proc.Civil (aplicável aos acórdãos das Relações exarados em sede de apelação por força do disposto no art. 716º, nº 1, do mencionado Código) que é nula a sentença: a) quando não contenha a assinatura do juiz; b) quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão; d) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Esta enumeração dos casos que determinam a nulidade da sentença (do acórdão) é taxativa (1) e não abrange as demais nulidades do processo que são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso - uma invalidade mais ou menos extensa. (2)
Ora, as irregularidades apontadas pelo recorrente - falta de despacho a ordenar (ou indeferir) a prova por inspecção judicial requerida e dispensa da audiência do agente que elaborou o auto do acidente depois de ter sido determinada a sua comparência no julgamento por ser importante para a descoberta da verdade material - situam-se justamente neste leque das nulidades processuais, constituindo, aliás, nulidades secundárias submetidas à regra geral do art. 201º do C.Proc.Civil.
Tais nulidades - a existirem - só podiam ter sido invocadas pelo interessado na prática do acto, no prazo de 10 dias a contar da data em que interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (arts. 201º, nº 1, 203º, nº 1 e 205º, nº 1, do C.Proc.Civil e art. 6º, nº 1, al. b), do Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro), devendo ter sido arguidas, em princípio, no tribunal onde foram cometidas e nele julgadas. (3)
Acontece que o recorrente, apesar de presente através de advogado na audiência de julgamento em que o agente que elaborara o auto de participação não foi ouvido (fls. 197), e notificado ainda da data designada para as respostas aos quesitos, altura em que necessariamente deu conta de que as omissões haviam sido cometidas, não arguiu, no prazo a que estava adstrito, qualquer nulidade processual, limitando-se, já muito depois de esgotado aquele prazo, a vir, nas alegações da apelação, requerer a nulidade da sentença.
Desta forma, não só não usou do meio próprio para arguir as nulidades secundárias alegadamente cometidas (das nulidades reclama-se; dos despachos recorre-se) como o fez extemporaneamente, de tal sorte que, se alguma nulidade tivesse ocorrido, se deveria ter como sanada. (4)
Acresce, ainda, que as nulidades invocadas (que, como se disse, não inquinariam a sentença ou o acórdão proferidos nos autos) traduziriam tão só a violação de lei processual ou adjectiva (artigos 612º, n° 1 e 645°, n° 1, do C.Proc.Civil, como o próprio recorrente refere) pelo que o seu conhecimento só seria possível se do acórdão fosse admitido recurso de agravo nos termos do nº 2 do art. 754º do C.Proc.Civil (ut art. 722º, nº 1, do mesmo diploma).
Em consequência, porque o acórdão recorrido se pronunciou unanimemente acerca da questão, e porque, como tal, o art. 754º, nº 2, não admitiria, neste aspecto, recurso, não seria, em todo o caso, de conhecer das nulidades invocadas pelo recorrente.
Quanto à segunda questão, atinente à culpa na produção do acidente (aqui incluída a possibilidade de considerar aplicável o preceito do art. 506º do C.Civil que respeita à colisão de veículos quando não é possível determinar a culpa, ou a medida da culpa, de qualquer dos intervenientes) importa retomar a matéria de facto que, quanto à forma como se deu o evento, foi apurada.
Temos, pois, que:
- os autores circulavam na Estrada Municipal n° 561, que liga a Marteleira ao Toledo, na direcção do Toledo, no veículo ciclomotor de matrícula LNH, conduzido pelo A, enquanto, na mesma estrada, mas em sentido contrário, circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula VI, conduzido pelo seu proprietário, D;
- o veículo VI circulava "na sua mão de trânsito" e, quando se encontrava no local onde a via descreve uma curva para a direita, surgiu-lhe, sem que nada o fizesse prever, o veículo do autor, que conduzia "fora da sua mão de trânsito";
- o acidente ocorreu numa curva de visibilidade reduzida, junto das estufas de Toledo, perto de uma curva para a esquerda, atento o sentido de marcha dos autores, onde havia geada no pavimento;
- o embate deu-se entre a parte frontal esquerda do veículo seguro na ré e a parte da frente do ciclomotor, a 2,30 metros da berma direita, atento o sentido de marcha do veículo seguro na ré;
- o condutor do veículo seguro na ré nada pôde fazer para evitar o embate;
- os ocupantes do ciclomotor foram projectados, por via do embate, para fora deste veículo, o qual ficou debaixo do veículo automóvel, que só se imobilizou fora da berma esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Toledo-Marteleira.
Sustenta o recorrente que o condutor do veículo automóvel, invadiu a semi-faixa de rodagem contrária, pelo que desrespeitou o preceituado no art. 13° do C. da Estrada, que manda transitar "o mais próximo possível das bermas ou passeios".
Só que, face à matéria de facto provada, tal afirmação carece de qualquer fundamento sério.
Com efeito, não apenas o acidente ocorreu a cerca de 2,30 metros da berma direita da faixa de rodagem atento o sentido de marcha do automóvel (portanto, dentro da sua mão de trânsito) como claramente está demonstrado que, nos momentos que antecederam o embate, o veículo VI circulava "na sua mão de trânsito" e que lhe surgiu, sem que nada o fizesse prever, o veículo do autor, que conduzia "fora da sua mão de trânsito". Ademais, o condutor do automóvel nada pode fazer para evitar o embate.
Certo que o veículo automóvel, mas já após o embate, só se imobilizou fora da berma esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha Toledo-Marteleira em que seguia. Mas esta situação, posterior à eclosão do sinistro, nada tem que ver com este, traduzindo apenas o itinerário posterior a um embate, sempre imprevisível e que necessariamente resulta de circunstâncias que completamente escapam ao domínio e à vontade do respectivo condutor.
Assim, como as instâncias bem concluíram, o único causador do acidente foi o autor A que, de forma negligente e inconsiderada, além do mais violadora da norma do art. 13º do Código da Estrada (5), veio a contribuir adequadamente, de forma ético-juridicamente censurável, para a sua verificação.
Conclusão que, de imediato, afasta qualquer possibilidade de recurso à disposição do art. 506º do C.Civil para determinação da responsabilidade.
Com efeito, por um lado, "a hipótese prevista no nº 1 é a de se verificarem danos numa colisão sem culpa de qualquer dos condutores". Por isso, " se a colisão for devida a facto culposo de um dos condutores, ou de ambos, valem os princípios gerais sobre a responsabilidade civil assente na culpa. Dando-se como assente a culpa de ambos os condutores, mas não havendo elementos que permitam fazer a graduação respectiva, considera-se igual, nos termos do nº 2, a contribuição da culpa de cada um". (6)
In casu, tendo-se considerado que a culpa na produção do acidente foi unicamente do recorrente, não pode duvidar-se de que, nem mesmo por força daquele art. 506º, se pode atribuir à ré qualquer responsabilidade pelas consequências do acidente, improcedendo, assim o recurso interposto.
Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelo autor A;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar o recorrente nas custas da revista, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 25 de Novembro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa.
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(1) Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", vol. III, Lisboa, 1972, pag. 245; Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 686; Ac. STJ de 20/06/2000, no Proc. 380/00 da 2ª secção (relator Silva Graça).
(2) Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra, 1956, pag. 156.
(3) Ac. STJ de 13/12/90, in BMJ nº 402, pag. 518 (relator Baltazar Coelho).
(4) Cfr. Ac. STJ de 21/05/92, no Proc. 82606 da 2ª secção (relator Roger Lopes).
(5) O Código da Estrada que vigorava à data em que ocorreu o acidente era o que foi aprovado pelo Dec.lei nº 114/94, de 3 de Maio, em cujo art. 13º, nº 1, se estabelecia que "o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas e passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes".
(6) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, pags. 519 e 521.


4.3. Anexo 4 – prova testemunhal
Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 08S724

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
PROVA PLENA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
QUESTÃO NOVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SEGURO DE ACIDENTES DE TRABALHO
FOLHA DE FÉRIAS
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO

Nº do Documento: SJ20081008007244
Data do Acordão: 08-10-2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA

Sumário :

I - Resulta do disposto nos artigos 392.º e 393.º, do Código Civil, a proibição de conferir à prova testemunhal, em relação à qual vigora o princípio da livre apreciação (artigos 396.º do Código Civil e 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), qualquer valor quando incida sobre factos que só possam ser demonstrados por outros meios de prova ou que se achem evidenciados por meios de prova dotados de força probatória plena, casos subtraídos ao referido princípio da liberdade de julgamento, devendo ter-se por não escritas, no momento da elaboração da sentença, as respostas dadas em ofensa das regras da prova vinculada (artigos 615.º, n.º 2 e 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
II - O momento próprio para impugnar os fundamentos e sentido da decisão da matéria de facto é o da apresentação da alegação do recurso da sentença (artigos 712.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 690.º-A, alíneas a) e b), ambos do Código de Processo Civil).
III - Por isso, não é de qualificar como questão nova a, suscitada na apelação, inadmissibilidade do depoimento de uma testemunha.
IV - Não tendo sido posta em causa a autoria da ré empregadora, quanto às «folhas de férias» referentes a Janeiro e Fevereiro de 2003, por ela preenchidas e enviadas à ré seguradora, tais «folhas de férias» fazem prova plena quanto ao nelas declarado em relação às retribuições auferidas pelo sinistrado nesses meses.
V - Deve o Supremo Tribunal de Justiça declarar provados tais factos, ainda que os mesmos não o tenham sido e incluídos na matéria de facto assente, seja na condensação, seja na sentença, seja, ainda, no acórdão da Relação.
VI - No contrato de seguro de prémio variável, no momento da celebração as partes acordam, apenas, sobre o tipo de risco, as condições da sua prestação e outras circunstâncias que relevam para a avaliação do risco, acordando ainda, conforme resulta do artigo 4.º, alínea b), da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho por Conta de Outrem (constante da Norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro de 1999, publicada no Diário da República n.º 279, II Série, de 30 de Novembro de 1999, como Regulamento n.º 27/99), em remeter para as «folhas de férias» respeitantes a cada mês a definição e concretização seja do número de trabalhadores abrangidos pelo seguro, seja do valor das respectivas retribuições.
VII - Na referida modalidade de contrato de seguro, a indicação dos valores dos salários não faz parte dos elementos da sua formação, mas sim da sua execução.
VIII - Assim, a responsabilidade da ré seguradora encontra-se limitada à retribuição que lhe foi comunicada pela ré empregadora, através do envio da «folha de férias» e com respeito ao mês em que ocorreu o acidente, sendo, para tanto, irrelevante, que as rés (empregadora e seguradora) tenham acordado, na celebração do contrato, e de forma genérica, que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões, se os valores a eles respeitantes não constavam da mencionada «folha de férias».
IX - A litigância de má fé é uma questão de natureza processual, sendo o recurso de agravo o próprio para impugnar a decisão sobre tal matéria.
X - Porém, sempre que o recurso de revista seja o próprio, a lei admite que o recorrente invoque, além da violação de lei substantiva, a violação de lei do processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do n.º 2, do art. 754.º, do Código de Processo Civil, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.
XI - Não se verificando qualquer das excepções previstas na segunda parte do n.º 2 e n.º 3, do art. 754.º, do Código de Processo Civil, não é admissível recurso da decisão da Relação que confirmou a sentença da 1.ª instância na parte em que desatendeu o pedido de condenação do autor e da ré empregadora por litigância de má fé

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Em acção especial emergente de acidente de trabalho, instaurada mediante participação recebida, em 19 de Dezembro de 2003, no Tribunal do Trabalho de Matosinhos, AA demandou a “BB, S.A.”, e “CC – Equipamentos para a Indústria Tintas, Lda.”, pedindo a condenação destas a pagar-lhe:
– € 7.572,11, a título de incapacidades temporárias;
– € 5.011,44, a título de pensão anual vitalícia remível pela IPP de 14,99% devida desde 18 de Dezembro de 2003;
– € 16,80, a título de despesas de deslocação.
– Juros de mora sobre tais quantias, à taxa legal, desde a data da tentativa de conciliação.
Alegou para tanto, em resumo, que:
– No dia 8 de Janeiro de 2003, em Matosinhos, o Autor sofreu um acidente de trabalho, que consistiu numa queda, quando trabalhava sob as ordens, direcção e instruções da sua entidade patronal, “CC, Lda”, ora segunda Ré, da qual, além de trabalhador, é, também, sócio/gerente;
– O acidente causou-lhe fractura do antebraço direito e do punho direito, em consequência do que ficou afectado de incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) durante o período compreendido entre as datas de 9 de Janeiro de 2003 a 4 de Maio; de incapacidade temporária parcial temporária parcial (ITP), com o grau de desvalorização de 30% durante o período de 5 de Maio de 2003 a 5 de Setembro de 2003, e de 20%, de 6 de Setembro de 2003 a 17 de Dezembro de 2003; vindo a ser-lhe atribuída a incapacidade permanente parcial para o trabalho (IPP) com o grau de desvalorização de 14,99%;
– Os riscos inerentes à prestação laboral do Autor, ao serviço da segunda Ré encontravam-se, à data do acidente de trabalho, transferidos para a primeira Ré mediante um contrato de seguro de acidente de trabalho, na modalidade de seguro a prémio variável (ou também chamado de folha de férias) titulado pela apólice n.º ..........;
– A retribuição anual do trabalhador sinistrado, Autor, é composta de uma parte fixa (no valor mensal de € 1.361,47) e de uma parte variável, constituída por comissões de vendas/prémios de produção;
– Para o cálculo de tais indemnizações deverá ter-se em conta a parte variável recebida durante o ano de 2002 (12 meses imediatamente antecedentes ao acidente), que ascendeu ao valor total de € 28.699,60, bem como a parte fixa da retribuição, esta pelo montante que auferia à data do acidente (Janeiro de 2003), ascendendo a um valor anual de € 19.060,58 (€ 1361,47 x 14 meses).
– As indemnizações pelas incapacidades temporárias totalizam a importância de € 13.850,44, tendo já recebido da seguradora a quantia de € 6.278,33.
– Em relação à IPP de 14,99%, o trabalhador sinistrado terá direito a receber um capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 5.011,44, devida desde o dia 18 de Dezembro de 2003 (data da alta definitiva) até atingir o fim da idade activa.
– A estes valores acresce, ainda, a quantia de € 16,80, a título de despesas de deslocação.
Ambas as Rés contestaram:
A “CC”, a pugnar pela sua absolvição do pedido, alegou, em resumo, que o pagamento reclamado pelo Autor é da inteira responsabilidade da Ré “BB S.A.”, porquanto os riscos inerentes à prestação laboral daquele tinham sido transferidos para esta, mediante a celebração de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, na modalidade de seguro a prémio variável, também designado de “folha de férias”, titulado pela apólice n.º ........., contrato este que se encontrava em vigor na data do acidente de trabalho.
Por sua vez, a Ré seguradora, defendeu a improcedência parcial da acção, quanto a ela, com a fixação da pensão e demais prestações a seu cargo com base na remuneração anual de € 1.361,47 x 14 meses e isentando-se a mesma de quaisquer custas na fase contenciosa a que não deu azo, mais se condenando a Ré empregadora a custear todas as prestações efectuadas ou a efectuar ao Autor na proporção da remuneração não transferida, para o que, em súmula, aduziu o seguinte:
– Conforme expôs na tentativa de conciliação realizada na fase administrativa do processo, o salário que lhe era declarado pela Ré empregadora, relativamente ao Autor, e com base no qual assumiu determinado risco contra determinada retribuição era de apenas € 1.361,47 x 14 meses;
– O contrato de seguro de acidentes de trabalho que mantém com a empregadora, e por força do qual é demandada nos presentes autos, é um contrato de prémio variável, na modalidade de “folhas de férias”;
– Ora, como resulta das folhas de férias juntas aos autos, a entidade empregadora participou à contestante o salário supra referido e não qualquer outro;
– Assim, imputar à seguradora o pagamento de uma pensão calculada com base em vencimentos superiores àqueles que lhe eram comunicados violaria todo o espírito e regulamentação do contrato de seguro, não podendo, por isso, à situação dos autos, deixar de se considerar integralmente aplicável o disposto no n.º 3 do artigo 37.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (adiante, LAT);
– Deste modo, a contestante nunca poderá ser responsabilizada por um valor superior àquele que era declarado como vencimento e com base no qual cobrava o respectivo prémio do seguro, pelo que, a apurar-se que existe retribuição para além dos aludidos € 1.361,47 x 14 meses, devem as prestações correspondentes ficar a cargo da entidade patronal, solução, de resto, que se impõe não apenas quanto às prestações em dinheiro mas ainda quanto ao custeamento de todas as prestações em espécie – médicas, medicamentosas, etc., já prestadas ou a prestar ao Autor;
– Assim sendo, atendendo à remuneração efectivamente declarada à contestante e, como tal, abrangida pelas garantias da apólice contratada, pelo menos no que à contestante diz respeito, foram já pagas ao Autor todas as indemnizações devidas pelos períodos de incapacidade de que padeceu.
A mesma Ré deduziu resposta à contestação apresentada pela co-Ré “CC”, concluindo, mais uma vez, pela condenação desta na proporção da remuneração do Autor não declarada.
Por seu turno, a “CC” respondeu à contestação apresentada pela co-Ré seguradora, impetrando, novamente, a sua absolvição do pedido.
Proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, sem reclamação das partes, veio a realizar-se a audiência de discussão e julgamento e decidida, sem reclamações, a matéria de facto questionada na base instrutória, foi proferida sentença em que, além de se ter decidido não condenar a Ré “CC” nem o Autor, como litigantes de má-fé, como pretendido pela Ré seguradora, julgou-se improcedente a acção contra Ré “CC”, absolvendo-a do pedido, e procedente contra a Ré “BB, S.A.”, condenando-a a pagar ao Autor:
– A quantia de € 9.861,94 de diferença na indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias, nos termos do artigo 17.º n.º 1, alíneas e) e f), da LAT;
– O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 5.011,48, obrigatoriamente remível, com início de vencimento em 18 de Dezembro de 2003, dia seguinte ao da alta, nos termos do artigo 17.º, n.º 1, alínea f), da LAT;
– A quantia de € 16,80, a título de despesas de deslocação, nos termos do artigo 15.° da LAT;
– Juros de mora, à taxa legal, sobre as prestações pecuniárias em atraso.
Em conformidade, foi a Ré seguradora condenada nas custas.
2. A mesma Ré interpôs recurso de apelação, intentando obter a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, especificamente quanto ao teor das respostas aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória, e, por via da pretendida alteração, limitada a sua responsabilidade nos termos reclamados na sua contestação; sustentou, outrossim, a condenação dos apelados como litigantes de má-fé, também, nessa parte impetrando a revogação da sentença.
Tendo o Tribunal da Relação do Porto confirmado a decisão da 1.ª instância, a apelante veio pedir revista do respectivo acórdão, tendo formulado, a terminar a respectiva alegação, as conclusões assim redigidas:
1. O depoimento da testemunha DD, ao vir negar um documento escrito e assinado por si próprio, era de inadmissível valoração, não podendo, nessa medida, fazer qualquer tipo de prova contra tal documento (pedido de cotação de seguro).
2. Tal questão, de proibição da valoração do seu depoimento, só em sede de recurso poderia ser levantada, pois que só com a sentença e com a fundamentação das respostas aos quesitos se sabe que valoração foi feita ao depoimento de tal testemunha.
3. A proibição de valoração de um depoimento a que se refere o Art. 394.° CC ou a inadmissibilidade legal de alguém depor como testemunha prevista nos Arts. 616.° e 617.° CPC são questões absolutamente distintas, sendo que a que foi invocada pela recorrente foi a primeira, a qual, por isso, deveria ter sido conhecida pelo Tribunal da Relação.
4. Ao não o fazer, violou o Acórdão em crise o estatuído no Art. 394.° do Cód. Civil e não conheceu de matéria de que deveria ter conhecido, o que, nos termos do estatuído no Art. 668.º, n.º 1, d), [do Código de Processo Civil], constitui nulidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais.
5. Está assente que o contrato de seguro celebrado entre as RR. é um contrato do ramo acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem na modalidade de prémio variável.
6. Ainda que esteja provado que com tal contrato a R. Patronal transferiu para a R. Seguradora a sua responsabilidade infortunística relativamente a toda a retribuição do A., aqui se incluindo por isso prémios e comissões de vendas, o certo é que cabia à R. Patronal, para que tal garantia se efectivasse, declarar tais parcelas variáveis da retribuição nas folhas de remuneração enviadas à Recorrente.
7. Ora, está assente que o acidente ocorreu no dia 08/01/2003.
8. E, como resulta dos autos, as folhas de remuneração relativas a Janeiro de 2003, enviada a 19/02/2003 e a Fevereiro de 2003 enviada a 09/03/2003 são totalmente omissas quanto ao pagamento de qualquer verba para além da retribuição mensal de € 1.361,47.
9. Ou seja, aquilo que efectivamente foi transferido para a R. Seguradora e, como tal, ficou a coberto das garantias do seguro, é aquilo que foi declarado à Recorrente nas competentes folhas de remuneração. Se a R. Patronal tivesse declarado nas folhas de retribuição mensais que pagara € 150,000,00 de comissões ou prémios, tal verba estaria, evidentemente, a coberto do seguro contratado.
10. Uma vez que nada declarou, limitando-se a pedir, em Julho de 2003, uma alteração da massa salarial prevista de 83.000,00 para € 333.000,00, e que só na folha de remunerações relativa a Julho de 2003 declarou, pela primeira vez, o pagamento de “outros abonos” ao A., é evidente que tais factos não operam retroactivamente, fazendo com que a Recorrente seja responsabilizada, num acidente ocorrido mais de meio ano antes, por uma retribuição quase 200% superior à que lhe fora comunicada até então, e mesmo nos meses seguintes ao do acidente.
11. Ao não decidir assim, o Ac. em crise fez uma lastimável confusão entre o que é a declaração da massa salarial prevista, a qual releva apenas para definição do montante dos prémios provisórios e seus eventuais acertos respectivos e o que é a definição da retribuição segura, abrangida pelas garantias da apólice, a qual tem que ser definida, a cada momento, nas folhas de remuneração mensalmente remetidas à seguradora.
12. Ao decidir como decidiu, o Ac. em crise interpretou erradamente, e com isso violou, a condição especial 01 da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem aprovada pela Norma 12-/99-R de 8 de Novembro, assim como os seus Arts. 4.º, n.º 2, 10.º, n.º 1, 16.º, n.º 1, c), e 12.º e os Arts. 37.º, n.os 1 e 3 da Lei 100/97.
13. Na verdade, o facto de constarem nas folhas de remunerações de Julho, Outubro e Dezembro de 2003, todas elas entregues mais de seis meses depois da data do acidente, pagamentos de outros abonos ao aqui A., nunca poderia fazer com que se considerasse que tais valores, omissos nas folhas do mês do acidente e seguintes, passassem a estar já garantidos pelo seguro, mesmo por referência à data do acidente.
14. Ao exposto acresce que, como alegou o A. e aceitaram ambas as RR., o mesmo tem a qualidade de gerente da R. CC.
15. Assim, e para a hipótese de se entender que a massa salarial prevista tem relevância não apenas para a definição do prémio provisório, mas ainda para a definição da retribuição segura, o que só mesmo para efeitos de raciocínio se pode admitir, então sempre teríamos que violou o Tribunal “a quo” o disposto no n.º 2 do Art. 10.º da aludida Apólice Uniforme.
16. De facto, por força de tal preceito a alteração da retribuição de gerentes, administradores e mesmo meros directores ou análogos só produz efeitos no primeiro dia do segundo mês contado da data de alteração, precisamente para, atento o poder que tais pessoas têm nas sociedades empregadoras, evitar actuações fraudulentas como as que o Tribunal “a quo” legitimou.
17. Assim, deve a Recorrente ser declarada responsável apenas até ao limite da retribuição de € 1.361,47 x 14 meses que lhe foi declarada, mais devendo ser considerados todos os pagamentos que já efectuou e que constam dos autos, pelo que apenas é devedora ao A. da pensão que para si resulta, atenta a IPP fixada e a dita remuneração de € 1.361,47 x 14, devendo a R. Patronal ser condenada na proporção da retribuição não transferida, pelas diferenças de indemnizações de incapacidades temporárias em falta, pela sua quota parte na pensão a arbitrar e ainda pela sua quota parte em todas as despesas com tratamentos, transportes, e demais prestações feitas no interesse do A..
18. Face a tudo o exposto, entende a Recorrente que, atenta a gravidade da actuação de A. e R. Patronal, se legitima em absoluto a sua condenação como litigantes de má-fé.
19. De facto, ambos estavam de acordo quanto ao facto de o A. ter auferido nos 12 meses anteriores ao acidente a quantia de € 28.699,60 de prémios e comissões.
20. Ambos omitiram o pagamento de tais prémios e comissões à sua anterior seguradora, a Ocidental, S.A..
21. Ambos legitimaram a conduta do seu mediador de seguros ao apresentar um pedido de cotação de seguro com uma massa salarial prevista de € 82.500,00 para toda a empresa, bem sabendo que na mesma havia três gerentes com idênticas remunerações (e que só em prémios e comissões auferiam cerca de € 90.000,00 anuais) e ainda mais três ou quatro empregados.
22. O próprio A. assinou a proposta de seguro, declarando uma massa salarial prevista de € 83.000,00, bem sabendo que só ele, no ano anterior, tinha auferido € 47.760,18, ou seja, quase 60% do que declarou ser o que a empresa despenderia em retribuições.
23. Omitiram o pagamento de quaisquer valores para além do vencimento base nas folhas de remunerações do mês do acidente e seguintes.
24. Pedem, seis meses depois do acidente, a alteração da massa salarial prevista e entregam então as primeiras folhas de remuneração com referência a “outros abonos”.
25. Juntam aos autos uma folha de remunerações manifestamente falsa – documento de fls. 74, absolutamente diferente do de fls. 319, cujo original foi igualmente junto aos autos em audiência de julgamento, a determinação do Senhor Juiz.
26. E, não obstante tudo isso, têm a desfaçatez de pretender que a Recorrente é que deve pagar a totalidade das prestações reclamadas pelo A., em grosseira violação do estatuído nos Arts. 227.°, 762.° e 334.° do Cód. Civil.
27. Crê-se ser notório que A. e R. Patronal sustentaram nos autos posições cuja falta de fundamento não podiam ignorar com vista a obter benefício que sabem não lhes ser devido (condenação apenas da Recorrente, o que beneficia R. Patronal e mesmo A., dada a sua qualidade de sócio gerente da mesma), alteraram a verdade dos factos e juntaram um documento falso aos autos, tudo de forma gritantemente dolosa.
28. Devem, por isso, ser solidariamente condenados a indemnizar a Recorrente em quantia certa nunca inferior a € 1.000,00, para custear as despesas com o seu mandatário judicial e demais despesas que, para si, resultaram da fase contenciosa do presente processo.
29. Para a hipótese, que igualmente se concebe apenas para efeitos de raciocínio, de se entender que não pode este Supremo Tribunal lançar mão das folhas de remuneração juntas aos autos, em especial as relativas aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2003, por tal matéria não constar da Matéria de Facto Assente nem das respostas à Base Instrutória, sempre deverá então aplicar-se o estatuído no n.º 3 do Art. 729.º CPC, procedendo-se à ampliação da matéria de facto, de modo a que se torne inequívoco aquilo que foi declarado à Recorrente como sendo a retribuição do A/Recorrido, quer no mês do acidente quer no mês seguinte – Janeiro e Fevereiro de 2003.
30. Mais: porque se está a indagar sobre o que foi contratado no seguro celebrado entre Recorrente e R. Patronal jamais poderia o Tribunal “a quo” dispensar prova documental para suportar a resposta dada, pois que estamos perante um contrato formal – Art. 426° Cód. Comercial.
31. Ora, toda a prova documental produzida – pedido de cotação do seguro, proposta subscrita pela Patronal, apólice emitida e folhas de remuneração remetidas no mês do acidente e no mês seguinte são totalmente omissos quanto à cobertura de prémios e comissões, jamais fazendo qualquer referência aos mesmos.
32. Assim sendo, ocorreu manifestamente errada decisão da matéria de facto, pois que ofendeu-se disposição expressa da lei que exige certa espécie de prova – a documental – para que se desse como provada qual a retribuição declarada e transferida para a recorrente – cfr. Arts. 426.° Cód. Com e 364.° Cód. Civil.
33. Situação esta que cai já na alçada deste Supremo Tribunal – n.º 2 do Art. 722.º CPC.
34. E que, dada a extensa prova documental existente nos autos, legitima a alteração da decisão sobre a matéria de facto, maxime no que ao quesito segundo da Base Instrutória diz respeito, devendo dar-se como provado que nem na folha de férias ou retribuições de Janeiro nem da de Fevereiro de 2003 foram declarados e como tal transferidos, quaisquer prémios ou comissões como integrando a retribuição do A..
35. O que determina que tem a Recorrente que ser parcialmente absolvida do pedido, nos moldes em que sustentou desde a fase administrativa do processo, condenando-a nas indemnizações e pensões devidas apenas por referência à remuneração do A. para si transferida, a saber, € 1.361,47 x 14 meses, considerando tudo quanto já pagou e que foi referido na sentença em crise e condenando a R. Patronal por todas as prestações, em dinheiro ou em espécie, efectuadas ou a efectuar ao A., na proporção da remuneração variável que este auferiu já no ano anterior ao sinistro – € 28.699,60 – não abrangida pelas garantias do seguro.
36. Ao não se decidir assim violou-se os Arts. 373.° a 376.° e 394.° do Cód. Civil, 426.° do Cód. Comercial, os Arts. 4.º, n.º 2, 10.º, n.° 1, 12.º e 16.º, n.º 1, c), da Apólice Uniforme do Contrato de Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por conta de Outrem e os Arts. 37.º, n.os 1 e 3, da Lei 100/97.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de V. Exas., deve o Acórdão em crise ser substituído por outro que absolva parcialmente a Recorrente, condenando-a apenas ao pagamento da pensão devida ao A. considerando a retribuição transferida de € 1.361,47, única declarada à recorrente até à eclosão do acidente, por serem totalmente omitidos os montantes dos prémios e comissões das folhas de remuneração do mês do acidente e dos meses seguintes, não estando tais verbas, por isso, a coberto das garantias da apólice contratada.
Devem, por fim, A. e R. Patronal ser efectivamente condenados como litigantes de má-fé, atenta a sua conduta processual, que chegou ao ponto de permitir a junção de um documento falso aos autos, com o que se fará sã e serena JUSTIÇA.
Ambos os recorridos, Autor e Ré empregadora, apresentaram alegações em que defenderam a confirmação do julgado.
Neste Supremo Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, em parecer a que as partes não reagiram, no sentido de não se conhecer da questão da litigância de má-fé e de ser concedida a revista.
Tendo em atenção as conclusões do recurso, o objecto deste versa, fundamentalmente, as seguintes questões:
– Nulidade do acórdão da Relação;
– Alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto (respostas aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória);
– Determinação do valor da retribuição do sinistrado a considerar para o cálculo do montante da pensão e indemnizações a cargo da recorrente;
– Litigância de má-fé imputada aos recorridos.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. As instâncias fixaram a matéria de facto provada nos seguintes termos:
1. No dia 08/01/2003, quando se encontrava a trabalhar sob a autoridade e direcção da Ré “CC”, o Autor sofreu uma queda. - al. A) dos factos assentes;
2. Do que lhe resultou fractura do antebraço direito e punho direitos, determinantes de ITA até 04/05/2003 e de ITP de 30% até 05/09/2003; e de 20% até 17/12/2003, data da “alta”, ficando com uma IPP de 14,99%. - al. B) dos factos assentes;
3. À data do acidente, o A. auferia da empregadora a retribuição mensal fixa de € 1.361,47 x 14 meses por ano, acrescida de comissões de vendas e prémios de produção que nos doze meses anteriores perfizeram o total de € 28.699,60. - al. C) dos factos assentes;
4. À data do acidente, existia entre as rés um contrato de seguro por acidente de trabalho, incluindo o A., titulado pela apólice n.º 5328393, celebrado na modalidade de “folhas de férias”, prémio variável. - al. D) dos factos assentes;
5. Na celebração do contrato de seguro as rés acordaram que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões de vendas. - resp. ao ques. 1 da base instrutória;
6. Tendo o contrato sido celebrado em 1/01/03, as folhas de férias da Ré empregadora referentes aos meses de Abril, Julho, Outubro e Dezembro de 2003 incluíam a declaração de tais prémios e comissões. - resp. ao ques. 2 da base instrutória;
7. O prémio de seguro inicialmente pago pela Ré empregadora foi calculado com base numa massa salarial estimada em € 83.000,00, que, posteriormente, em 26/08/2003, foi actualizada para € 330.000,00, em consequência do pedido de aumento de € 250.000,00 na previsão salarial para 2003. - resp. ao ques. 3 da base instrutória;
8. Em deslocações obrigatórias a juízo, o A. despendeu a quantia de € 16,80. – alínea E) dos factos assentes.
9. O A. nasceu em 3/05/1951, conforme certidão de nascimento constante de fls. 37.
2. Da nulidade do acórdão:
Dispõe o artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), que “[a] arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição de recurso”.
Tal exigência, justificada por razões de celeridade e economia processual, que, marcadamente, inspiram o processo laboral, visa possibilitar ao tribunal recorrido a rápida e clara detecção das nulidades arguidas e respectivo suprimento, daí que a explanação das razões pelas quais se suscita a nulidade haja de constar do requerimento de interposição de recurso, dirigido à instância recorrida.
As razões que justificam o regime especial de arguição das nulidades da sentença estabelecido na lei adjectiva laboral permanecem válidas quando se trate da imputação de nulidades ao acórdão da Relação.
Por isso, de há muito, este Supremo, no entendimento de que a remissão constante do artigo 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) – ao mandar aplicar aos acórdãos da 2.ª instância o que se acha disposto nos artigos 666.º a 670.º, e, pois, o regime de arguição de nulidades da sentença da 1.ª instância – contempla, tratando-se de processo laboral, o regime especial consignado no artigo 77.º, n.º 1, do CPT, do que decorre que a arguição das nulidades do acórdão da Relação deve ser feita, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, sob pena de se considerar extemporânea e não se conhecer das nulidades arguidas somente na alegação de recurso (neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos de 10 de Maio de 2001 e de 14 de Março de 2006, Documentos n.os SJ200105100018124 e SJ200603140040284, respectivamente, em www.dgsi.pt).
A recorrente, no requerimento de interposição de recurso, apresentado em 12 de Novembro de 2007 (fls. 672 dos autos), não fez qualquer referência à nulidade do acórdão.
Tal referência apenas veio a ser feita na peça apresentada para motivar o recurso, em 7 de Janeiro de 2008 (fls. 687 e segs.), em cujo intróito, depois de discorrer sobre a recusa do Tribunal da Relação em conhecer da alegada violação do artigo 394.º do Código Civil, por se ter considerado que se tratava de “questão nova”, e apesar de afirmar, num primeiro momento, que tal atitude daquele Tribunal Superior consubstancia “um erro de julgamento”, conclui que essa atitude, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, “constitui nulidade que desde já se invoca para todos os efeitos legais”, do mesmo modo se expressando na conclusão 4 da alegação.
Este modo de proceder não respeita a exigência contida no n.º 1 do artigo 77.º do CPT, uma vez que a arguição da nulidade do acórdão da Relação, omitida no requerimento de interposição do recurso, e feita só no momento da apresentação da alegação da revista, não cumpre a finalidade prosseguida por aquele preceito que é a de permitir que o tribunal recorrido, no momento em que se debruça sobre o requerimento de interposição, designadamente para apreciar da admissibilidade do recurso, facilmente se aperceba de quais os vícios apontados à decisão impugnada e respectivos fundamentos, de modo a que, rapidamente, deles tome conhecimento, procedendo, se for caso disso, à sanação, do que poderá resultar a desnecessidade de subsistir o recurso – por exemplo, se o suprimento da nulidade conduzir a uma solução favorável à parte recorrente, no tocante ao mérito da causa.
A tratar-se de nulidade do acórdão a sua arguição seria intempestiva, não podendo, por isso, ser apreciada.
Porém, atentos os fundamentos aduzidos pela recorrente, o que a sua alegação traduz é a imputação de erro de julgamento, na medida em que acusa a decisão recorrida de incorrectamente ter encarado como questão nova, de que o tribunal superior não podia conhecer, o problema da valoração do depoimento de uma testemunha contrário à prova documental existente nos autos.
A qualificação como nulidade da decisão conferida pelo recorrente não vincula este Supremo, pelo que, podendo os fundamentos do objecto do recurso nessa parte, tal como foram expressos no texto da alegação, configurar, não um vício do acórdão, mas um erro de interpretação e aplicação da lei substantiva e/ou adjectiva, não está vedado, no recurso de revista, deles conhecer-se, como decorre do artigo 722.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o que, adiante se fará.
3. Da impugnação da matéria de facto:
3. 1. No recurso de apelação, a recorrente impetrou a alteração das respostas aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória, cujo teor foi vertido no texto da sentença, e do acórdão, sob os n.os 5 e 6 do elenco dos factos provados.
Alegou, por um lado, a falta de credibilidade do depoimento da testemunha, DD, em que se basearam tais respostas, depoimento esse contrariado pelo depoimento de outra testemunha, EE, e, por outro lado, que o depoimento da testemunha DD “é legalmente inadmissível, nos termos do artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil”.
O acórdão da Relação, depois de analisar o registo das provas oralmente produzidas em audiência, concluiu ter sido correcta a apreciação de tais provas pela decisão da 1.ª instância, e, em “nota final”, considerou: “a recorrente alega que o depoimento da testemunha DD «é legalmente inadmissível, nos termos do artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil». Acontece que esta é uma questão nova, dado que não foi suscitada, no momento próprio, ao tribunal da 1.ª instância para sobre ela se pronunciar”. E, prosseguindo: “como tal não pode este tribunal de recurso dela conhecer, uma vez que, como é sabido, «os recursos são meios para obter o reexame de questões submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre»”.
O artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil dispõe que “[é] inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer posteriores”.
Trata-se de um disposição de direito material probatório, que se apresenta como corolário do preceituado nos artigos 392.º e 393.º do mesmo Código: no primeiro consigna-se a admissibilidade da prova por testemunhas em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada; no segundo, estatui-se, por um lado, que não é admitida prova testemunhal se a declaração negocial, houver, por disposição de lei ou estipulação das partes, de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito (n.º 1), e, por outro lado, que não é admitida prova por testemunhas, quando facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena (n.º 2), consentindo-se, porém, que a prova por testemunhas possa servir para a simples interpretação de documentos (n.º 3).
Em rigor, o que resulta destes preceitos é a proibição de conferir à prova testemunhal, em relação à qual vigora o princípio da livre apreciação (artigos 396.º do Código Civil e 655, n.º 1, do CPC), qualquer valor quando incida sobre factos que só possam ser demonstrados por outros meios de prova ou que se achem evidenciados por meios de prova dotados de força probatória plena, casos subtraídos ao referido princípio da liberdade do julgamento, devendo ter-se por não escritas, no momento da elaboração da sentença, as respostas dadas em ofensa das regras da prova vinculada (artigos 615.º, n.º 2 e 646.º, n.º 4, do CPC).
A decisão proferida sobre a matéria de facto é susceptível de reclamação “contra a deficiência, obscuridade ou contradição ou contra a falta da sua motivação” (artigo 653.º, n.º 4, do CPC), mas não quanto ao sentido decisório e respectivos fundamentos, aspectos em relação aos quais a discordância das partes não tem que ser submetida ao tribunal que a proferiu, para ali ser apreciada, pois, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do CPC, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, aqui se compreendendo a matéria de facto, e, por outro lado, a respectiva decisão pode ser alterada pela Relação, designadamente, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto em causa e/ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas [artigo 712.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC], o que significa que o momento próprio para impugnar os fundamentos e sentido da decisão da matéria de facto é o da apresentação da alegação do recurso da sentença, como, de resto, resulta, claramente, da disciplina contida no artigo 690.º-A, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, que contempla o modo de impugnação da matéria de facto, mesmo que a impugnação não envolva a reapreciação de provas gravadas.
Dito isto, tendo sido alegada pela recorrente a inadmissibilidade do depoimento de uma testemunha, por ofender o disposto no artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil, não se afigura correcto o juízo segundo o qual se trata de questão nova, por não ter sido suscitada perante o tribunal da 1.ª instância.
Não estava, por conseguinte, o tribunal de recurso impedido de sobre ela se pronunciar e, abstendo-se de o fazer com base naquele juízo, olvidou o disposto nos referidos preceitos do Código de Processo Civil, o que configura violação de lei de processo, sindicável por este Supremo Tribunal, em conformidade com o disposto no já referido artigo 722.º, n.º 1.
3. 2. A recorrente persevera, no recurso de revista, em solicitar a alteração da decisão sobre a matéria de facto, maxime no que ao quesito 2.º da base instrutória diz respeito, devendo “dar-se como provado que nem na folha de férias ou retribuições de Janeiro nem na de Fevereiro de 2003 foram declarados e como tal transferidos, quaisquer prémios ou comissões como integrando a retribuição” do Autor.
Aduz, em síntese, que ocorreu manifesto erro na apreciação das provas, com ofensa de disposição expressa da lei que exige certa espécie de prova – a documental – para que se desse como provada qual a retribuição declarada e transferida para a recorrente (artigos 426.º do Código Comercial e 364.º do Código Civil) e que, dada a extensa prova documental existente nos autos, a resposta àquele quesito não pode deixar de ser alterada no sentido proposto.
Na base instrutória, perguntava-se (fls. 161, verso):
“1.º - Na celebração do contrato de seguro, as Rés acordaram que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões de vendas?”;
“2.º - Tendo o contrato de seguro sido celebrado em 1.1.03, a folha de férias apresentada em 15.2.03 e seguintes incluíam a declaração de tais prémios e comissões?”.
Ao quesito 1.º o tribunal respondeu: “Provado”; e ao 2.º: “Provado apenas que, tendo o contrato sido celebrado em 1/01/03, as folhas de férias da Ré empregadora referentes aos meses de Abril, Julho, Outubro e Dezembro de 2003 incluíam a declaração de tais prémios e comissões” (fls. 450).
Esta resposta ao quesito 2.º significa que não se provou que a folha de férias apresentada em 15 de Fevereiro de 2003 e a do mês de Março do mesmo ano incluíam a declaração de prémios e comissões. Deste modo, o tribunal, limitando-se a responder ao que se perguntava, restringiu o âmbito dos factos demonstrados, neles não abarcando a menção, nas folhas desses dois meses, da componente variável da retribuição.
Em bom rigor, tal resposta não merece censura.
Com efeito, não seria curial que, na resposta se afirmasse, como pretende a recorrente, que nem na folha de férias ou retribuições de Janeiro nem na de Fevereiro de 2003 foram declarados quaisquer prémios ou comissões como integrando a retribuição do Autor, pois se fosse este o teor da pronúncia do tribunal estaria a declarar provados factos não contemplados no texto do quesito, ou seja, a afirmar que se demonstrara uma realidade cuja averiguação aquele texto não prosseguia, não sendo lícito – por não se inserir no mero âmbito de uma resposta restritiva ou, mesmo, explicativa (esta compreendendo, apenas, factos instrumentais) –, quando, num quesito se interroga sobre a existência de um facto essencial para a decisão, responder com a afirmação de que se provou o facto contrário, também, essencial para decisão final.
Acresce que, no caso concreto, outro motivo se apresenta para não alterar aquela resposta, motivo esse que se prende com as regras que presidem à actividade de selecção dos factos relevantes para a decisão da causa.
Assim, ao proceder a essa actividade de condensação, o juiz deve seleccionar a matéria de facto que deva considera-se assente e fixar a base instrutória, nesta incluindo a que deva considerar-se controvertida [artigos 508.º-A, n.º 1, alínea e) e 511.º, n.º 1, do CPC].
No juízo sobre a matéria de facto assente, há-de ter-se em atenção, entre outros, os factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, e se, porventura, tais factos forem levados à base instrutória, o tribunal não deve responder aos atinentes quesitos, pois que se o fizer, como já se referiu, as respostas têm-se por não escritas (artigo 643.º, n.º 4, do CPC). Por outro lado, ainda que, na condensação, se haja omitido a inclusão nos factos assentes de factos plenamente provados por documentos, a sentença deve, na fundamentação, tomá-los em consideração (artigo 659.º, n.º 3, do CPC).
No caso que nos ocupa foram juntos aos autos cópias de “folhas de férias”, enviadas pela Ré empregadora à Ré seguradora, mencionando as retribuições auferidas pelo sinistrado nos meses de Janeiro de Fevereiro de 2003 (fls. 71 e 72), cuja autoria, imputada à Ré empregadora, não foi posta em causa.
Deles consta, apenas, o valor de € 1.361,47, nas colunas sob as referências “Ord. Base” e “Total”, nenhum outro valor se mencionando, designadamente na coluna “Outros Abonos”.
Tais documentos fazem prova plena de que foi aquele o valor declarado à seguradora pela empregadora, não admitindo prova por testemunhas (artigos 376.º, n.º 1 e 393.º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, os factos (valores declarados), porque plenamente provados, não podiam ser levados à base instrutória e se o fossem, qualquer eventual resposta haveria de ser considerada não escrita.
Nesta perspectiva, não há, portanto, que alterar a resposta ao quesito 2.º, cujo teor não contende com o vertido naqueles documentos, nos pontos enunciados.
Mas os referidos factos, porque eventualmente relevantes para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, deveriam ter sido considerados provados e incluídos na matéria de facto assente, seja na condensação, seja na sentença, seja, ainda, no acórdão da Relação.
O facto de tal não ter acontecido não impede este Supremo Tribunal de os declarar, agora, provados, em consonância com as regras de direito material probatório acima referidas, uma vez que o problema foi suscitado pela recorrente (artigos 729.º, n.º 2 e 722.º, n.º 2, do CPC).
Nesta conformidade, considera-se provado que nas “folhas de férias” relativas aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2003, a Ré empregadora declarou à Ré seguradora, como valor da retribuição auferida nesses meses, a importância de € 1.361,47.
4. A determinação do valor da retribuição a considerar para o cálculo da pensão e indemnizações a cargo da recorrente:
O contrato de seguro deve ser reduzido a escrito, em documento denominado apólice, que, entre o mais, deve conter o objecto, sua natureza e valor, os riscos contra que se faz o seguro, a quantia segurada e o prémio do seguro, e, em geral, todas as circunstâncias cujo conhecimento possa interessar o segurador, bem como todas as condições estipuladas pelas partes (artigo 426.º, proémio, e § único, n.os 3.º, 4.º, 6.º a 8.º, do Código Comercial).
De acordo com o artigo 4.º da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem, constante da Norma n.º 12/99-R, de 8 de Novembro de 1999, aprovada pelo Instituto de Seguros de Portugal, e publicada no Diário da República, n.º 279, II Série, de 30 de Novembro de 1999, como Regulamento n.º 27/99, o seguro pode ser celebrado nas modalidades de seguro a prémio fixo, quando o contrato cobre um número previamente determinado de pessoas seguras, com um montante de retribuições antecipadamente conhecido [alínea a)]; seguro a prémio variável, quando a apólice cobre um número variável de pessoas seguras, com retribuições seguras também variáveis, sendo consideradas pela seguradora as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimento que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador de seguro [alínea b)].
E o n.º 1 do artigo 10.º da Apólice Uniforme dispõe que “[a] determinação da retribuição segura, ou seja, do valor na base do qual são calculadas as responsabilidades cobertas por esta apólice, é sempre da responsabilidade do tomador de seguro, e deverá corresponder, tanto na data de celebração do contrato como em qualquer momento da sua vigência, a tudo o que a lei considera como elemento integrante da retribuição, incluindo o equivalente ao valor da alimentação e da habitação, quando a pessoa segura a estas tiver direito, bem como outras prestações em espécie ou dinheiro que revistam carácter de regularidade e não se destinem a compensar a pessoa segura por custos aleatórios, e ainda os subsídios de férias e de Natal”.
Finalmente, nos termos do artigo 12.º (em consonância com o estabelecido no artigo 37.º, n.º 3, da LAT) se a retribuição declarada for inferior à efectivamente paga, o tomador de seguro responderá (i) pela parte excedente das indemnizações e pensões; (ii) proporcionalmente pelas despesas de hospitalização, assistência clínica, transportes e estadas, despesas judiciais e de funeral, subsídios por morte, por situações de elevada incapacidade permanente e de readaptação, prestação suplementar por assistência de terceira pessoa e todas as demais despesas realizadas no interesse do sinistrado.
No caso em apreciação, demonstrou-se que o acidente ocorreu em 8 de Janeiro de 2003, vigorando, então, um contrato de seguro celebrado no dia 1 desse mês entre as Rés empregadora e seguradora, na modalidade de seguro a prémio variável. Provou-se, outrossim, que as partes acordaram que responsabilidade transferida incluía prémios de produção e comissões de vendas e que o Autor, à data do sinistro, auferia a retribuição fixa no valor de € 1.361,47 X 14 meses, acrescida de comissões de vendas e prémios de produção que, nos doze meses anteriores, perfizeram o total de € 28.699,60, estando, também, como acima se referiu, demonstrado que nas “folhas de férias” referentes aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2003, remetidas à seguradora pela empregadora, foi por esta declarada a retribuição total de € 1.361,47.
A sentença da 1.ª instância, neste ponto confirmada remissivamente pelo acórdão impugnado, atribuiu a responsabilidade pela reparação integral do sinistro à seguradora, considerando, para tanto, em súmula, que o acidente de trabalho que vitimou o Autor ocorreu logo no decurso do primeiro mês de vigência do contrato de seguro celebrado entre as Rés, quando ainda não havia sido entregue à seguradora pela entidade empregadora a respectiva folha de férias referente a esse mês, sendo certo que o prazo de vencimento dessa obrigação de entrega apenas ocorreu a 15 de Fevereiro de 2003; que, na celebração do contrato de seguro ajuizado nos autos, as Rés acordaram que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões de vendas; e, finalmente, que, sendo certo que o prémio de seguro inicialmente pago pela Ré empregadora fora calculado com base numa massa salarial estimada em (apenas) € 83.000,00, não menos certo é que posteriormente, mais concretamente em 26 de Agosto de 2003, essa massa salarial foi actualizada para € 330.000,00, em consequência do pedido de aumento da Ré patronal de € 250.000,00 na previsão salarial para 2003, com efeitos temporalmente reportados de 1 de Janeiro de 2003 a 31 de Dezembro de 2003, sem que a Ré seguradora haja recusado ou colocado qualquer objecção a essa actualização, apesar de, à data, ser já conhecedora do acidente de trabalho que vitimou o Autor.
Este entendimento não teve em atenção que, no contrato de seguro de prémio variável, no momento da sua celebração as partes acordam, apenas sobre o tipo de risco, as condições da sua prestação e outras circunstâncias que relevam para a avaliação do risco, e acordam, por outro lado, como resulta do artigo 4.º, alínea b), da Apólice Uniforme, em remeter para as “folhas de férias” respeitantes a cada mês a definição e concretização seja do número de trabalhadores abrangidos pelo seguro, seja do valor das respectivas retribuições.
É que a indicação dos valores dos salários, em tal modalidade do contrato não faz parte dos elementos da sua formação, mas sim da sua execução, como decorre daquele preceito e do artigo 16.º, n.º 1, alínea c), da Apólice Uniforme, que impõe à entidade empregadora – sob pena de resolução do contrato e de contra ela ser exercido direito de regresso – a obrigação de “enviar mensalmente à seguradora, quando se trate de seguro de prémio variável, e até ao dia 15 de cada mês, as folhas de retribuições pagas no mês anterior a todo o seu pessoal e que devem ser duplicados ou fotocópias das remetidas à Segurança Social, devendo ser mencionada a totalidade das remunerações previstas na lei, como parte integrante da retribuição para efeito de cálculo, na reparação por acidente de trabalho”.
É, por conseguinte, irrelevante, como, bem, observa a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no douto parecer que exarou nos autos, o ter-se declarado provado que, na celebração do contrato, as Rés acordaram que a retribuição transferida incluía prémios de produção e comissões de vendas, uma vez que isso não ficou a constar do escrito (apólice) que corporizou o contrato de seguro (fls. 6 dos autos), mas mesmo que dele constasse, face aos termos genéricos dessa expressão, sempre teria de haver, na execução do contrato, a indispensável concretização dos respectivos valores, nas folhas de férias que a empregadora estava obrigada a remeter, todos os meses, à seguradora.
É de referir que, sendo este um negócio formal (artigo 426.º, do Código Comercial), a prova do que ali foi declarado só poderia ser posta em crise por documento de força probatória superior (artigo 364.º, n.º 1, do Código Civil), não sendo, por outro lado, admissível prova testemunhal para demonstrar convenção adicional ao seu conteúdo (artigo 394.º, n.º 1, do Código Civil).
Finalmente, nem a circunstância de o acidente ter ocorrido poucos dias após a celebração do contrato, nem o facto de, cerca de oito meses depois, ter sido convencionado o aumento da base salarial para servir de base ao cálculo do prémio de seguro, com efeitos retroactivos a 1 de Janeiro de 2003, têm virtualidade para afastar a plena aplicação das citadas normas da Apólice Uniforme.
Em suma, uma vez que a retribuição comunicada à seguradora, ora recorrente, com respeito ao mês em que ocorreu o acidente, foi do valor de € 1.361,47, a sua responsabilidade é limitada a esse montante, recaindo sobre a empregadora a da relativa à parte variável da retribuição, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 37.º da LAT.
Deste modo, tendo ao Autor sido reconhecido, sem impugnação, o direito a receber, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária (ITA e ITP) a importância de € 16.140,27, o capital de remição da pensão anual e vitalícia no valor de € 5.011,48, e a quantia de 16,80, a título de transportes, a responsabilidade da seguradora cinge-se à indemnização por ITA e ITP no valor de € 6.441,58 (€ 16.140,27 X 39,91%) e ao pagamento do capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 2.000,81 (€ 5.011,48 X 39,91%) e de € 6,75 (16,80 X 39,91%) de despesas de transporte. Dado que, como refere o Autor na petição inicial, dela já recebeu, a título de indemnização por ITA e ITP, a quantia de € 6.278,33, a obrigação subsistente reduz-se, no que concerne, ao pagamento da importância de € 163,25.
A entidade empregadora é responsável pela diferença de valores, tendo em conta as retribuições variáveis, não transferidas para a seguradora, auferidas nos doze meses que antecederam o acidente e que totalizaram € 28.699,60.
Procede, assim, em parte, a pretensão da recorrente.
5. Da litigância de má-fé:
Como acima se referiu, a sentença decidiu não condenar os ora recorridos como litigantes de má-fé, desse modo desatendendo o pedido nesse sentido formulado pela ora recorrente, e o Tribunal da Relação, remissivamente, confirmou tal decisão.
Porque a litigância de má fé é uma questão de natureza processual, a espécie de recurso visando impugnar a decisão sobre tal matéria é o agravo, nos termos das disposições combinadas dos artigos 691.º, 733.º e 740.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
De acordo com o n.º 1 do artigo 722.º do mesmo diploma, sempre que o recurso de revista seja o próprio, a lei admite que o recorrente invoque, além da violação de lei substantiva, a violação de lei de processo, quando desta for admissível o recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754.º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.
Dispõe o referido artigo 754.º que «[c]abe recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber a revista ou apelação» (n.º 1); «[n]ão é admitido recurso do acórdão da Relação sobre decisão da primeira instância, salvo se o acórdão estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigo 732.º-A e 732.º-B, jurisprudência com ele conforme» (n.º 2); «[o] disposto na primeira parte do número anterior não é aplicável aos agravos referidos nos números 2 e 3 do artigo 678.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 734.º» (n.º 3).
No caso que nos ocupa, vem impugnado o segmento decisório do acórdão da Relação que confirmou a sentença da 1.ª instância na parte em que desatendeu o pedido de condenação do Autor e da co-Ré seguradora, por litigância de má-fé, não se verificando qualquer das excepções previstas na segunda parte do n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 754.º.
Trata-se da situação contemplada na 1.ª parte do n.º 2 do referido artigo 754.º, daí que não pode o Supremo Tribunal, no presente recurso, sindicar o atinentemente decidido pela Relação.

III

Nos termos expostos, decide-se, concedendo parcialmente a revista, condenar:
– A Ré “BB, S.A.”, a pagar ao Autor a importância de € 163,25, que traduz a parte que, respeitando à indemnização por ITA e IPP da sua responsabilidade, ainda não pagou, bem como o capital de remição da pensão anual e vitalícia no valor de € 2.000,81, e, ainda a importância de € 6,75, relativa a despesas de transportes, tudo acrescido de juros legais;
– A Ré “CC – Equipamentos para a Indústria Tintas, Lda.”, a pagar ao Autor a importância de € 9.698,69, a título de indemnização por ITA e IPP, bem como o capital de remição da pensão anual e vitalícia no valor de € 3.010,67, e, ainda a importância de € 10,05, relativa a despesas de transportes, tudo acrescido de juros legais.
Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo das Rés, na proporção do decaimento.
Lisboa, 8 de Outubro de 2008.
Vasques Dinis (Relator)
Alves Cardoso
Bravo Serra

Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 07B4692

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
NASCITURO
PERSONALIDADE JURÍDICA
DIREITO À VIDA
INDEMNIZAÇÃO

Nº do Documento: SJ200810090046922
Data do Acordão: 09-10-2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA

Sumário :
I – As seguradoras podem demonstrar o cumprimento do ónus de envio do aviso de recepção da carta registada comunicando a suspensão da garantia decorrente do seguro por meio de prova testemunhal. II – O co-devedor solidário não tem legitimidade para pedir a condenação do outro devedor, dado que a existência deste não mitiga a sua obrigação de prestar, ao contrário do que sucede do lado activo, em que um maior número de devedores reforça a garantia patrimonial do crédito. III – Numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica, não é possível adoptar um conceito de dignidade humana, de origem metafísica, segundo o qual o ser humano tem uma essência espiritual presente desde o momento da concepção. IV - O artº 66º nº 1 do C. Civil, ao atribuir a personalidade jurídica, apenas ao nascido com vida, não é incompatível com o artº 24º nº 1 da Constituição, quando diz que a vida humana é inviolável, uma vez que o preceito constitucional, neste caso, está a proteger a vida uterina ainda não integrada numa pessoa. V – Assim, não há lugar à reparação por perda do direito à vida de um feto que faleceu em consequência de acidente de viação. VI – É equilibrado atribuir € 100,000,00 de indemnização pelo dano patrimonial futuro a um lesado que tinha 20 anos e ficou incapaz de desenvolver a actividade donde obtinha um rendimento diário de € 25. VII – Não se justifica baixar uma indemnização por danos não patrimoniais de € 30.000,00, sendo € 20.000,00 pelo sofrimento físico derivado das lesões e pelas suas sequelas permanentes e € 10.000 pela perda do filho ainda não nascido. VIII – As indemnizações calculadas com base na equidade têm de ser entendidas, salvo expressa menção em contrário, como actualizadas, pelo que vencem juros a partir da primeira decisão condenatória.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I AA moveu a presente acção ordinária contra BB e marido CC e contra o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo que os réus fossem condenados a, solidariamente, pagarem-lhe a quantia de € 276.035,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu, derivados dum acidente de viação ocorrido quando era transportada gratuitamente como passageira num veículo automóvel, conduzido pela 1º ré e propriedade do 2º réu.
Alegou que tal acidente foi causado pela condução negligente da 1ª ré e do condutor de um outro veículo que não chegou a ser identificado, sendo certo também que o veículo onde se fazia transportar não tinha, à data, seguro válido, cobrindo a responsabilidade civil pelos danos que pudesse causar.
Apenas contestou o FGA, que impugnou os factos, questionou o montante exagerado das quantias peticionadas por alguns dos danos e a ressarcibilidade de outros, acabando por invocar a franquia legal, que, a proceder a acção, sempre teria de ser descontada no montante dos danos patrimoniais.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Apelou a autora, tendo o Tribunal da Relação entendido que o acidente fora devido a culpa da condutora, onde aquela se fazia transportar e, consequentemente, julgando parcialmente procedente o recurso, condenou a 1ª ré e o FGA a pagarem à autora a quantia de € 161.972,56, acrescida dos juros de mora à taxa legal desde a citação. Mais absolveu do pedido o 2º réu.

Recorrem, agora o réus FGA e a autora, os quais, nas suas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:

recurso do réu FGA

1 A alteração pela Relação da resposta ao quesito 11º de “não provado” para “provado” traduz errada apreciação dos documentos juntos aos autos e de incorrecta aplicação da lei, com violação do disposto nos artºs 7º e 8º do DL 142/00 de 15.07 e 342º do C. Civil.
2 Na data do acidente o condutor do veículo BV tinha um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº 7066244, que garantia a responsabilidade civil pelos danos provocados a terceiros, emergentes da circulação desse veículo.
3 A Seguradora – Companhia de Seguros Mundial Confiança – informou ter resolvido esse contrato, com efeitos a partir de 15.08.99, por falta de pagamento do respectivo, mas não juntou aos autos a carta enviada ao tomador do seguro, a que alude o artº 4º nºs 1 e 2 do DL 105/94 de 23.04, alegadamente por já o não poder fazer.
4 A existência do contrato de seguro prova-se com a apólice e actas respectivas, ou mediante qualquer das situações previstas no artº 20º do DL 522/85 de 31-12, isto é, prova-se apenas por documento escrito, pelo que aquela resposta da Relação ao quesito 11º traduz ofensa de disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixa a força de determinado meio de prova (artº 722º nº 2 do C. P. Civil), sendo fundamento de revista.
5 Era sobre a autora lesada que impendia o ónus de provar os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do FGA, incluindo o de que o veículo circulava sem cobertura de nenhuma apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e que era um dos elencados no artº 21º daquele DL 522/85.
6 O tribunal a quo, face à prova de que o réu CC é o proprietário do veículo causador do sinistro e sujeito da obrigação de segurar, deveria ter julgado a acção também procedente contra este réu, condenando-o, nos precisos termos em que condenou a ré BB e o FGA, como decorre do disposto no nº 3 do artº 25º do citado DL 522/85.
7 Não o fazendo, violou o dito tribunal o disposto nos artºs 2º, 20º,21º,25º e 29º deste DL e o artº 567º do C. P. Civil
8 A indemnização de € 100.000,00, atribuída à autora a título de danos patrimoniais futuros, é excessiva, devendo ser fixada, segundo a equidade, em € 40.000,00.
9 Ao fixá-lo naquele montante, a Relação violou o disposto nos artºs 483º, 562º e 564º nº 2 do C. Civil.
10 A indemnização arbitrada à autora, a título de danos não patrimoniais por ela sofridos, não deveria, em juízo de equidade, ultrapassar € 10.000,00.
11 Com a sua fixação em montante superior, o acórdão recorrido violou os artºs 483º, 562º nº 2 e 493 nº 3 do C. Civil.
12 A título de compensação pelo sofrimento da perda do filho, é justo e adequado, em critétio de equidade, atribuir à autora a quantia de € 5.000,00.
13 Ao entender justificado um montante superior, o acórdão recorrido violou os artºs 483º, 562º, 566º nº 2 e 496º nº 3 do C. Civil.
14 Quando o valor da indemnização se reporta à data da sentença de 1ª instância, como no caso em apreço, apenas são devidos juros de mora a partir dessa data e não desde a citação.
15º A decisão recorrida violou, neste particular, os artºs 566º e 805º nº 3 do C. Civil.

recurso da autora

1 O artº 24ºda Constituição protege o direito à vida e integridade física e psíquica do ser humano, englobando nessa protecção o nascituro.
2 A ofensa do direito à vida intra-uterina constitui um facto ilícito gerador de responsabilidade.
3 Para reparar a perda do direito à vida do filho nascituro da autora é ajustada a quantia de € 50.000,00.
4 Deve ser fixada no montante peticionado a indemnização para reparar o sofrimento do filho da autora entre a data do acidente e a morte.
5 A não se entender assim, ou seja, que o artº 66º do C. Civil o não permite, será tal interpretação materialmente constitucional, porque ofensiva do disposto no artº 24º da Lei Fundamental.
6 O montante da indemnização pelo dano patrimonial futuro a atribuir à autora não deve ser inferior a € 150.000,00, provado que esta ficou com uma incapacidade de 10% para o trabalho em geral e de 50% para o exercício da profissão que exercia.
7 Deve ser atribuída à autora uma indemnização autónoma pelo dano estético, de afirmação pessoal e sexual, não inferior a € 45.000,00.
8 Às peticionadas indemnizações devem acrescer juros legais desde a citação.
9 O acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 66º e 483º do C. Civil e 24º da Constituição da República.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
As instâncias deram por assentes os seguintes factos, consideradas já as alterações introduzidas pela Relação:

1 No dia 07.11.99, pelas 5H15M, na EN nº 15, em Marecos, concelho de Penafiel, a ré BB conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, Citroen AX, de matrícula ...-...-BV, no sentido Paredes-Penafiel.
2 Ao chegar próximo do km 29,3 da EN 15, a ré saiu da hemi-faixa direita por onde circulava, atento o seu sentido de marcha, entrando na berma direita e seguindo pela ravina abaixo existente desse lado da berma e indo embater numa árvore existente ao fundo da mesma ravina, onde o veículo ficou imobilizado.
3 Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o piso estava seco, estava nevoeiro, a estrada era alcatroada e a faixa de rodagem tinha 6,40 metros de largura.
4 A autora seguia como passageira, gratuitamente, ao lado da condutora.
5 O veículo de matrícula ...-...-BV, à data do acidente, pertencia ao réu CC.
6 O réu CC autorizou a ré BB a conduzir esse veículo, visando o transporte desta para casa, depois de uma noite de trabalho num pub/bar, “Convívio”, sito em Frazão, Paços de Ferreira, que ambos exploravam com o intuito de lucro.
7 A autora, sendo empregada dos réus CC e BB como animadora do “Convívio”, regressava a casa depois de uma noite de trabalho.
8 A ré BB estivera a trabalhar na discoteca denominada “Convívio”.
9 A ré BB não conseguiu imobilizar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, entrando na berma e seguindo por uma ravina abaixo, quando lhe apareceu um veículo em sentido contrário.
10 O condutor que circulava em sentido contrário não parou, não permitindo a sua identificação.
11 A autora foi transportada para o Hospital de Padre Américo – Vale do Sousa – e deste para o Hospital de S. João, no Porto.
12 No Hospital de S. João do Porto, foi a autora submetida, de urgência, a tratamentos, exames auxiliares de diagnóstico e análises, mormente a uma operação cirúrgica (cesariana), para remoção do feto de seu filho, que falecera em consequência do acidente e que estava morto no seu ventre.
13 Depois, foi a autora transferida de novo para o hospital de Padre Américo – Vale de Sousa, onde veio a ser objecto de tratamentos, análises e intervenções cirúrgicas à anca, às duas pernas e ao braço esquerdo.
14 Mais tarde, veio a ser novamente operada no mesmo hospital, para retirar o material de osteossíntese que havia sido implantado nas pernas.
15 A autora andou 414 dias em tratamento ambulatório, fez 64 viagens de ambulância de Paços de Ferreira ao hospital de Penafiel e vice-versa e esteve 32 dias internada no Hospital.
16 Ficou com as seguintes sequelas:
cicatriz na face externa do braço esquerdo, no seu terço superior, medindo cerca de 3 cm por 1 cm de superfície;
cicatriz na face externa da raiz da coxa direita, rectilínea, de direcção vertical, medindo cerca de 14 cm de comprimento por 0,5 cm de largura;
cicatriz na face externa do terço distal da coxa direita rectilínea, de direcção vertical, medindo cerca de 9 cm de comprimento;
cicatriz na face anterior do joelho direito, de direcção horizontal, medindo cerca de 4 cm de comprimento;
cicatriz na face externa da raiz da coxa esquerda, de direcção vertical, medindo cerca de 13 cm de comprimento;
cicatriz na face externa do terço médio da coxa esquerda, de direcção vertical, medindo cerca de 5 cm de comprimento;
cicatriz na face externa do terço distal da coxa esquerda, de direcção vertical, medindo cerca de 3,5 cm de comprimento;
cicatriz na região púbica, de direcção horizontal, medindo cerca de 11 cm de comprimento;
encurtamento aparente do membro inferior direito de cerca de 1,5 cm, quando comparado com o contra lateral, ambos medidos entre a espinha ilíaca antero-superior e o maléolo interno;
sobreponível mobilidade dos diferentes segmentos dos membros inferiores, quando comparado o direito com o esquerdo;
17 As lesões sofridas pela autora demandaram 359 dias de doença com impossibilidade total para o trabalho.
18 Teve mais 30 dias de impossibilidade para o trabalho, quando teve de remover o material de osteossíntese das pernas.
19 À data do acidente, a autora estava grávida de 9 meses, tendo, como consequência directa e necessária do mesmo, abortado e perdido o seu filho, do sexo masculino, já totalmente formado, sem deformidade e aleijão, com peso de 3,495 kg e comprimento de 0,515 metros.
20 O feto seria um rapaz do qual a autora se orgulharia, sendo o seu primeiro filho.
21 Com o óbito do filho, a autora sofreu, sofre e sofrerá toda a sua vida, dores, angústia, tristeza, falta de vontade de viver, ansiedade, vazio existencial e carência afectiva, porque não esquecerá o filho que tanto desejava.
22 O feto sofreu lesões traumáticas meníngicas que, associadas aos sinais gerais de asfixia, lhe causaram a morte, sendo que, entre a data do acidente e a morte do feto mediaram várias horas.
23 A autora trabalhava para os dois primeiros réus no “Convívio”, angariando clientes e motivando-os ao consumo, durante as 22H30M e as 4H00M, recebendo dos réus a quantia de € 20,00 por noite, ao que acrescia metade do lucro auferido pelos réus com a venda de bebidas alcoólicas aos clientes, o que era, em média, € 25,00 por dia, sendo que isto acontecia seis noites por semana.
24 A autora, como consequência directa e necessária das sequelas atrás indicadas, ficou a padecer de IPP de 10%.
25 A autora tinha conseguido aquele emprego face à sua idade, ser bem constituída, bonita, com fácil relacionamento e empatia com jovens, que eram a maioria dos clientes do “Convívio”.
26 Em virtude das lesões e sequelas atrás referidas, a autora sofreu e sofrerá ainda dores, insónias, depressão, mal-estar, tonturas, ansiedade e vergonha de si própria, não pode estar de pé, pois cansa-se rapidamente, claudicando no andar, o que envergonha e impede de sair de casa e frequentar lugares que gostaria e a que estava habituada, com a frequência usual.
27 A autora não tem namorado.
28 Em consequência do acidente, com as despesas de transportes de ambulância, a autora despendeu € 1.012,26.
29 O veículo ...-...-BV não se encontrava seguro à data dos factos.


III
Apreciando

recurso do réu FGA

A O recorrente suscita a questão de que a Relação não podia ter alterado a resposta ao quesito 11º de “não provado” para “provado”, dado que faltou o meio de prova que a lei exige para a demostração da falta de seguro.
A primeira observação a fazer é a de que aquele Tribunal não deu, pura e simplesmente, como assente a matéria constante do dito quesito, antes respondeu de forma restritiva à pergunta formulada na base instrutória – “O veículo ...-...-BC não tinha sido objecto de um seguro?” – respondendo que “O veículo ...-...-BV não se encontrava seguro à data dos factos”.
De qualquer modo, sempre se porá a questão de saber se tal alteração poderia ser feita.
Antes do mais, convirá consignar que o STJ apenas pode sindicar a matéria dado por assente pelas instâncias, quando estiver em causa a força probatória de um meio de prova, ou a necessidade legal de certo meio de prova – artº 722º nº 2 e 729º º 1 do C. P. Civil - .
No caso em apreço, fizeram as partes – autora e FGA – diversas diligências no sentido de se saber, através da seguradora, da data em que o seguro de responsabilidade respeitante ao BV, deixara de ser válido. Foi com base nas resposta obtidas que a Relação respondeu ao referido quesito.
O contrato de seguro é um contrato formal que se prova pela apólice, forma ad substantiam do mesmo contrato. No entanto, a sua resolução ou anulação pode carecer de meio de prova suplementar, pois pode não resultar daquela apólice. E, neste caso, não se impõe que esta prova dependa legalmente de certo meio de prova.
É certo que a lei estabelecia já um regime de pagamento dos prémios dos contratos de seguros, vigorando ao tempo o DL 105/94 de 23.04, o qual nos seus artºs 4º e 5º sujeitava a resolução do contrato, por falta de pagamento de prémio ao cumprimento de certas formalidades por parte da seguradora, nomeadamente, o envio de um aviso ao tomador, com a indicação da data do pagamento do prémio, designadamente a data a partir da qual o contrato seria automaticamente resolvido. Contudo, o entendimento por parte do recorrente de que o incumprimento pela seguradora da notificação para juntar o aviso implica dever concluir-se pela não existência deste, com a consequência de dever-se considerar válido e eficaz o contrato de seguro, não pode aceitar-se. Como já decidiu este Supremo, em Ac. de 01.02.05, se, perante o DL 162/84 de 18.05, antecessor do D 105/94, se poderia defender a natureza de formalidade ad substantiam do aviso de recepção, da carta registada que comunicava a suspensão da garantia decorrente do seguro, tal não é defensável no domínio deste último diploma, podendo as seguradoras demonstrar o cumprimento do ónus de envio do aviso por qualquer forma, nomeadamente por intermédio de prova testemunhal. A 2ª instância não estava, pois, vinculada a determinado meio de prova para responder ao quesito 11º.
Deste modo, é insindicável pelo STJ a convicção da Relação de que, na data do acidente, o veículo não estava coberto por seguro válido, uma vez que não ocorre nenhuma das hipóteses dos aludidos artº 722º e 729º do C. P. Civil.

B Suscita também o recorrente a questão de que o réu CC foi indevidamente absolvido.
Refere que sobre este réu impendia a obrigação de segurar o veículo, na qualidade de seu proprietário, pelo que deveria ter sido condenado nos mesmos termos em que o foram o recorrente e a ré BB e solidariamente com eles.
A decisão da Relação, na parte em que absolve um dos réus do pedido, não é objectivamente desfavorável ao FGA, já que em relação a este não afecta a sorte da demanda. Logo, essa absolvição, não prejudicando o Fundo, não lhe confere legitimidade para recorrer, conforme o artº 680º nº 1 do C. P. Civil, que só permite o recurso por parte de quem for prejudicado.
Coisa diferente se passa com o credor que vê na condenção solidária dos devedores um reforço da garantia patrimonial do seu crédito. Do lado passivo, porém, o devedor solidário, pelo facto de existir um outro devedor, não vê mitigada a sua obrigação de prestar.
Pelo que não se conhece desta pretensão do réu recorrente.

C As demais questões postas pelo FGA no seu recurso, referem-se à quantificação das indemnizações atribuídas à autora a título de danos patrimoniais futuros e por danos não patrimoniais, bem como à determinação do dies a quo na fixação dos juros moratórios.
Essas questões integram o acervo temático que delimita o recurso da autora, pelo que, sendo questões comuns a ambos os recursos, delas será feita uma análise conjunta, englobando as razões de cada um dos recorrentes.

recurso da autora

D A autora reclama uma indemnização pela perda do direito à vida do seu filho nado-morto, em consequência das lesões sofridas no ventre materno e que tiveram como causa o acidente em apreço.
A Relação negou o aludido direito, fundando-se no disposto no artº 66º do C. Civil, que determina que a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida e no facto dos direitos que a lei confere aos nascituros dependerem do seu nascimento. Assim, concluiu que, uma vez que o filho da autora morreu no seu ventre, não podia beneficiar de qualquer direito próprio, nomeadamente indemnizatório.
A indemnzação por falecimento devido a acto ilícito, a reparação do chamado direito à vida tem sido aceite pela jurisprudência deste STJ, embora os recortes jurídicos de tal direito sejam ainda polémicos. Em qualquer dos casos, porém, sempre se terá de entender que esse direito indemnizatório se reporta à morte de uma pessoa jurídica singular, pelo que, a se admitir que a personalidade jurídica só surge nos termos do citado artº 66º, então, a morte do feto não é indemnizável nestes termos, como decdiu a 2º instância. Neste sentido o Ac. STJ de 25.05.85 – RLJ 3795 185 - .
Esta posição faz parte da nossa tradição jurídica, uma vez que outra não era a posição do C. de Seabra:
artº 6º - “A capacidade judiciária adquire-se pelo nascimento; mas o indivíduo, logo que é procriado, fica debaixo da protecção da lei, e tem-se por nascido para os efeitos declarados no presente código.”
artº110º - “Só é tido por filho, para os efeitos legais, aquele de quem se prove, que nasceu com vida e com figura humana.”
artº 1.479º - “Os nascituros podem adquirir por doação, contanto que estejam concebidos ao tempo da mesma doação e nasçam com vida.”
artº 1776º - “Só podem adquirir por testamento as criaturas existentes, entre as quais é contado o embrião.
§ único. Reputa-se existente o embrião, que nasce com vida e figura humana, dentro dos trezentos dias, contados desde a morte do testador.
E é neste sentido que parecem ir Gomes Canotilho e Vital Moreira quando escrevem – Constituição nota IV ao artº 24º 175 - :
“A Constituição não garante apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas. Protege igualmente a própria vida humana, independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objectivo? É nesse sentido que aponta a redacção do nº 1. Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida humana parece abranger não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa,... a vida intra uterina. (bold e sublinhado nossos)”.
A questão terá de ser determinada em sede da jurisprudência nacional, uma vez que a posição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tal como resulta da sua decisão de 02.06.04 é a seguinte:
“No plano europeu, o Tribunal observa que a questão da natureza e do estatuto do embrião e/ou do feto, não é objecto dum consenso...apesar de se verem surgir elementos de protecção deste/destes, a propósito dos progressos científicos e das consequências futuras da pesquisa sobre as manipulações genéticas, as procriações medicamente assistidas ou das experiências com o embrião. No máximo, pode-se encontrar como denominador comum dos Estados a pertença à espécie humana; é a potencialidade deste ser e a sua capacidade em tornar-se uma pessoa, a qual é aliás protegida pelo direito civil em grande número de Estados, como em França, em matéria de sucessões ou de liberalidades, mas também no Reino Unido...que devem ser protegidas, em nome da dignidade humana, sem para isso criar “uma pessoa” que teria um “direito à vida”, no sentido do artº 2º”.
Para concluir “...o Tribunal está convencido de que não é desejável, nem mesmo possível actualmente responder em abstracto à questão de saber se a criança por nascer é uma pessoa”.
Exposto o tema deste modo, pareceria ele de fácil solução face às normas da lei ordinária. O nascituro, que como tal falecia, não teria tido personalidade jurídica, não podendo ser titular de qualquer direito, como, no caso em apreço, do direito à vida.
E No entanto, há que reconhecer a existência de correntes doutrinais que, valendo-se do nº 1 do artº 24º da Constituição, que prescreve a inviolabilidade da vida humana, arguem de inconstitucional o artº 66º. O surgimento da personalidade jurídica seria assim reconduzível ao momento da concepção.
Para Mário Emílio F. Bigotte Chorão – Estudos em Homenagem Ao Professor Doutor Soares Martinez - , a interpretação do artº 24º nº 1 feita pelo Tribunal Constitucional tem sido insatisfatória na medida em que - Acs. nºs 25/84 de 19.03.84 e 85/85 de 29.05.85 - , entende que “a vida pré-natal é protegida, não a título de direito subjectivo do nascituro, que carece de personalidade jurídica, mas como mero valor ou bem objectivo...que o legislador ordinário pode subpor a certos direitos ou interesses constitucionalmente tutelados (vida, saúde, dignidade e liberdade da mulher, qualidade de vida, paternidade e e maternidade conscientes).”
Refere ainda que “Neste debate, só raramente se situa o problema da identidade do embrião num plano supralegal e de fundamentação metafísica.”
E conclui: “Na negação da personalidade jurídica ao conceptus repercutem-se profundamente diversos factores: os preconceitos legalistas e positivistas presentes na codificação e na dogmática jurídica dos dois últimos séculos; a concepçãp normativo-kelseniana; a chamada “cultura da morte” muito influente muito influente nos meios da Esquerda tradicional, comunista e socialista, e em certa mentalidade do radicalismo liberal, como se acaba de ver, uma vez mais, na recente polémica em Portugal, sobre a liberalização do aborto.”
Contrapõe a adopção de um conceito de personalidade jurídica singular fundado no conceito natural ou ontológico de pessoa humana (ubi persona naturalis, ibi persona iuridica), reconhecendo-a como qualidade inata e direito natural do homem.
Para Pedro Pais de Vasconcelos – Teoria Geral do Direito Civil 2007 73 – “O nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.
A protecção jurídica que a lei lhe dá não é apenas objectiva. Se o fosse, o seu estatuto não seria diferente daquele que é próprio das coisas ou animais especialmente protegidos...O nascituro não é, pois, objecto do direito. Como pessoa humana viva, o nascituro é pessoa jurídica. A sua qualidade pessoal impõe-se ao Direito, que não tem o poder de negar a verdade da pessoalidade, da hominidade, da humanidade do nascituro. Não pode, pois, deixar de ser reconhecido, pelo Direito, ao nascituro a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a personalidade jurídica.(sublinhado nosso).
Acaba por preconizar uma interpretação do artº 66º no sentido de se referir apenas à capacidade de gozo.
Para Menezes Cordeiro existe um direito à vida do nascituro, referindo que as razões que, conforme o artº 24º da Constituição, justificam o direito à vida das pessoas em geral, são as mesmas que devem fundamentar o direito à vida do nascituro.

F Quid juris?
Sublinhámos uma afirmação de Pedro Pais de Vasconcelos, por entendermos que contém ela uma indicação metodológica relevante. Diz aquele ilustre Professor que a qualidade pessoal do nascituro impõe-se ao Direito, que não tem o poder de a negar. Concordamos que o Direito está submetido a realidades sociais ou naturais básicas que aquele não pode afastar e que é em conformidade com elas que pode ser erguido o ordenamento jurídico.
Vejamos, por isso, qual é o ordenamento natural em que todas estas ideias se forjam.
Sobre a origem da dignidade humana é posível descortinar duas teses principais. A espirtualista de inspiração cristã e a laica ou social assente no conceito de cidadania.
Para a primeira o homem tem uma essência espiritual, presente desde o momento da concepção, pelo que é impossível não reconhecer a existência de uma pessoa, em toda a sua dignidade a partir desse momento.
Para a segunda, agnóstica quanto à fundamentação metafísica da primeira, a dignidade humana deriva do facto de todos os homens e mulheres serem por igual livres e fraternos, pelo que a personalidade só pode existir quando surje um novo centro de imputação de valores viável e autónomo, como todos os outros, um novo cidadão ou cidadã ou seja, quando ocorre o nascimento. É a partir daí que a dignidade da cidadania se impõe. E, consequentemente, a personalidade. Um nascituro não é certamente apenas uma víscera de sua mãe, mas também não é, de acordo com a lei natural – a lei da natureza – um ente verdadeiramente individualizado, que possa ser considerado um igual das restantes pessoas e a quem possam ser atribuídos os direitos de que estas podem ser titulares.
E numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica não vemos como não possa deixar de prevalecer no campo dos valores esta última tese. E que deve, por essa razão, ser a adoptada pelo Direito. É esta concepção que informa a tradição jurídica dos dois últimos séculos e que está mais bem preparada para enfrentar os problemas éticos que o desenvolvimento da engenharia biológica coloca. Porque capaz de admitir que eventualmente se possam sobrepor outros valores àquele que o feto sempre representará. Compreendemos a angústia dos defensores da tese espirtualista, ao terem de assumir a defesa da personalidade e espiritualidade de um embrião manipulado geneticamente, congelado, ou duplicado. Mas o problema é metafísico não social.
A vida uterina é preciosa, deve ser defendida como promessa de um ser humano e nessa medida está abrangida pela norma do nº 1 do artº 24º da Constituição. Mas nos termos da citação de Gomes Canotilho e Vital Moreira atrás consignada, de vida ainda não integrada numa pessoa. E, salvo o devido respeito, é redutor dizer que esta protecção “objectiva” da vida uterina é equiparável à protecção em especial de certas coisas ou animais, como faz Pedro Pais de Vasconcelos. Talvez haja maior afeição por um feto, quando se o considera simplesmente na sua real potencialidade biológia e humana, do que quando se lhe atribui em abstracto pretensos direitos e faculdades, que o tornam refém de ideologias e princípios, que, historicamente, nem sempre se terão traduzido na melhor defesa dos reais interesses do nascituro. Como nos casos doutrinalmente designados por wrong birth, ou seja, quando em nome dessa humanidade do feto não se podia impedir que viessem ao mundo seres doentes e condenados ao sofrimento.
Sublinhe-se que não se trata de uma visão ideológica ou parcelar, porque unicamente se funda nos valores basilares que devem fundar um Estado de Direito, à luz do que pensa e sente, actualmente, a comunidade dos cidadãos.
Antunes Varela – Estudos Em Homenagem cit. 633 - defende-a do seguinte modo: “Ora, a preferência da lei portuguesa (artº 66º nº 1), da lei alemã (artº 1º do Cód. Civil alemão) e da generalidade das legislações, pelo momento do nascimento com vida (em detrimento do instante da concepção, na evolução do embrião humano), não pode considerar-se uma opção arbitrária, nem antinatural ou artificial do legislador, como pretende Ernst Wolf, por três razões fundamentais:
a) por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento, em contraste com o secretismo natural e social da concepção do embrião;
b) embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da pessoa, no fenómeno continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais do ser humano (a consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do indivíduo do que da fecundação do óvulo no seio materno;
c) olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, compreende-se perfeitamente que seja o nascimento, como momento culminante da autonomização fisiológica perante o organismo da mãe, o marco cravado na lei para o reconhecimento da personaldade do filho.

É a partir desse momento que surge compreensivelmente aos olhos da lei um novo sujeito de direito, um novo centro de imputação dos valores fundamentais que integram a imensa dignidade da pessoa humana.

Temos assim que a fixação pelo artº 66º nº 1 do C. Civil da personalidade jurídica singular com o nascimento não é incompatível com o comando do artº 24º nº 1 da Constituição, uma vez que este preceito, ao considerar a vida humana inviolável, está a impor a protecção genérica da gestação humana, sem considerar o nascituro como um centro autónomo de direitos.

G No caso dos autos é impossível, por tudo o que fica exposto, reconhecer ao filho da autora um direito à vida susceptível de ser indemnizado, uma vez que faleceu ainda antes de adquirir a qualidade de pessoa jurídica, não podendo, assim, ser titular de qualquer direito.
O dano morte em causa é indemnizável, mas em sede de reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela recorrente. Esta questão foi versada no acórdão da Relação, mas não foi levantada pela autora no presente recurso, pelo que dela não se pode conhecer, para efeitos do eventual aumento da quantia fixada pela Relação. Será adiante tratada, mas apenas ao apreciar a pretensão do réu recorrente de que deveria ser reduzida.
Pede igualmente a autora uma indemnização pelo sofrimento do feto entre a ocorrência da lesão e a sua morte.
Para além de ser impossível atribuir àquele um direito à reparação por carecer de personalidade jurídica, conforme atrás consignado, segue-se que nem tal sofrimento se encontra demonstrado na matéria de facto assente - cf. ponto 22 dos factos assentes -.

H Outra questão, comum a ambos os recursos, é a do montante do dano patrimonial futuro.
A autora pugna por um montante de € 150.000,00, o Tribunal da Relação fixou-o em € 100.000,00 e o réu FGA pretende a sua fixação em € 40.000,00.
A orientação jurisprudencial dominante nesta matéria é a de que a reparação do dano futuro que decorre da incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado irá deixar de auferir, mas que se extinga no final do período da vida provável do lesado. Para alguns apenas o final da sua vida activa. Temos para nós que se deve atender ao decurso de toda a sua vida, uma vez que durante toda ela poderia o mesmo lesado gerar rendimentos.Trata-se de um difícil prognóstico, pois assente em bases pouco seguras. Recorde-se que sendo reparáveis os danos em concreto, no caso do dano futuro será reparável aquele que se mostre provável e não meramente possível. Desta forma, a jurisprudência vem acentuando que o legítimo recurso a tabelas matemáticas ou a critérios financeiros deve ser moderado ou corrigido pelos critérios do bom senso que só a equidade pode fornecer.
E no caso concreto é flagrante que as tabelas não podem ser aplicadas. A actividade profissional da autora, de “alterne”, como vem provado é uma actividade que não podereria ultrapassar no máximo duas décadas. Por outro lado, há que reconhecer que ficou totalmente impedida de a exercer. Com efeito, tendo conseguido o dito emprego, como se demonstrou, devido ao seu bom aspecto e à capacidade de relacionamento – ponto 25 dos factos assentes – dificilmente poderá mantê-lo, quando passou a ser pessoa depressiva, sofrendo de mal estar e tonturas, não podendo estar de pé muito tempo e claudicando no andar – ponto 26 - . É também relevante o facto de ter apenas 20 anos, pelo que as perdas económicas reportar-se-ão a muitas décadas, sendo um elemento negativo na angariação de rendimentos a IPP de 10% de que ficou a padecer.
Tudo ponderado, julga-se equilibrada a indemnização arbitrada em 2ª instância de € 100.000,00 que se mantém.
Com o que se desatendem as pretensões de ambos os recorrentes.

I Quanto aos danos não patrimoniais, a autora, não pondo em causa a indemnização que lhe foi arbitrada no tribunal recorrido - € 10.000,00 pelo desgosto moral com a perda do filho e € 20.000,00 pelos sofrimentos físicos e morais que padeceu e continuará a padecer – pretende, agora, que lhe seja acrescentada uma outra quantia indemnizatória “autónoma” no valor de € 45.000,00, referente ao dano estético de afirmação pessoal e sexual. O FGA defende que as quantias fixadas sejam reduzidas para, respectivamente, € 5.000,00 e € 10.000,00.
Este pedido pedido nunca antes fora autonomizado pela autora – nem na petição inicial e no pedido aí formulado, nem no recurso para a Relação – . Por isso, dele não tratou, nem o podia fazer, o tribunal de 2ª instância. Logo, a questão configura-se como questão nova de que se não pode conhecer. Aliás, tendo a Relação considerado o dano estético para efeitos de arbitrar a citada quantia de € 20.000,00 e não tendo a recorrente impugnado essa quantia, haveria uma duplicação, se se tivesse de calcular mais uma outra reparação para tal dano.
Quanto à pretensão do réu recorrente de que aqueles dois montantes das indemnizações por danos não patrimoniais sejam reduzidos para metade, não vemos que lhe assista razão: a perda de um bebé de termo deve ser equiparada, em termos de dor materna à perda de uma criança; a dor duma jovem de 20 anos que vê a sua mocidade seriamente abalada em termos de aparência, saúde física e bem estar psicológico tem de se considerar muito séria.
Nestes termos, improcedem ambos os recursos no que respeita à indemnização por danos não patrimoniais.

J Finalmente, colocam os recorrentes a questão do momento a partir do qual se vencerão os juros moratórios.
De acordo o o nº 3 do artº 805º do C. Civil, nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou risco, a regra é a de que o devedor se constitui em mora desde a citação.
Trata-se de normativo que visou compensar a demora na fixação das indemnizações, com a consequente desvalorização monetária, tendo em conta que, tratando-se de obrigações ilíquidas, a mora só podereria existir a partir da decisão. Tudo isto ocorreu, quando a jurisprudência ainda não tinha admitido o princípio da actualização do montante do dano liquidado.
No entanto, se o juiz procede a essa actualização, a concessão de juros moratórios desde a citação, significará uma duplicação no ressarcimento, o que contraria o critério da diferença do artº 566º nº 2.
Assim, em casos em que, pela via da actualização, seja concedida a reparação integral dos danos até à decisão actualizadora, a aplicação literal do nº 3 do artº 805º terá de ser afastada.
Este entendimento foi consagrado por acórdão uniformizador deste Supremo – 4/2000, de 09.05.02, DR I Série-A de 27.06.02 – que estabeleceu a seguinte norma interpretativa:
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artigo 566º do Código civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artºs. 805º nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º nº 1 também do Código Civil,a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação.
No caso em apreço, nada foi dito na primeira decisão condenatória – a da Relação – sobre o conteúdo a actualização das indemnizações.
De qualquer modo, estranho seria que, sendo os montantes dos danos futuros e dos não patrimonias fixados com o recurso à equidade, o julgador não tivesse feito apelo a critérios actuais.
Acresce que a confirmação por este STJ dos valores determinados em 2ª instância dependeu de um critério actualizado.
O que tudo nos leva a ter de considerar como tendo sido feita a actualização desses montantes na decisão em causa.
Deste modo, os juros sobre as quantias respeitantes aos danos futuros e aos danos não patrimoniais seriam apenas devidos a partir da data do acórdão impugnado. Contudo, como o recorrente FGA pediu que sejam contados a partir da decisão em 1ª instância e não sendo possível a reformatio in melius – artº 864º nº4 do C. P. Civil - , é a partir de tal sentença que se fixam tais juros.
Já quanto aos € 31.972,56 de danos patrimoniais, que correspondem a valores respeitantes a perdas remuneratórias e a despesas com os tratamentos, que não foram actualizados, os juros moratórios são de contar a partir da citação.

Termos em que se julga parcialmente procedente o recurso do FGA e improcedente o recurso da autora e, em consequência:

Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de € 130.000,00 a partir da citação, determinando que tais juros se vençam a partir da sentença de 1ª instância, no mais confirmando o mesmo acórdão.

Custas pelas partes na proporção do decaimento.

Lisboa, 9 de Outubro de 2008

Bettencourt de Faria (Relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos
João Bernardo
Santos Bernardino (com voto de vencido)

_________________________

VOTO DE VENCIDO:

No projecto de acórdão que, como relator, oportunamente elaborei, defendi soluções diferentes para algumas das questões suscitadas nos recursos, relativamente às quais fiquei vencido, mas não convencido.
Assim:

A) Quanto à indemnização, peticionada pela recorrente, pela perda do direito à vida do filho, nado-morto, continuo a defender o que então escrevi (e que, apesar da sua extensão, terei de reproduzir na sua integralidade, para que resulte compreensível o meu entendimento).
Eis o que constava do projecto de acórdão:

Reclama, antes de mais, a autora/recorrente indemnização pela perda do direito à vida do seu filho, nado-morto em consequência das lesões sofridas no ventre materno, produzidas pelo acidente.
Direito que a Relação lhe negou, fundada no disposto no art. 66º do Código Civil (CC): a personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida, e os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento; “e uma vez que o filho da autora estava já morto no seu ventre, não beneficia de qualquer direito próprio, nomeadamente indemnizatório”.
A questão, convenhamos, não é de fácil solução.
A solução adoptada pela Relação é a defendida por uma parte significativa da doutrina portuguesa – que integra nomes como MOTA PINTO, CASTRO MENDES, P. LIMA/A. VARELA, DIAS MARQUES, CARVALHO FERNANDES e EWALD HÖRSTER – que, sensível ao teor literal do art. 66º, nega a personalidade jurídica ao nascituro.
Apenas quando venha a nascer com vida pode adquirir direitos, v.g., os direitos atribuídos, antes do nascimento, por herança ou doação.
Não deixa, porém, de assinalar-se que alguns desses autores admitem, fora dos casos expressamente previstos, em que a lei – designadamente o CC, em matéria de doações ou sucessões, ou de perfilhação – reconhece direitos aos nascituros, que estes possam ser indemnizados, após o nascimento, por danos físicos ou psíquicos sofridos no ventre materno, exercendo o respectivo direito por intermédio dos seus representantes (1)
Esta posição doutrinária, denegatória da personalidade jurídica do nascituro, começa, porém, a ser posta em causa por uma igualmente forte corrente doutrinal, que defende, com maior ou menor ênfase, a personalidade jurídica do nascituro já concebido. Nomes como LEITE DE CAMPOS, OLIVEIRA ASCENSÃO, MENEZES CORDEIRO, PAULO OTERO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS surgem como arautos deste novo entendimento.
Particularmente impressiva é a posição deste último Professor, que, de adepto da construção tradicional acima referida, surge agora como convicto defensor da tese de que a personalidade tem início na concepção.
Para PAIS DE VASCONCELOS (2), é com a concepção que se inicia a vida humana, de que o nascimento é apenas mais uma etapa. Tendo vida e substância humana desde a concepção, o nascituro tem a qualidade de pessoa humana. A personalidade é uma qualidade – é a qualidade de ser pessoa. Não é algo que possa ser atribuído ou recusado pelo Direito, é um dado extrajurídico que se impõe ao Direito, que este se limita a respeitar ou a constatar, algo que se situa fora do alcance do poder de conformação social do legislador.
O nascituro é um ser humano vivo, com toda a dignidade própria da pessoa humana. A protecção jurídica que a lei lhe confere não é apenas objectiva – o nascituro não é objecto do direito, não é uma coisa especialmente protegida. Como pessoa humana viva, é pessoa jurídica: o Direito não pode deixar de lhe reconhecer a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a personalidade jurídica.
É inegável, pois, a personalidade jurídica do nascituro desde a sua concepção.
O art. 66º do CC deve, segundo este autor, ser entendido como referido à capacidade de gozo e não propriamente à personalidade jurídica.
Não obstante tudo quanto vem referido, PAIS DE VASCONCELOS acaba por concluir que o nascituro, se não chegar a nascer com vida, é havido pela lei – pelo n.º 2 do mencionado art. 66º – como não tendo chegado a existir. Os direitos de personalidade de que era titular, enquanto pessoa pré-nascida – o direito a viver, o direito à integridade física e outros – extinguem-se com a extinção da personalidade.
Não deixa, porém, de reconhecer, noutro lugar, que a solução da desconsideração da vida de quem morreu antes do nascimento pode ser contestada no domínio dos princípios (3) .
O Prof. MENEZES CORDEIRO, por seu turno, conclui também pela existência do direito à vida do nascituro, afirmando mesmo que o reconhecimento desse direito é praticamente pacífico.
O art. 24º da Constituição constitui, para este autor, a base jurídico-positiva do aludido direito. “As razões últimas que justificam o direito à vida do nascituro são precisamente as que depõem a favor do direito à vida das pessoas em geral” (4) .
E acrescenta que, reconhecido, civilmente, este direito, não oferece dúvidas extrapolar o direito do nascituro à integridade física e moral, sendo indemnizáveis os danos causados ao próprio nascituro (5) ..
O atentado à integridade do nascituro é, assim, um acto civilmente ilícito.
Se dele resulta lesão não letal, o próprio nascituro tem direito a ser indemnizado, após o nascimento – direito que, resultando da lesão uma deficiência permanente, deverá abranger os alimentos necessários, devidamente reforçados, ao longo da vida.
E se da lesão resultar a morte do nascituro?
Antes do nascimento – diz M. Cordeiro – o nascituro tem uma capacidade de gozo limitada ao direito à vida. A sua morte dará lugar a direitos à indemnização por danos morais, funcionando o art. 496º do CC. Além disso, todos os danos patrimoniais provocados aos pais do nascituro deverão ser ressarcidos. Quanto ao nascituro em si: o direito à indemnização do próprio não se constitui.

A questão que nos ocupa pode, porém, ser enfocada de uma outra perspectiva.
Trata-se de saber – não se o nascituro tem ou não personalidade jurídica, se é sujeito de direitos – mas se, e em que medida, ele é, na sua personalidade física e moral, objecto de protecção jurídica.
Ora, a este respeito, logo o n.º 1 do art. 24º da Constituição consagra a inviolabilidade da vida humana.
E não parece haver dúvidas que existe vida humana no nascituro concebido: biologicamente, ele é um ser humano. A ciência contemporânea afirma que a criança concebida é um ser humano, capaz de sensações e sentimentos, um ser que, embora funcionalmente dependa da mãe, é dotado de uma estrutura autónoma.
A vida humana inicia-se com a concepção: “(d)aí em diante, o nascituro desenvolve-se de um modo progressivo e ininterrupto, sem patamares nítidos. O nascimento é apenas mais um facto relevante na vida da pessoa. Não há grande diferença entre a véspera do nascimento e o dia seguinte” (6) .
O preceito constitucional citado não distingue a vida humana extra-uterina da uterina, pelo que deverá considerar-se a vida do nascituro – o ser do nascituro, na linguagem de CAPELO DE SOUSA – como um bem juridicamente protegido, a nível das garantias constitucionais (7)
Mas não só a nível constitucional colhe protecção o bem jurídico «vida» do nascituro. A norma constitucional indicada tem também eficácia civil, no âmbito das relações entre os particulares, atenta a força jurídica que o n.º 1 do art. 18º do diploma constitucional confere aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (entre os quais se conta o direito à vida), direitos estes que (n.º 2 do mesmo preceito) a lei só pode restringir nos casos expressamente previstos na Constituição, e apenas na medida do necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
A tutela da personalidade física e moral do nascituro, particularmente vincada no domínio penal – onde se prevêem e sancionam crimes contra a vida intra-uterina e se faz uma enunciação taxativa e restritiva das condições e situações interruptivas da gravidez que excluem a ilicitude do aborto – não deixa de marcar presença no CC, quer concretizada em disposições esparsas (v.g., no art. 1878º/1 – que integra no conteúdo do poder paternal dos pais a representação do nascituro; no art. 1826º/1 – presunção de paternidade relativamente ao filho concebido na constância do matrimónio; nos arts. 1854º e 1855º – perfilhação de nascituro), quer em termos genéricos, no art. 70º, cujo n.º 1 – A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita (...) à sua personalidade física ou moral – não pode deixar de entender-se, até pela sua expressão literal (na sua referência a «indivíduos» e à «personalidade física ou moral»), como abrangendo os nascituros concebidos (8) .
E não vale argumentar em contrário com o disposto no n.º 2 do art. 66º do CC – designadamente com o facto de aí se prever que os direitos que a lei reconhece aos nascituros estão dependentes do seu nascimento.
Como refere R. CAPELO DE SOUSA, na sua obra já citada, que aqui vimos seguindo de perto, se é a própria lei que aí admite reconhecer direitos – sujeitos embora a condição legal – aos próprios nascituros, “isso até justifica a concepção de uma qualquer parcial personificação jurídica dos nascituros, sobretudo se concebidos”. De todo o modo, o que o art. 66º prevê é o começo da personalidade jurídica plena; e, como acima deixámos dito, na esteira do mesmo autor, não é da questão da personalidade do nascituro – da titularidade subjectiva dos direitos que respeitam à tutela dos interesses do nascituro – que agora curamos, “mas apenas de saber se a nossa lei previu a tutela, como bem jurídico, da personalidade física e moral do nascituro” [aí incluído o seu direito à vida], questão a que, face aos normativos acima citados, considerados na unidade do sistema jurídico, parece dever responder-se afirmativamente.
Na verdade, mesmo que se aceite que, face ao art. 66º já citado, o nascituro concebido não tem personalidade jurídica plena, ele é, para efeitos do art. 70º, um ser humano, que, mesmo antes de nascer e após a conformação dos diversos órgãos, “tem movimentos, ouve, vê, sente, dorme e sonha”, é “uma criança em gestação” (9) , que tem direito ao respeito e ao desenvolvimento geral da sua personalidade física e moral e, consequentemente, a não ser ofendido ou ameaçado na sua vida e na sua saúde – só sendo possível uma protecção jurídica eficaz e completa dessa personalidade do concebido através da tutela geral conferida por este último preceito, reputando a vida intra-uterina como um bem jurídico autónomo.
E assim, de acordo com o n.º 2 do mesmo art. 70º, as ofensas ou as simples ameaças de ofensa à personalidade física ou moral do nascituro podem ser combatidas através do pedido das providências adequadas às circunstâncias do caso, formulado em procedimento especial previsto nos arts. 1474º e 1475º do CPC; e podem gerar, nos termos da 1ª parte do mesmo preceito, responsabilidade civil, desde que delas tenham resultado danos na personalidade do nascituro e se verifiquem os demais pressupostos, dando lugar, em tais casos, a obrigações de indemnização. Desde logo, “é tutelável a vida do nascituro concebido, sendo ilícito e indemnizável o aniquilamento da sua vida, fora dos casos admitidos taxativamente de interrupção de gravidez fundada em justa e tempestiva indicação legal” (10).
A morte do nascituro confere, pois, direito de indemnização, desde que verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito (ou pelo risco).
Está em causa a indemnização por um dano não patrimonial, sendo aplicável o disposto no art. 496º do CC.
Por isso, no caso em apreço, a autora recorrente tem direito a reclamar indemnização, não apenas pelo dano não patrimonial consubstanciado no desgosto, angústia e tristeza que sofreu pela perda do filho – indemnização que, aliás, lhe foi concedida e que, mais adiante, voltaremos a examinar – mas também pelo dano da supressão da vida daquele.
O que está aqui em causa – reafirma-se mais uma vez – é, não a questão da titularidade subjectiva dos direitos respeitantes à tutela do nascituro, não, pois, a aplicação do n.º 2 do art. 66º do CC, mas a tutela do bem jurídico da vida intra-uterina; e este bem jurídico é claramente distinto dos bens jurídicos da afectividade e da espiritualidade dos pais para com os seus filhos concebidos e do inerente sofrimento moral e psíquico pela lesão destes bens.
O n.º 2 do art. 496º do CC, na sua referência inicial («Por morte da vítima»), inclui, não só na letra, sim também no seu espírito, a morte do ser humano concebido.
Por isso, este dano – o dano da supressão da vida do filho nascituro da autora recorrente – é um dano directa e autonomamente indemnizável. Só por esta via o ordenamento jurídico assume totalmente a jurisdicionalização do mais importante dos bens jurídicos, o bem «vida».
A assim não ser entendido – e a ter-se por certo que naquele n.º 2 (e no subsequente n.º 3), o legislador apenas previu a morte do ser humano nascido e com vida – estaríamos perante uma lacuna da lei, um caso omisso: a ausência de regulamentação jurídica para a situação de ofensa, ilícita e culposa ou objectiva, do bem jurídico da vida intra-uterina.
É o que sustenta CAPELO DE SOUSA, no comentário, discordante, que faz ao acórdão deste Supremo Tribunal, de 25.05.85 (11) , que, numa situação de facto em tudo idêntica à que é objecto dos presentes autos, entendeu não ser devida aos pais indemnização pela supressão da vida do feto.
E então, “por integração (art. 10º CC), aplicar-se-iam a essa hipótese os n.os 2 e 3 do art. 496º CC, por no caso omisso procederem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. Com efeito, não pode ter-se como irrelevante, em termos de responsabilidade civil, uma ofensa, ilícita e culposa ou baseada no risco, do bem jurídico da vida intra-uterina; o direito à respectiva indemnização deverá caber às pessoas referidas no n.º 2 do art. 496º, também elas numa proximidade afectiva maior com o concebido; o montante da indemnização deverá ser fixado equitativamente e devem ser compensados não só a supressão da vida intra-uterina sofrida pelo concebido mas também os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares referidos no n.º 2 do art. 496º CC, na sua esfera pessoal” (12).
Por qualquer uma das duas vias consideradas, a indemnização do dano não patrimonial da supressão da vida do nascituro – no caso, do filho nascituro da autora – sempre terá lugar.
Seria, ademais, estranho e contraditório que fossem indemnizáveis os danos à integridade física do concebido, quando este venha a nascer com vida – o que a generalidade da doutrina e a mais recente jurisprudência vêm afirmando sem reservas – e não o fosse o dano da sua morte, “pois então seria premiado o assassino mais eficaz que causasse a morte do concebido, face ao agressor que tão só lhe produzisse danos corporais. (13) .”
Se, por força da gravidade das lesões, o concebido morre no ventre materno, não há lugar a indemnização; se, por lesões menos graves, resiste â morte, e vem a nascer com vida, morrendo uma hora (ou mesmo uns minutos!) depois, em consequência das lesões sofridas antes do nascimento, já haverá lugar a indemnização.
Só por puro preconceito se pode justificar esta diferença de tratamento.
O art. 66º do CC, já o dissemos, não é – não deve ser – para aqui chamado.
De todo o modo, a interpretação que de tal normativo foi feita no acórdão recorrido – e a que já se fez expressa referência – negando a tutela jurídica da vida do nascituro, é inconstitucional, porque violadora do disposto no art. 24º da Constituição, pelo que sempre seria de rejeitar.
No direito português – escreve DIOGO LEITE DE CAMPOS (14) – “o direito à vida («naturalmente» desde a concepção) está consagrado na Constituição da República, no número 1 do artigo 24º”.
E outro autor acrescenta:
“O artigo 66º padece de demasiadas anomalias para dele se retirar, em definitivo, um comando sobre o início da personalidade. Prudente será deixar a questão em aberto, bastando-nos o artigo 24º da Constituição sobre a inviolabilidade da vida humana” (15) .
Há mesmo quem defenda que o n.º 1 do art. 66º foi revogado pelo artigo 24º/1 da Constituição (16) – norma que, como se sabe, lhe é temporalmente posterior.
“As normas contidas na maioria das legislações que vinculam o início da personalidade ao nascimento, estão, portanto, naturalmente gastas e ultrapassadas” (17) .
“O artigo 66º do Código Civil, para ser compatível com a Constituição, com as coordenadas axiológicas do sistema e com a natureza das coisas, tem de ser interpretado como referido, não à personalidade jurídica, cuja existência, início e termo são extra e supra legais, mas antes à capacidade jurídica, como fazia o seu antecessor artigo 6º do Código Civil de 1867 e o § 1 do BGB” (18) .
De tudo decorre – repete-se – a existência, no caso vertente, do direito da recorrente a ser indemnizada pelo dano da supressão da vida do nascituro seu filho, direito que flui do disposto no n.º 2 do art. 496º do CC, como também já se deixou assinalado (19) .
Importa, pois, fixar o valor da indemnização ou da reparação por este dano.
No dizer de DIOGO LEITE CAMPOS, o direito à vida é um direito «ao respeito» da vida perante as outras pessoas. É um direito «excludendi alios» e, só nesta medida, é um direito. É um direito a exigir um comportamento negativo dos outros. Atentar contra o direito ao respeito da vida produz um dano – a morte – superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica.
O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros (20).
O montante da indemnização – que cabe à recorrente, não por via sucessória, mas por direito próprio, nos termos do preceito ultimamente citado – deve ser calculado segundo critérios de equidade (art. 496º/3 do CC).
Para LEITE DE CAMPOS, o dano da morte é um dano não mensurável, pois não pode comparar-se a vida com qualquer outro bem cujo valor seja conhecido e que possa constituir a sua contrapartida. O valor da vida é, por outro lado, igual para todas as pessoas, pelo que a indemnização não deve aferir-se pelo custo da vida humana para a sociedade ou para os parentes da vítima, nem pelo seu valor para a sociedade e para os que dependem da vítima, mas sim pelo valor da vida para a vítima enquanto ser. O prejuízo é o mesmo para todos os homens: logo, a indemnização deve ser a mesma para todos (21).
É claro que este entendimento de LEITE DE CAMPOS, de aceitar em termos gerais, carece de uma certa precisão.
O simples facto de o art. 496º mandar atender, em qualquer caso, às circunstâncias referidas no art. 494º, é bastante para mostrar que a indemnização pelo dano da morte não tem um valor fixo, não tem de ser igual em todos os casos e para todas as pessoas.
Tal entendimento é, todavia, tendencialmente correcto: a ideia-força, o ponto de partida para a determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida, deve ser o de que aquilo que importa ter em conta é a própria vida em si, como bem supremo, base de todos os demais e igual para todas as pessoas – o que vem na linha do pensamento de LEITE DE CAMPOS e parece igualmente ressaltar de recente acórdão deste Tribunal (22) – funcionando as circunstâncias referidas no art. 494º do CC como factores de correcção, para melhor adequação da indemnização às particularidades do caso concreto, devendo, designadamente, na valoração “(d)as demais circunstâncias do caso”, ponderar-se que a vida humana intra-uterina é uma vida em gestação, dependente, até ao termo desta, do organismo da mãe.
Quer-se com isto dizer que, se biologicamente o nascituro é um ser humano, uma criança em formação, sociologicamente parece ainda não o ser em medida igual à de um ente já formado, a uma criança já em vida de relação, o que justificará uma diferente valoração do direito à vida de um e de outro ser.
No caso em análise, a vida que se perdeu foi a de um ser do sexo masculino, no termo da gestação, já totalmente formado e saudável, prestes a deixar o ventre materno e fazer a sua entrada no mundo exterior.
Tendo em conta os padrões de indemnização que, na valoração deste dano, este Supremo Tribunal tem acolhido nas suas mais recentes decisões dano (23) , fixando a sua indemnização em valores que rondam os € 50.000,00, considera-se, para o caso em apreço, que as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida justificam a fixação da indemnização em € 40.000,00.

B) Quanto à indemnização atribuída à autora pelo dano patrimonial futuro, fixado pela Relação em € 100.000,00, e que aquela pretendia fosse fixada, por este Supremo Tribunal, em € 150.000,00, ao contrário do FGA, que entendia ajustada a sua fixação em € 40.000,00:

A tese que fez vencimento, neste Supremo Tribunal, entendeu equilibrada a indemnização arbitrada em 2ª instância, e, por isso, manteve o fixado montante de € 100.000,00.
Com o respeito – que é elevado e merecido – a tal entendimento, dele discordo em absoluto.
É claro que não é tarefa fácil a fixação da indemnização relativa aos danos futuros.
Vários são os critérios que têm sido experimentados para determinar essa indemnização, sendo que, ultimamente, a nossa jurisprudência vem mostrando preferência e dando acolhimento àquele que repousa na ideia de que a indemnização do dano futuro decorrente de incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado irá deixar de auferir, mas que se extinga no final do período provável de vida activa, ou seja, um capital que se esgote no fim da vida activa provável da vítima e que seja susceptível de garantir, ao longo desse período, as prestações periódicas correspondentes ao rendimento perdido (24) .
Tal critério cumpre, mas só tendencialmente, o princípio geral válido em matéria de obrigação de indemnização: reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º). Por isso, os seus resultados não podem ser aceites de forma abstracta e mecânica, devendo ser temperados por juízos de equidade (cf. art. 566º/3) – que assentem na idade e tempo provável de vida da vítima, na actividade profissional por esta desenvolvida e no tempo provável da sua duração, nas suas condições de saúde ao tempo do evento, na flutuação futura do valor do dinheiro, etc. – sempre que se mostrarem desajustados relativamente ao caso concreto.
A equidade funciona, pois, como elemento de correcção do resultado que se atinja a partir do aludido critério (ou de outro que, v.g., recorra a tabelas matemáticas e financeiras para o cálculo do dano futuro).
No que concerne à idade que, em tal critério, deve ser considerada como limite da vida activa, tem-se assistido, nos últimos anos, a uma evolução da jurisprudência deste Supremo Tribunal, que, até há pouco tempo, vinha entendendo, relativamente aos trabalhadores por conta de outrem, ser a de 65 anos a idade a ter em conta, por ser essa a que, em condições de normalidade e de previsibilidade, lhes conferiria o direito à reforma e à correspondente pensão.
A situação tende, porém, a alterar-se, em consequência até da muito falada “insustentabilidade do regime da Segurança Social”, que parece perspectivar e exigir um aumento progressivo da idade de aquisição do direito à pensão de reforma, não podendo também olvidar-se o progressivo aumento do tempo médio de vida dos portugueses e o consequente prolongamento, para além dos 65 anos, da sua vida activa.
E, por isso, sensível a essa realidade, a mais recente jurisprudência deste Tribunal (25) vem aceitando como adequado ponderar como limite da vida activa, até ao qual deve ser compensada a perda ou diminuição da capacidade de ganho, a idade de 70 anos.
Todavia, a questão tem, no caso concreto em apreço, particularidades que a afastam das questões de idêntica natureza normalmente trazidas à apreciação dos tribunais.
É que a actividade profissional da autora – trabalhava num Pub/Bar, desempenhando tarefas que, como refere o acórdão recorrido, são conhecidas como de “alterne” – é daquelas em que é, de todo, despropositado supor que possam ser desempenhadas até aos 70 ou até aos 65 anos de idade, cessando inelutavelmente quando o viço da mocidade e a frescura física tornam menos apelativos os serviços das profissionais que a desempenham – o que, em termos de normalidade, não ultrapassa os 35 anos de idade. Está, aliás, provado que “a autora tinha conseguido aquele emprego face à sua idade, ser bem constituída, bonita, com fácil relacionamento e empatia com jovens, que eram a maioria dos clientes” do estabelecimento.
Os critérios e as tabelas usuais não se ajustam, neste caso, ao cálculo da indemnização, relevando aqui, preponderantemente, o juízo de equidade.
Por isso, a Relação pondera, com manifesto acerto, que
Considerando a actividade exercida não é razoável supor que a autora, ao longo da sua vida (até aos 65 anos de idade/esperança média de vida activa), iria ganhar sempre o salário que ganhava à data do acidente.
Considerando a imprevisibilidade dos factores a atender na fixação média salarial, daqui a largos anos, neste tipo de actividade, comummente conhecida como “alternadeira”, onde o “curso normal das coisas”, a evolução do mercado laboral constituem um dado incerto, considerando a idade, a concorrência, as mentalidades, não faz sentido aderir a critérios ou tabelas puramente matemáticas, ou de proporção, mas tão somente pragmáticos e de equidade.
É, pois, fundamentalmente a partir de juízos de equidade, buscando a realização da justiça abstracta no caso concreto, partindo da ideia-força de que a equidade não é arbítrio, pois tem sempre como ponto de partida o direito positivo, que se deve procurar a justa indemnização para o dano em apreço.
À data do acidente a autora recorrente tinha 20 anos de idade.
Auferia, por cada noite de trabalho, o salário de € 20,00, a que acrescia metade do lucro angariado pelos donos do Pub/Bar na venda de bebidas aos clientes – em média, € 25,00 por jornada – e trabalhando seis noites por semana.
Como consequência das lesões sofridas no acidente e das múltiplas sequelas com que ficou marcada, ficou a padecer de IPP de 10%.
Todavia, não ficou provado que tais sequelas a tenham impossibilitado de continuar a exercer as funções que vinha desempenhando e de conseguir arranjar ocupação igual à que vinha exercitando. Os quesitos 31º e 32º – que integravam esta matéria de facto – obtiveram resposta de «não provado», e da fundamentação das respostas sobre a matéria de facto consta mesmo ter resultado “apurado à saciedade que a autora [em Outubro de 2006] continua a exercer a profissão de “alternadeira”, facto confirmado pelos depoimentos do seu padrasto, da sua actual empregadora e de duas outras testemunhas. E, ao contrário do que vem alegado pela própria autora/recorrente, também não se acha provado que esta tenha ficado com uma incapacidade de 50% (ou outra, superior à de 10%) para o exercício dessa profissão.
Tendo presente este quadro factual, e aquilo que acima se deixou enfatizado, surge, a meu ver, como manifestamente exagerada a indemnização arbitrada pela Relação e agora confirmada, como reparação do dano em apreço.
Mesmo o montante proposto pelo FGA não deixa, a nosso ver, de envolver uma certa generosidade, mesmo tendo em conta – ou, sobretudo, tendo em conta – as particularidades do caso concreto.
De todo o modo, não pode este Tribunal, face ao disposto no n.º 4 do art. 684º do CPC, que consagra uma verdadeira regra de proibição da reformatio in melius, baixar do montante que o FGA tem por adequado, segundo a equidade: “o julgamento do recurso não pode melhorar a posição do recorrente (no caso, a do FGA) em termos de lhe conceder mais do que ele solicita” F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 160..
Assim, na questão em apreço, entendo que deveria improceder o recurso da autora e proceder inteiramente o do FGA, o que significaria fixar a indemnização a que a autora tem jus, pelo dano patrimonial futuro, em € 40.000,00.
(A. Santos Bernardino)
___________________________________________________________

(1) Neste sentido, C. A. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., C.ª Editora, 2005, pág. 203, e H. EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Cód. Civil Português, Liv. Almedina, 1992, pág. 299/300..

(2) Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., Almedina, 2007, págs. 72 e ss. e 81 e ss.

(3) Autor citado, Direito de Personalidade, pág. 110.

(4) Cfr. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo III, Liv. Almedina, 2004, pág. 278/279.

(5) Ob. e vol. cits., pág. 281

(6) P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral cit., págs. 72/73.

(7) Cfr. RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, págs. 157/158..

(8) Cfr. R. CAPELO DE SOUSA, ob. cit., pág. 158/160..

(9) A. MENEZES CORDEIRO, ibidem, pág. 269.

(10) R. CAPELO DE SOUSA, ibidem, pág. 162/163..

(11) Publicado no BMJ 347/398.

(12) Ibidem, págs. 162/163, em nota de rodapé.

(13) CAPELO DE SOUSA, ob. cit., pág. 163 (rodapé)

(14) Lições de Direitos da Personalidade, 2ª ed., Coimbra 1995, pág. 58.

(15) A. MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pág. 299.

(16) Cfr. G. A. ÓRFÃO GONÇALVES, Da Personalidade Jurídica do Nascituro, RFDUL 2000, pág. 533.

(17) Cfr. LEITE DE CAMPOS, ob. cit., pág. 42.

(18) Cfr. P. PAIS DE VASCONCELOS, Direito de Personalidade, pág. 112.

(19) Direito que cabe apenas à autora, uma vez que, sendo esta solteira, e não tendo sequer namorado, se ignora, de todo, a identidade do pai do seu filho.

(20) Cfr. autor citado, A Vida, a Morte e a sua Indemnização, no BMJ 365, págs. 5 e ss.

(21) Cfr. obra citada na nota 18, pág. 64 e estudo citado na nota que antecede, pág. 15.

(22) Acórdão de 27.09.2007, Proc. 07B2737, disponível em www.dgsi.pt.

(23) Citam-se, a título de exemplo, além do referido na nota anterior, os Acórdãos de 12.10.2006 (Proc. 06B2520), de 17.10.2006 (Proc. 06P2775) e de 24.10.2006 (Proc. 06A3021), igualmente disponíveis em www.dgsi.pt.

(24) Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos deste Tribunal, de 25.06.02, Col. Jur.- Acs. do STJ, X, 2, 132, de 19.10.2004 (revista n.º 2897/04, da 6ª Sec.), de 16.12.2004 (revista n.º 3839/04, da 2ª Sec., e o muito recente acórdão de 02.10.2007, Col. Jur.- Acs. do STJ, XV, 3, 68)..

(25) Cfr., por todos, o acórdão de 02.10.2007, citado na nota anterior, e a jurisprudência nele citada
.






4.4. Anexo 5 – prova por confissão
Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 07A2114

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: PROVA POR CONFISSÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
PROVA TESTEMUNHAL
PROVA COMPLEMENTAR
CASO JULGADO

Nº do Documento: SJ200710090021146
Data do Acordão: 09-10-2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA

Sumário :

1) Se nos embargos a uma execução para pagamento de quantia certa fundada em documento particular assinado pelo devedor se provar que a causa da confissão de dívida nele expressa foi certo contrato de compra e venda dum imóvel cujo preço não se encontra integralmente pago, a dívida assim confessada subsiste – devendo os embargos, consequentemente, improceder – mesmo que em acção anterior envol¬vendo as mesmas partes tenha sido decidido com trânsito em julgado atribuir força probatória plena contra o confitente à confissão dos vendedores no sentido de que já tinham recebido a totalidade do preço.

2) Quando exista um começo de prova escrita, e como complemento desta, é admissí¬vel, não contrariando o disposto no artigo 394º do Código Civil, a prova testemunhal que tenha por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. AA e BB embargaram a execução ordiná¬ria que no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, visando cobrar-lhes a quantia de 3 mil contos com base em título executivo envolvente de declaração emitida no dia 10.5.91 pelos executados, lhes foi movida por CC.
Resumidamente, alegaram que a declaração de dívida apresentada como título executivo dizia respeito a parte do preço da compra de um prédio ao embargado, preço esse já pago na totalidade, conforme decidido por acórdão do STJ, transitado em julgado, proferido na acção ordinária nº 48/96, que correu termos pelo Tribunal de Círculo de Castelo Branco.
O embargado contestou, interpretando de modo diverso o acórdão invocado e sus¬tentando que se encontra em dívida uma parte do preço da compra do prédio - a correspondente à importância (3 mil contos) que se menciona no título executivo.
Foi proferido saneador-sentença que, julgando procedente a excepção dilatória do caso julgado, absolveu os embargantes da instância executiva.
Na sequência dos recursos interpostos aquela decisão foi confirmada na Relação, mas revogada no STJ, que determinou o prosseguimento dos embargos.
Em cumprimento do ordenado saneou-se e condensou-se o processo, realizou-se a audiência de julgamento e estabeleceram-se os factos, após o que, por sentença de fls 402 a 409, os embargos foram julgados improcedentes, absolvendo-se o embargado do pedido.
Os embargantes apelaram, mas a Relação confirmou a decisão da 1ª instância.
Mantendo-se inconformados os embargantes recorrem agora para o STJ, insistindo na procedência dos embargos, com a consequente revogação do acórdão recorrido, a partir das seguintes conclusões úteis:
1ª - O Acórdão do STJ de 25/11/2004 (Revista n° 3703/2004) julgou que a excepção dilatória de caso julgado só não foi julgada procedente porque a “. .. relação entre a declaração agora apresentada como título executivo e a relação material controver¬tida no âmbito da acção 48/96 ainda estava por estabelecer”.
2ª - Tendo os embargantes feito nos presentes autos a relacionação entre a declaração de fls 3 e a relação material controvertida no âmbito da acção 48/96 (existência ou não do crédito de 3.000.000$00 referentes a parte do preço do imóvel identifi¬cado nos autos ( ponto 5. da motivação de facto da sentença), deverá julgar-se procedente a excepção dilatória de caso julgado, a impor a absolvição dos embargantes da instância.
3ª - O Acórdão recorrido que não julgou verificada a excepção de caso julgado, tendo-se pronunciado, para mais, em sentido contrário, sobre a mesma questão já anteriormente decidida pelo Acórdão do STJ de 2 de Junho de 1999 (Revista n° 247/99), já transitado em julgado, deverá ser revogado por violação do caso julgado, prevalecendo o decidido naquele Acórdão do STJ nos termos do artigo 675°, n° 1 do Código de Processo Civil.
4ª - Caso assim não se entenda, sempre se dirá, quanto à questão de mérito dos presentes autos - existência ou não do crédito de 3.000.000$00 referentes a parte do preço do imóvel transmitido pela escritura pública de compra e venda de 9/5/1991 - que o Acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente, violando-os, os artigos 358°, n° 2, 347°, 393º, nº 2 e 351°, todos do Código Civil.
5ª - Acresce que os artigos 671º, n° 1, 673°, 494°, i), 4970, n° 2 e 498°, todos do CPC, na interpretação dada pelo Acórdão recorrido no sentido de que é possível voltar a reapreciar uma mesma questão objecto de outra decisão judicial já transitada em julgado, deverão ser julgados inconstitucionais, por violação do artigo 205°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa.
6ª - Os embargantes lograram não só a causa do reconhecimento de dívida (até então presumida ex vi do artigo 458º, n° 1, do Código Civil) como a falta de fundamento dessa mesma causa (pelo pagamento da totalidade do preço). Com efeito,
7ª - Provaram, respectivamente, que o reconhecimento de dívida se referia a parte do preço da compra do prédio identificado nos autos (ponto 5 da motivação de facto da Sentença) e o pagamento da totalidade do preço do referido prédio, mediante confissão extrajudicial do recebimento da totalidade do preço do prédio pelos vendedores (ora embargado e mulher) em sede de escritura pública de compra e venda de 9 de Maio de 1991 (ponto 3 da motivação de facto da sentença).
8ª - Perante tal prova, encontra-se o embargado no mesmo ponto em que se encon¬trava em sede de acção declarativa - com o ónus de provar, através dos meios idó¬neos, que o facto confessado nessa declaração de quitação da totalidade do preço do referido prédio e que constitui confissão extrajudicial com força probatória plena, não correspondia à verdade.
9ª - Sendo que são meios inidóneos nos termos conjugados dos artigos 358°, nº 2, 347°, 393°, nº2, e 351° do CC, quer a prova testemunhal, quer por presunções judiciais.
10ª – Assim, o acórdão recorrido, ao decidir, em sentido contrário ao julgado pelo Acórdão do STJ de 2 de Junho de 1999 (Revista n° 247/99), já transitado em julgado, recorrer à prova testemunhal (das filhas do embargado) para afastar o valor probatório daquela confissão extrajudicial de recebimento da totalidade do preço, interpretou e aplicou erradamente os artigos 358°, n°2, 347º, 393º, n°3 e 351°, todos do Código Civil.
O embargado respondeu, defendendo a confirmação do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.

II. Factos definitivamente estabelecidos a considerar:
1. AA e sua mulher BB, através do escrito junto a fls 3 dos autos de execução, declararam: “…devemos a importância de 3.000.000$00 três milhões de escudos a CC natural de Salvaterra do Extremo, concelho de Idanha-a-Nova e residente na Rua …. nº …, Ninho do Açor concelho de Castelo Branco, portador do bilhete de identidade nº …. emitido em Coimbra, com o número de contribuinte número …… da Repartição de Finanças de Castelo Branco – 2.ª repartição.
A importância acima referida será paga até 10 de Maio de 1992.
Vencerá o juro da lei, a primeira prestação a 10 de Dezembro e a segunda a 10 de Junho de 1992.
E por ser verdade assinamos” (A).
2. Em Março de 1996 o embargado intentou contra os embargantes acção declarativa com processo ordinário que correu termos sob o nº 48/96, pelo Tribunal de Círculo de Castelo Branco (B).
3. Na referida acção o embargado e a mulher, ali AA., alegaram na petição inicial que “Por escritura de compra e venda, de 9 de Maio de 1991, lavrada a fls. 45 a fls. 46v.º do livro 77-C do 1º Cartório Notarial de Castelo Branco, os AA. venderam aos RR., pelo preço de seis milhões de escudos, o prédio rústico que se compõe de terra de cultura arvense, oliveiras, pinheiros e sobrei¬ros, com área de 10,7000 hectares, sita à Tapadinha, Olival entre Águas e Vale, freguesia de Ninho do Açor, inscrito na respec¬tiva matriz sob o artigo 317-Secção C, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo Branco, sob o nº 59, da freguesia de Ninho do Açor”.
“Na referida escritura os AA., a pedido dos RR. declararam ter recebido o preço res¬pectivo”.
“Os AA., todavia, somente receberam dos RR. a quantia de três milhões de escudos”.
“Os RR., em documento que então subscreveram, confessaram-se devedores da quantia de três milhões de escudos, corresponde ao preço em dívida, que se obrigaram a pagar em duas prestações, a primeira em 10 de Dezembro de 1991 e a segunda em 10 de Junho de 1992, sendo devidos os juros legais”.
“Não obstante as diversas diligências feitas junto dos RR. para pagarem este seu débito, os AA. somente conseguiram receber, em 29/9/1992, por conta dos juros vencidos, a quantia de 100.000$00” (C)
4. A quantia titulada na declaração de fls 3 da execução tinha de ser paga em 10 de Maio de 1992 (1º).
5. A declaração referida em 1) diz respeito a parte do preço da compra e venda do prédio referido em 3) - (2º).
6. O que o embargado já reconheceu (3º).
7. O preço devido pelos embargantes, na qualidade de compradores, ao embargado e mulher, na qualidade de vendedores, relativo à compra e venda titulada pela escritura referida 3), não está pago na totalidade, faltando pagar a parte titulada pelo documento junto pelos embargados a fls 3 (4º).

***
Sem nunca perder de vista os factos relatados, por um lado, nem as conclusões da minuta, por outro, vamos fazer uma síntese tão clara quanto possível dos termos essenciais do litígio que divide as partes desde que foi proposta no Tribunal de Círculo de Castelo Branco a acção 48/96 por estarmos persuadidos de que esse é o meio mais adequado e conveniente para pôr a nu o cerne das questões postas e, simulta¬neamente, demonstrar a final que o recurso não tem bom fundamento.
Para o efeito seguiremos pari passu a esclarecedora resenha efectuada no acórdão recorrido.
Em 11.3.96 CC e sua mulher DD propuseram no Tribunal de Círculo de Castelo Branco uma acção ordinária contra AA e sua mulher BB, pedindo a condenação dos réus a pagar-lhes a quantia de 3 mil contos, acrescida dos juros vencidos e não pagos, no montante de 2.002.055$00, e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.
Alegaram como causa de pedir que a quantia exigida era parte do preço da venda que, em 9.5.91 fizeram aos réus de um imóvel, sendo que, embora na escritura tivessem declarado que já tinham recebido a totalidade do preço, isso não correspondia à verdade, como resultava da declaração de dívida subscrita pelos réus, na qual estes se confessam devedores da quantia de 3.000.000$00.
A acção procedeu em parte nas instâncias; todavia, por acórdão 2.6.99, o STJ revogou a sentença e o acórdão da Relação, julgou a acção inteiramente improcedente e absolveu os réus do pedido.
Nesse acórdão o STJ acolheu o argumento das instâncias de que a escritura pública de compra e venda de 9.5.91, constituindo prova plena de que os autores, ali vendedores, haviam declarado ter recebido a totalidade do preço, não constituía igual prova de que essa declaração fosse verdadeira. Mas, avançando com um outro argumento que as instâncias não tinham ponderado, considerou que aquela declaração integrava uma confissão extrajudicial do recebimento do preço, inserida em documento com força probatória plena, estando vedado o recurso à prova testemunhal e à prova por presunções judiciais para infirmar a sua veracidade. E como a força probatória dessa declaração confessória fora afastada com base em depoimentos de testemunhas, deu como não escritas as respostas aos correspondentes quesitos, assim ficando a subsistir tão somente a confissão do recebimento.
Em nota inserida sob o nº 10, a fls 11 desse acórdão do STJ, afirmou-se textualmente o seguinte:
“É certo que nos autos se encontra um documento, o de fls. 12, que os autores ofere¬ceram como princípio de prova escrita dos factos agora censurados, (…). No julgamento procurou-se indagar se tal documento (que não está datado nem especifica qual a causa da dívida que nele se diz existir) diz respeito aos factos controvertidos entre as partes e o que resultou do julgamento é que tal relacionação não foi alcan¬çada. Por isso, por um lado, este documento não integra os fundamentos das respostas dadas aos quesitos cinco a sete; e, por outro, o Tribunal Colectivo respondeu negativamente aos quesitos sexto, nono e décimo primeiro a vigésimo, e com restri¬ções aos quesitos sétimo, oitavo e décimo. Quer isto dizer que não existe princípio de prova escrita que permita abertura à possibilidade de se provar por testemunhas facto contrário ao adquirido por confissão. E não pode este Tribunal substituir-se às instâncias no julgamento da matéria de facto em ordem a estabelecer relação entre o documento de fls. 12 e os factos censurados no texto deste acórdão, modificando as respostas negativas ou restritivas que o Tribunal Colectivo deu aos apontados que¬sitos; não pode este Tribunal apreciar o meio de prova que é o docu¬mento particu¬lar de fls. 12 para dele, por presunção ou ilação, estabelecer a realidade de qualquer facto”.
Confrontado com esta decisão do STJ o ali autor CC instaurou em 6.10.00 execução contra os ali réus AA e mulher BB, apresentando como título executivo o documento que naquela acção constituíra fls 12 e que é a declaração transcrita no ponto 1) da matéria de facto do presente processo, desta forma visando obter a cobrança da quantia por ele titulada.
Os executados deduziram embargos, suscitando a excepção do caso julgado.
O saneador-sentença de fls. 102 a 107, confirmado pelo acórdão da Relação de fls 180 a 183, deu-lhes razão, considerando procedente a excepção arguida.
Mas o STJ, por acórdão de 25.11.04 (fls 246 a 256) revogou a decisão convergente das instâncias e ordenou o prosseguimento dos embargos.
Neste acórdão ponderou-se designadamente que:
a) Apesar de haver identidade de sujeitos da acção declarativa 48/96 e da acção executiva e embargos conexos, não existe identidade de causa de pedir e de pedido ( Na página 8 do acórdão afirma-se:
“Decorre do exposto que os sujeitos da acção declarativa que culminou com o referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e os sujeitos da acção executiva e dos embargos conexos, no plano da sua qualidade jurídica, são, na realidade, os mesmos.
Todavia, a causa de pedir e o pedido formulados nos embargos de executado e na acção declarativa que culminou com o acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 2 de Junho de 1999 não são idênticos.
Os pedidos formulados na referida acção declarativa e na acção executiva em causa também não são idênticos, porque na primeira o que se visou foi obter uma decisão condenatória na decorrência de um juízo de apreciação de factos e de normas jurídicas, e, na última, num quadro de mera efectivação de um direito violado, a pretensão formulada foi a de citação para pagamento de 3.000.000$00 e juros ou nomeação de bens à penhora.”);
b) Na acção declarativa 48/96 o STJ concluiu, por um lado, não ter sido alcançada no julgamento a relacionação entre o documento agora dado à execução e os factos controvertidos e, por outro, inexistir o princípio de prova escrita que permitiria a prova por via testemunhal de factos contrários aos resultantes da confissão operada na escritura e não poder substituir-se às instâncias no estabelecimento da relação entre o documento e os factos que censura no acórdão;
c) Nessa acção o STJ absolveu os ora recorridos do pedido com o fundamento único de a confissão da recepção da totalidade do preço constante da escritura de 9.5.91 fazer prova plena contra os confitentes e de o referido documento (título executivo nestes autos) não ter relacionação com os factos controvertidos pelas partes, inexistindo, por isso, prova escrita que possibilitasse a admissibilidade da prova testemunhal para infirmar a prova derivada da confissão;
d) Não foi, pois, decidido na referida acção declarativa nº 48/96 que aquele docu¬mento não tinha eficácia probatória por estar desvalorizado pelo conteúdo contrário da escritura pública que fazia prova plena;
e) Nessa decisão não foi declarado que os ali réus pagaram aos ali autores todo o preço declarado na escritura de compra e venda, mas apenas que os meios de prova utilizados, ou seja, a prova testemunhal, não podia, só por si, no caso em exame, infirmar o facto confessado naquela escritura de que ocorrera o pagamento integral;
f) O caso julgado em causa não envolve a declaração judicial de que os ali réus hajam pago aos ali autores a totalidade do preço relativo ao mencionado contrato de compra e venda;
g) Nos embargos discute-se a existência ou inexistência da relação subjacente à declaração de reconhecimento de um direito de crédito consubstanciado em documento susceptível de constituir título executivo em termos de poder implicar a con¬trovérsia já suscitada na acção declarativa sobre se os embargantes pagaram ao embargado e ao cônjuge metade ou todo o preço relativo ao contrato de compra e venda do prédio;
h) Não está ainda apurada, contudo, a factualidade tendente à demonstração pelos embargantes da inexistência da relação jurídica subjacente à confissão de dívida;
i) A circunstância de ter sido discutido noutro processo, isto é, na referida acção declarativa, se os embargantes deviam ou não ao embargado e ao seu cônjuge parte do preço relativo ao contrato de compra e venda, tendo em conta o conteúdo da decisão que transitou em julgado e os respectivos fundamentos, não impede que se discuta nos embargos a existência ou a inexistência do direito de crédito do embar¬gado consubstanciado no documento em causa, podendo os embargantes, por via da prova que arrolem, demonstrar a inexistência do referido direito de crédito, ou seja, que a confissão da dívida não tem causa justificativa;
j) Não ocorre, por isso – concluiu-se no acórdão do STJ de 25.11.04 – caso julgado que implique não poder o tribunal conhecer do mérito dos embargos, isto é, se existe ou não o direito de crédito a que se reporta a declaração de reconhecimento con¬substanciada no documento que integra o título dado à execução.
Quer dizer: neste acórdão de 25.11.04, o aresto de 2.6.99, proferido na acção declara¬tiva 48/96, foi interpretado pelo STJ no sentido de que, ao não se considerar estabelecida qualquer relação entre a escritura de compra e venda do imóvel e o pagamento ou não da totalidade do preço, por um lado, e o conteúdo do documento de fls 12 da dita acção (que é o título dado à execução – facto nº 1), por outro, ficava aberta a pos¬sibilidade de discutir a existência ou não de relação jurídica subjacente à confissão de dívida integrada por tal documento. Nele os réus da acção declarativa, aqui executados/embargantes, declaram-se devedores ao autor da acção declarativa, aqui exequente/embargado, da quantia de 3 mil contos, competindo-lhes, face à presunção estabelecida no artº 458º do Cód. Civil, a prova da inexistência da relação fundamental (ou do pagamento). E assim, no desenvolvimento do processo resultante da decisão deste Supremo Tribunal de 25.11.04, acima resumida nos seus pontos salientes, as hipóteses que em sede de julgamento de facto restaram em aberto para averiguar foram as seguintes:
1ª) Os embargantes conseguiam provar a inexistência de relação fundamental (aqui se incluindo a extinção desta por cumprimento); nesse caso, logicamente, os embar¬gos proce¬deriam;
2ª) Os embargantes não conseguiam provar a inexistência de relação fundamental (aqui se incluindo a sua existência e o subsequente não cumprimento); os embargos, então, teriam que improceder.
Ora, provou-se – o que não sucedeu, como se viu, na acção declarativa 48/96 – que a causa da emissão da confissão de dívida expressa no título executivo (documento de fls 12 daquela acção) foi o contrato de compra e venda do imóvel e a consequente obrigação de pagamento do preço – facto nº 5. Logo, salvo se se apurasse que o preço do imóvel transaccionado foi integralmente pago – o que de igual modo não aconte¬ceu, como resulta com toda a clareza do facto nº 7 - a dívida confessada subsiste, devendo os embargos improceder, como as instâncias bem decidiram.
De todo o exposto resulta que, havendo duas confissões a ponderar, uma delas terá de prevalecer, já que, em função do que se salientou nas alíneas f), i) e j) supra, o caso julgado estabelecido pelo acórdão deste Tribunal de 2.6.99 na acção declarativa 48/96 não envolve a declaração judicial de que os ali réus hajam pago aos ali autores a totalidade do preço relativo ao con¬trato de compra e venda ajuizado. As confissões são a que decorre da escritura pública de compra e venda de 9.5.91, traduzida na declaração dos vendedores de que receberam a totalidade do preço, e a integrada no título dado à execução, conjugada com a relação estabelecida entre tal docu¬mento e o contrato de compra e venda, nos termos da qual os compradores devem a quantia de 3 mil contos, correspondente a parte do preço do bem transmitido. Ora, ao contrário do que se decidiu na acção declarativa 48/96, nestes embargos não é inadmissível o recurso à prova testemunhal para afastar a força probatória da confissão exarada na escritura pública. E isto porque há uma diferença fundamental entre as situações apreciadas nos dois processos. Na acção declarativa, com efeito, diversamente do que sucedeu nos embargos, não se estabeleceu a relação entre a dívida confes¬sada no título que serviu de base à execução e o contrato de compra e venda do imóvel. Daí que a afirmação contida no acórdão de 2.6.99 - a de que não existe princípio de prova escrita que permita demonstrar através de testemunhas facto contrário ao adquirido por confissão - não tenha aplicação aqui, pois agora provou-se que a declaração de dívida integrada no título executivo respeita a parte do preço da compra e venda formalizada na escritura de 9.5.91, existindo, portanto, o tal princípio de prova escrita que na acção declarativa falhou. Constituindo entendimento praticamente unânime na doutrina e jurisprudência - consoante já se pôs em relevo neste recurso ao afastar-se a pretensão dos recorrentes no sentido do julgamento ampliado da revista - o de que a prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares é admissível quando haja um começo ou princípio de prova escrita e como complemento desta, não há senão que reafirmar novamente a justeza da decisão recorrida de julgar os embargos improcedentes. É que, insiste-se, constituindo o documento dado à execução, sem qualquer dúvida, um princípio de prova escrita, a prova testemunhal era admissível, sendo certo que se provou que o preço devido pelos embargantes, na qua¬lidade de compradores, ao embargado e sua mulher, na qualidade de vendedores, relativo à compra e venda titulada pela escritura de 9.5.91 não está pago na totalidade, faltando pagar, precisamente, a parte titulada pelo documento executado (facto nº 7).
Desta forma, conclui-se que:
a) No caso presente, as instâncias pronunciaram-se sobre questão diversa da ante¬riormente decidida pelo acórdão do STJ de 2.6.99, proferido na acção declarativa 48/96 - não existindo, portanto, violação de caso julgado – e fizeram-no com inteira observância das normas dos art.ºs 358º, nº2, 347º, 393º, nº 3, e 351º do Código Civil;
b) Precisamente porque o caso julgado inerente ao acórdão do STJ de 2.6.99 não foi violado (em obediência ao determinado no acórdão de 25.11.04, também do STJ, houve pronúncia sobre questão diversa da que ali se decidiu), a questão de inconstitucionalidade colocada pelos recorrentes mostra-se deslocada e inoperante.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso.

III. Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 9 de Outubro de 2007

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira


Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo: 06A2717

Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: CONFISSÃO
INDIVISIBILIDADE
PROVA DOCUMENTAL

Nº do Documento: SJ200610240027176
Data do Acordão: 24-10-2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.

Sumário : I. Estando expressamente impugnado o teor de um facto alegado pelo autor na petição inicial, não pode o mesmo ser julgado admitido por acordo.
II. O princípio da indivisibilidade da confissão é aplicável à prova documental.
III. Por isso, não podem ser dados por provados factos favoráveis ao autor constantes de uma conta-corrente elaborada e apresentada pela ré, se a mesma contiver outros factos favoráveis à ré e que o autor não aceitou e que modificam ou extinguem os efeitos dos primeiros factos.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA" instaurou, na 11ª Vara Cível de Lisboa contra Empresa-A, LDA, a presente ACÇÃO DECLARATIVA CONDENATÓRIA com a forma de processo ORDINÁRIO, formulando o pedido de condenação da ré a pagar ao autor:
a) A quantia de 5.800.000$00, acrescida de juros de mora contados desde a citação até integral pagamento;
b) A quantia de 496.049$00, acrescida dos juros de mora que a BRISA vier a cobrar ao A. e cujo montante se relega para execução de sentença;
c) A quantia de 2.274.173$00, acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal de 12% que se liquidam em 26 de Novembro de 2001 em 171.965$00 e vincendos, à mesma taxa, desde 26 de Novembro de 2001 até integral pagamento.
Para tanto, alega que:
- A. e Ré, em 2-5-2000, celebraram um contrato promessa no qual a ré prometeu vender um veículo automóvel, de marca IVECO, modelo 190 36P, com a matrícula LH, com o semi-reboque L 139935;
- O preço da prometida venda foi estipulado em 6.000.000$00...
- ...Que seria pago em 24 prestações mensais e sucessivas no valor de 290.000$00 cada uma;
- Pelo referido contrato, o A. entrou na posse do veículo a partir do momento da assinatura do contrato-promessa;
- Foi estipulado que o A. prestava serviço em regime de exclusividade para a ré;
- E desta forma, a ré, promitente vendedora, deduzia na facturação dos serviços prestados pelo A. as prestações mensais, referentes ao contrato-promessa;
- O A. ficou responsável pela manutenção da viatura;
- O pagamento da primeira prestação foi efectuado no dia 2-6-2000;
- O A. no cumprimento do contrato-promessa pagou as prestações mensais até à 10ª, não tendo a ré entregue ao A. o recibo referente à última prestação em 2-3-2001;
- Em meados de Março de 2001, o A. ficou doente, não podendo ir trabalhar durante alguns dias;
- Durante o período em que o A. esteve doente, a ré utilizou o identificado veículo, sem nunca disso ter dado conhecimento ao A., nem tão pouco lhe ter pedido autorização;
- O veículo circulou no interesse da ré, ao serviço da firma ECS, com a carga nº 6460 tendo feito pelo menos o trajecto Pontes-Porto, onde descarregou viaturas automóveis na PRISMAUTO;
- O A. entregou à ré um sinal no valor de 2.900.000$00;
- O mandatário do A. em 2-4-2001 interpelou a ré para que procedesse ao pagamento da quantia de 5.800.000$00;
- Em resposta, a ré veio confirmar que o veículo estava a ser utilizado no seu interesse por outro motorista;
- Argumentando que tinha sido o A. a rescindir o contrato-promessa, o que é manifestamente falso;
- O A. deixou dentro da viatura diversos objectos pessoais, entre eles o dispositivo de Via Verde, que se encontrava activo;
- A ré enviou-lhe posteriormente alguns dos seus objectos pessoais, não tendo contudo enviado o referido dispositivo;
- O A., com espanto, deparou-se com a factura da BRISA, em que esta lhe reclama o pagamento de portagens após a data em que o mesmo deixou de usufruir a posse do veículo;
- No período compreendido entre 28 de Março e 4 de Junho de 2001 a ré no seu exclusivo interesse havia utilizado abusivamente o identificador de Via Verde propriedade do A, tendo tal utilização ascendido ao montante de 247.770$00;
- Debalde o A. enviou à ré carta a reclamar o pagamento de tal quantia, pois a ré não se limitou sequer a responder, e continuou a utilizar o dispositivo Via Verde no seu exclusivo interesse, tendo no período compreendido entre 5 de Junho e 1 de Agosto de 2001 a ré utilizado o dispositivo Via Verde no montante de 248.279$00;
- O A. enquanto teve a posse e fruição da identificada viatura efectuou diversos serviços de transporte a pedido da ré e no interesse desta que ascenderam a 2.274.173$00;
- Devidamente notificada pelo mandatário da A. em 2-4-2001 para proceder ao pagamento dessa quantia igualmente a ré se recusou a fazê-lo.
Contestou a ré, invocando que:
- É certo que a ré prometeu vender ao A. o veículo pesado matrícula LH L.139935, nos termos e condições do contrato-promessa junto a petição inicial;
- Porém, o A. no dia 15 de Março de 2001 deslocou-se às instalações e sede da ré, na Estrada de Algeruz-Pontes-Setúbal;
- Nesse local e data declarou que não lhe era possível continuar a cumprir o que estava previsto no contrato-promessa;
- E devolveu o veículo e a respectiva documentação à ré;
- Veículo que aliás estava na altura fisicamente numa oficina por necessitar duma reparação;
- Em 15-3-2001, o A. tinha em dívida uma renda e meia: a que se vencia em 2-3-2001 (referente ao mês de Fevereiro de 2001) e metade da correspondente ao mês de Março de 2001, pois o A. utilizou o veículo durante 15 dias desse mês;
- Nos termos da cláusula sétima do contrato promessa se o segundo outorgante (o A.) deixasse de pagar alguma das prestações mensais, a primeira outorgante (a ré) poderia exigir a entrega imediata do veículo, além do pagamento do que estivesse em dívida, acrescido de juros de mora;
- Esta cláusula sétima - e a entrega do veículo aí estipulada - prevê a rescisão do contrato-promessa por incumprimento do promitente-comprador e é uma alternativa (conferida ao promitente-vendedor) à aplicação da cláusula quarta que prevê a execução do contrato, ainda que com vencimento imediato de rendas;
- A ré não entregou ao A. o recibo referente à 10ª prestação (mês de Fevereiro de 2001) porque o A. não a pagou;
- Quanto à doença do A., em primeiro lugar, o acto de entrega do veículo, corporizada na entrega dos respectivos documentos, deu-se no dia 15 de Março e o A. adoeceu em 19 de Março;
- Após 15-3-2001, como consequência da rescisão do contrato-promessa e entrega do veículo, a ré entendeu ser seu direito utilizá-lo;
- Os objectos pessoais a que alude, com excepção do dispositivo de Via Verde, foram levantados pelo próprio A. que se deslocou para o efeito à sede e instalações da ré na Estrada de Algeruz, Pontes, Setúbal, onde estava o veículo e as respectivas chaves;
- Relativamente ao dispositivo da Via Verde, o mesmo não podia ser removido de imediato;
- A ré aceita que o valor dos débitos de Via Verde a partir de 15 de Março de 2001 é da sua responsabilidade;
- Por isso mesmo escreveu ao A. em 5-11-2001 pondo à sua disposição tal valor, desde que o A. emitisse uma nota de débito à ré acompanhada de extractos da Brisa, o que o A. não o fez, tendo o dispositivo da Via Verde já sido entretanto substituído;
- Relativamente aos serviços de transporte, os mesmos foram integralmente pagos;
- E foram-no através de compensação com as rendas devidas pelo A. até à data de 15-3-2001 e com outras despesas da responsabilidade deste (designadamente, seguros gasóleo, multas e manutenção do veículo prometido vender), tal como se previa no contrato-promessa (cláusulas oitava e décima);
- Apuradas as contas, verifica-se que é a ré que tem sobre a A. um saldo credor de 707.426$00;
Em reconvenção, alega que:
- Nos termos da cláusula oitava do contrato-promessa, o A. seria responsável pela boa manutenção do veículo prometido vender e por todas as outras despesas inerentes a tal manutenção incluindo seguros e multas referentes ao dito veículo;
- Por outro lado, e nos termos da cláusula décima desse mesmo contrato a ré teria direito de deduzir na facturação dos serviços prestados pelo A. quer as despesas que a ré pudesse vir a ter de pagar, quer as prestações em dívida à data do vencimento das facturas em causa;
- Na data de 15-3-2001, a ré tinha sobre o A. um saldo credor de 707.426$00;
- Este saldo resulta da diferença entre o valor dos serviços de transporte facturados pelo A. à ré e o valor das rendas em dívida mais as despesas suportadas pela ré referentes ao veículo prometido vender (gasóleo, portagens, seguros, imposto de selo, multas e reparações) mais adiantamentos de fundos ao A. feitos pela ré...;
- ...Declarando a ré-reconvinte pretender operar a compensação com os valores que sejam devidos ao A. reconvindo.
Conclui, peticionando:
a) a improcedência da acção por não provada, com excepção da parte referente ao valor dos débitos da Via Verde que vier a ser dado como provado.
b) a procedência porque provada a reconvenção, condenando-se o A. reconvindo a pagar à ré reconvinte a quantia de 707.426$00.
Respondeu o A., alegando que:
- A viatura foi entregue pelo A. nas instalações da ré apenas para ser reparada, pois a mesma necessitava de travões e era habitual a ré pagar as reparações e depois deduzir no valor a pagar ao A;
- A aplicação da cláusula 7ª do contrato promessa de venda do veículo necessitava de uma prévia notificação escrita ao A, notificação essa que nunca aconteceu;
- O A. nunca afirmou que pretendia rescindir o contrato-promessa;
- O A., por outro lado, também nunca recebeu da ré a carta junta como Doc. 1 à contestação;
- O A. não pode emitir as notas de débito reclamadas em virtude de ter cessado a sua actividade;
- Nunca a ré apresentou quaisquer justificativos relativos às despesas referidas;
- O reconvindo aceita que era responsável pela boa manutenção do veículo prometido vender, bem como por multas e seguros do mesmo;
- Bem como que a reconvinte teria direito a deduzir na facturação as despesas que pagasse com a manutenção da viatura;
- Todavia não aceita que a reconvinte lhe debitasse todas e quaisquer despesas;
- E muito menos aceita o reconvindo que a reconvinte não apresente justificativos das despesas que afirma ter suportado referentes ao veículo dos autos;
- Nada disse, por isso, à reconvinte.
Conclui como na petição inicial, pedindo que as excepções deduzidas e o pedido reconvencional formulado pela ré sejam considerados improcedentes por não provados.
Saneado o processo, elaboradas a matéria assente e base instrutória, após audiência de discussão e julgamento, foi decidida a matéria de facto e proferida sentença que julgou o pedido do autor parcialmente procedente e improcedente o pedido reconvencional.
Desta apelou o autor tendo nas suas alegações defendido a alteração da decisão da matéria de facto com a consequente alteração da decisão de direito, recurso que foi julgado improcedente.
Ainda inconformado, veio o autor interpor a presente revista, tendo nas suas alegações formulado as conclusões seguintes:
- O que o recorrente pretende eleger como objecto de análise aos mui doutos conselheiros do ilustre Supremo Tribunal de Justiça é a força probatória da confissão de determinado facto e do documento junto aos autos em 9-12-2003, os quais não forma considerados pelo Tribunal de 1ª instância e pelo tribunal a quo, não obstante a lei fixar força probatória plena;
- No caso de existir ofensa de uma disposição expressa de lei que fixe a força probatória de determinado meio de prova, é possível ao STJ apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa;
- Verifica-se, pois, que o tribunal a quo violou a lei substantiva (fundamento específico), descurando as normas referentes à confissão judicial e à força probatória de documento particular, o que motivou um erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, por omissão de aplicação do imperativo probatório previsto no art. 358º, nº 1 e nº 2, do Cód. Civil;
- A recorrida aceitou e confessou que os trabalhos foram efectuados a seu pedido e no seu interesse;
- A recorrida não impugnou que o recorrente tivesse efectivamente realizado tais serviços a seu pedido e no seu interesse, apenas que teria havido uma compensação de créditos com outras dívidas - as quais não logrou provar existirem;
- Para invocar a compensação, a recorrida teria de se considerar devedora dos montantes constantes das facturas de fls. 57 a 63;
- A recorrida inseriu o valor das facturas de fls. 57 a 63 numa conta corrente que juntou aos autos em 9 de Dezembro de 2003;
- A recorrida não logrou provar que tinha um crédito sobre o recorrente e que lhe era legítimo efectuar a compensação, pelo que, nessa medida, o crédito surge por saldar;
- As declarações efectuadas nos arts. 30º e 31º da contestação constituem confissão, a que deve ser dada força probatória plena, nos termos do art. 358º do Cód. Civil;
- A inserção das facturas peticionadas na conta corrente junta em 9-12-2003 constitui confissão, por documento, que detém força probatória plena, por imposição dos artigos 358º e 376º do Cód. Civil;
- Se o tribunal a quo tivesse aplicado estas normas, seria obrigado a dar como provado que os serviços prestados à recorrida foram a seu pedido e no seu interesse;
- Estes elementos factuais - assentes na força probatória da confissão e dos documentos juntos aos autos - que demonstram, sem margem para dúvidas, que os serviços prestados pelo recorrente foram a pedido e no interesse da recorrida e que a recorrida tem obrigação de pagar ao recorrente;
- Resulta, ainda, do contrato outorgado e da relação jurídica existente entre o recorrente e a recorrida que os serviços prestados por aquele eram no interesse e a pedido desta;
- Razão pela qual deve o tribunal ad quem considerar como provado, na sua integralidade, o quesito 7º da Base Instrutória, o que motivará a condenação da recorrida no pedido deduzido na al. c) da petição inicial.

Contra-alegou a recorrida defendendo a improcedência do recurso e no caso de tal não se verificar, pedindo a ampliação do objecto do recurso, nos termos do art. 684º-A do Cód. de Proc. Civil, a fim de ser conhecida da confissão pelo recorrente da dívida objecto do pedido reconvencional.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido - arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões do aqui recorrente se vê que este levanta, para conhecer neste recurso, da seguinte questão:
A decisão dada na 1ª instância ao quesito 7º da base instrutória deve ser alterada para totalmente provado, por tal matéria estar confessada pela recorrida e resultar tal dos documentos juntos aos autos ?

Diga-se, num breve aparte, que o recorrente no corpo das suas alegações, ainda refere que o acórdão em recurso é nulo nos termos da al. d) do nº 1 do art. 668º do Cód. de Proc. Civil, defendendo que a mesma nulidade seja suprida com o reenvio do processo à 2ª instância, de acordo com o disposto no art. 731º, nº 2 do mesmo código.
Porém, aquele não fez incluir tal pretensão nas conclusões daquelas alegações pelo que sendo, como dissemos, balizado o âmbito dos recursos pelo teor daquelas conclusões - nº 3 do art. 684º do Cód. de Proc. Civil -, não será aqui considerada tal pretensão.

A matéria de facto dada por provada nas instâncias é seguinte:
I - Autor (segundo outorgante) e a ré (primeira outorgante) apuseram a sua assinatura, sob a data de "Alverca do Ribatejo, 2 de Maio de 2000" no Doc 1 junto com a petição inicial, de fls. 11 a 14, autodenominado de contrato-promessa.
II- Nele, através da cláusula primeira, consta que a primeira outorgante - a aqui ré, Empresa-A, LDA - promete vender ao segundo outorgante - o aqui A., Sr. AA - que, por sua vez, se compromete a comprar o veículo (...) matrícula LH - L/139935 Marca IVECO modelo 190 36P pelo preço de Escudos: 6.000.000$00, a que acresce o IVA em rigor.
III- Conforme a cláusula terceira:
O preço será pago pelo segundo outorgante [o ora A.] em 24 prestações mensais e sucessivas, com vencimento no último dia do mês a que respeita, iniciando-se em 2-6-2000. O montante de cada prestação é de 290.000$00
IV- O A., a partir da assinatura aludida no item I- supra, passou a utilizar o veículo referido no item II- supra.
V- Nos termos da cláusula nona, consta que a primeira outorgante (ora ré) obriga-se a solicitar serviços de transporte, através do veículo objecto desta promessa, ao segundo outorgante [aqui A.], que, por sua vez, se compromete a prestar tais serviços à primeira outorgante [aqui ré] em regime de exclusividade.
VI - E resulta da cláusula décima que:
No caso de vir a ser exigido à primeira outorgante (a aqui ré) o pagamento de alguma despesas e/ou multa decorrente da utilização do veículo pelo segundo outorgante [o aqui A.], terá direito de deduzir na facturação dos serviços prestados pelo segundo outorgante [aqui A.] a que alude a cláusula nona os momentos dessas despesas ou multas.
A primeira outorgante [aqui ré] terá ainda direito a deduzir na facturação dos serviços prestados pelo segundo outorgante [aqui A.] as prestações mensais que estiverem em dívida à data do vencimento das facturas em causa.
VII- Durante o tempo em que o veículo estiver na posse do segundo outorgante [aqui A.], este é responsável pela boa manutenção do mesmo e por todas as despesas incluindo seguros (responsabilidade civil e danos próprios) e multas referente(s) ao dito veículo - destaca a cláusula oitava do mencionado contrato-promessa.
VIII- O pagamento da primeira prestação, referente ao pagamento do veículo, foi efectuado no dia 2-6-2000.
IX- O mandatário do A., com data de 2-4-2001 [Doc 12, a fls. 34 e 35], enviou à ora ré a missiva de fls. 34 e 35, sendo recebida, como resulta de fls. 36.
X- O A. deixou dentro da viatura o dispositivo de Via Verde, que se encontrava activo, mas não foi entregue pela ré.
XI- A ré utilizou tal dispositivo entre o dia 28-3-2001 e 8-8-2001, tendo a Brisa facturado ao A. a quantia de escudos: 469.049$00, conforme fls. 38 a 56.
XII- O A. entregou à ré as mensalidades até à 10ª, conforme Doc 2 a 10, de fls. 15 a 32.
XIII- Após, meados do mês de Março de 2001, a ré cedeu o uso e gozo do veículo ao transportador ECS.
XIV- ...Sem, nunca, ter dado conhecimento nem pedido autorização ao A.
XV- Entre 8-1-2001 e 15-3-2001, o A. facturou, em nome da ré, prestação de serviços no valor de, pelo menos, Escudos [PTE]: 2.270.173$00.
XVI- O A., no dia 15 de Março de 2001, deslocou-se às instalações da ré, na zona de Setúbal...
XVII- ...E, nesse local e data, declarou que não lhe era possível continuar a cumprir o que estava previsto no contrato-promessa.
XVIII- ...E deixou o veículo e a respectiva documentação no Departamento de Tráfego da empresa ré.
XIX- Sob a data de 5-11-2001, a ré dirigiu comunicação ao ora A., onde garante a este responsabilizar-se "por todos os custos a pagar à Brisa e pagar-lhe a importância aludida no item XI- supra, exigindo, porém, ao A. que "faça uma nota de débito à Empresa-A acompanhada dos extractos da Brisa".

Vejamos agora a questão acima mencionada como objecto deste recurso.
O art. 26º do LOFTJ - Lei nº 3/99 de 13/01 - estabelece a regra de que o Supremo Tribunal de Justiça ( STJ ) apenas conhece de questões direito e não de facto.
Tal como ensina o Conselheiro F. Amâncio Ferreira - no seu Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª ed., pág. 236 e segs. -, aquele Tribunal não controla a matéria de facto nem revoga por erro no seu apuramento; compete-lhe antes fiscalizar a aplicação do direito aos factos seleccionados pelos tribunais de primeira e segunda instâncias ( arts. 722º, nº 2, 729º, nºs. 1 e 2 e 755º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil ). Daí dizer-se que o STJ é um tribunal de revista e não um tribunal de 3ª instância ( art. 210º, nº 5 da CRP ).
Resulta do disposto no art. 722º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, que no recurso de revista, o recorrente pode alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admissível recurso, nos termos do nº 2 do art. 754º, de modo a interpor do mesmo acórdão um único recurso.
Por seu lado, o nº 2 do referido art. 722º acrescenta que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Pretende o recorrente que a decisão recorrida violou a força probatória que os arts. 352º , 355º, nºs 1 e 2, 356º, 358º, nº 1 e 361º, todos do Cód. Civil - a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem - fixam, no tocante ao meio de prova confissão. Além disso, pretende, ainda o recorrente que a mesma decisão em apreço ainda violou a força probatória documental prevista no art. 376º do mesmo código.
Assim, segundo o recorrente, os fundamentos do recurso aqui em causa estão previstos na parte final do mencionado nº 2 do art. 722º.
Tal como referiu o douto acórdão em recurso, a recorrida não confessou na sua contestação o teor do facto do quesito 7º como pretende o recorrente.
O citado quesito tem a redacção seguinte:
" Durante o tempo em que o A. utilizou a viatura, fez com ela serviços a pedido e no interesse da Ré que ascenderam a Escudos: 2.274.173$00, consoante docs. 17 a 23, de fls. 57 a 63 ?..."
Este quesito mereceu da 1ª instância - fls. 222, verso - a resposta: "provado, apenas, que, entre 8-1-2001 e 15-3-2001, o A. facturou, em nome da ré, prestação de serviços no valor de, pelo menos, escudos (PTE) 2.270.173$00".
O facto do mencionado quesito 7º fora alegado nos arts. 41º e 42º da petição inicial que têm a redacção seguinte:
"41º Acresce que enquanto o A. teve a posse e fruição da identificada viatura efectuou diversos serviços de transporte a pedido da R. e no interesse desta."
"42º Serviços esses que ascenderam a 2.274.173$00."
Perante esta alegação, a recorrida na sua contestação, a fls. 75, depois de referir que "relativamente aos serviços de transporte, diga-se que os mesmos foram integralmente pagos", impugna expressamente o teor do art. 42º da petição inicial, ou seja, não admite que o autor tenha efectuado a pedido e no interesse da ré aquele montante de transportes.
Logo, bem andou o Senhor Juiz da 1ª instância ao fazer incluir aquela alegação do autor na base instrutória, por não estar aquela admitida por acordo tácito ou expresso - arts. 490º do Cód. de Proc. Civil.
Daí que, tal como bem entendeu o acórdão recorrido, não esteja confessado o teor daquele quesito, e, por isso, não haja que alterar a decisão daquela matéria de facto com base na alegada confissão.
Por outro lado, o recorrente ainda pretende a alteração da mesma matéria de facto com base no valor do documento de fls. 161 a 164 junto pela ré.
O documento aqui em causa consiste num " extracto existente na contabilidade da Empresa-A referente ao autor-reconvinte, à data de Abril de 2001".
Nesse extracto constam as seis primeiras das sete facturas que o autor juntou como fundamento do montante que figura no citado quesito 7º.
Poderá, assim, nos termos do art. 376º citado configurar uma prova plena documental, como pretende o recorrente ?
Ora, art. 376º nº 1 prescreve que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.
E o seu nº 2 acrescenta: os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão.
O art. 360º, integrado na secção que trata a prova por confissão, prescreve que se a declaração confessatória, judicial ou extra-judicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão. Trata-se assim do princípio da indivisibilidade da confissão que exige a aceitação da mesma na sua integralidade, salvo provando-se a inexactidão dos factos que transcendem a declaração estritamente confessatória.
Aplicando esta regra à prova documental aqui em causa, vemos que do citado extracto contabilístico ou conta-corrente constam variados movimentos contabilísticos favoráveis à ré e o saldo final ali constante é largamente favorável à mesma.
Desta forma, a aceitar-se a declaração da ré ali constante do valor das seis das sete facturas do autor, haveria que aceitar os demais movimentos cujo saldo seria favorável à ré, pelo que seria de improceder o pedido do autor aqui em causa.
Por outras, palavras diremos que o teor do documento só seria aceitável no seu todo e não apenas na parte em que é favorável ao autor e tendo o autor rejeitado o que ali lhe é desfavorável, não podia ter sido admitida como provada a parte favorável àquele.
Soçobra, desta forma, também este fundamento do recurso e com ele toda a revista.

Pelo exposto, nega-se a revista pedida e, por isso, se confirma a douta decisão em recurso.
Custas pelo autor.

Lisboa, 24 de Outubro de 2006

João Camilo (Relator)
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos.



5. Bibliografia
• SOUSA, Miguel Teixeira de,
“Estudos sobre o novo processo civil”
“As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”

• LEBRE DE FREITAS, José,
“Código de Processo Civil anotado”
“A acção declarativa comum – À luz do código revisto” 2000

• DOS REIS, Alberto,
“Código de Processo Civil anotado”

• VARELA, Antunes,
“Manual de Processo Civil”

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